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1 PERSA 1 ARGUMENTO I 2 P artido tendo seu senhor, Tóxilo compra o seu amor E ntão trata com o cafetão para que seja libertada: R aptada jovem persuade-o a comprar de um mercador, S endo antes a filha do seu parasita disfarçada. 5 A ssim ele enganou o intrigado Dórdalo e encheu a cara! ARGUMENTO II 3 * ? escravo * * * * * * * * * * * * * 5 * eles fingem * * * ? * * * * * * * ? * ? * * ? a jov(em) * * 10 * ? * * * por um preço pequ(eno) * * * * * * recebeu de volta * * ? o cafetão * 1 Tradução (ainda em revisão, fev. 2015), feita por Beethoven Alvarez. O texto latino que serve como base para esta tradução parte fundamentalmente do de Lindsay (1905), confrontado, primeiramente, com Ernout (1938), Woytek (1982) e De Melo (2011), embora outras edições e leituras tenham sido levadas em conta. 2 O argumento I só aparece nos manuscritos palatinos. Sendo adições posteriores, argumentos como este são compostos em senários iâmbicos e em forma de acrósticos. Na tradução, mantive o formato de acróstico e simulei algum ritmo com linhas sempre de dezesseis sílabas métricas (criadas com alguns hiatos), embora sem uma acentuação rígida, porém com rima. 3 O argumento II, por sua vez, não aparece nos mss. da tradição palatina, mas consta, embora de forma muito fragmentária, do palimpsesto Ambrosiano. Os fragmentos que apresentei traduzidos são fruto do trabalho de decifração de Studemund (1889). Posteriormente, Schoell (1892) sugere, seguindo as lições de Ritschl, um possível texto para preencher as lacunas, cuja tradução anoto a seguir: Luta com grandes esforços, sem nenhum atrevimento: Ele precisa de dinheiro emprestado para comprar seus amores. Sagaristião engana seu senhor para ajudar o amigo. Para enganar o cafetão, inventam uma jovem raptada E, sendo antes a modesta filha do probo parasita Disfarçada, dizem que a jovem não tem parentes. Então é chegada uma carta trazida da Pérsia, De onde o cafetão ouve essa história sobre a jovem. O persa vende a bela jovem por uma bagatela E vai embora com o dinheiro. Logo depois, o pai Reclama a posse da filha e a liberta. O escravo fica com sua amada e recebe bem Seus companheiros. Feito de bobo, o cafetão reclama E é enganado, enquanto os outros se banqueteiam

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PERSA1

ARGUMENTO I2

Partido tendo seu senhor, Tóxilo compra o seu amor

Então trata com o cafetão para que seja libertada:

Raptada jovem persuade-o a comprar de um mercador,

Sendo antes a filha do seu parasita disfarçada.

5 Assim ele enganou o intrigado Dórdalo e encheu a cara!

ARGUMENTO II3

* ? escravo *

* * * *

* * * *

* * * *

5 * eles fingem * *

* ? * *

* * * *

* ? * ? *

* ? a jov(em) * *

10 * ? * *

* por um preço pequ(eno) *

* * * *

* recebeu de volta *

* ? o cafetão *

1 Tradução (ainda em revisão, fev. 2015), feita por Beethoven Alvarez. O texto latino que serve como base para esta tradução parte fundamentalmente do de Lindsay

(1905), confrontado, primeiramente, com Ernout (1938), Woytek (1982) e De Melo (2011), embora outras edições e leituras tenham sido levadas em conta. 2 O argumento I só aparece nos manuscritos palatinos. Sendo adições posteriores, argumentos como este são compostos em senários iâmbicos e em forma de

acrósticos. Na tradução, mantive o formato de acróstico e simulei algum ritmo com linhas sempre de dezesseis sílabas métricas (criadas com alguns hiatos), embora

sem uma acentuação rígida, porém com rima. 3 O argumento II, por sua vez, não aparece nos mss. da tradição palatina, mas consta, embora de forma muito fragmentária, do palimpsesto Ambrosiano. Os

fragmentos que apresentei traduzidos são fruto do trabalho de decifração de Studemund (1889). Posteriormente, Schoell (1892) sugere, seguindo as lições de Ritschl,

um possível texto para preencher as lacunas, cuja tradução anoto a seguir:

Luta com grandes esforços, sem nenhum atrevimento:

Ele precisa de dinheiro emprestado para comprar seus amores.

Sagaristião engana seu senhor para ajudar o amigo.

Para enganar o cafetão, inventam uma jovem raptada

E, sendo antes a modesta filha do probo parasita

Disfarçada, dizem que a jovem não tem parentes.

Então é chegada uma carta trazida da Pérsia,

De onde o cafetão ouve essa história sobre a jovem.

O persa vende a bela jovem por uma bagatela

E vai embora com o dinheiro. Logo depois, o pai

Reclama a posse da filha e a liberta.

O escravo fica com sua amada e recebe bem

Seus companheiros. Feito de bobo, o cafetão reclama

E é enganado, enquanto os outros se banqueteiam

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PERSONAGENS DO DRAMA4

TÓXILO, escravo de Timárquides

SAGARISTIÃO, escravo, amigo de Tóxilo

SATURIÃO, parasita

SOFOCLIDISCA, criada (a serviço de Lemniselene)

LEMNISELENE, prostituta (propriedade do cafetão)

PÉGNIO, escravo (ainda menino)

UMA JOVEM, filha do parasita

DÓRDALO, cafetão

CENA ATENAS

4

Schimdt, 1902; Woytek, 1982; Richlin, 2005)

SAGARISTIÃO = SAGASTIÃO (aproveitando raiz sag-

SATURIÃO = SATURADÃO ou SATISFEITIÃO (da raiz satur-

SOFOCLIDISCA = SOFOCLIANINHA (de Sófocles + sufixo de diminutivo)

LEMNISELENE = LEMNELUANA (Lemnos, ilha grega + Selene, deusa da lua)

PÉGNIO = BONECO (de

DÓRDALO = DÁRDALO (por alguma

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ATO I5

I.i TÓXILO SAGARISTIÃO (Cena com acompanhamento musical)6

TÓX. (Entrando pela direita)7 Aquele pobre apaixonado que ingressou, primeiro,8 nos caminhos do Amor

superou, com seus trabalhos, os trabalhos de Hércules.9

Com o leão,10 com a serpente, com o cervo, com o javali etólico,11

com as aves do Estinfalo, com Anteu12 eu preferia lutar

5 a lutar com o Amor:13 assim fico cada vez mais infeliz,14 pedindo dinheiro emprestado,

SAG. (Entrando pela esquerda, sem notar Tóxilo) O escravo que quer bem servir sua servidão a seu senhor,15

certamente, por Pólux,16 lhe convém colocar muitas coisas em seu coração

que pense agradar seu senhor, presente ou ausente.

10 Eu nem sirvo porque quero nem sou bom o suficiente para o meu senhor, na minha opinião,

mas, ainda assim, como de um olho remelento,17 meu senhor não consegue tirar a mão de mim,

me dando ordens, me pondo à frente de seus negócios.18

TÓX. Quem é aquele ali que está na minha frente? SAG. Quem é esse aqui que está na minha frente?19

5 A divisão do texto em atos não parece ter sido prática orgânica na composição das comédias romanas; contudo, seguindo a indicação da edição de João Batista Pio

(1500), adotou-se a divisão das comédias em cinco atos, de acordo com a preceituação de Horácio (Ars 189 seq.) e tomando como base as comédias gregas. Questa

(1982, p. 243 seq.) demonstra que outros mss. já apresentavam a divisão antes de Pio. Mantivemos essa tradicional divisão em atos para facilitar a consulta, porém

sempre me refiro à numeração contínua dos versos. 6 As comédias romanas eram muito musicais. Embora haja ainda muita dúvida sobre a realidade do componente musical, sabemos, com alguma certeza, que certas

cenas (cerca de 60%) eram encenadas com acompanhamento musical, e outras (aprox. 40%) eram apresentadas sem acompanhamento. Indicarei, na tradução, no

início das cenas, o modelo musical de cada uma. Normalmente, considera-se que as cenas sem acompanhamento musical era

costuma- em versos mais ou

há pouca segurança para afirmar que houvesse realmente diferença (e qual seria) entre os modo de expressão das cenas musicais, então, aqui assumo apenas a distinção

em cenas com música ou sem música, considerando, ainda, que os modos de expressão de todas as cenas, com ou sem a superposição do elemento musical, deveriam

ser altamente artísticos. 7 -las, como fazem muitos editores e tradutores

modernos, para ampliar a percepção da performance teatral, porém tentei limitá-las ao mínimo possível. 8 primeiro: Em latim, princeps omo primus em Pl., Men. 451), invocando o tópos literário do (prôtos heuretḗs), o

primus inuentor tópos

aparece em Cist. 203, quando Alcesimarco imagina que o Amor foi o primeiro inventor da tortura entre os homens. Sobre o tema, cf. Fraenkel, 7, e Woytek, 138.

como si fuera un príncipe 9 superou, com seus trabalhos, os trabalhos de Hércules: Comparação mitológica (cf. Pl., Men. 199, Epid 178 e Pseud. 1244). Trata-se de uma típica komparativischen

Gesprächsanfänge (fala de abertura comparativa), cf. Woytek, 139. Hércules foi um dos mais conhecidos heróis gregos, cujo mito é mais conhecido pelos chamados

Dodekathlos). 10 trabalhos de Hércules: De acordo com a ordem canônica, o primeiro trabalho de Hércules foi (1) matar o Leão da Nemeia, cuja pele arrancou com as próprias

mãos e passou a utilizar como proteção, como se vê tipicamente em sua iconografia. Em seguida, (2) matou a Hidra de Lerna, uma serpente que possuía nove cabeças

que se regeneravam. Ainda (3) perseguiu e matou a Corça de Cerineia, (4) capturou vivo o javali de Erimanto, (5) limpou os currais do rei Aúgias com a água de dois

rios e (6) matou, no lago Estinfalo, pássaros monstruosos, com asas, cabeças e bicos de ferro. As seis primeiras tarefas ocorrem todas na região do Peloponeso. (7) A

sétima tarefa de Hércules era levar o Touro de Creta vivo até Euristeu. Depois, (8) ainda castigou Diomedes da Trácia, cujos cavalos vomitavam fogo, (9) venceu as

amazonas e pegou o cinturão mágico da rainha Hipólita, (10) matou o gigante Gerião e lhe tomou os bois, (11) colheu os pomos de ouro do Jardim das Hespérides e

ofereceu-os a Atena, e, por último, (12) trouxe do mundo dos mortos o cão Cérbero. 11 javali etólico: considerado um erro de

Plauto (cf. Ussing II, 120 e Fraenkel, 10), porém, modernamente, é interpretado como um jogo intencional de Plauto, que brincaria com a ignorância de Tóxilo (cf.

Chiarini, 1979). 12 Anteu: (aerumnae), mas sim a

luta contra o gigante Gerião. Conta-se que Anteu, filho de Gaia (Terra), era monstruosamente forte e derrotava todos os seus adversários, até que Hércules descobriu

que a força do monstro vinha do seu contato com o solo. Assim, o herói suspende o gigante em seus braços e o derrota. 13 a lutar com o Amor: Evoca o tópico da militia amoris (milícia de amor), ou seja, a descrição de eventos amorosos com comparações que utilizam termos e imagens

militares. A metáfora do amor como uma guerra ainda será mais explorada nas próxima falas de Tóxilo. 14 ita fio miser: Com essas palavras, uma característica interessante da peç

tema da luta contra o Amor, uma vez que tipicamente é o escravo que auxilia seu jovem senhor a resolver seus problemas amorosos; contudo, quando Tóxilo diz

Persa, será ao mesmo tempo o seruus callidus e o adulescens amans. Essa amálgama

é única em todas as peças restantes da comédia romana. Outros personagens, nesta peça, unirão características de mais de um tipo de personagem. 15 servir sua servidão: Mantive na tradução a repetitiva aliteração e a figura etimológica, traços bem marcantes do estilo plautino. 16 por Pólux:

edepol (ou pol), por Pólux, encontramos hercle (ou

mehercle ecastor -12. Pólux e Cástor eram dois irmãos gêmeos na mitologia grega e romana, filhos de

Leda, contudo de pais diferentes. Pólux era filho de Leda com Zeus; e Cástor, com Tíndaro. Depois da morte de Cástor, Pólux suplica a Zeus que devolva sua vida.

Zeus decide que Pólux deve então compartilhar sua imortalidade com o irmão, alternando com ele um dia de vida e outro de morte. Pólux aceitou e Zeus os

transformou depois na constelação de Gêmeos, para que no céu nunca fossem separados. 17 olho remelento: Comparação cômica. 18 Trata- em Plauto. Cf. Fraenkel, 156- 19 A sucessão de falas (v. 13-15) nos dá uma grande insight sobre a movimentação no palco.

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TÓX. Parece com Sagaristião. SAG. Aquele, com certeza, é meu amigo Tóxilo.

15 TÓX. É ele, sem dúvida. SAG. Tenho certeza de que é ele. TÓX. Vou chegar perto. SAG. Vou até lá.

TÓX. Sagaristião, que os deuses te amem!20 SAG. Tóxilo, que os deuses te deem o que você pedir.

