antes do princípio - livro rafa lima

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    Ao bom mestre.

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    A soberba vem antes da ruína

    e a altivez do espírito precede a queda. 

    Provérbios 16:18Provérbios 16:18Provérbios 16:18Provérbios 16:18 

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    Sumário

    Prólogo ........................................................................................................................................... 8 

    Capítulo 1 .................................................................................................................................... 13 

    Capítulo 2 .................................................................................................................................... 36 

    Capítulo 3 .................................................................................................................................... 44 

    Capítulo 4 .................................................................................................................................... 51 

    Capítulo 5 .................................................................................................................................... 53 

    Capítulo 6 .................................................................................................................................... 58 

    Capítulo 7 .................................................................................................................................... 65 

    Capítulo 8 .................................................................................................................................... 70 

    Capítulo 9 .................................................................................................................................... 75 

    Capítulo 10 .................................................................................................................................. 84 

    Capítulo 11 .................................................................................................................................. 96 

    Capítulo 12 .................................................................................................................................. 97 

    Capítulo 13 ................................................................................................................................ 105 

    Capítulo 14 ................................................................................................................................ 111 

    Capítulo 15 ................................................................................................................................ 119 

    Capítulo 16 ................................................................................................................................ 135 

    Capítulo 17 ................................................................................................................................ 141 

    Capítulo 18 ................................................................................................................................ 148 

    Capítulo 19 ................................................................................................................................ 153 

    Capítulo 20 ................................................................................................................................ 165 

    Capítulo 21 ................................................................................................................................ 172 

    Capítulo 22 ................................................................................................................................ 182 

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    Capítulo 23 ................................................................................................................................ 188 

    Capítulo 24 ................................................................................................................................ 195 

    Capítulo 25 ................................................................................................................................ 203 

    Capítulo 26 ................................................................................................................................ 211 

    Capítulo 27 ................................................................................................................................ 220 

    Capítulo 28 ................................................................................................................................ 229 

    Capítulo 29 ................................................................................................................................ 238 

    Capítulo 30 ................................................................................................................................ 245 

    Capítulo 31 ................................................................................................................................ 252 

    Capítulo 32 ................................................................................................................................ 258 

    Capítulo 33 ................................................................................................................................ 265 

    Capítulo 34 ................................................................................................................................ 276 

    Capítulo 35 ................................................................................................................................ 285 

    Capítulo 36 ................................................................................................................................ 294 

    Capítulo 37 ................................................................................................................................ 298 

    Capítulo 38 ................................................................................................................................ 305 

    Reflexão final .............................................................................................................................. 313 

    Paritura ...................................................................................................................................... 315 

     Agradecimentos .......................................................................................................................... 324 

     Agradecimentos Especiais ........................................................................................................... 325 

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    PPPPrólogorólogorólogorólogo

    DDDDasasasas coisascoisascoisascoisas qqqqueueueue o primeiro homemo primeiro homemo primeiro homemo primeiro homem conhecia desde que recebeu o fôlego da vida, nada

    era igual a isso. No meio da noite, ele se escondeu no alto de uma colina rochosa,

    próximo da entrada de uma caverna estreita, para observar aquela chama de fogo que

    pairava no ar. Distante e ao norte, a labareda fazia movimentos circulares em torno dos

    limites de um bosque sombrio.

     A primeira mulher também não tinha se habituado à chama, mas não possuía a

    mesma curiosidade que seu marido. Não estava nem mesmo acostumada a usar nada

    sobre o corpo, mas agora necessitava se cobrir com um traje de pele animal.

    Talvez ela estivesse mais preocupada com as fortes dores nas entranhas, que

    passou a sentir com frequência. Olhando para o alto e em direção contrária ao seu

    companheiro, suas mãos alisavam o próprio ventre, que crescia um pouco mais a cada

    dia, comprimindo-se dentro da roupa.

     Antes disso, os dois haviam chorado muito. Agora, a confiança entre eles estava

    abalada. Ele a culpava pela insensatez. Ela o responsabilizava pela falta de proteção. Erao início do que eles começariam a sofrer por causa de um ato de desobediência.

    Naquele momento, o homem não estava interessado em sua parceira. Preferia

    olhar para aquela vigilante chama. Estava magnetizado pelo interior dela. As labaredas

    cobriam uma peça metálica comprida e estreita, que tinha o tamanho de seu braço.

    Havia um gume preciso em cada lado da lâmina avermelhada pelo calor. Era mais leve

    que o ar e de aparência devoradora.

    O mentor do primeiro homem chegou a lhe ensinar sobre os princípios da forjametálica, mas ele não se aprofundou no assunto. Logo aprenderia como fazer os

    objetos que os seres brilhantes usavam, mas um erro mudou o rumo da história.

    Nunca mais sentiremos o sabor da vida.

    O humano não se atreveria a se reaproximar do primeiro lar. Ele e sua

    companheira não desobedeceriam outra ordem tão cedo. Mesmo que quisessem, ao

    menor sinal de movimento próximo das flores murchas, a espada flamejante zuniria

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    nos ares em proteção avassaladora. Ninguém poderia voltar àquele jardim. Nunca

    mais.

    Meditando sobre essas coisas com tristeza misturada à saudade, o homem

    tentava entender sobre as causas que levaram seu mentor a colocar algo tão poderoso

    para impedir o acesso à Árvore da Vida. Dias antes, uma dúvida poderia ser esclarecida

    no entardecer de qualquer dia, mas esse tempo acabara. Naquele instante, algumas

    respostas de seus questionamentos só chegariam para outras gerações. Tudo por causa

    da desobediência.

     A tentação foi doce no início e amarga no fim.

     Aqueles primeiros humanos, porém, não sabiam que a assombrosa arma de

    guerra não estava ali por causa deles. Tudo começou em um reino estabelecido muitoantes dos humanos andarem sobre o pó: o Reino dos Céus.

    Para que um reino seja estabelecido é preciso um lugar. Neste lugar, deve haver

    habitantes. Os habitantes que buscam alimento, proteção e abrigo escolhem o mais

    forte para liderá-los e o fazem rei. Este rei deve proteger os moradores do reino e, paraisso, forma um exército. Os recursos para proteger o povo são mantidos mediante

    impostos justos pagos pelo povo. Assim, o rei trabalha para suprir as necessidades de

    seus habitantes e, com isso, promover a paz.

    Mas, no Reino dos Céus, o primeiro estabelecido entre as galáxias, tudo

    aconteceu em outra ordem. Primeiro havia o rei. Por ele foram criados o reino e seus

    residentes. O povo não precisava de um exército porque não existia ameaça ou

    qualquer necessidade. O Reino dos Céus era um lugar de paz, e seu rei era o amor.Tudo obra de um único ser. Seu nome é conhecido até hoje como Senhor, Rei,

    Mentor, Eterno, Pai, Mestre, Criador ou apenas Deus. Desde quando habitava a

    vastidão vazia, seu poder e conhecimento já eram absolutos. Deus podia enxergar o

    passado, o presente e o futuro ao mesmo tempo.

    Para Ele, caminhar de um universo a outro levava o mesmo tempo de atravessar

    um rio. A distância entre os planetas de um sistema solar, assim como os elétrons de

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    um mesmo átomo, era puramente relativa. Para Deus, casa e cosmos era uma mesma e

    única coisa. Assim foi o início do Reino dos Céus...

    ...até que Deus almejou formar uma família para si.

    O Criador elaborou o plano para formar uma imensa família de seres de luz.

    Cada ser, uma obra de seu amor — um multiplicador da paz.