Como vai?

17a TÓX. Como posso. SAG. O que está acontecendo?

17b TÓX. Vou vivendo.

SAG. Você não acha então que está bom? TÓX. Se acontecer o que estou querendo, sim.

SAG. Você aproveita muito mal os amigos. TÓX. Como assim? SAG. Tem que dar ordens.

20 TÓX. Para mim, na verdade, você já estava morto: há muito não te via mais.

SAG. Por Pólux, negócios. TÓX. Negócios de ferro talvez?21 SAG. Por pouco mais de um ano,

estive muito ferrado nos moinhos, como um tribuno de apanhar.22

TÓX. Essa sua milícia já é velha. SAG. Você tem passado bem? TÓX. Não muito bem.

SAG. Por Pólux, por isso que está pálido.23 TÓX. Fui ferido no combate do Amor:24 Cupido25

25 atravessou meu coração com uma flecha. SAG. Os escravos já amam por aqui?26

TÓX. O que eu vou fazer? Me colocar contra os deuses?27 Como os Titãs, guerrear28

contra aqueles para os quais não posso ser páreo?

SAG. Olha lá!, para as catapultas de galhos de olmo29 não te atravessarem as costas.

TÓX. Como um rei, celebro as Eleutérias!30

29ª SAG. Por que isso? TÓX. Porque meu senhor está no estrangeiro. SAG. Você está dizendo:

30

30a venha:31 você vai viver comigo,

vai ser recebido com um banquete de um rei.

SAG. Ah, minhas costas já coçam só de ouvir você falar essas coisas.

TÓX. Mas uma única coisa me atormenta. SAG. O que é?

TÓX. Hoje é o dia derradeiro: minha amada será libertada,

34a ou servirá a servidão eterna. SAG. O que você quer agora então?

35 TÓX. Você pode ganhar um amigo para sempre: eu. SAG. De que modo?

TÓX. De modo que me dê seiscentas moedas,32 que vou pagar pela liberdade dela

e que vou te repor nos próximos três ou quatro dias.

Vai, me socorre, seja bonzinho.

SAG. Com qual cara de pau você ousa me pedir tanto dinheiro,

40 seu sem vergonha? Ora, se eu mesmo me vender todinho, dificilmente seria possível conseguir

o que você está pedindo; agora você está pedindo água para uma pedra-pomes,

quando ela mesma está morta de sede. TÓX. É assim que você faz comigo? SAG. O que eu vou fazer? TÓX. Está me

perguntando?

Pede um dinheiro emprestado por aí. SAG. Faça você mesmo isso que está me pedindo.

TÓX. Já pedi, não consegui em lugar nenhum. SAG. Vou pedir então, se alguém me der crédito.

45 TÓX. Ah, sim, então já estou com o dinheiro na mão. SAG. Se eu tivesse isso em casa, já estaria prometido:

20 que os deuses te amem: erentemente

21 ferreum (negotii): 22 tribunus . Vapulare vapularis

tribunus popularis tribunus militaris). 23 pálido: Caracterização comum do jovem apaixonado. 24 combate do Amor: Em latim, Veneris proelio militia amoris. 25 Cupido: Deus, filho de Vênus, muitas vezes representado como o próprio Amor. 26 Os escravos já amam por aqui?: Pergunta metateatral de Sagaristião. Na comédia romana, jovens apaixonados são normalmente homens livres. Sagaristião

27 lutar contra os deuses: Amplificação hiperbólica da milícia de amor, em que o escravo se compara a deuses e Titãs. 28 Titãs: Seres mitológicos que, quase no início dos tempos, guerrearam contra os deuses e foram derrotados. 29 catapultas de galhos de olmo: Referência cômica aos galhos de olmo que serviam para castigar os escravos. 30 Eleutérias: Festa da Liberdade celebrada por escravos libertos na Grécia. Tóxilo aqui está fazendo troça dessa realidade, uma vez que seu senhor está viajando e seu

comportamento durante a peça, muitas vezes, se assemelha ao de um jovem livre. 31 Na tradução, tenho utilizado imperativos tanto em 2ª como em 3ª pessoa, mantendo um uso irregular atestado na maioria de nossos registros. 32 seiscentas moedas: O termo nummus (moeda) é um termo genérico para designar dinheiro. Uma moeda pode equivaler a um sestércio, ou a um didracma, ou a

um tetradracma, ou a um filipo o que parece ser o caso aqui, segundo Chiarini, p. 19, n. 10. Se um nummus valesse um Philippus (que é igual a 4 dracmas), 600

moedas seriam iguais 2400 dracmas, ou seja, 24 minas. Isso seria um valor plausível, uma vez que o preço médio de um escravo deveria ser entre 20 e 30 minas (cf.

Curculio).

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dou minha palavra que vou me esforçar. TÓX. Haja o que houver, volte aqui.

Mas pede. Eu também vou me esforçar. SAG. Se acontecer alguma coisa, você vai saber.

TÓX. * Eu te suplico e te imploro. Dá uma atenção de verdade a isso por mim.

48a SAG. Ah! Você me mata de ódio.

TÓX. Por uma falta do Amor,33 não minha, agora pareço um idiota na sua frente.

50 SAG. Mas, por Pólux, vou embora daqui. TÓX. Já está indo? Vai em paz.

Mas volte assim que puder, evite que eu saia ao seu encalço.

Até lá, estarei em casa, enquanto maquinarei alguma maldade para aquele cafetão.34

(Ambos saem de cena, Tóxilo entra em casa)

I.ii SATURIÃO (Cena sem acompanhamento musical)

(Saturião entra, vindo da direita)

SAT. Conservo e mantenho a velha e antiga profissão35 de meus ancestrais

e ainda a cultivo com grande cuidado.36

55 Pois nunca houve nenhum de meus antepassados

que não alimentaram seus ventres parasitando:37

pai, avô, bisavô, trisavô, tataravô, tatataravô,38

como ratos,39 sempre comeram a comida alheia,

e ninguém podia vencê-los em voracidade,

60 nem ninguém possuía o sobrenome 40

Por isso, mantenho esta profissão e o posto dos meus antepassados.

Eu não quero ser delator por profissão;41 não convém, de fato,

sem perigo para mim, sair por aí tomando os bens alheios,

nem os que fazem isso me agradam. Falo claro?

65 Mas todo aquele que faz isso por causa da República

mais do que em benefício próprio,42 posso ser levado a acreditar

67 que seja um cidadão tanto bom quanto honesto.43

67a Mas *** 44

se aquele que acusa um quebra-leis 45 tivesse que dar para a República

a metade de seus lucros, e, ainda, se nessa lei fosse adicionado:

70

da mesma forma, este alguém, por sua vez, deve denunciar o delator,

para irem aos triúnviros46

se fosse assim, eu garanto que aqueles que enredam os bens alheios

em brancas redes47 não apareceriam mais.

75 Mas sou eu um estúpido mesmo: por que me preocupo com a República,

33 Amor como causa dos males. Muitas vezes, os jovens amantes são retratados como estúpidos. 34 Referência comum da movimentação teatral ao final das cenas. Os personagens quase sempre anunciam quando vão sair de cena. 35 velha e antiga profissão: Duplicação. 36 conservo e mantenho... e cultivo: Acumulação sindética. 37 O início da fala evoca uma glorificação cômica dos antepassados: Saturião se orgulha de seus ancestrais parasitas e elenca seis gerações da família. 38 Verso raro devido à construção métrica e acumulação assindética. 39 como ratos: Símile com animais. 40 Caras-de-Pau: duris Capitonibus Capito,

-onis duris Capitonibus Duricapitonibus -se um nome cômico. Em português,

dequado para a piada. Por outro

-de-Pa The Blues Brothers, 1980), então julguei bem adaptado. Outra interpretação,

contudo, é dada por De Melo (2011): piscis capito -

para apelida atque eis cognomentum era uiris Capitonibus and these men had

the nickname Mullets não concorda com a leitura de Woytek. 41 delator por profissão: Um quadrupulator era uma espécie de profissão cuja função era denunciar aqueles que quebravam as leis e levá-los a juízo. Condenados, os

reús tinham que ressarcir uma quantidade quatro vezes maior do que tinham causado prejuízo. Metade desse dinheiro ficava com o tribunal, metade com o delator. 42 Mantive o anacoluto. 43 Verso interessante pelos hiatos. 44 Corrupção do texto. 45 quebra- legerumpa (lex + rump- + a), palavra possivelmente cunhada por Plauto. 46 triúnviros: Magistrados encarregados de julgar e aplicar as leis e punições. 47 brancas redes: co.

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quando existem magistrados que devem se preocupar?

Agora vou entrar,48 vou ver os restos de comida de ontem:

se descansaram direitinho, se não tiveram febre,

se foram destapados, ou se alguém os roubou.

80 Mas as portas se abrem,49 devo retardar o passo.

I.iii TÓXILO SATURIÃO (Continua sem acompanhamento musical)

(Tóxilo entra, vindo de casa, sem ver Saturião em cena. Saturião vê Toxilo, mas não o ouve a princípio)

TÓX. Inventei todo um plano50 para que, com seu próprio dinheiro,

o cafetão hoje a faça sua liberta.

Mas eis o parasita, de quem vou precisar da ajuda.

Vou fingir que não o vejo: e aí vou aliciar o homem.51

85 Cuidem disso aí e agilizem tudo,

para que não haver nenhum atraso quando eu entrar.52

Misture o vinho com o mel, Strúteas,53 coloque a água54

para ferver nas panelas, e jogue o cálamo-aromático.55

Por Pólux, acho que já, já ele vem para cá, meu amigo de guerra.56

90 SAT. Ele fala de mim, oba! TÓX. Acho que já vai chegar aqui limpinho,

vindo dos banhos públicos. SAT. Como tem tudo em ordem!

TÓX. Cuidem para que cozinhem bem o macarrão e essa carne,57

para não me servirem isso mal cozido. SAT. Fala a coisa certa!

Cruas não valem nada; só valem se você as engolir cozidinhas.

95 Além disso, se o molho do macarrão não for grosso como um creme,

não é nada mais que um vestido de mulher, fino e transparente:

o molho do macarrão deve ser como uma capa de chuva grossa.58

Não quero que a comida vá para a bexiga, mas sim para barriga.

TÓX. Um não-sei-quem está falando aqui perto de mim. SAT. Ó, meu Júpiter,

100 seu companheiro de mesa59 na terra o saúda.

TÓX. Ó, Saturião, você me chegou na hora certa.

SAT. Mentira, por Pólux, você não deve dizer isso:

Pois quem veio foi o Esvaziadão, não chego Saturião.60

TÓX. Mas você já vai comer: os esquenta-barriga já fazem fumaça lá dentro.

105 Mandei esquentar as sobras. SAT. Mas o presunto

deve ser servido frio no dia seguinte.

48 o que, de certa maneira, evoca um

registro um pouco menos formal. 49 Referência à movimentação teatral e ao próprio cenário (aperiuntur aedes). 50 Quanto à passagem de tempo entre a saída de Tóxilo (v. 52) e seu retorno (v. 81) há um certo debate. 51 Muitas vezes os personagens também fazem o anúncio de suas próximas ações. 52 Do lado de fora, falando para os criados (talvez fictícios) dentro da casa. 53 Strúteas: Como vocativo, é uma sugestão de Scaliger adotada primeiramente por Woytek e seguida por De Melo. Normalmente, struthea (de strutheum, -i) é lido

como um tipo de fruta. A leitura de struthea como um fruta é motivada pela se coluteaque

próxima nota. A sugestão de um vocativo, Struthea (cf. argumentação de Woytek, 187-92) ainda resolve o suposto problema da concordância: Tóxilo primeiro

de uma forma geral imperativos no plural curate e approperate, e, em seguida, troca para o singular sem explicação commisce e appara. O

vocativo explicaria essa mudança. 54 água: A passagem é de difícil recuperação, os mss. apresentam: coluthequam appara . Muitas tentativas de emendas apontam para coluteaque

Colúteas seriam um tipo de batata, mas a palavra não é sequer atestada, a não por suposições a partir do grego. Woytek sugere que talvez pudesse ser lido cal(i)dam

[aquam], o que faria sentido com a ideia da preparação do vinho. De Melo aceita a leitura e explica que calidam podia ser utilizada substantivamente, sem necessidade

de aquam, o que faz caber no metro. 55 jogue o cálamo-aromático: Planta aromática muito utilizada na preparação de vinhos. Mais um argumento para a emenda calidam, no v. acima. 56 amigos de guerra: Na verdade em latim, congerro. 57 o macarrão e essa carne: collyra, -ae, um tipo de pasta; colyphium, -i, um tipo de carne, talvez um corte de carne de porco. 58 Passagem discutida, cf. Woytek 194-5. 59 coepulonus: Alguns estudiosos se valem desse verso para tentar determinar a datação da peça: coepulonus faz referência a epulum louis (banquete de Júpiter), uma

refeição ritual instituída em 196 a.C., de modo que Persa deve ter sido escrita depois de 196 a.C. De Melo acredita ainda que Persa deve ter sido encenada depois de

Pseudolus (191 a.C.), portanto, de toda forma, deve se tratar de uma das últimas peças de Plauto. 60 essurio: Brincadeira que o personagem faz com o próprio nome. Saturião (que vem da raiz satur-, cheio, satisfeito) joga com as palavras e diz chegar Esurio, ou

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TÓX. Mandei fazer assim. SAT. E aquele molhinho de peixe? TÓX. Opa, ainda pergunta?