    Dentre muitas categorias, assim foram formados os Arcanjos, Querubins,

    Serafins, Dominadores, Potestades, Principados e os Anjos Simples e Menores. Com

    vestes de luzes e asas que surgiam apenas quando precisavam, os anjos eram belos em

    fisionomias e atitudes.

    Os anjos do Senhor trabalhavam em áreas específicas, cada qual com o seu

    talento. Não importava se era um Arcanjo, Querubim, Serafim, Potestade ou um AnjoSimples: a função e missão designadas eram medidas não por uma hierarquia celeste,

    mas pela vontade do Rei manifesta em sabedoria e autoridade.

    No começo, viviam em uma mesma superfície. Mas depois, Deus formou

    alguns níveis de Céu conhecidos como as três dimensões em constante evolução.  O

    tempo transforma tudo — dizia. 

     As três superfícies concêntricas do Reino dos Céus foram classificadas pela

    ordem de importância que Deus lhes deu. Entre os territórios, um único dia poderiater a contagem de milhares de anos de uma dimensão para outra. Essa diferença na

    contagem do tempo e do espaço era para o entendimento de poucos.

    Uma imensa esfera azul circulante em torno do sol amarelo, o Primeiro Céu era

    o berço das mais recentes concepções. Vastidões de terra cercadas de águas salgadas,

    que recebiam o suave desaguar do Rio de Vida.

    Neste mundo habitava boa parte dos Anjos Simples, Principados, Potestades e

    Dominadores. Alguns Serafins também escolhiam residir nesta terra sinuosa, juntos agigantescos répteis chamados de tanniyns. O ambiente era de natureza espetacular,

    abrigando fauna e flora incomparáveis pela extensão cósmica.

    Um inteligente querubim, que se destacava por seu talento musical, foi

    especialmente ungido para cuidar deste território. Uma grande honra dada pelo

    próprio Deus.

     Acima desta região, para quem olhasse além do início da cachoeira vinda por

    sobre as nuvens, estava posicionado o Segundo Céu. Seu relevo era formado por

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    montanhas e vales com o Oceano Hakodesh em seu centro. O Rio de Vida desaguava

    neste oceano cristalino, que de lá vertia para o Primeiro Céu. Nesta parte do Reino

    foram erguidas cidades celestiais, com destaque para o conjunto de cidades que

    formavam a grande Tziyon — um lugar de ensinamento e trabalho.

    Nesta capital celeste viviam os serafins. Eram eles os responsáveis por

    executarem a arquitetura do Segundo Céu como verdadeira poesia. As esculturas e

    outras obras artísticas por eles elaboradas eram um primor à parte. Um detalhe

    interessante é que os metais raros que os artistas usavam tinham uma conotação

    própria neste território. O ouro era o símbolo de pureza e eternidade. Pedras preciosas,

    por sua vez, eram associadas à perfeição.

    Mas nenhum outro lugar era comparado ao Terceiro Céu. Este ambiente etéreorepousado nas extremidades do cosmos em expansão tem uma lenda particular. Alguns

    contam que Deus gostava de ali surgir para conversar, sempre que alguém pedia. Certa

    vez, os anjos desejaram se assentar com Deus para conversar, porém todos quiseram a

    mesma coisa no mesmo instante. O resultado foi o espaço da existência completamente

    ocupado por uma luz intransponível. Por pouco os anjos não pereceram por sentir a

    presença do Criador multiplicada tantas vezes.

    Depois desse episódio, os anjos pediram para vê-Lo em um lugar especial, umlugar onde os habitantes celestes poderiam ficar próximos de Deus, milhões ao mesmo

    tempo. Assim surgiu o Terceiro Céu e o Salão do Trono.

    Este salão era uma atraente mistura da vida natural e sintética dos outros

    territórios. Lá dentro ficava a fonte do Rio de Vida. Mas o acesso ao Terceiro Céu não

    era pelos ares, e sim por uma descomunal e elevada escadaria de pedra branca suspensa

    nos ares.

    Os anjos tinham que subir a pé, degrau por degrau, por um único acesso, aoSalão do Trono. Por conta de uma força gravitacional incomum, as asas dos luzentes

    não serviam para voar quando passavam pela escadaria. Porém, aqueles que buscavam

    contemplar a bondade de Deus não se importavam com a falta do voo enquanto

    escalavam os milhares de níveis sobre o Oceano Hakodesh.

    O acesso estava constantemente repleto de anjos subindo e descendo por seus

    largos degraus, mas só os Arcanjos e outros poucos conseguiam chegar ao Terceiro Céu

    com o bater das asas.

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    No entanto, ao atravessar as grandes portas do Salão do Trono, todo o esforço

    era recompensado. O que eles viam e sentiam era um mistério agradável de ser

    desvendado. Este era o Reino dos Céus, uma criação após outra para a felicidade eterna

    de uma família unida por um elo eterno, tal como seu Criador.

    Eterno.

    Os anjos sabiam que este fato era incontestável, apesar de pouco compreensível.

    Entretanto, um ser celestial com capacidade intelectual superior à maioria, escolheu

    colocar à prova esta verdade absoluta. As consequências dessa escolha deram motivos

    para aquela espada de fogo guardar a entrada daquele jardim proibido.

    O homem não ficaria tão preocupado com aquela ameaçadora lâmina suspensa

    se soubesse que uma guerra começara por causa da simples notícia de sua criação. Uma

    guerra que dura até os dias de hoje.

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    CapítuloCapítuloCapítuloCapítulo 1111

    O Reino trepidava O Reino trepidava O Reino trepidava O Reino trepidava num compasso intenso. As pernas de Banay tremiam sobre o chão

    queimado de uma terra aniquilada. Munido com uma espada à altura do rosto em

    posição de ataque, sentia-se pronto para atacar a ameaça.

     As nuvens bronze-escuro impediam o sol de mostrar a face dos dois seres que se

    opunham aos seus comandos. O vento morno secando o suor na face despertou o

     jovem anjo pra gritar a advertência pela segunda vez.— Saiam daqui! Tenho ordem para não deixar que nenhum celeste permaneça

    nesta dimensão e vou cumpri-la. Convertam-se ao novo reino ou serão destruídos. Não

    vou repetir.

     As duas figuras silenciosas de vestes brancas talares continuavam imóveis,

    camufladas atrás do vapor da lava incandescente. Porém, foi possível ver que eles

    estenderam as palmas das mãos como se chamassem aquele que os ameaçava.

    Banay era um serafim de aparência nova e altiva, mas o escuro em volta daspálpebras o fazia acabado. Tinha o queixo um pouco recuado, cabelo castanho da cor

    dos olhos, que contrastava com uma rasgada túnica azul claro suja de preto.

    — Eu avisei! — lembrou o jovem.

     A velocidade de seus passos fez com que as brasas no chão voltassem às chamas.

    Um urro animal lhe conferiu a fúria necessária para golpeá-los em um único corte

    diagonal, sem que olhasse para eles. Os dois seres iluminados caíram de joelhos e o

    silêncio deles deu lugar aos gemidos. O serafim continuou de costas e cabisbaixo,

    escondido na fumaça. A espada ainda estava na posição final do golpe quando

    perguntou:

    — Vocês têm algo a dizer antes de partirem em paz?

    — O efeito... da justiça... é a paz... — respondeu uma voz antiga.

    Um arrepio gélido se apossou de Banay dos pés à nuca. Não pode ser!  Ele jogou

    a lâmina sobre a escória e voltou-se acelerado para os anjos que ferira. Ao tomá-los nos

    braços, amargou reconhecer seus amados professores serafins.

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    Um era Likud, seu mestre em consolidações, que ainda movimentava o peito

    magro para manter o último fôlego de vida sob a barba comprida. Ao seu lado estava o

    calculista Chishuv, um calvo ancião de pele crespa e olhos acolhedores.

    Chishuv foi quem lembrou seu aluno sobre o resultado equacional da justiça de

    Deus. Banay repousou as cabeças deles em seu colo, tentando inutilmente estancar a

    ferida que causara.

    — Ah, meu Deus! Meu Deus! Por que vocês não se identificaram para mim?

    Por quê?

    Sorrindo com dificuldade, o sábio calculista tocou o rosto do jovem serafim e

    secou suas lágrimas. O brilho dos anciãos se apagava à medida que o choro de Banay

    aumentava.— Isso está errado... Está errado... — lamentava o assassino.

    O exército do líder rebelde estava próximo de seu apogeu e Banay era só mais

    um de seus soldados. O serafim percebeu que o golpe de sua espada, antes usada como

    faca de construção, não mudara sua vida para melhor.

    Seu ataque sobre os mestres o fez questionar suas últimas práticas no Primeiro

    Céu. Ele presenciou o impacto do meteoro gigante que provocou incalculáveis

    terremotos em escalas extremas, modificando as colunas geológicas de maneirainesperada. Desde então, os vapores de enxofre e poeira incandescente desprendida

    após a colisão produziram uma nuvem de aniquilação sobre toda forma vivente. O

    Primeiro Céu foi inteiramente destruído por esse cataclismo e Banay recebeu a missão

    de mantê-lo vazio a qualquer preço.

     Angustiado por uma trilha petrificada do que antes fora um bosque, o serafim

    levava os corpos de seus professores nos ombros. Com um nó dolorido na garganta,

    constatava atônito como o fogo transformara florestas inteiras em carvão. Sem os raiossolares, a densa nevoa de pó e tristeza impediu a vida de seguir seu curso. Os poucos

    répteis que resistiram à lava lutavam bravamente pela sobrevivência. Mas, sem

    alimento, sem água e oxigênio, eles agonizavam até a morte. O fim dos grandes

    tanniyns estava selado.

    — Meu Deus, do que eu estou fazendo parte? Esperava tanto que as mudanças

    fossem para o bem, mas só vejo desgraça!

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    O vale que antes abrigava o denso bosque em torno do magnífico Jardim de

    Deus, agora lhe causava temor. O Rio de Vida de águas caudalosas estava inerte.

    Parecia uma estrada de lama negra e movediça, quase estacionada. De suas margens

    exalava um odor nauseante de carne podre.

     A nascente da cascata do Rio de Vida, nas alturas, deu lugar a um caldo escuro,

    que escorria de nuvens negras e marrons. A cachoeira celeste tornou-se uma densa

    coluna pendurada nas alturas.

     Julgando ter visto devastação suficiente no Primeiro Céu, o serafim fez surgir

    suas asas com o triplo de seu tamanho, de ponta a ponta. Agitou as penas e subiu pelos

    ares, atravessando bem acima das nuvens escuras, levando consigo seus antigos mestres.

    Mas no Segundo Céu as coisas não estavam melhores do que lá embaixo. Ocenário da civilização celeste era de destruição, morte e ruína. Sob uma forte chuva, o

    serafim chegou à cidade de Tziyon na metade do dia. A capital exibia com desonra as

    cicatrizes da primeira guerra.

     Ao pousar suas sandálias sobre o que sobrara das ruas da grande capital, Banay

    repousou os corpos de Likud e Chishuv debaixo de um escombro seco para protegê-los

    das águas. Se eu conseguir pelo menos uma folha da Árvore da Vida, eles ficarão bem.

    Preciso encontrar alguma coisa. Talvez ainda tenha na praça.Banay queria encontrar cura na cidade para os anciãos, mas quando se ergueu

    sobre uma alta montanha de tijolos para entender melhor onde estava, viu as ruas

    cobertas por milhares de cadáveres de anjos. Os corpos inexpressivos eram lavados da

    imundície de seus opressores. A morte cruel o cercava.

    O ventre de Banay se revirou, fazendo-o vomitar. Ele queria sair dali, mas o

    temporal o impedia de voar novamente e os acessos da cidade estavam obstruídos pelos

    desmoronamentos.Forçado a percorrer as vielas até o centro da cidade, notou que as Árvores da

    Vida no perímetro circular da Praça Echad haviam se tornado gravetos queimados e

    pontudos. Do magnífico Palácio Central em frente à praça só restavam poucas colunas

    e alguns sinais de uma civilização pacífica.

    Caminhando desorientado pelo alagamento, Banay percebeu ao longe quatro

    anjos da resistência celeste se arrastando pelo escoamento das águas lamacentas. Sem

    coragem para ajudá-los, temendo ser uma emboscada, o serafim se escondeu atrás de

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    escombros que estavam na esquina. Mas aqueles anjos não conseguiriam aplicar

    qualquer golpe. Estavam com as pernas dilaceradas e os olhos cegados pelo fogo. Em

    vão, tentavam levantar apoiados uns nos outros. Porém, um sobrevoo baixo de dois

    rebeldes em turbilhão, vindos do norte, revolveu a lama das ruas. A força do vento

    formou um chicote imundo sobre seus corpos.

    Os soldados com asas calafetadas, adaptadas para a chuva, riram por terem

    soterrado aqueles feridos no caminho. E ainda encontraram Banay, que rapidamente

    disfarçou sua expressão para se assemelhar aos debochados.

    — Vamos embora, serafim! Aqui não tem mais nada pra gente — convidou um

    dos voadores.

    Estavam atrasados para se juntar ao seu regimento e Banay sabia que ocomandante não estava severo com a demora da vitória. Estava violento.

    Depois que os outros se distanciaram, os corpos dos feridos e mortos apenas se

    molhavam. E ele sentia a chuva enquanto olhava as torres de habitação que ajudara a

    construir. Havia marcas de algo — ou alguém — que atravessou suas paredes inúmeras

    vezes. Vigas distorcidas indicavam o sentido da força destruidora.

    Que foi isso?  

    O exército rebelde acabou com tudo que encontrou em seu caminho. Sobraramcampos e campos de uma metrópole celeste revirada pelo avesso.

    Sem decidir se buscaria cura para seus mestres, se ajudaria os quatro anjos

    feridos ou se acompanharia os demais rebeldes, o jovem estava literalmente em uma

    encruzilhada sob chuva, trovões e tremor. Mas em uma das poucas paredes que restou

    em pé ao sul da Avenida Echad, Banay leu uma frase deixada por um dos celestes. Era

    uma mensagem grafada com uma espécie de alcatrão sobre um reboco marcado de

    guerra.

    Da felicidade ao sofrimento bastaDa felicidade ao sofrimento bastaDa felicidade ao sofrimento bastaDa felicidade ao sofrimento basta apenasapenasapenasapenas um passo;um passo;um passo;um passo;

    do sofrimento para a felicidade pode ddo sofrimento para a felicidade pode ddo sofrimento para a felicidade pode ddo sofrimento para a felicidade pode duuuurarrarrarrar para semprepara semprepara semprepara sempre....

    O serafim ficou ali, diante do grafite, observando a inscrição borrada se

     juntando à enxurrada. Banay se juntaria à água ou ao piche? Mesmo confuso, ele sabia

    que tinha que tomar a sua decisão e não poderia adiar.

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     As torrentes de águas rebeldes levavam muitas coisas em seu curso, menos a

    honra dos anjos que defenderam os ideais de seu Deus. Eles lutaram pelo que

    acreditavam e isso ficaria registrado na história.