SAT. Você sabe tudo de gastronomia. TÓX. Mas e você, lembra aquilo

sobre o que conversei com você ontem?

110 SAT. Lembro: que não esquentassem a moreia e o congro,

pois é muito melhor tirar as espinhas deles frios.

Mas por que demoramos para começar o combate?61

Ainda pela manhã, todo homem deve comer.62

TÓX. É muito cedo ainda. SAT. O negócio que você começa a fazer

115 pela manhã se desenrola bem durante todo o dia.

TÓX. Por favor, presta atenção aqui. Já falei com você ontem

e te pedi que me arranjasse as seiscentas moedas

emprestadas. SAT. Lembro e sei bem

que você me pediu e que eu não tinha para te dar.

120 Não vale de nada um parasita que tem dinheiro em casa:63

na mesma hora tem vontade de começar um banquete,

se fartar com o próprio dinheiro, se tiver algum em casa.

Um parasita deve ser pobre exatamente como um cínico:64

deve ter uma jarra, um estrígil, uma garrafa, sandálias, um pálio,

125 uma bolsa, e nela, um pouco do necessário

para gozar apenas sua própria vida.

TÓX. Não quero mais seu dinheiro: me dá sua filha

emprestada. SAT. Por Pólux, nunca emprestei minha filha para ninguém.

TÓX. Não é para isso que você está insinuando. SAT. Por que você a quer? TÓX. Você vai saber:

130 porque ela é bonita e livre. SAT. Isso mesmo.

TÓX. Por aqui, o cafetão não conhece você nem sua filha.

SAT. Como alguém vai me conhecer se não me oferecer comida?

TÓX. Isso. Desse jeito você pode conseguir esse dinheiro para mim.

SAT. Meu desejo, por Hércules. TÓX. Então me deixe vender sua filha.

135 SAT. Você vai vendê-la? TÓX. Não, vou encarregar um outro,

que vai se dizer ser estrangeiro, de vendê-la.

Não faz seis meses que esse cafetão

se mudou de Mégara para cá. SAT. As sobras estão estragando.

Com certeza, isso a gente pode ver depois. TÓX. Você sabe o que a gente pode?

140 Por Hércules, você não come hoje aqui, pra deixar de ser bobo,

antes de me dizer se vai fazer o que eu estou pedindo,

e, se não trouxer sua filha junto contigo para cá o mais rápido

possível, por Hércules, vou te expulsar desta decúria .65

E agora? Como é que é? O que me diz que você vai fazer?

145 SAT. Por favor, por Hércules, se quiser me vende também,

desde que me venda cheio . TÓX. Faz o que você quiser.

SAT. OK, vou fazer o que você quer. TÓX. Faz bem. Se apressa, vai para casa.

Instrua sua filha com inteligência, ensina com astúcia

o que ela vai falar: onde vai dizer que nasceu,

150 quem foram seus pais, de onde foi roubada.

Mas que confirme que nasceu longe de Atenas.

E para que chore, quando lembrar disso tudo.66 SAT. Quer calar a boca?

Ela é três vezes pior do que você quer que ela seja.

61 combate: Outra metáfora do combate, agora representando uma refeição. 62 Referência rara ao período do dia, na comédia. Normalmente, os enredos das comédias são montados para se realizarem em uma única unidade de tempo. 63 Verso corrompido. Alguns aceitam a leitura Argentumdonidest Endinheiradão . 64 cínico: Filósofos gregos seguidores de Diógenes de Sinope (404/412 a.C. c.323 a.C.), conhecidos pelos votos de pobreza. Carregavam apenas o estritamente

necessário, como Saturião descreve. Interessante que as sandálias (soccos) são o mesmo tipo de sandálias usadas tipicamente por atores de comédia. 65 decúria: Termo militar que significa uma grupo de soldados, aqui fazendo referência ao grupo que Tóxilo comanda. 66 Tóxilo dá todas as instruções para a filha do parasita assuma seu papel na encenação dentro da peça.

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8

TÓX. Por Hércules, falou bonito. Mas você sabe o que fazer? Pegue

155 a túnica e o cinto, e traga também o manto e o chapéu

para aquele que vai vendê-la ao cafetão colocar.67 SAT. Boa, claro.

TÓX. Como se fosse um estrangeiro. SAT. Muito bom. TÓX. E traz sua filha

disfarçada lindamente num estilo estrangeiro.

E os disfarces? Where from?68 TÓX. Pegue com o diretor.69

160 Ele tem que te dar: os edis70 o contrataram para fornecer isso.

SAT. Já, já vou fazer aparecerem aqui. Mas eu não estou entendendo nada.

TÓX. Por Hércules, isso: nada! Assim que eu tiver recebido o dinheiro,

você sem demora a liberta das mãos do cafetão.

SAT. Se, na mesma hora, eu não arrancá-la dele, ele acaba ficando com ela.

165 TÓX. Vai e cuida disso. Enquanto isso, eu quero enviar um menino

até minha amada, pra ela ficar tranquila

que eu vou resolver isso tudo hoje. Estou falando demais!

(Saem de cena)

ATO II

II.i SOFOCLIDISCA (Cena com acompanhamento musical)

(Sofoclidisca entra, vindo da casa de Dórdalo, com uma carta na mão, falando sozinha como se estivesse falando com

Lemniselene)

SOF. Era suficiente dizer isso tantas vezes para uma ignorante, desmiolada, idiota.

Enfim, acredito muito que você me acha uma estúpida, uma caipira.

170 Embora eu beba um vinhozinho, ainda não me acostumei a beber junto as ordens.

Eu, de verdade, pensava que eu e meus costumes já éramos bem conhecidos por você.

Pois, realmente, acompanho você já faz cinco anos, tempo em que, entre outras coisas, creio,

se uma ovelha fosse para escola, poderia acontecer de aprender a escrever perfeitamente,

enquanto, nesse mesmo tempo, você, seja lá o que for, ainda não entendeu minhas qualidades.

175 Você pode ficar quieta? Pode parar de ficar lembrando disso?

Lembro e sei bem, entendo e relembro.

Por Pólux, você está apaixonada, é uma infeliz: isso enche seu coração71.

Eu vou cuidar para que você fique calma.

Infeliz é aquele que ama. Mas é certo que aquele que não ama

180 não vale de nada: que vida deve viver este homem?

Tenho que ir, para obedecer à minha senhora, para que que ela seja libertada o mais rápido possível, com minha ajuda.

Vou encontrar aquele Tóxilo: vou encher as orelhas dele com as ordens que me foram dadas.

II.ii TÓXILO PÉGNIO SOFOCLIDISCA (Continua com acompanhamento musical)

(Tóxilo entra, seguido de Pégnio, com uma carta na mão, saindo de casa, mas não veem Sofoclidisca ainda)

TÓX. Está tudo certo e bem claro para você? Entendeu tudo?

PÉG. Melhor do que você que me ensinou. TÓX. Fala a verdade, seu cabeça-de-apanhar?

185 PÉG. Mas estou dizendo, ora. TÓX. Então o que eu disse? PÉG. O mesmo que eu vou dizer pra ela.

TÓX. Por Pólux, não sabe. PÉG. Por Hércules, você aposta que eu não lembro? que eu não entendi tudo?

sim, aposta que você sabe quantos dedos você tem na mão hoje.

TÓX. Eu apostar com você? PÉG. Com coragem, se você quiser perder um dinheiro.

TÓX. Melhor fazer as pazes. PÉG. Então me deixa ir logo. TÓX. Não só deixo como estou ordenando,

190 mas eu quero assim: corre pra estar de volta em casa quando eu ainda pensar que você está aqui.

67 Série de referências a indumentária utilizada nas peças. 68 Where from? , utilizando expressão grega. 69 diretor: Referência metateatral. 70 edis: Magistrados que organizam os jogos. 71 Muitos atribuem parte do v. 177 à Lemniselene, que estaria, então, em cena.

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PÉG. Vou fazer isso. (Se dirige para casa) TÓX. Pra onde você está indo agora? PÉG. Pra casa: pra estar em casa, quando

você pensar que eu ainda estou aqui.

TÓX. Você é um escravo safado, e, por causa disso, vou te gratificar com uma coisinha .

PÉG. Sei bem, por Hércules, como costuma se repreender a falta de vergonha das promessas de um senhor,

nunca são obrigados a irem a juízo por causa dessas promessas.

195 TÓX. Vai embora logo. PÉG. Vou fazer você me agradecer. TÓX. Mas, esta carta, Pégnio,

entraga para a própria Lemniselene e fala o que mandei.

SOF. Estou me demorando muito para ir aonde fui enviada.

PÉG. Estou indo. TÓX. Vai então. Eu vou para casa. Cuida disso e faz tudo com atenção.

Corre voando. PÉG. Isso é o que costuma fazer o avestruz no circo. (Tóxilo sai e entra em casa)

200 Ele já foi lá para dentro. Mas quem é aquela que aparece na minha frente?

SOF. Aquele ali é Pégnio. PÉG. É Sofoclidisca, a criada pessoal daquela

a quem fui enviado. SOF. Dizem que não há escravo pior que esse aí hoje em dia.

PÉG. Vou falar com ela. SOF. Eu tenho que fazer ele parar. PÉG. Tenho que parar diante deste obstáculo.

SOF. Pégnio, meu querido, salve. Como vai? Como está?

205 PÉG. Sofoclidisca, que os deuses me amem! SOF. E a mim? PÉG. Por Hércules,

o que eles quiserem, mas se fizerem o que você merece, por Hércules, vão te odiar e te castigar.

SOF. Para de falar besteira. PÉG. Quando digo o que você merece, falo a verdade, e não besteira.

SOF. O que está fazendo? PÉG. Estando na sua frente, estou vendo uma mulher horrível.

SOF. Eu é que não conheço nenhum outro escravo pior que você.

210 PÉG. O que eu fiz de errado ou de quem falei mal? SOF. De todo mundo que você pode.

PÉG. Ninguém nunca pensou isso de mim. SOF. Por Pólux, mas muitos sabem que é assim.

PÉG. Ah! SOF. Bah! PÉG. Você está julgando os costumes dos outros de acordo com sua própria natureza.

SOF. Admito que eu sou perfeitamente como deve ser uma serviçal de um cafetão.

PÉG. Você já falou demais. SOF. Mas e você? Admite que você é como eu estou dizendo?

215 PÉG. Admitiria, se fosse assim. SOF. Vai embora, você venceu. PÉG. Sai logo daqui. SOF. Me diz uma coisa:

para onde está indo? PÉG. Para onde você está indo? SOF. Fala você. PÉG. Fala você. SOF. Perguntei primeiro. PÉG.

Mas vai saber depois.

SOF. Por Castor, não vou para longe daqui. PÉG. E eu também não vou para longe. SOF. Para onde vai, seu patife?

PÉG. Se eu não souber primeiro de você, de mim você nunca vai saber o que quer saber.

SOF. Por Castor, hoje você não vai saber de nada antes que eu tenha ouvido tudo de você.

220 PÉG. É assim? SOF. É assim. PÉG. Você é uma vigarista. SOF. Você é um bandido. PÉG. Me convém. SOF. Mas não me

convém.

PÉG. O que você está dizendo? Está certo me esconder para onde você está indo, sua covarde?

SOF. Você não decidiu me ocultar para onde está indo, seu covarde?

PÉG. Você está me respondendo com a mesma pergunta. Vai embora, já que está decidido assim:

não quero saber de mais nada. Passar bem. SOF. Espera aí. PÉG. Não! estou com pressa. SOF. Por Pólux, eu também.

225 PÉG. O que você tem aí? SOF. E você? PÉG. Nada, ora. SOF. Então me dá a mão! PÉG. Esta é uma mão?

SOF. Onde está aquela outra, a esquerda furtadora. PÉG. Hum, em casa. Não trouxe nenhuma para cá.

SOF. Você tem alguma coisa que eu não sei o que é. PÉG. Não me toque, sua carrasca. SOF. E se estiver apaixonada por

você?

PÉG. Está perdendo seu tempo. SOF. Por quê? PÉG. Porque não se ama ninguém quando se ama um ingrato.

Desde cedo deve-se ficar atento a esse corpinho jovem,

230 para, quando ficar velho, não continuar sendo ainda desgraçadamente um escravo.

SOF. Você não deve pesar nem 30 quilos. PÉG. Mas é com ousadia

que se luta essa guerra, muito mais do que com o peso.

E agora eu estou perdendo meu tempo. SOF. Por que isso? PÉG. Porque estou ensinando a uma expert.

Mas agora estou atrasado. SOF. Espera. PÉG. Você está sendo inconveniente. SOF. E vou continuar sendo, se não souber

235 pra onde você está indo. PÉG. Pra sua casa. SOF. E eu, por Pólux, pra sua. PÉG. Por que pra lá? SOF. Por que isso te

interessa?

PÉG. Agora você é que não vai embora mesmo, enquanto eu não souber. SOF. É um desagradável. PÉG. Me agrada.