     Apesar de rápida, a guerra no Segundo Céu foi a mais ferrenha que o exército

    insurgente enfrentou. Em Tziyon, os generais se depararam com uma defesa altamente

    organizada. Os arcanjos trabalharam bem e em pouco tempo. Seria difícil transpor a

    resistência celeste se o grande líder rebelde não tivesse concebido a mais baixa ideia que

    alguém poderia ter. Os seus soldados vibraram com a vitória, mas não entenderam o

    que seu comandante havia feito para alcançá-la.Fora dos limites da cidade o tremor era maior, além da região montanhosa onde

    a cidade de Tziyon estava edificada. A força do epicentro era sentida depois da descida

    da serra, mais próximo da praia. A marcha dos milhões de guerreiros rebelados era a

    razão do abalo sísmico no Reino dos Céus. “Marchem, não voem” — esta era a ordem.

    No solo, o impacto das sandálias negras trançadas até os joelhos expressava o

    ódio pelo atual governo. Esse sentimento machucava a existência por completo, mas

    eles não se importavam. Em qualquer casta, a maldade se tornara o principal traço deidentificação dos soldados. Pareciam indivíduos originados da crueldade e não da luz.

     A chuva foi se dissipando enquanto as tropas seguiam pela larga Estrada Hagah.

    Era um caminho de terra batida com pó de pedra, que ligava o Oceano Hakodesh a

    cidade de Tziyon, usado no passado para o transporte dos materiais de construção

    usados para erguer a metrópole. Percorrer sua extensão pela planície cercada de

    cipestres era um convite à meditação.

    Dentre os milhares de batalhões que marchavam apressados ao ponto deencontro, um anjo dominador de olhos avermelhados e cavanhaque curto instigava seu

    grupamento. Ele agia como se liderasse uma alcateia faminta.

    — Só nos falta a conquista do último território. Qual de vocês está pronto para

    tomar o Terceiro Céu?

     A resposta daqueles anjos vinha em rugidos de guerra. Os rebelados se tornaram

    egocêntricos insuportáveis até mesmo entre eles. Sentiam-se pequenos deuses sob um

    peitoral de escamas metálicas pentagonais sobre uma túnica encardida acima dos

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     joelhos. A espada embainhada à coxa esquerda tinha a lâmina desgastada, mas bruta o

    suficiente para continuarem o avanço.

    O capacete pontiagudo de cobre ainda brilhante protegia uma expressão que

    não combinava com o rosto de um anjo. Nas costas entre asas altas, o escudo redondo

    e a aljava munida de flechas envenenadas eram carregados com orgulho. Os rebeldes

    não usavam arco.

    Em seus corpos, a transgressão das leis naturais do amor era materializada num

    caldo negro e viscoso no Reino dos Céus. Este sim era um armamento mortal. Quanto

    mais os rebelados odiavam a Criação e seu Criador, mais esse líquido escuro e pegajoso

    inundava os domínios do reino, e os artifícios forjados pelos serafins terminaram de

    espalhar pelos ares aquilo que Deus menos suportava.

    De fora da formação militar a caminho do mar, o jovem capitão de pele

    avermelhada, de trança em forma de corda, seguia longe dos outros líderes. Carregando

    o capacete como cesta no braço esquerdo, seguia pela beira da estrada. Escondia as asas

    alaranjadas junto ao uniforme de guerra. Queria um pouco de discrição. A tentativa do capitão Mamom de seduzir Asmodeu só serviu para provocar a

    ira de Leviatã. Não estava arrependido. Para ele, a loira Asmodeu valera o risco de

    bater de frente com aquele oriental impulsivo.

    O ambicioso serafim até apresentava um porte vigoroso pelo seu trabalho de

    ourives, mas estava evitando brigas desde que lera uma frase em especial. Aquelas

    palavras em alcatrão deixadas em um muro da capital o incomodaram profundamente:

    “Da felicidade ao sofrimento basta apenas um passo...”Esfregando o anguloso queixo, deixou de lado a interpretação. Tolice , pensou.

     Ágil, ocupou-se com a atividade que julgava a mais importante de todas: encontrar

    lascas de ouro para si.

    Com as explosões em Tziyon, deduziu onde alguns pedaços de ouro poderiam

    ter caído pelos lados da Estrada Hagah. Seguindo distante dos olhos dos quatro

    generais, Mamom tornava-se cada vez mais egoísta e avarento. Quanto mais passos eu

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    der, mais próximo estarei da minha própria riqueza. Ei! O que é isso? Ah... mais uma

     pepita para mim... Ótimo! Ninguém viu.

    Mesmo com a vitória sobre Tziyon, nenhum rebelado ficou na cidade para

    guardá-la. O comportamento deles era resultado de um conceito repetido de várias

    formas pelo grande comandante rebelde: A FORÇA É O QUE IMPORTA. A

    FRAQUEZA MERECE DESPREZO.

     Alguns justificavam entre si que era desnecessário manterem a vigilância porque

    seu líder garantira como certo o triunfo. Não havia mais com quem lutar no Primeiroou no Segundo Céu. O último desafio estava à frente, nas alturas.

    Enquanto marchavam pela sinuosa estrada do leste, sem êxito as tropas

    procuraram Deus a caminho do ponto de encontro. Se Ele não fora visto em nenhum

    lugar do reino desde o início das batalhas, menos o seria ainda naquelas estradas

    cercadas de mata fechada. De acordo com a estratégia do alto comando, após a

    aniquilação dos anjos celestes no ataque a Tziyon, Deus estaria sem poder e acuado

    atrás de seu trono no Terceiro Céu. Chorando, talvez.Mesmo depois da chuva se dissipar, ainda se ouviam estrondos elétricos nos ares

    cinzentos. Até que, distante, o exército contemplou com alívio a linha oceânica surgir

    no horizonte. Na metade do dia, o cheiro do mar revigorou as poucas forças que

    restaram sobre os anjos. Faltava apenas um passo. Na verdade, muitos que

    representavam a etapa final. Era dessa maneira que o comandante da rebelião fazia

    associações em sua mente superdotada em pé sobre uma alta pedra cravada à beira da

    praia. Altivo e feroz. Helel, o querubim Condutor da Luz.Para suas tropas em aproximação, a imagem que viam de Helel era do grande

    conquistador do Reino dos Céus. Destemido. Único. O líder da rebelião construiu

    uma imagem tão forte quanto sua armadura para o exército que constituíra.

    Na sua perna direita à frente exibia sua caneleira protetora de ferro, cintilando

    um pouco de luz vinda das alturas. Sua túnica estava um pouco queimada, mas não

    muito. A peitoral de escamas de prata e abdominal de cobre inflavam com sua

    respiração acelerada.

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    Denunciando impaciência, chamava os soldados ao seu encontro com a própria

    espada. Seu negro cabelo comprido como bandeira esvoaçava para trás das asas,

    revelando os finos traços de quem ousou transgredir a paz em nome de um ideal.

    Quando os generais chegaram ao seu encontro, esboçaram uma pequena folia.

    Helel franziu os olhos verde-esmeralda e os repreendeu num tenor irritado.

    — Não posso esperar por essa empolgação tola de vocês. Preparem-se. Vejam o

    que nos aguarda — apontando bem cima das ondas.

    Os anjos voltaram à formação e rápidos silenciaram o tilintar das espadas.

    Mesmo após a vitória sobre Tziyon, eles ficaram assustados com a subida até o trono

    com tantos trovões cortando nuvens carregadas.

    Era bem conhecida a gigantesca escadaria de acesso ao Terceiro Céu atrás deHelel, que começava nas areias da praia e seguia pelos ares apoiada no nada em toda a

    extensão. Hoje, porém, o motivo para subi-la não era contemplar a glória de Deus,

    mas exterminá-la de uma vez por todas.

    O único acesso até o Salão do Trono era essa elevada escadaria de pedra branca,

    com a estremidade que sumia acima da névoa. Era preciso subir a pé os incontáveis

    degraus numa altura vertiginosa. Abaixo, a vista era o oceano manchado com um tipo

    de óleo negro.Eu queria mesmo era subir voando. Sorte dos malditos ungidos! , murmuravam

    os soldados. Helel pensava assim também, mas seu objetivo era maior do que aquela

    barreira de gravidade transitória.

    O céu não escureceria por completo até chegarem ao topo, mas a ausência de

    luz natural poderia prejudicar o ataque. Precisavam se apressar. O comandante da

    rebelião não queria gastar sua energia iluminando o caminho porque tinha aplicado

    grande parte no ataque fulminante em Tziyon. Poupar forças era necessário para oúltimo e mais importante combate. O controle da luz era sua principal arma

    estratégica e não poderia falhar.

    Os quatro generais interromperam a análise de Helel quando saíram do meio

    dos guerreiros para encontrar com seu grande líder. Tinham aquele sorrisinho

    cúmplice, que logo se esfriou com um olhar irritado que caiu sobre eles. Asmodeu

    chegou a pensar que era por terem perdido seus capacetes em Tziyon, mas Helel só

    pensava em assumir o governo o mais rápido que pudesse.

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    Viraram-se ao cume dos degraus antes da partida. Na retaguarda, um terço dos

    anjos do Reino dos Céus já se imaginava sentindo o sabor da vitória.

     Atrás de Helel, começaram a subida.

     Acelerados atrás do Anjo de Luz seguiam os quatro membros do Conselho

    Superior de Guerra da Rebelião. Eram dois casais de generais: os serafins Asmodeu e

    Leviatã e os querubins Astarote e Zibul.

    O caldo escuro e pegajoso cobria suas vestes de guerra, mas as cabeças estavam

    cobertas de lama. O odor de pestilência não impedia que os pares de serafins equerubins se entreolhassem com uma empolgação vibrante. Nas condições que

    estavam era difícil distinguir quem era quem.

    Onde estão os Arcanjos agora? , perguntavam em celebração sem se preocupar

    com Helel, que corria pelos degraus na frente de todos. Os generais esperavam por suas

    condecorações de bravura após vencerem a etapa final, conforme prometido. A marcha

    que subia as escadarias era o sinal da violência iminente do exército. Eram velozes ao

    extremo e o Reino dos Céus não parava de tremer por causa da força de seus pés.Os rebeldes não perceberam que dos olhos verdes do comandante à frente do

    exército corriam lágrimas de ódio por tudo que ele tinha escutado de Ruash e de

    Sohma. Tentando manter certo controle emocional, Helel transformou sua espada em

    um machado sujo de cinzas para arrombar as grandes portas.

    — Meu nome é Helel! E sempre serei o Anjo da Luz.

    Desde que iniciara a revolta, afirmava sua própria identidade a fim de reprimir

    seu lado imaturo, que vez ou outra aflorava. Não queria que seus seguidoresconhecessem sua fraqueza. Mas o querubim voltou a sorrir no canto da boca quando

    escutou seus soldados gritarem ritmadas palavras de ofensa a Deus e de elogios a ele.

    Era esse o motivo da sua busca: reconhecimento de glória e honra.

    Eles já estavam próximos da entrada do centro do governo universal — o Salão

    do Trono. Secretamente, Helel se perguntava como seria a sensação de dirigir o Reino

    Celestial assentado naquele trono magnífico.

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    Seus pensamentos foram interrompidos com zunidos velozes nos ares. Era um

    ataque surpresa. Pararam. Rápidos, abaixaram. Eram quatro mil anjos em formação de

    defesa, vindos do Terceiro Céu, ungidos para voar em qualquer lugar. Estavam

    alinhados de tal forma que pareciam um único ser.

    — Malditos! — gritou Helel.

    O exército opositor não ousou levantar a cabeça perante o poder marcial dos

    alados. A defesa ficou limitada quando as nuvens escuras bloquearam a luz dos céus

    por completo, mas Helel não queria iluminar o caminho. Os soldados só puderam

    levantar seus escudos e se juntarem em formação tartaruga. Assim ficaram por toda a

    extensão da escadaria, pois era a única forma de proteção sensata. Até Zibul e Leviatã

    se abaixaram.Helel estranhou a falta de valentia de seus generais naquele momento, mas não

    estava com paciência para questionar. Só ele permaneceu em pé com as asas abertas e

    rosto erguido, encarando mais aquele desafio.

    — Eu não cheguei até aqui para ser derrubado tão facilmente. O Senhor sabe

    que me preparei para este momento. Acha mesmo que vou desistir? — dizia aos ares

    para Deus escutar.

    Retesando seu corpo ao limite, o querubim gesticulou com o braço esquerdoum movimento de subida junto ao pavoroso grito de comando:

    — Potestades! ATACAAAAR!!!

    Outros dois zunidos, vindos da praia pelo Sul e pelo Norte: dois mil guerreiros

    voadores rebelados, mil de cada lado, armados com espadas, lanças e flechas em

    chamas.

    Os Anjos Potestades lançavam as flechas como dardos, quatro ou cinco de uma

    única vez; arremessos tão fortes que faziam tremer os ares a cada lançamento. Embaixodos escudos em casco era impossível não sentir o cheiro do medo de soldados que não

    queriam ser atingidos.

    Então, os voadores insurgentes de Helel espremeram a legião acima dos

    capacetes pontudos da armada rasteira. Os sons das espadas golpeando umas nas outras

    nos ares esconderam o barulho da subida do exército, ordenada pelo comandante da

    Rebelião. Os clarões das armas iluminavam parcialmente o caminho.

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    — Que lutem e se destruam. Os mais fortes continuarão vivos. Isto sim é

    evolução — disse o querubim com os dentes travados de ira. 

    Os que ouviram isso se irritaram com Helel. “Desgraçado! Só estou nessa para

    alcançar a minha progressão”, reclamavam. Mas não ousariam enfrentá-lo, estavam

    perto demais da vitória.

    Numerosos como insetos, os anjos rebeldes apenas decidiram obedecer a seus

    novos líderes por crerem que obteriam alguma vantagem pessoal. Havia pouco tempo

    eram eles os mesmos que voavam felizes nos céus, servindo uns aos outros em amor.

    Foram puros. Agora, não passavam de mercenários.

    O líder sabia que manter um estereótipo amedrontador sobre seu exército era

    uma força silenciosa. Astarote, uma querubim como ele, criara esta imagem para seussoldados durante os dias de treinamento em Tzor. Ela contava que Helel fora

    esculpido de um bloco de luz do maior sol do cosmos e por isso tinha tanta força

    interior. E por isso os olhos verdes do comandante cortavam a pele de quem ele

    mirasse com impaciência. Esses mitos o faziam ainda mais admirado.

    Impulsionados pelo medo de caírem no oceano, os rebeldes continuaram a

    correr em direção às portas do Salão do Trono. Lá era o alvo: o lugar onde Deus

    estava. Subir os penúltimos degraus permitiu que Helel percebesse quem era a figuraque guardava as portas. Isso o fez desacelerar sua corrida. Na sequência, os demais

    combatentes foram silenciando seus movimentos ao verem um gigante iluminado

    surgir no alto. Malakyaveh estava na altura das grandes portas, descalço.