Por Hércules, você nunca vai me forçar a dizer, mesmo que você seja pior que eu.

SOF. No quesito maldade, competir com você é derrota na certa! PÉG. Você é uma má pedida!

Do que é que você tem medo? SOF. Do mesmo que você. PÉG. Fala logo então. SOF. Mas fui proibida

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240 de dizer isso para qualquer um: todos os mudos que falem antes!

PÉG. Me foi dito, com muito cuidado, para não confiar isso a ninguém,

todos os mudos que falem antes de mim. SOF. Mas faz assim:

Damos nossas palavras e confiamos um no outro. PÉG. Sei: todas as cafetinas são mãos-leves:

as aranhas- têm mais peso do que a promessa de uma cafetina.

245 SOF. Fala, por favor! PÉG. Fala, por favor! SOF. Não quero favores! PÉG. Está conseguindo sem dificuldades.

SOF. Guarde com você. PÉG. E você cala essa boca. SOF. Vai estar calada. PÉG. Vai estar guardado.

SOF. Trago esta carta para Tóxilo, seu senhor. PÉG. Vai, ele está em casa, veja.

E eu trago esta carta selada para Lemniselene, sua senhora.

SOF. O que está escrito aí? PÉG. Estou contigo, se você não sabe, eu também não:

250 só sei que devem ser doces palavras. SOF. Estou indo embora. PÉG. E eu vou nessa. SOF. Anda.

(Saem de cena e entram: Pégnio na casa do cafetão, Sofoclidisca na casa de Tóxilo)

II.iii SAGARISTIÃO (Continua com acompanhamento musical)

(Entra Sagaristião, vindo da direita, com uma bolsinha de moedas pendurada no pescoço)

SAG. A Júpiter opulento, ilustre,

nascido da Abundância, supremo, forte, viripotente,

concedente de riquezas, boas esperanças e abundância,

*** alegre, e merecidamente celebro,

255 porque, como amigos, dão ao meu amigo esta tudo isto:

assim lhe trago dinheiro emprestado que ele tanto precisava,

o que eu nem sonhava mais, nem pensava nem imaginava

ter essa oportunidade, esta que agora caiu do céu:

pois meu senhor me mandou à Erétria,72 para lhe comprar bois domados,

260 me deu o dinheiro, então disse que lá haveria uma feira daqui a sete dias:

estúpido é ele, que mesmo conhecendo minha natureza, me deu esse dinheiro.

Mas este dinheiro eu vou gastar em outro lugar: não havia bois para comprar .

Agora vou ajudar meu amigo e fazer muito bem ao meu próprio espírito,

num único dia, vou resolver uma situação que será boa por muito tempo: vai ter um vupt-vapt nas minhas costas, não

ligo.

265 Agora vou dar ao meu amigo os bois domados da minha bolsinha.

De fato, no fim isso é muito bom: abocanhar bem os homens , aqueles velhotes, sovinas, carcomidos,

que trancam o saleiro com sal dentro por causa dos escravos.73

Virtude é aproveitar,

268a quando a oportunidade aparece. O que ele vai me fazer?

Vai mandar me bater com os chicotes, me prender nas correntes? Que bata

270 e que não ache que eu vou pedir perdão: ai dele, já não pode me oferecer

nada de novo, em que eu já não tenha experimentado. Mas eis o menino do Tóxilo, Pégnio.

(Entra Pégnio, vindo da casa do cafetão)

II.iv PÉGNIO SAGARISTIÃO (Continua acompanhamento musical)

PÉG. O trabalho que me foi dado eu cumpri. Agora me apresso para casa. SAG. Espera, mesmo que esteja com pressa.

Pégnio, escuta. PÉG. Se você quer que alguém lhe obedeça, você tem que comprar esse alguém. SAG. Fica aí.

PÉG. Acho que você ia me perturbar muito se eu te devesse alguma coisa,

275 porque, agora, mesmo não devendo nada, você já está sendo chato. SAG. Safado, ainda vira a cara?

PÉG. Eu sei a idade que tenho, por isso essa ofensa fica impune.

SAG. Onde está seu senhor Tóxilo?

277a PÉG. Onde ele quiser, e não

277b te perguntou. SAG. Você

vai ou não vai me dizer onde ele está, seu peçonhento?

72 Cidade da Eubeia, uma ilha famosa pelo gado. 73 O sal era muito barato, então trancar o saleiro seria proverbialmente uma marca de sovinice.

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PÉG. Não sei, já disse, seu estribo-de-galho-de-olmo.

280 SAG. Você está ofendendo os mais velhos. PÉG. Você começou primeiro, aguenta.

280a Meu senhor me ordenou ter o trabalho escravo, mas a língua liberta.

SAG. Você vai me dizer onde está Tóxilo? PÉG. Digo... que você morra para sempre.

SAG. Hoje você vai apanhar com chicotadas. PÉG. Por sua culpa, corno!

Eu não teria medo, por Hércules, se eu te varar essa boca,74 sua carniça.

SAG. Estou te vendo: já foram chocados esses ovos.75 PÉG. Isso mesmo. O que você tem a ver com isso?

285 Mas não como você: de graça. SAG. Muito confiante. PÉG. Sou mesmo, por Hércules.

Eu acredito que vou ser liberto, você nunca terá essa esperança.

SAG. Você consegue não ser impertinente? PÉG. Você está pedindo o que você não consegue.

SAG. Vá procurar uma cruz. PÉG. E você vá pra casa: pois lá já tem uma preparada e prontinha para você.

SAG. Ele me deixa ir embora sob fiança.76 PÉG. Tomara que os fiadores não apareçam, pra que seja preso.

290 SAG. O que é isso? PÉG. O que é? SAG. Safado, ainda está me ofendendo?

PÉG. Uma vez que você é escravo, um escravo pode ofender você. SAG. É assim? Espera

pra ver o que vou te dar. PÉG. Nada, pois não tem nada. SAG. Que todos os deuses e deusas acabem comigo

PÉG. Sou seu amigo, quero que o que você deseja aconteça. SAG. E que seja assim,

se não, hoje, se eu te pegar, vou te socar e te pregar no chão.

295 PÉG. Você, me pregar? Qualquer dia, outros é que vão pregar você na cruz.

SAG. Que os deuses e as deusas você sabe o que eu ia dizer daqui para frente,

se eu não conseguisse moderar a língua. Você pode ir embora daqui? PÉG. Me mandar ir embora é fácil.

Minha sombra já está apanhando lá dentro. (Pégnio sai) SAG. Que os deuses e deusas acabem com esse aí.

É tão escorregadio quanto um animal peçonhento e de língua bifurcada.

300 Por Hércules, estou feliz que foi embora. A porta se abre e, veja,

aquele que eu mais queria encontrar está saindo lá de dentro.

(Entram em cena Tóxilo e Sofoclidisca, vindo da casa de Tóxilo)

II.v TÓXILO SOFOCLIDISCA SAGARISTIÃO (Continua com acompanhamento musical)

TÓX. Diga a ela que já está tudo preparado para conseguir o dinheiro,

mande-a ficar calma, diga que eu a amo muito;

quando ela se ajuda, ela também me ajuda. Isso que eu disse para você dizer

305 você entendeu direito? SOF. Sou mais calejada que couro de javali.

TÓX. Ande, vai para casa. SAG. (à parte) Agora eu vou ficar maravilhosamente lindo para ele.

Vou me apresentar com os braços apoiados na cintura e coberto gloriosamente com o manto.

TÓX. Mas quem é aquele jarro que está andando? SAG. Vou tossir magnificamente.

TÓX. Só pode ser Sagaristião. O que passa, Sagaristião? Tudo bem?

310 E quanto àquilo que lhe pedi, há alguma esperança? SAG. Aproxime-se.

Vamos ver. Quero muito. Venha. Me relembre.

TÓX. O que é isso aqui no seu pescoço que está inchado. SAG. É um abscesso, pare de apertar:

quando alguém mexe com uma mão ruim, as dores pioram.

TÓX. Quando isso lhe nasceu? SAG. Hoje. TÓX. Manda cortar fora.

315 SAG. Tenho medo de cortar antes do tempo, para não causar mais problema.

TÓX. Quero dar uma olhada nessa sua doença. SAG. Ai, ai, sai, e cuidado com os chifres.

TÓX. O que foi? SAG. É que tem uma parelha de bois aqui na bolsinha.

74 Com duplo sentido... 75 A metáfora é um pouco obscura por falta de outras referências, e os comentadores, muitas vezes, ignoram ou pouco dão atenção à passagem devido ao cunho sexual

os perciderim), o que sugere a prática da irrumatio, forçando Pégnio a assumir o papel passivo no sexo

video ego te

iam incubitatus es). Incubitare é o frequentativo de incubare, que

que mais se aproxima dessa ideia na

tradução, mas ainda assim hesita em colocar uma nota e disfarça u

76 Assim como hoje, sob o pagamento de uma fiança, um acusado pode não ficar na cadeia e ir para casa até a conclusão do processo ou comparecimento no tribunal.

fiança dos acusados. Se os fiadores não

passagem a fiança, os acusados continuavam presos até o julgamento. (Cf. Vásquez, 2003, p. 219)

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TÓX. Solte-os, por favor, senão vai matá-los de fome; deixa irem pastar.

SAG. É que tenho medo de que fiquem vagando por aí, que eu não possa levá-los de volta ao curral.

320 TÓX. Eu vou levar. Fique tranquilo. SAG. Vou acreditar, vou te emprestar.

Por favor, me siga por aqui. O dinheiro que me pediu ainda há pouco está aqui dentro.

TÓX. O que está dizendo? SAG. Meu senhor me mandou à Erétria para comprar bois.

Agora, para mim, a Erétria vai ser sua casa. TÓX. Você está muito lindo falando isso.

E eu vou te devolver todo este dinheiro sem demora, são e salvo,

325 pois já criei e preparei todas as mentiras

pelas quais vou tirar este dinheiro do cafetão. SAG. Tanto melhor.

TÓX. E não só para que minha mulher ser libertada, mas que, além disso, ele mesmo dê o dinheiro.

Mas me siga: para isso sua ajuda vai ser muito útil. SAG. Use como quiser.

ATO III

III.i SATURIÃO JOVEM (Cena sem acompanhamento musical)

(Entra Saturião, vindo da esquerda, junto com sua filha)

SAT. Que dê tudo certo para mim, para você e para minha barriga

330 e também para aquela sobrinha. Que, para sempre, a comida

me seja superabundante, superperto, supérstite:77

siga-me por aqui, minha filha, que os deuses estejam a nosso favor.

Você sabe, lembra e entende como a coisa toda vai acontecer,

eu expliquei para você todo o plano.

335 Por isso disfarcei você dessa forma,

hoje você vai ser vendida, menina. JOV. Por favor, meu pai,

tudo bem que você cobice com prazer a comida dos outros,

mas você vai vender sua própria filha por causa da sua barriga?

SAT. Estranho é vender você, que é minha filha, por causa do Rei Filipe

340 ou do Rei Átalo,78 e não por minha causa.

JOV. Como me considera: como uma filha ou uma escrava?

SAT. Por Hércules, como parecer mais interessante para minha barriga.

Eu acredito que eu tenha autoridade sobre você, e não você sobre mim.

JOV. Sim, pai, esse é seu poder.79 Entretanto,

345 embora nossas coisas sejam pobrezinhas, pai,

é melhor viver a vida de um jeito moderado e modesto.

Pois se à pobreza se assoma a má fama,

maior a pobreza se faz; o crédito, menor.

SAT. Você é mesmo insuportável. JOV. Não sou nem acho que sou,

350 uma vez que, jovem ainda, aconselho bem a meu pai.

Pois os inimigos não espalham nossa fama assim como ela é.

SAT. Que espalhem e que morram numa cruz bem grande.

Não dou valor para todas as inimizades juntas mais do que

para uma mesa vazia agora, se fosse posta para mim.

355 JOV. Pai, a má fama é a imortalidade dos homens.

Ela ainda vive quando se pensa que está morta.

SAT. O quê? Tem medo de que eu venda você de verdade? JOV. Não tenho medo, pai.

Na verdade, não quero é ser acusada depois. SAT. Mas você não quer nada.

Isso vai ser do meu jeito, não do seu.

360 JOV. Tá! SAT. Qual problema? JOV. Pense nestas palavras, pai:

77 No original, supersit, suppetat, superstitet. 78 Rei Filipe V da Macedônia (238-179 a.C.) lutou contra as dinastias Ptolomaicas e Selêucidas e foi o primeiro dos reis macedônios que lutou contra os romanos, sem

muito sucesso; Rei Átalo I de Pérgamon (269-197 a.C.) derrotou os gálatas e aliou-se aos romanos nas Guerras Macedônicas contra o Rei Filipe V, pelo que angariou

grande fortuna. 79 Referência à patria potestas

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Se um senhor ameaça aplicar um castigo em seu escravo,

ainda que isso não aconteça de verdade, quando se levanta o chicote,

enquanto tira a túnica, quanta dor se causa!

Eu agora tenho medo do que não vai acontecer.

365 SAT. Não existirá nenhuma mulher, casada ou não, que seja boa,

senão aquela que souber antes o que agrada a seus pais.

JOV. Não existirá nenhuma mulher, casada ou não, que seja boa,

senão aquela que se calar quando vê que algo está sendo feito errado.

SAT. É melhor você ter cuidado com o castigo. JOV. Mas não me deixam

370 ser cuidadosa: o que eu vou fazer? Eu quero ter cuidado com você.

SAT. Então eu sou teu castigo? JOV. Não e nem posso dizer isso,

na verdade, estou me esforçando para que não digam isso aqueles que podem.

SAT. Qualquer um diga o que quiser; eu não vou mudar

de ideia. JOV. Mas, se pudesse ser do meu jeito,

375 tudo se faria com inteligência e não com estupidez. SAT. Eu gosto assim.

JOV. Entendo que eu devo deixar você gostar assim,

mas não eu deixaria você gostar, se você deixasse.80

SAT. Vai ou não obedecer ao que seu pai diz?

JOV. Vou. SAT. Então, sabe tudo que te ensinei? JOV. Tudo.

380 SAT. E como foi roubada a força? JOV. Já estou calejada.

SAT. E quem foram seus pais? JOV. Tenho decorado.

Você está me obrigando a me tornar desonrada,

veja bem!, para que essa fama não faça

o casamento repudiável, quando quiser me casar.

385 SAT. Cale a boca, estúpida. Não está vendo os costumes dos homens hoje em dia?

Como se casa aqui facilmente mesmo com má fama?

Desde que haja dote, nenhum vício vira vício.

JOV. Faça isso então, só que lembre que

eu não tenho dote. SAT. Tenha cuidado com o que diz.

390 Por Pólux, pela virtude dos deuses e dos meus antepassados, vou lhe dizer uma coisa,

para que você, que tem um dote em casa, não diga que não tem dote:

tenho lá um baú cheio de livros.

Se fizer direitinho isso que estamos planejando

vai ganhar um dote de seiscentas palavras,

395 e todas áticas, não vai receber nenhuma siciliana.

Com este dote vai poder se casar talvez... com um mendigo.81

SAT. Por que você não me leva logo, se vai mesmo me levar para algum lugar, pai?

Ou me vende ou faz o que você quiser.

SAT. É assim que se fala. Me siga por aqui. JOV. Estou ouvindo.

(Saem Saturião e sua filha, em direção à casa de Tóxilo)

III.ii DÓRDALO (Continua sem acompanhamento musical)

400

(Entra Dórdalo, vindo de sua casa)

DÓR. O que posso falar esse meu vizinho? O que ele vai fazer?

Ele me jurou que ele próprio ia me dar o dinheiro hoje.

Porque, se este dia passar e ele não me der,

ele vai ter perdido sua promessa; eu, o dinheiro.

Mas a porta fez um barulho lá. Quem está saindo?

(Entra Tóxilo, vindo de sua casa, com uma bolsinha de moedas na mão)

80 Jogo de palavras. 81 um marido tão rico assim.

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III.iii TÓXILO DÓRDALO (Continua sem acompanhamento musical)

405

TÓX. Cuidem disso aí dentro, eu já, já volto para casa. DÓR. Oh,

Tóxilo, como vai? TÓX. Oh, lixo dos cafetões,

sujeira misturada com a bosta dos banheiros públicos,

imundo, desonesto, injusto, desleal, desonra do povo,

abutre avarento de dinheiro e invejoso,

410 ordinário, salafrário, falsário nem com trezentos versos

alguém consegue listar suas sujeiras.

(Fingindo que vai entregar a bolsa de dinheiro) Quer o dinheiro? Por favor, pegue o dinheiro, sem-vergonha,

pega o dinheiro, por favor. Já está pegando o dinheiro?

Posso fazer você pegar o dinheiro, seu lixo?

415 Não pensava que eu tinha essa quantidade de dinheiro?

Você que ousou não confiar em mim, a não ser sob juramento.

DÓR. Deixe-me respirar para eu te responder.

(Falando alto) Sumo homem do povo, bordel de meretrizes,

libertador de prostitutas, suador de chicotes,

420 gastador de correntes, cidadão dos moinhos,

escravo perpétuo, glutão, comilão, ladrão, fujão,

(tentando pegar a bolsinha) me passe meu dinheiro, por favor, me dá o dinheiro, sem vergonha,

posso te pedir o dinheiro? O dinheiro, estou falando, passa pra cá,

por que não me entrega o dinheiro? Não tem vergonha nenhuma?

425 O cafetão está te pedindo o dinheiro, seu escravo puro sangue,

para que sua amiga seja liberta: que todos ouçam.

TÓX. Cale-se, eu te peço, por Hércules. A sua voz é muito alta.

DÓR. Eu tenho uma língua por natureza capaz de retribuir favores.

O sal me é vendido pelo mesmo preço que a você.

430 Se ela não me defender, nunca vai lamber nenhum salzinho.

TÓX. Agora deixe para lá essa raiva. Eu tinha ficado com raiva de você,

porque você se negou a me emprestar o dinheiro.

DÓR. Não me admira eu não te emprestar dinheiro: pra você me fazer o mesmo

que a maioria dos banqueiros fazem:

435 quando se confia qualquer coisa a eles, fogem do fórum na hora, mais rápido

que uma lebre quando sai correndo da jaula durante os jogos.

TÓX. Pegue isso, por favor. DÓR. Por que não me dá? TÓX. (Entregando a bolsa) Aí estarão as seiscentas moedas,

honestas e bem contadas. Agora liberta a mulher,

e a traga para cá imediatamente. DÓR. Já vou fazer isso, ela vai estar aqui já.

440 Mas, por Hércules, não sei a quem eu dou isto para verificar.

TÓX. Será que você está com medo de colocá-las na mão de outro alguém?

DÓR. É impressionante como os banqueiros hoje fogem do fórum

mais rápido que uma roda sai girando.

TÓX. Vai para o fórum por ali, pelo beco lá detrás;82

445 do mesmo jeito, faça a mulher vir até aqui

pelo jardim.83 DÓR. Já vou providenciar que ela chegue aqui. TÓX. Mas não em público.

DÓR. Claro, muito bom. TÓX. Amanhã ela vai dar graças aos deuses.84

DÓR. Por Hércules, isso mesmo. TÓX. Enquanto você está aqui ainda, já devia ter voltado.

(Dórdalo sai por entre as casas)

ATO IV

82 Referência ao cenário: o angiportum era uma pequena e estreita rua ligava os fundos das casas e a outras partes da cidade. 83 fundos. 84 Era costume na Grécia, após a libertação de um escravo, a realização de um cerimônia de agradecimento aos deuses.

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IV.i TÓXILO (Continua sem acompanhamento musical)

TÓX. Se alguém faz alguma coisa com sobriedade e moderação,

450 essa coisa costuma dar perfeitamente certo.85

E, por Pólux, como quase todo mundo cuida dos seus próprios negócios

assim aparecem os resultados no final:

se alguém é mau-caráter ou um imprestável, os negócios que toca vão mal,

se, pelo contrário, é moderado, as coisas acontecem moderadamente.

455 Eu comecei este negócio com habilidade e esperteza,

então, confio que me dará bons resultados.

Agora, hoje eu vou enrolar tanto esse cafetão,

que ele não vai saber como se livrar dessa.

(Em direção sua casa) Sagaristião, ó, vem aqui pra fora e traz essa jovem,

460 e aquelas cartinhas que eu selei para você,86

e que você agora trouxe do meu senhor para mim, diretamente da Pérsia.

IV.ii SAGARISTIÃO TÓXILO (Continua sem acompanhamento musical)

(Sagaristião e a jovem entram, saindo da casa de Tóxilo, já com seus disfarces, e Sagaristião com uma carta na mão)

SAG. Demorei? TÓX. Bravo! Bravo! Está vestido como um rei:

a tiara ficou linda nesse seu disfarce.

E essa estrangeira também, como lhe caiu bem essa sandalinha.

460 Mas ensaiaram o suficiente? SAG. Nenhum ator trágico ou cômico

nunca ensaiou tanto. TÓX. Por Hércules, você está me ajudando muito bem.

Anda, vai pra lá, pra longe da nossa vista e fique calado.

Quando me vir falando com o cafetão,

ai será a hora de entrar. Agora vão.

(Os dois ficam no palco, mais afastados, sem serem vistos; enquanto Dórdalo entra)

IV.iii DÓRDALO TÓXILO (Cena com acompanhamento musical)

470 DÓR. Quando os deuses estão a favor de alguém, eles põe na sua frente alguma vantagem;

por exemplo, hoje eu matei dois coelhos uma cajadada só.87

Hoje, aquela que era minha escrava agora é dela mesma: venceu com dinheiro;

Hoje já vai jantar a comida de outro, nada vai provar da minha.

Sou ou não um cidadão honrado, maravilhoso, que hoje fiz a grande cidade de Atenas

475 ficar ainda maior e ainda a honrou com mais uma cidadã?88

Mas como fui generoso hoje, como acreditei em todos!

Nem recebi fiança de ninguém: sem reserva, confiei em todos;

nem tenho medo que aqueles em quem confiei hoje me neguem meu direito na justiça:

eu quero ser bom desse dia em diante... o que nunca aconteceu e nunca acontecerá.

480 TÓX. (à parte) Hoje com minha lábia vou fazer esse aí cair numa esparrela,

pra isso eu já preparei a armadilha direitinho. Vou falar com ele. (Dirige-se ao cafetão)

O que está fazendo? DÓR. Confio em você. TÓX. De onde está vindo, Dórdalo? DÓR. Confio em você.

Que os deuses deem o que você quiser. TÓX. Ei, por acaso já libertou a mulher?

DÓR. Por Póllux, eu confio, eu disse, eu confio em você. TÓX. Já tem uma liberta a mais no currículo? DÓR. Você me

mata.

485-6 Eu estou dizendo que confio em você. TÓX. Fale sinceramente: ela está livre? DÓR. Sim.89

85 De Melo indica uma metáfora da produção de cerâmica. 86 cartinhas: na verdade, eram tabuinhas (tabellas, em latim). 87 matar dois coelhos: tentativa de traduzir a expressão: compendi feci binos panis 88 Como muitas vezes acontecia nas comédias, as leis do mundo real romano se misturam com as do mundo grego fictício: só em Roma, e não em Atenas, escravos

libertos podiam ser considerados cidadãos de fato. 89 A última palavra (ou palavras?) de Dórdalo neste verso é uma trecho corrompido: no palimpsesto Ambrosiano mal se leem três ou quatro letras; já os manuscrito

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Vai até o pretor90 no fórum, pergunte pra ele, já que você não quer acreditar em mim.

Ela está livre, estou dizendo: você está ouvindo? TÓX. Mas que todos os deuses te abençoem.

Nunca mais depois disso vou desejar para você e para os seus nada que não seja do seu vontade.

490 DÓR. Vai embora, não jure nada, confio em você o bastante.

TÓX. Onde está sua liberta agora? DÓR. Na sua casa. TÓX. Está dizendo que está na minha casa? DÓR. Sim, eu disse,

ela está na sua casa, eu disse.

TÓX. Que os deuses me amem e, por causa disso, da minha parte, que muitas coisas boas aconteçam para você.

Sim, há uma coisinha que eu não queria te dizer: agora eu vou contar:

é de onde você vai tirar um lucro muito grande: farei você se lembrar de mim, enquanto estiver

495 vivo. DÓR. Dessas suas boas palavras meus ouvidos esperam boas ações como sinal de ajuda.

TÓX. É seu merecimento que eu faça o que você merece, e para você ter certeza que eu vou fazer isso,

pegue essa carta e leia até o fim. DÓR. É para mim? TÓX. Sim, é para você e diz respeito aos teus negócios.

Essa carta do meu senhor foi enviada recentemente da Pérsia para mim. DÓR. Quando? TÓX. Não faz muito tempo.

DÓR. O que dizem? TÓX. Pergunta pra ela. Ela mesma vai te contar.

500 DÓR. Me dá logo isso. TÓX. Mas leia em voz alta. DÓR. Fique calado, enquanto eu leio. TÓX. Leia, não vou dizer

nenhuma palavra. (Acompanhamento musical para a leitura da carta)

DÓR. Timárquides saúda a Tóxilo

e a todos seus outros escravos. Se estão bem, fico feliz.

Eu vou muito bem, trato de negócios e estou tendo lucro,

e não posso voltar para casa nos próximos oito meses,

505 porque há um negócio aqui que me detém.

Os persas tomaram Ourópolis, cidade da Arábia,91

um cidade antiga e cheia de riquezas:

Os espólios estão sendo coletado, para fazerem uma leilão

público; isso é o que me faz ficar longe de casa.

510 Eu quero que deem atenção e boa acolhida a este

que leva esta carta. Providencie o que ele quiser,

pois ele me recebeu com grandes honras em sua casa. (Volta o acompanhamento musical)

DÓR. O que isso tem a ver comigo ou com meu negócio o que fazem os Persas

ou o seu senhor? TÓX. Cala a boca, seu falastrão; não sabe o que lhe espera de bom

515 nem o quanto a Fortuna quer lhe acender a tocha lucrífera.

DÓR. Quem é essa Fortuna lucrífera? TÓX. Pergunte à carta, ela já sabe.

Eu sei tanto quanto você, a não ser porque eu a li antes.

Mas, como você já começou, descubra pela carta. DÓR. Bom conselho.