    Entalhadas com riqueza de detalhes e presas sobre eixos nos dois lados do arcodourado, as portas de madeira que davam acesso ao Salão do Trono, além de imensas,

    continham gravuras em alto-relevo de uma figura meticulosa. Um tronco de árvore

    com galhos e raízes idênticas, numa imagem espelhada a partir do centro. Vista ao

    inverso, a figura se apresentava a mesma. Os galhos alçavam o ar e as raízes se

    ramificavam, afluentes como um rio. Era uma obra de carpintaria de grande valor

    simbólico, exposta de frente para a escadaria no final de um saguão em meio círculo de

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    pedras brancas polidas. Esse saguão era sustentado nos ares do Terceiro Céu, ligado

    apenas ao último degrau da escadaria. Isso era um mistério à parte.

    Da túnica do gigante que impedia o acesso ao Terceiro Céu emanava uma luz

    branca, que fazia doer os olhos dos rebeldes. Helel encarou os olhos brilhantes dele,

    cravejados num rosto emoldurado por cabelos compridos e barba castanha, que

    cobiçou para sua própria aparência.

    Para disfarçar esse sentimento inferior, aumentou seu próprio tamanho até se

    equiparar à altura do guardião. Com ambas imagens refletidas no piso do saguão, olíder rebelde se curvou numa reverência debochada para Malakyaveh, o Anjo do

    Senhor.

    — Quer dizer que Deus realmente pensou que o grande Malakyaveh seria o

    último recurso suficiente para me impedir? — Respirou fundo e advertiu em voz

    mínima: — Venci Rashomer e sei que posso derrotar você também. Seja qual for seu

    argumento, não tenho tempo para diplomacia.

    — Nem você nem os que lhe seguem devem entrar aqui. Aceite o fato de que otodo plano de Deus é realizado. Os seres humanos serão criados e os anjos do Reino

    dos Céus os servirão.

     Armado com palavras, Malakyaveh fez o exército sumir atrás de Helel. O

    aspecto de seriedade em seu rosto largo ficava mais intenso com a impostação

    imperativa de sua voz. Ele não era um somente um anjo, mas o mensageiro e executor

    dos planos de Deus pela eternidade. Sua autoridade fora estabelecida por Ele acima dos

    demais anjos antes mesmo que fossem criados. Mas Helel não considerava mais o seupoder.

    — Arrependa-se, querubim.

    — Nunca! Esses humanos jamais serão criados. Eu não vou permitir que Deus

    cometa este ato de desprezo contra os anjos. Nós é que iremos evoluir! — Ele

    esmurrava com raiva o próprio peito. — Nós é que seremos servidos e não o contrário.

    Malakyaveh olhou para baixo nas escadas e direcionou suas palavras para o

    exército rebelde, abrindo os braços de mangas largas para onde estavam.

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    — Vocês bem sabem que servir é maior honra do que ser servido. Por que então

    escolheram percorrer o caminho do engano? — perguntou com bondade.

     Antes que perdesse seu comando, a voz de Helel se alterou de forma bizarra e

    carregada de escárnio.

    — Enganados? Ora, não nos faça rir, Malakyaveh. Este exército escolheu ficar

    ao meu lado. É disso que se trata esta revolução. Nós escolhemos tomar o poder para

    nos tornarmos ainda mais poderosos do que somos. Seremos mais do que Deus jamais

    nos permitiu ser. Isso é tudo o que nos interessa.

    — A sua causa é se tornar maior que Deus e levar esses anjos a caírem no seu

    fosso de vaidade.

    Percebendo um burburinho no meio do exército, o querubim assumiu um tomde voz sofisticado para relatar os últimos acontecimentos, enquanto repousava o

    machado na parte de trás de seu cinturão.

    — Isso é o que vocês nos fizeram acreditar desde quando surgimos. Por isso

    estamos aqui: para provar que Deus não é tão poderoso como vocês nos fizeram

    acreditar. Senão, por que Miguel fugiu durante a Batalha de Tziyon?

    Sem resposta do ser à sua frente, Helel continuou como narrador da própria

    trajetória.— Os anjos que defenderam o atual reinado estão mortos por toda a extensão

    do Segundo Céu. E ainda me lembro de Rashomer em Tzor, se acovardando quando

    não conseguiu libertar Ruash de minhas mãos antes mesmo das batalhas começarem.

    Malakyaveh manteve sua pausa silenciosa, mas seus olhos fulminavam cada

    palavra que saía da boca do líder rebelde. Sem qualquer constrangimento, Helel

    prosseguia.

    — Seus anjos morreram em vão, sabe por quê? Eles estavam adestrados a agir damesma maneira desde que nasceram. Foi fácil demais enganá-los. Mas de agora em

    diante essa estratégia não mais será adotada porque tudo vai mudar. Hoje é o dia em

    que termina o reinado velho e começa o meu.

    O porta-voz de Deus continuava imóvel em frente à entrada do Terceiro Céu.

    Seus olhos brilhantes corriam os rostos de cada um dos anjos rebeldes e repousava

    sobre alguns. Não encontrou ninguém que estivesse disposto ao arrependimento. Seu

    coração se entristeceu, mas ele não demonstrou.

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    Helel fechou as asas e ajeitou a couraça como se fosse um traje de festa.

     Aquietou sua acidez, alterando o discurso para um tom mais suave.

    — Eu pensei que você estivesse escondido com Deus em alguma parte da

    existência, Malak. Mas, deixe-me fazer as contas. Os anjos que sobraram no reino estão

    logo atrás de mim. A luz está sob meu poder. O corpo de Ruash está comigo e você,

    aqui. Portanto, Deus está sozinho atrás destas portas...

    Com o polegar e o indicador apoiando o queixo, o querubim tentou usar seu

    dom de convencimento misturado a alguma malícia sutil.

    — É uma pena que ainda permaneça desse lado. Sabe, sua voz é voz tão bela...

    Tão forte... Sempre quis cantar junto com você no coral. Poderíamos fazer um dueto

    belíssimo, não poderíamos? Tenho certeza de que Ruash concordaria com isso.— Não se atreva a falar em nome de Ruash. Você não sabe o que diz nem o que

    deseja porque sua sabedoria se converteu em tolice. Você teve um planeta inteiro nas

    mãos para cuidar, mas preferiu destruí-lo para saciar sua fome de poder. Os seus erros e

    os erros dos que lhe seguem terão árduas consequências. Nenhum adversário de Deus

    pode subir ao trono deste reino. Pela última vez você ouvirá: arrependa-se de suas

    intenções. Este é o momento.

    Com os olhos em chamas e a boca espirrando uma gosma cinzenta, o querubimesbravejou numa loucura crescente.

    — Tem coragem de me desafiar, Malakyaveh? Depois de tudo o que fiz até

    aqui, acha mesmo que eu e meu exército vamos recuar? Seus conselhos são inúteis! E

    saiba que não sou seu adversário: sou sua única opção neste novo reino que se inicia

    agora.

    Pairou o silêncio entre os dois gigantes.

    Com a respiração acelerada, Helel ajeitou os cabelos com a mão esquerdatremendo. Deu as costas ao Anjo do Senhor e caminhou em círculo. Helel reviu

    mentalmente suas conquistas até então.

    Obcecado, calculava as inúmeras formas como poderia lutar contra o guardião

    iluminado. Os três nunca estiveram separados. Ninguém poderia prever quais poderes

    Malakyaveh teria recebido de Deus para a guerra.

    — Malakyaveh. Malak... Yaveh... O Anjo do Senhor. Olhe atrás de mim. Mas

    olhe bem! A cada batalha que venci, mais os anjos passaram a confiar nessa nova era.

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    Eu comecei sozinho e agora veja: chegamos às portas como os únicos seres viventes do

    reino.