Faz silêncio. TÓX. Agora vai chegar o que te interessa. (Acompanhamento musical para a leitura da carta)

520 DÓR. Este que leva a carta conduziu ao mesmo tempo

uma jovem bem-nascida de talhe lindo,

raptada, trazida dos confins da Arábia;

quero que você cuide dela para que seja vendida por aí.

Mas fará negócio a sua conta e risco aquele que a comprar:

525 ninguém poderá dar nem garantir a propriedade.

Faça com que receba um dinheiro honesto e bem contado.

Cuida disso e cuida para que o visitante sejam bem cuidado. Passar bem. (Volta o acompanhamento musical)

TÓX. E então? Depois que leu o que estava confiado ao papel,

agora confia em mim? DÓR. Onde está agora esse visitante que trouxe essa carta para cá?

530 TÓX. Creio que ele já vai chegar aqui: ele foi buscar a jovem no navio. DÓR. Não preciso de nada disso:

nem processos nem problemas. Por que eu jogaria dinheiro fora?

Se não tenho nenhuma garantia, por que eu deveria comprar essa mercadoria?

TÓX. Vai calar essa boca ou não? Eu não imaginava que você fosse tão cabeça-dura.

Por quê? Está com medo? DÓR. Sim, por Hércules, claro. Já passei por isso muitas vezes,

535 e não seria a primeira vez que me afundo na lama.

90 pretor: Magistrado romano. 91 Ourópolis: Em latim, Chrysopolis chrysus

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TÓX. Não vejo nenhum perigo. DÓR. Sei disso, mas tenho medo por mim.

TÓX. Na verdade, nada disso me diz respeito: estão fazendo isso para te ajudar,

para te dar a oportunidade de ser o primeiro a fazer o negócio.

539-40 DÓR. Agradeço. Mas é melhor aprender com o erro dos outros do que os outros

aprenderem com os seus. TÓX. Você acha que alguém veio dos confins da Arábia

atrás dela. Então, vai fazer essa compra? DÓR. Assim que eu der uma olhada

na mercadoria. TÓX. Diz a coisa certa. Mas, perfeito, eis que que o visitante que trouxe esta carta

está chegando em pessoa. DÓR. É aquele? TÓX. É sim.

545 DÓR. Aquela é jovem raptada? TÓX. Sei tanto quanto você,

a não ser que, realmente, por Pólux, quem quer que seja é de uma beleza de jovem livre.

DÓR. É, tem um rosto bonito. TÓX. Que desprezo, patife.

Vamos contemplar sua beleza em silêncio. DÓR. Aprecio seu conselho.

IV.iv SAGARISTIÃO JOVEM TÓXILO DÓRDALO (Continua com acompanhamento musical)

(Sagaristião e a filha do parasita, disfarçados, se aproximam; não veem Tóxilo e Dórdalo, do outro lado do palco)

SAG. Atenas está lhe parecendo próspera e rica?

550 JOV. Vi apenas a aparência da cidade, observei pouco os costumes dos homens.92

TÓX. Como pode falar com essa inteligência assim desde o início?

DÓR. Já eu não pude reconhecer essa sabedoria toda nas primeiras palavras.

SAG. O que foi que viu? A cidade lhe pareceu bem fortificada com sua muralha?

JOV. Se seus habitantes possuem bons costumes, julgo isso bem fortificado.

555 Se a deslealdade e o peculato e também a avareza se exilam de uma cidade,

em quarto lugar, a inveja, em quinto, a ganância, em sexto a difamação,

em sétimo, o perjúrio. TÓX. (à parte) Muito bem. JOV. Em oitavo, a negligência,

em nono, a injustiça, em décimo, o que é o pior para eliminar, o crime:

a cidade de onde essas qualidades se afastam estará bem fortificada com um simples muro;

560 onde elas estiverem presentes, cem muros são pouco para defendê-la.

TÓX. O que você me diz? DÓR. O que você quer que eu diga? TÓX. Você está entre aqueles dez companheiros:

você tem que ir para o exílio então. DÓR. Por que isso? TÓX. Porque você é um perjuro.

DÓR. Bom, ela não falou nenhum besteira. TÓX. Vai ser útil para você, estou dizendo: compre-a.

DÓR. Por Pólux, como pode? Quanto mais a olho, mais me agrada. TÓX. Se a comprar

565 ó deuses imortais! nenhum outro cafetão vai ser mais rico do que você.

Vai poder espoliar, à vontade, homens com posses, com escravos;

vai fazer negócio com homens ilustres, eles vão desejar seus favores:

vão vir à tua casa para festejar. DÓR. Mas eu vou não deixá-los entrar.

TÓX. Mas aí eles vão cantar uma serenata na frente da tua casa à noite, e vão botar fogo nas portas:

570 por isso, manda botarem portas de ferro na sua casa,

troque a casa toda por uma de ferro, coloque soleiras de ferro,

uma fechadura e uma campainha de ferro; não economize no ferro:

manda pregarem em você mesmo grossas correntes de ferro.

DÓR. Por favor, vai procurar um cruz. TÓX. Vai você... comprar uma. Me escuta.

575 DÓR. Assim que eu souber quanto ele pede. TÓX. Quer que eu o chame aqui? DÓR. Eu vou até ele.

TÓX. Como vai, visitante? SAG. Chego bem, trago-a para você, como eu falei antes.

Ontem à noite o navio chegou ao porto. Quero que ela seja vendida,

se for possível; se não for, quero ir embora daqui o quanto antes.

DÓR. Tudo bom, meu jovem? SAG. Só se eu vendê-la pelo seu preço.

580 TÓX. Mas ou vende para esse comprador, ou não vai conseguir vender bem a nenhum outro.

SAG. Você é amigo dele? TÓX. Tanto quanto todos os deuses que habitam os céus.

DÓR. Então você é meu inimigo certo. Porque, para a raça dos cafetões,

nunca houve nenhum deus tão bom que tenha sido favorável.93

92 Possível alusão à Homero, Od. 1, 3. 93 nde simpatia, tanto que nem os deuses nunca lhes foram favoráveis.

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SAG. Vem aqui: é bom para você comprá-la ou não? DÓR. Se for bom para você vendê-la,

585 também é bom para mim comprá-la; se você não tem pressa, também não tenho.

SAG. Indica, faz um preço. DÓR. A mercadoria é sua, você faz o preço.

TÓX. O que ele diz é justo. SAG. Você quer comprar bem? DÓR. E você, quer vender bem?

TÓX. Por Hércules, eu sei o que você e eu queremos. DÓR. Anda, indica um preço com esse conhecimento.94

SAG. Antes digo: ninguém te dará a garantia de posse. Já sabe? DÓR. Sei.

590 Indica o mínimo por quanto você a entrega, por quanto pode ser levada.

TÓX. Cala a boca, cala a boca. Por Hércules, realmente, você é um imbecil, feito uma criança.

DÓR. Por que isso? TÓX. Por que eu quero que você pergunte primeiro para a menina

o que é importante. DÓR. Mas, por Hércules, você me lembrou bem.

Veja você: eu, esse cafetão esperto, quase caí na armadilha,

595 se você não estivesse aqui. O quanto é importante consultar um amigo, quando se faz algum negócio!

TÓX. Eu quero que você pergunte a ela em qual família nasceu ou em qual cidade

ou quem são seus pais, para não dizer que a comprou às pressas

porque eu te empurrei ou te distraí. DÓR. Não posso dizer que não aprecio seu conselho.

TÓX. Se não for incômodo, ele quer perguntar a ela umas coisinhas. SAG. Claro,

600 à vontade. TÓX. Por que está parado ainda? Vá você mesmo até ele e pede, da mesma forma,

para você poder perguntar a ela o que quiser; embora ele tenha me

dito que te dava o direito disso; mas eu prefiro que você

vá até ele em pessoa, para que ele não faça caso. DÓR. Lembra muito bem.

Visitante, eu quero fazê-la algumas perguntas. SAG. Da terra ao céu, o que quiser.

605 DÓR. Peça que venha aqui até mim. SAG. (à jovem) Vá até ele e se comporte.

(ao cafetão) Pergunte, indague o que quiser. TÓX. (à jovem) Vai, vai agora você ao combate,

atente-se para começar com bons auspícios. JOV. O auspício é claro, cale-se.

Vou cuidar para que voltem para os acampamentos cheios de pilhagem.

TÓX. Com sua permissão, vou trazê-la. DÓR. Vai, como você achar que é bom para o nosso negócio.

610 TÓX. Ei, aqui, minha jovem. (à jovem) Por favor, veja o que faz. JOV. Cale-se, vou fazer como você quer.

TÓX. Siga-me. (ao cafetão) Trago a jovem, caso queira perguntar a ela alguma coisa.

DÓR. Quero que você fique por perto. TÓX. Não posso deixar de dar atenção ao visitante,

meu senhor ordenou. E se ele não quiser que eu fique aqui junto... (vai até Sagaristião) SAG. Não, pode ir.

TÓX. (voltando até Dórdalo) Posso te dar atenção então. DÓR. Dá atenção a você mesmo, quando ajuda um amigo.

615 SAG. Pode perguntar. TÓX. Olhe, fique alerta. JOV. Já se falou demais: embora seja uma escrava,

sei o meu ofício: responder a verdade ao que for indagada, como aprendi.

TÓX. Jovem, este é um homem honesto. JOV. Acredito. TÓX. Você não vai servir a ele por muito tempo.

JOV. Assim espero, por Pólux, se meus pais fizerem seu trabalho.

DÓR. Não quero que você se espante se lhe perguntarmos

620 sobre sua cidade ou sobre seus pais. JOV. Por que eu me espantaria com isso, meu bom homem?

(chorando) Minha servidão me proibiu de me espantar com qualquer um dos meus castigos.

DÓR. Não quero que chore. TÓX. Ah! Que os deuses acabem com ela, como é sagaz e esperta.

Como tem o raciocínio rápido, como diz o que tem de dizer!95 DÓR. Qual é o seu nome?

TÓX. Agora tenho medo de que erre. JOV. No minha cidade, meu nome era Lúcride.96

625 TÓX. Esse nome e esse presságio valem qualquer preço. Por que não a compra?

(à parte) Tive muito medo do que errasse, mas se saiu bem. DÓR. Se eu comprar você,

para mim também. TÓX. Se a comprar,

94 com esse conhecimento: Em latim, prognariter (pro + gnarus + -ter)

seguir Festo e dar o sent Sagaristião,

95 até então possuem duplo sentido: funcionam tanto para a expressar os sentimentos da própria jovem,

m jovem raptada da Arábia, longe de casa

e infeliz pela nova situação de escrava. 96 Outro nome cômico, Lucris, -idis, de lucrum -se a outros nomes

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por Hércules, acho que não vai ser sua escrava nem até o final deste mês.97

DÓR. Mas é isso que eu quero, por Hércules. TÓX. Para que seus desejos se tornem realidade, preste mais atenção.

630 (à parte) Ela não errou nada até agora. DÓR. (à jovem) Onde você nasceu? JOV. Como me

disse minha mãe: na cozinha, num canto à esquerda.

TÓX. Esta lhe será uma prostituta muito vantajosa: nasceu num local quente,

onde muitíssimas vezes há muita fartura.

(à parte) O cafetão foi enrolado; quando pediu que ela dissesse onde nasceu,

635 ela o enganou lindamente. DÓR. (continua) Mas eu lhe pergunto qual é sua cidade?

JOV. Qual seria senão esta onde estou agora? DÓR. Mas eu quero saber a que era antes.

JOV. Considero que tudo isso não vale nada: o que foi, quando foi:

tal qual um homem quando dá seu último suspiro, por que perguntaria a ele quem foi?

TÓX. (à parte) Sim, os deuses me amam muito, muito esperta. E por isso mesmo tenho pena dela.

640 DÓR. Mas, menina, qual é a sua cidade, vai desembucha logo.

Por que está calada? JOV. Estou dizendo: quando sirvo aqui, esta é minha cidade.

TÓX. Deixe de perguntar isso agora (não está vendo que ela não quer falar?)

para que não lhe traga a memória de suas misérias. DÓR. O que foi?

Seu pai foi capturado? JOV. Não capturado, mas perdeu o que tinha.

645 TÓX. Ela deve ser de boa família: não sabe dizer nada exceto a verdade.

DÓR. Quem era ele? Diz o nome. JOV. Por que me lembrar de um homem infeliz que não existe mais?

Agora é justo chamá-lo de infeliz e a mim de infeliz .

DÓR. Como era considerado entre seu povo? JOV. Não havia ninguém mais bem-vindo:

escravos e homens livres o amavam. TÓX. Você descreve um homem infeliz:

650 uma vez que perdeu tudo que tinha e perdeu aqueles que o queriam bem.

DÓR. Acho que vou comprá-

Você vai ficar rico com ela. DÓR. Que os deuses te ouçam. TÓX. Compre agora.

JOV. Agora vou te dizer uma coisa: por Cástor, meu pai, quando souber

que eu fui vendida, na mesma hora, ele próprio virá e me comprará de volta de você. TÓX. E agora? DÓR. O que foi?

655 TÓX. Não está ouvindo o que ela diz? JOV. Pois, embora se percam os bens, os amigos ficam.

DÓR. Por favor, não chore; estará livre logo, logo, se for pra cama muitas vezes.

Quer ser minha? JOV. Desde que eu não seja sua por muito tempo, quero.

TÓX. Não vê que ela lembra da liberdade o bastante? Ela vai te dar grandes lucros.

Faz alguma coisa se você vai fazer alguma coisa. Eu vou levá-la até ele. Siga-me. (a Sagaristião) Trago ela de volta.

660 DÓR. Jovem, quer mesmo vendê-la? SAG. Me agrada mais do que perdê-la.

DÓR. Então diz em poucas palavras: dá o preço que precisa ser pago.

SAG. Pra você comprar, vou fazer assim, porque estou vendo que você quer. Leva por cem minas.

DÓR. É muito. SAG. Oitenta. DÓR. É muito. SAG. Nem uma moeda pode se tirar

do que vou dizer agora. DÓR. Quanto é então? Fala logo e dá esse preço.

665 SAG. A seu próprio risco, vendo por sessenta minas de prata.98

DÓR. Tóxilo, o que eu faço? TÓX. Que os deuses e as deusas despejem sua ira sobre você, seu criminoso,

que não se apressa em fechar o negócio. DÓR. Fechado. TÓX. Vai, traz o dinheiro pra cá.

Por Pólux, não seria cara nem por trezentas minas. Saiu no lucro.

668a DÓR. ***. SAG. <Fique com ela>.99 TÓX. Oh! Fez um excelente negócio.

SAG. Ei, você, ainda mais dez minas devem ser adicionadas aí pelas vestimentas.

670 DÓR. Opa, diminuídas, não adicionadas. TÓX. Cale-se, por favor, não vê que ele

quer uma oportunidade para desfazer o negócio? Por que você não vai lá e pega o dinheiro?

671a *** e, como ele merece, se acabe com ele.

DÓR. Ei, você, segura ele aí. TÓX. Por que você não está lá dentro ainda? DÓR. Estou saindo e trazendo o dinheiro.

(Dórdalo sai e entra em casa)

97 Sugestão de que a jovem fará tanto dinheiro que poderá comprar sua liberdade, mas com o duplo sentido: a plateia sabe que, realmente, ela não será escrava dele

nem até o fim do dia. 98 Sessenta minas de prata aqui seria um valor muito superior às seiscentas moedas pagas por Lemniselene, segundo Chiarini, p. 165, n. 182. 99 Passagem corrompida, com divergências na atribuição de falas dos personagens.

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IV.v TÓXILO JOVEM SAGARISTIÃO (Cena sem acompanhamento musical)

TÓX. Por Pólux, menina, você fez um excelente trabalho,

muito bom, consciente e sóbrio. JOV. Se se faz algo de bom para os bons,

675 isso costuma ser importante e louvável.

TÓX. Ouviu isso, persa? Quando receber o dinheiro dele,

finja que vai direto para o navio. SAG. Não precisa me ensinar.

TÓX. Pelo beco lá detrás, volte de novo para minha casa,

por ali, pelo jardim. SAG. Você está predizendo o futuro.

680 TÓX. Mas não vá de uma vez pra sua casa com o dinheiro,

estou te avisando. SAG. Quer que eu mereça o que você merece?

TÓX. Cale-se, poupe as palavras: a presa está vindo pra fora.

(Dórdalo entra, vindo de casa com uma bolsa de moedas)

IV.vi DÓRDALO SAGARISTIÃO TÓXILO (Continua sem acompanhamento musical)

DÓR. Aqui estão as honestas sessenta minas,

menos duas moedas. SAG. Pra que servem essas duas moedas?

685 DÓR. Pra comprar essa bolsa ou fazer com que retorne pra casa.

SAG. Estava com medo, miserável, de não ser cafetão o suficiente

se perdesse uma bolsinha, seu imundo, avarento?

TÓX. Deixe, por favor. Quando há um cafetão, nada surpreende.

DÓR. Eu tive presságios para este dia de fazer algum lucro:

690 nada pra mim é tão pequeno, que não me aborreça perder.

Vai, pegue isso, por favor. SAG. Se não for incômodo, ponha aqui

no meu pescoço. DÓR. Que seja. (Põe a bolsa) SAG. Vai querer

algo mais de mim? TÓX. Por que tanto se apressa? SAG. São negócios:

quero entregar as cartas que foram confiadas a mim,

695 além disso, ouvi que o meu irmão gêmeo serve como escravo aqui,

quero procurá-lo e comprá-lo de volta.

TÓX. E, por Pólux, você me lembrou bem.

Me parece ter visto aqui um homem com a sua cara,

da mesma altura. SAG. Com certeza é meu irmão.

700 DÓR. Qual é seu nome? TÓX. <Queira saber> o que te interessa.100

DÓR. Por que não me interessa saber? SAG. Então escute pra saber:

Falsofalodoro Jovenvendedôrson

Besteirofaladôrson Dinheiroextorsôrson

Falooquemerécesson Agoradinheiroacariciadôrson

705 Oqueumaveztomêisson Nuncadevoltatomarásson.101 A suas ordens.

DÓR. Ei, por Hércules, seu nome é escrito de muitas maneiras.

SAG. São os costumes dos persas, temos nomes

longos e contorplicados .102 Deseja

algo mais? DÓR. Tchau. SAG. Para vocês também, minha cabeça já está no navio.

710 TÓX. É melhor ir só amanhã, hoje jantaria aqui. SAG. Tchau!

(Sai Sagaristião pela esquerda e entra na casa de Tóxilo pelos fundos)

IV.vii TÓXILO DÓRDALO JOVEM SATURIÃO SAGARISTIÃO (Continua sem acompanhamento musical)

TÓX. Agora que ele se foi daqui, podemos dizer o que quisermos.

O dia de hoje brilhou lucrativo para você.

100 Passagem corrompida. Na tradução sigo a sugestão de ementa de Leo: <sciscita>. 101 Outra opção, mais literal, aproveitando o sufixo gentílico -ides Jovenvendedônides Besteirofaladônides Dinheiroextorsônides

102 Palavra cunhada por Plauto, mantida na tradução como neologismo.

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Você não a comprou, na verdade, teve foi lucrou.

DÓR. Na certa, ele sabe que negócio fez,

715 me vendeu, a meu próprio risco, a jovem raptada,

pegou o dinheiro e foi embora. Como eu vou saber agora

que, em breve, não reclamem sua liberdade? Aonde vou atrás dele?

À Pérsia? Besteira. TÓX. Acreditei que seria grato

pelo bem que te fiz. DÓR. Sim, agradeço

720 muito a você, Tóxilo; sei que você se empenhou

em me ajudar. TÓX. A você, eu? Isso, isso, com empenho.

DÓR. Oh! esqueci de dar umas ordem lá dentro que queria ter dado

agora há pouco. Fique de olho nela. TÓX. Ela está a salvo, com certeza. (Dórdalo sai)

JOV. Meu pai agora está atrasado. TÓX. E se eu apressá-lo? JOV. Está na hora.

725 TÓX. Ei, Saturião, saia. Agora é aquela hora

de se vingar do inimigo. SAT. (Saindo da casa de Tóxilo) Eis-me aqui. Demorei?

TÓX. Vai, vem dali de longe da vista, fique calado;

quando me vir conversando com o traficante,

então faz o tumulto. SAG. Ao bom entendedor, meia palavra basta.

730 TÓX. Aí, quando eu for embora... SAG. Por que não fica quieto? Sei o que você quer. (Vai para trás)

(Dórdalo volta)

IV.viii DORDALO TÓXILO (Continua sem acompanhamento musical)

DÓR. Chegando em casa, espanquei todos com correadas,

meus móveis e minha casa estavam imundos.

TÓX. Voltou então? DÓR. Voltei. TÓX. Hoje realmente eu fiz

muitas coisas boas pra você. DÓR. Tenho que admitir, muito obrigado.

735 TÓX. Quer alguma outra coisa de mim? DÓR. Só que esteja bem.

TÓX. Por Pólux, eu já vou me aproveitar desse presságio em casa,

pois agora vou lá me deitar com a sua liberta.

(Tóxilo sai, entrando em casa; então Saturião se aproxima)

IV.ix SATURIÃO JOVEM DÓRDALO (Continua sem acompanhamento musical)

SAT. Se eu não acabar com aquele homem, estou acabado. Mas que ótimo!

Eis o próprio na frente de casa. JOV. Um grande olá, meu pai.

740 SAT. Olá, minha filha. DÓR. Ai, o persa me passou pra trás.

JOV. Este é meu pai. DÓR. Hein, o quê? Pai? Estou completamente arruinado.

Coitado de mim, por que eu não começo logo a lamentar

minhas sessenta minas? SAT. Por Pólux, eu vou fazer, seu criminoso,

você lamentar a si próprio. DÓR. Estou morto.

745 SAT. Anda, vamos para o tribunal, seu cafetão. DÓR. Por que me leva ao tribunal?

SAT. Vou lhe dizer na frente do pretor. Mas eu te levo ao tribunal.

DÓR. Você tem testemunha? SAT. Seu carrasco,

e eu esfregaria a orelha de algum homem livre,103

por sua causa, você que vende cidadãos livres aqui?

750 DÓR. Deixa eu falar. SAT. Não quero. DÓR. Escuta. SAT. Sou surdo, anda.

Siga por aqui, seu gatuno, ladrão de jovens livres.

Minha filha, siga-me por aqui, até o pretor. JOV. Sigo.

(Saem todos pela direita)

ATO V104

V.i TÓXILO LEMNISELENE SAGARISTIÃO (Cena com acompanhamento musical)

103 Esfregar a orelha de um cidadão era a forma de oficializar a convocação de alguém como testemunha em um julgamento. 104 Trechos traduzidos deste ato já apareceram em Alvarez (2012). Aqui os apresento com algumas alterações.

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TÓX. Depois de vencidos os inimigos, salvos os cidadãos, tranquilizada a situação, concluída a paz,

extinta a guerra, bem feito o negócio, renovado o exército e as guardas,105

755 Júpiter, como nos ajudou bem, e todos os outros deuses poderosos do céu,

faço e direciono a vós esses agradecimentos, porque me vinguei direitinho do meu inimigo.

Agora, por causa disso, vou dividir e repartir os despojos entre meus companheiros.

Venham para fora: eu quero aqui, na frente da entrada e da porta,

758a receber bem os meus companheiros.

Ajeitem os leitos106 aqui, ponham aqui aquelas coisinhas de sempre.

759a Aqui eu quero primeiro que coloque aquela coisa,107

760 com a qual eu vou fazer que fiquem todos contentes, animados e alegres:108

os serviços deles fizeram o que eu quis fazer ficar mais fácil de fazer.109

Pois desonesto é o homem que sabe receber o benefício, mas não sabe recompensar. (Os criados trazem as coisas)

LEM. Meu Tóxilo, por que estou sem você, mas por que você está sem mim? TÓX. Venha então,

venha e me abrace. LEM. Claro. TÓX. Oh, nada é mais doce do que isso.

765 Mas, por favor, brilho dos meus olhos, por que não nos ajeitamos nos leitos sem demora?

LEM. Tudo que você quer eu desejo.

766a TÓX. O mesmo acontece comigo. Vamos, vamos logo,

você, Sagaristião, deite-se no lugar de honra.110

767a SAG. Eu não me importo com isso: cadê meu par que eu pedi?111

TÓX. E será tarde. TÓX. Vai lá, deite-se. Vamos celebrar muito bonito

este meu adorável aniversário.112

769a (aos criados) Lavem as mãos, coloquem a mesa.

770 (com uma girlanda de flores na mão) Dou esta flor para você, minha flor. Você aqui será nossa ditadora.113

LEM. Vai, menino,

771ª comece estes jogos114 pelo lugar de honra, com sete taças.

Mexe essa mão, ande logo.

772ª TÓX. Pégnio, você está distribuindo muito devagar essas taças;

me dá logo isso. (Propondo um brinde) Ao meu bem, ao bem de vocês, ao bem da minha amada:

773ª este dia que tanto desejei

hoje foi me dado pelos deuses, porque você pode me abraçar sendo uma mulher livre.

775 LEM. Graças a seus esforços. TÓX. Ao bem de todos nós.

775ª Minha mão dá este copo à sua, como deve o amante dar amor à sua amada.

LEM. Me dê isso. TÓX. Tome. TÓX. (Fazendo um brinde) Ao bem daquele que me inveja

776ª e àquele que se alegra por mim.