    O ser abaixou a cabeça com pesar. Não encontrou um justo sequer entre os

    rebeldes ao longo da escadaria.

    — Olha, não fique assim. Eu posso lhe oferecer um lugar de governo em meu

    reinado. Já imaginou tomando suas próprias decisões? Criando os seus próprios planos?

    Pense como seria aplicar o poder ilimitado pela extensão de todos os universos que

    formam o multiverso, sem precisar da aprovação dEle. E nem da minha, porque eu

    confio no seu senso de comando. Aliás, sempre confiei. Posso dar essa liberdade a você,

    bastando que se curve diante de mim e me reconheça como seu novo deus.

    Então Malakyaveh levantou a cabeça e bradou como leão com a mão impostano peito de seu adversário.

    — A humanidade existirá e eu sou o caminho para isso. Se vocês passarem desta

    porta, não haverá clemência pelos séculos dos séculos.

    — Tem razão. Não haverá clemência. — Helel ergueu o machado num piscar

    de olhos e esbravejou: — para os FRACOS! — Com um golpe veloz, viu atravessar a

    lâmina no braço de Malakyaveh e, num mesmo movimento, percebeu que a cabeça do

     Anjo do Senhor fora rachada em duas partes. O machado ficou cravado na porta e aluz do corpo se apagou entre a metade e a viração do dia. Mal acreditando, o gigante

    Helel ajoelhou-se devagar e tentou unir as partes do crânio com as mãos. Seus olhos e

    boca ficaram abertos e inertes. Aquele a quem tanto odiara pela posição que tinha

    diante de Deus estava morto. Está feito, Miguel, pensou.

    O corpo do Anjo do Senhor começou a se dissolver em um avermelhado

    viscoso, esvaziando a vestimenta branca sem brilho. O líquido escorreu pelas escadarias

    do templo, abrindo caminho entre o exército. Ninguém tocava no fluído, com umamistura sentimental de respeito, ódio, pavor e tristeza. Antes de chegar à metade da

    escadaria, o líquido evaporou-se, formando uma névoa rubra e esparsa que pairou

    acima dos soldados.

    Depois desses dias de estratégia de conquista, treinamento, batalhas... o receptor

    da luz para a Criação fora vencido com um único golpe de machado? Os rebeldes se

    surpreenderam com a destreza daquele que escolheram como seu próximo Rei.

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    Os soldados revoltosos pensavam em conjunto sobre o que haviam acabado de

    presenciar. Como que o Grande Malakyaveh, o líder guerreiro admirado por todo o

    reino, pôde se entregar por amor a uma raça que nem será criada? Onde estava o poder

    que disseram que o Anjo do Senhor tinha recebido? Tudo culpa desses humanos! Esses

    fracos jamais existirão para serem servidos por nós. 

     Além do que já tinha absorvido, Helel tomou em suas mãos toda a luz

    disponível na entrada do Terceiro Céu antes de entrar no Salão do Trono.

    Depois dessas portas, Deus está prestes a ser vencido, pensava.Com a força do braço e ainda na forma gigante, o querubim arrancou o

    machado da porta com as duas mãos. Deslizou os dedos sobre a marca que fez no

    relevo da madeira. A árvore é a chave. 

    Tornando a si com um risinho convencido, olhou para baixo e fez um gesto

    com a cabeça para que seus quatro generais assumissem tamanho igual ao seu.

     Alinhados e agigantados, Asmodeu, Astarote, Zibul e Leviatã usaram tanta força com

    Helel para arrombarem as portas que as veias sobressaltaram em suas frontes. Asmodeu teve a impressão de escutar uma voz conhecida, mas antes que ela se

    manifestasse as portas se destrancaram numa explosão. A névoa formada pelo vapor do

    sangue foi sugada para o interior do recinto de imediato, se espalhando de forma quase

    invisível. A lama saiu dos corpos dos generais quando se transmutaram. Lá dentro, as

    figuras deles se destacavam mesmo vestidos com armadura de combate.

     Asmodeu estava com os cabelos loiros amarrados à nuca. Seus lábios desenhados

    e levemente carnudos tinham um tom rosa delicado. A linda jovem parecia idealista esensível. Mas só parecia.

    Os cabelos ruivos e cacheados de Astarote formavam uma juba armada e aberta.

    Demonstrava uma maturidade ardilosa em traços angulados. Com uma beleza

    arrebatadora, seus profundos olhos azuis eram tão intensos quanto os padrões que

    estabelecia.

    O general Leviatã, um serafim como Asmodeu, tinha a cabeça raspada, e os

    olhos puxados e sujos de lama lhe imprimiam um aspecto de cólera. Seu coração,

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    porém, estava tomado por uma paixão desenfreada. Sua motivação nessa guerra era

    diferente dos demais, mas Helel não se importava com isso.

    Zibul era um poderoso querubim que se portava como estrategista, apesar de ser

    pouco ouvido por Helel. Ele recebera tal nome dias antes, assim como os outros três

    comparsas. Sua montanha corpórea de massa desenvolvida ao extremo revestia uma

    personalidade crítica e calculista. Tinha a fisionomia bronzeada, vincada e áspera

    porque sempre fora sério, mas agora era mau.

    Quando os quatro, juntos com Helel, adentraram mais no Salão do Trono, de

    volta ao tamanho normal, encontraram um enorme... vazio. Um espaço continental

    vítreo, frio e sombrio. Deus não estava à vista em nenhuma direção do ambiente.

    Nada, aliás. O ambiente que antes era incessantemente movimentado por seresiluminados e cheios de glória, não passava de um extraordinário salão transparente e

    sem luz.

    Era uma dimensão intrigante. Não havia paredes nem teto, só a porta para um

    fundo infinito de vastidão espacial. Caminhavam sobre uma superfície lisa no limite do

    multiverso. O espaço era pouco iluminado pelas estrelas, sois e outras fontes distantes

    de luz sideral. Curioso era um misterioso aroma de óleo de flores.

    Parecia outro lugar. Onde estava o Trono de Deus com a fonte do Rio de Vida?Nem mesmo o mar de cristal, os cânticos ou as lâmpadas de fogo estavam ali.

    — Mas, o que aconteceu por aqui? — Helel averiguava.

    Perplexos, os líderes rebeldes caminharam um pouco mais pelo salão de fundo

    infinito, seguidos por um exército desconfiado, que atravessava as portas aos poucos. O

    barulho dos passos e o tilintar das armas de guerra do exército ecoavam pelo ar.

     Ali era possível contemplar a vastidão do Reino abaixo, no Segundo e Primeiro

    Céus. Vista através do piso, a imagem longínqua de uma Tziyon destruída despertoucomentários entre os soldados.

    Um som metálico diferente soou abafado por causa do burburinho dos

    indiscretos. Atento ao menor sinal de risco à sua volta, Leviatã alertou, quase afônico

    pela rouquidão.

    — Shhh... Vocês ouviram isso? Pode ser uma emboscada! Vocês ouviram que

    não era para passarmos dessas portas. Estamos vulneráveis sem Ruash aqui como nosso

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    refém. Eu disse que iríamos precisar dele como garantia. Estou pressentindo algo mau

    se encaminhado.

    Helel não lhe deu atenção. Estava confiante em sua estratégia e compenetrado

    demais em sua busca. Se Deus havia fugido, ele não perderia tempo e iria atrás de sua

    busca principal: o poder.

    Os outros generais se achegaram a Leviatã para confabular sobre a situação

    quando, de súbito, Helel voou até o fim do salão com muita velocidade, deixando os

    milhares de soldados com os generais para trás. Bem depois que sumiu no horizonte,

    berrou distante:

    — Encontrei a rocha!