V.ii DÓRDALO TÓXILO SAGARISTIÃO PÉGNIO LEMNISELENE (Continua com acompanhamento musical)

(Dórdalo entra da direita)

105 Mantive na tradução o aspecto original da sequência de ablativos absolutos, que apareciam frequentemente neste tipo de relato de vitória, evocando uma dicção

religiosa de agradecimento. A sequência extravagante de Tóxilo é única pelo tamanho. 106 Os romanos (e os gregos) usavam uma espécie de leito, onde se reclinavam, durante os banquetes. Há uma confusão na palliata, porém, se os leitos seriam de dois

(ao modo grego) ou três lugares (ao modo romano). Bettini (p. 265) sustenta que em Plauto os leitos são de dois lugares, portanto, mantêm-se como grecismos. 107 O final do verso é corrompido: A maioria das emendas e também das traduções segue uma suposição de que se trataria de uma referência ao jarro de

vinho (aquolam Ritschl, aulam Lindsay, aquilam <plenam mulsi hirneam> Shoell, etc. Contudo, Woytek (lembrando Ussing) indica que pode se tratar apenas da

palavra aliqua aquila 108 Ou seja, o vinho. 109 Aliteração no original. 110 nvivial romana, no triclinium, haviam dispostos três leitos mais ou menos desta forma | ̿ |, em volta de uma mesa:

da esquerda para a direita, o lectus infimus (ou imus), o lectus medius e o lectus summus. No lectus infimus, sentava-se o dono da casa e sua família, já no lectus medius,

sentava a figura mais importante do banquete. Por fim, convidados de menor status ficavam no lectus summus. Contudo, como discute Bettini, a etiqueta nesta cena

seguiria o modelo grego também, em que o lectus summus, na verdade, é o mais importante, por ser o primeiro da direita. 111

uma figura feminina qualquer, enquanto outros acreditam que possa ser um copo de vinho. Para González Vásquez seria a bolsinha de moedas, que Sagaristião queria

devolvida. Outra suposição ainda seria de que se tratava do cafetão Dórdalo, que será convidado para o banquete que comemora sua própria perdição. 112 Bettini argumenta de que não se tratava de fato do aniversário de Tóxilo, mas de uma expressão, dada a importância daquele dia, o dia em que sua amada ganhou

a liberdade. 113 Era costume se eleger o dictator do banquete, que determinava a hora de servir as refeições e a bebida. 114 Jogos como metonímia das ocasiões festivas.

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DÓR. Os que existem, que existirão, que existiram e os que hão de existir daqui para frente,

eu sozinho facilmente supero todos em viver como o mais miserável dos homens.

779-80 Estou morto, enterrado! Este maldito dia hoje foi matador para mim:

Tóxilo além de me enganar, ainda roubou meu dinheiro.

Coitado de mim, perdi, joguei fora um caminhão de dinheiro e nem sei por quê.

Que os deuses todos acabem com aquele persa e com todos os persas,

e também com todos os personagens!115 Tóxilo, aquele miserável, aprontou essa pra mim,

785 porque não lhe emprestei aquele dinheiro, por isso planejou pra mim essa trama:

por Pólux, se eu estiver vivo, como não o mandarei pra cruz e pras correntes?

Se o senhor dele voltasse para cá, como eu espero... mas o que eu vejo? (Vendo o banquete)

Veja isso, que história é essa? Por Pólux, ele estão bebendo ali. Vou lá. Olá, meu bom homem,

789-90 olá pra você, minha boa liberta. TÓX. Dórdalo está aqui! SAG. Por que não manda ele vir até aqui?

TÓX. Venha até aqui, se você quiser. SAG. Vamos, vamos aplaudir. TÓX. Dórdalo, um distintíssimo homem, salve.

Este lugar é seu, sente aqui. Tragam água para seus pés. Você, menino, não oferece nada?

DÓR. Não pense em me tocar com um dedo, senão te jogo no chão, seu criminoso.

PÉG. Mas na mesma hora te arranco um olho fora com esta taça.

795 DÓR. (Para Tóxilo) O que você me diz, seu desgraçado, saco de pancadas? Como me enrolou hoje!

Como me jogou numa armadilha! Como me pegou com aquele persa!

TÓX. Leva daqui essa ofensa, se tem senso.

DÓR. Mas, minha boa liberta, você sabia disso tudo

798a e me escondeu? LEM. É estupidez

se alguém que pode estar numa boa

800 estiver preocupado com discussões. É melhor

você tratar disso depois.

DÓR. Meu coração está pegando fogo.

TÓX. Dá-lhe um cântaro. Se o coração está em chamas,

apague esse fogo, para que não queime a cabeça.

DÓR. Estão zombando de mim, eu entendo.

TÓX. Você quer ganhar um novo pederasta, Pégnio?116

805 Divirta-se com ele, como você gosta, já que tem espaço livre. (Pégnio avança até o cafetão e lhe dá um tapa)

Hei! Opa! Se apresenta magistralmente e com muito jeito.

PÉG. Eu tenho que ser jeitoso e quero

zombar deste cafetão, que ele merece.

TÓX. Continue como começou. PÉG. Este, cafetão, é pra você. (bate no cafetão novamente)

810 DÓR. Estou perdido, ele quase me derrubou. PÉG. Hein! Segura de novo. (outro tapa)

DOR. Abusa como quiser, enquanto seu senhor está longe daqui.117

PÉG. Vê como obedeço às suas palavras? (batendo-lhe de novo)

Mas, ao contrário disso, por que você não obedece às minhas palavras

e faz o que te aconselho? DÓR. O quê?

815 PÉG. Pega uma corda bem grossa e se enforca.

DÓR. Nem pense em me tocar, se não, com este bastão,

dou-lhe uma grande porrada. PÉG. Faça bom proveito dele, eu te dou de presente.

TÓX. Já chega, já chega, Pégnio, pode parar.

DÓR. Por Pólux, eu vou acabar com a raça de vocês. PÉG. Mas quem vai acabar com a sua é aquele que habita sobre nós

820 e que te deseja o mal e que te castigará. Não são eles que dizem, eu digo.

TÓX. Vai, circule esse vinho doce, dá de beber sem parar a cântaros cheios.

Já passou muito tempo depois que bebemos, faz muito tempo que estamos secos.

DÓR. Que os deuses façam com que bebam o que fique entalado na garganta.

SAG. Cafetão, eu não posso, deixar de dançar pra você aquela dança que Hégeas fazia

115 Tentei manter a brincadeira do original: persa, persas e personas. Personas designa, a princípio, as máscaras, mas, por metonímia, pode significar os personagens

ou atores do teatro. 116 pederasta: Em latim, cinaedus. 117 O senhor, neste caso, é Timárquides.

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825 antigamente. Veja se não o agrada bastante. (dança ao redor do cafetão e o atinge) TÓX. Eu também quero lembrar

aquela que Diodoro fazia antigamente na Jônia.118 (faz o mesmo)

Eu vou dar uma porrada em vocês, se não saírem daqui. SAG. Ainda está resmungando, seu sem-vergonha?

Se você me provocar, eu vou trazer já os persas de novo.

DÓR. Por Hércules, já me calo, mas você é o persa que me arrancou até o último fio de cabelo. (apontando Sagaristião)

830 TÓX. Cala boca, estúpido: este é o irmão gêmeo dele. DÓR. Este aí? TÓX. E

DÓR. Que os deuses e deusas acabem com você e seu irmão gêmeo. SAG. Ele que acabou com você;

eu não mereço nenhum castigo. DÓR. Mas eu quero que você sofra o que ele merece.

TÓX. Vamos, fiquem à vontade, divirtam-se com ele. LEM. Se ele não merece, não é necessário.

E isso não é apropriado para mim. TÓX. Suponho isso porque não criou problemas quando te comprei.

835 LEM. Mas eu não... mas... TÓX. Tenha cuidado então e, por favor, me siga.

Você deve ser obediente ao que eu disse, pois, por Hércules, se não fosse por mim

e minha proteção, ele faria você virar prostituta de novo em breve

Mas assim é grande parte dos libertos: aquele que não se volta contra seu patrono,

não se considera livre o suficiente, nem merecedor o suficiente, nem honesto o bastante,

840 a não ser que tenha feito isso, a não ser que lhe tenha ofendido, a não ser que seja visto como um mal agradecido por

quem lhe ajudou.119

LEM. Por Pólux, seus favores me levam a obedecer a suas ordens.

TÓX. Eu sou claramente seu patrono, eu que dei o dinheiro para ele por você.

* quero que zombe dele com arte. LEM. Da minha parte, vou cuidar disso com empenho.

DÓR. Na certa, eles planejam fazer alguma maldade comigo. SAG. Ei, vocês.

845 TÓX. O que está falando? SAG. Este é cafetão, Dórdalo, aquele que vende jovens livres aqui?

É aquele que foi poderoso um dia? (dá-lhe um tapa) DÓR. Que coisa é essa? Ei, ele me deu um tapa na orelha.

Vou-lhes dar uma porrada. TÓX. Nós que já lhe demos umas e ainda vamos dar outras. DÓR. Ei! Ele beliscou minha

bunda.

PÉG. Não tem problema: há muito tempo, elas levam umas picadas.120 DÓR. Você está falando ainda, seu pedaço de

escravo?

LEM. (para Dórdalo) Meu patrono, por favor, venha participar do jantar.

850 DÓR. Sua malandra, agora você zomba de mim?

LEM. Por que eu te convido para aproveitar um pouco? DÓR. Eu não quero aproveitar nada. LEM. Então não aproveite.

TÓX. Então? O que fazem seiscentas moedas? Que tumultos causam?

DÓR. Estou completamente arruinado, eles sabem bem como retribuir os favores ao inimigo.

TÓX. Já punimos bastante o pecador.

855 DÓR. Confesso que sim, estou lhe dando as mãos.121

855a TÓX. E depois vai dar também sob a forca.122

SAG. Vai... pra cruz! (bate de novo no cafetão) DÓR. Não se exercitaram o suficiente comigo?

TÓX. <Lembre-se de> ter encontrado Tóxilo.123

858 Meus espectadores, fiquem bem. O cafetão está morto. TODOS. Aplaudam.

118 Nada se sabe com segurança sobre as danças de Hégeas e Diodoro da Jônia, apenas que deveriam ser danças lascivas e eróticas, acompanhadas de música

orientalizada. Chiarini faz algumas especulações. 119 Tóxilo se coloca na posição de patrono de Lemniselene, quando, na verdade, seu patrono seria Dórdalo, quem realmente a libertou (cf. 737, 789, 798), embora

Tóxilo tenha efetuado o pagamento. 120 Com duplo sentido. 121 Gesto de submissão, como se desse as mãos para serem acorrentadas. 122 forca: Em latim, furca, originalmente um instrumento de tortura de madeira, no formato de um A, preso ao pescoço ou aos braços de um escravo. 123 Trecho corrompido.

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PEQUENA NOTA BIBLIOGRÁFICA

1 EDIÇÕES

RITSCHL, F.; LOEWE, G.; GOETZ, G.; SCHOELL, F. T. Macci Plauti Comoediae. Recensuit instrumento critico et prolegomenis

auxit Fridericus Ritschelius sociis operae adsumptis Gustavo Loewe, Georgio Goetz, Friderico Schoell. Lipsiae: Teubner, 1871-94.

(Teubner maior)

LEO, F. Plauti comoediae. Berlin: Weidmann, 1885-96.

USSING, J. L. T. Maccii Plauti Comoediae. I-V. Hauniae: Libraria Gyldendaliana, 1875-86.

GOETZ, G; SCHOELL, F. T. Macci Plauti comoediae. Leipzig: Teubner, 1893-6. (Teubner minor)

LINDSAY, W. M. Comediae Plauti. I-II. Oxford: OUP, 1904-5. (OCT)

WOYTEK, E. T. Maccius Plautus: Persa. Wien: Verlag der Österreichischen Akademie der Wissenschaften, 1982.

2 EDIÇÕES COM TRADUÇÃO

ERNOUT, A. Plaute. Comédies ́tabli et trad. par. 4ème tir. Paris: Les Belles Lettres, 2003 [1938]. v. 5.

DE MELO, W. Plautus. Mercator, Miles gloriosus, Mostellaria, Persa. London: HUP, 2011. v. 3. (Loeb Classical Library)

3 TRADUÇÕES

BETTINI, M. Mostellaria. Persa. A cura di Maurizio Bettini. Milano: Oscar Mondadori, 1991.

ROMÁN BRAVO, J. Plauto. Comedias. Edición y trad. de José Roman Bravo. 3. ed. Madrid: Cátedra, 2005 [1995]. v. 2.

GONÇALVES, M. I. R. Plauto. Persa. Introd., trad. do latim, notas e sugestões para encenação por Maria Isabel Rebelo Gonçalves.

Lisboa: Verbo, 1999.

GONZÁLEZ VÁZQUEZ, C. Plauto. Comedias. Los prisioneros. El sorteo de Cásina. El Persa. Pséudolo o El Requetementirosillo.

Madrid: Akal, 2003.

SCANDOLA, M. Plauto. Il persiano. Milan: Biblioteca Universale Rizzoli, 2003.

4 BIBLIOGRAFIA SECUNDÁRIA SELECIONADA

CHIARINI, G. La Recita. Plauto, la Farsa, la Festa. Bologna: Patron, 1979.

BETTINI, M. Il parasito Saturio, una riforma legislativa e un testo variamente tormentato (Persa vv. 65-74). SCO, XXVI, 1977, p.

83-104.

LOWE, J. C. B. The Virgo Callida of Plautus, Persa. CQ. vol. 39, n. 2 (1989), pp. 390-399.

Persa. In: FALLER, S. (ed. Persa. Tübingen, Narr, 2001.

MARSHALL, C. W. Shattered Mirr Persa. Text and Performance 18 (1997)

100-109.

: FALLER, S. (ed.). , 2001. p. 255 72.

MÜLLER, G. L. Das Original des plautinischen Persa. Frankfurt: [s.n.], 1957.