     A lendária montanha rochosa que ficaria atrás do trono estava realmente no

    Salão do Terceiro Céu. Imensa, em formato quase triangular, devia ser maior do que

    qualquer outra no Primeiro ou no Segundo Céu.

    Helel lembrou-se das histórias de seus conselheiros. Era sua oportunidade de

    conferir se lenda e realidade tinham um ponto comum.— Se a montanha está aqui, será que no topo está o que penso que está?

    Voou em direção ao cume da montanha cinzenta. Levaria pouco tempo para

    chegar ao destino, mas sentia dores lancinantes ao forçar suas asas. Com dificuldade,

    conseguiu pousar no meio da escarpa. Após analisar o caminho acima, escalou um

    paredão sulcado com as mãos em garras. Quando sentiu segurança novamente,

    completou o trajeto com um voo ligeiro. Ao pousar sobre o topo, a poeira levantada

    com o bater das asas foi se dissipando até revelar o alvo de sua busca. O que tantolutara para encontrar finalmente estava diante dele: a lendária Árvore do

    Conhecimento do Bem e do Mal.

    Era um pouco menos frondosa do que havia imaginado, mas o tronco era largo

    e bem antigo. Suas raízes estavam sinuosamente aprofundadas na rocha, mas entre as

    folhagens centenas de frutos de cascas vermelhas e aveludadas, salpicadas de amarelo,

    pareciam doces ao paladar. Não somente doces, mas poderosos. Para o querubim, a

    fonte do poder de Deus estava concentrada naqueles frutos antigos.

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    Faltando pouco para tocar a árvore, Helel sentiu o golpe do ar que se deslocou

    ao bater das asas de Leviatã, Asmodeu, Astarote e Zibul, balançando as folhas dos

    galhos e atrapalhando seus cabelos negros. O querubim saiu do transe em que estava

    contra sua vontade e por isso gritou com fúria:

    — Vocês não são aptos. Saiam daqui!

     A habitual fala arrastada de Zibul de alguma forma se acelerou quando ele

    encarou Helel, armando-se com uma espada guardada entre as asas.

    — Certamente você não chegaria até aqui sem a nossa ajuda...

    — O quê? Ousa me desafiar, sua mosca desajeitada? — O líder ergueu o

    machado que matou Malakyaveh. — Dei a vocês o meu nome e a minha confiança,

    mas isso não lhes dá o direito de cobiçar o meu espólio! Asmodeu tentou impedir as palavras de Zibul. Ela não queria que seu regente

    musical a olhasse com aquela desconfiança junto aos outros, mas Leviatã segurou seu

    pulso para que não se intrometesse.

    Com pensamentos mais velozes que seus movimentos, Helel calculou a

    intensidade de um golpe capaz de imobilizar o quarteto. Considerou também o tempo

    que levaria para comer todos os frutos até que se recuperassem. Depois disso, não

    precisaria mais de representantes para forjar uma onipresença.Com palavras cavernosas, Leviatã se colocou ao lado de Zibul para reivindicar o

    despojo de guerra em prol do grupo.

    — É nosso direito também, querubim. Você não é melhor do que nós.

    — Para dizer a verdade, eu sou.

    Uma esfera de luz forte surgiu das mãos de Helel. De uma só vez, com um

    estouro, derrubou os quatro príncipes do alto da montanha de pedra. Eles caíram

    desfalecidos na escuridão. Apesar de exausto, o golpe foi como soprar migalhas paraHelel, mas para os outros foi como sentir no peito o impacto de uma onda gigante.

    Sem mais esperar, voou para a árvore como um pássaro faminto e partiu para devorar o

    primeiro fruto no galho mais alto. Sentiu a pele arrepiar e as orelhas arderem quando o

    caldo desceu pela garganta, mas só na terceira mordida sentiu no paladar um sabor

    diferente. Uma mistura de polpa doce com um tom alcoólico e um amargor no final.

    Mal engoliu o primeiro e Helel logo comeu três, seis frutos de uma única vez. Entre

    uma mordida e outra, fazia grunhidos como dos tanniyns numa expressão enfurecida

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    de quem não tinha tempo a perder. Estava muito satisfeito com o maior espólio de

    guerra que poderia ter. O Querubim Ungido para cuidar da Primeira Dimensão tinha

    convicção de que o conhecimento do bem e do mal lhe daria o poder criacional.

    Gastou um bom tempo tragando a árvore. Ao final, não tinha espaço em seu interior

    para comer mais. O caldo escorria pelo canto da boca porque as mandíbulas estavam

    doloridas de tanto mastigar. A garganta arranhada era o limite do ventre. Gula. Não

    queria vomitar, nem parar de comer. Era a fome de se tornar o que não era.

    Cambaleante, Helel se deitou encostado ao tronco nu da antiga árvore. Fechou

    os olhos, tentando sarar sua tontura. Precisava descobrir o que acabara de fazer.

    Talvez... depois de cochilar um pouco... despertarei como Deus...

    Transformado em um réptil comprido e escamoso, sem patas, Leviatã escalava a

    montanha com rapidez depois que acordou do desmaio. Os outros o seguiram,

    batendo as asas com relutância por causa das dores. Mesmo assim, o grupo ficou

    arrependido por desafiar o único ser que tivera a ousadia de prender Ruash, aniquilar o

    Primeiro e Segundo Céus com seus anjos defensores e, ainda por cima, assassinarMalakyaveh.

    Quando chegarem ao topo do rochedo, mal puderam acreditar. A Árvore do

    conhecimento do bem e do mal estava seca. Até as folhas tinham sido comidas. Os

    galhos vazios e as raízes distorcidas lembravam aquela imagem gravada nas portas do

    Terceiro Céu.

    Helel foi encontrado nas trevas, deitado junto ao madeiro com os dedos

    cruzados sobre o peito, dormindo. A couraça de escamas de prata e cobre searrebentara por causa do seu ventre inchado.

    — Mas não sobrou nada? Não pode ser... — lamentou Leviatã.

    — Olhem! Ele está acordando — disse Astarote.

     Abrindo os olhos preguiçosamente, o Anjo de Luz despertou do profundo sono

    na presença dos generais menos Leviatã, que procurava algum fruto perdido pelo chão.

     Asmodeu aproveitou a distração de Leviatã para se aproximar de seu ídolo. Ela

    percebeu que Helel pronunciaria suas primeiras palavras como Deus e era sua chance

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    de assumir um lugar ao seu lado. A serafim mostrou o dedo nos lábios para Zibul e

     Astarote em sinal de silêncio, com um olhar de sensualidade. Se Asmodeu queria

    provocar a ira de Astarote, fez com perfeição. A ruiva ficou prestes a rugir como fera,

    tamanho o ciúme que sentiu, mas disfarçou por causa de seu compromisso com Zibul.

    Este sim era implacável com traições e não aceitava provocações sem vingança.

    Helel, ainda com a cabeça apoiada no largo tronco da árvore, apontou o dedo

    para o chão, riscando o pó da rocha com luminescência.

    — Nesta nova era que se inicia agora, eu desperto como a brilhante Estrela da

    Manhã. E neste lugar, com a madeira desta árvore seca, esculpirei meu trono acima de

    onde foi o do meu predecessor. Nesta rocha escreverei um hino de adoração ao meu

    poder. Eu juro aos anjos, pela minha força, que a anêmica humanidade não passou deuma ideia equivocada e jamais será formada. A minha evolução já aconteceu.

    Zibul e Astarote temeram que Helel enfim estivesse com poderes iguais aos de

    Deus. Leviatã desistiu de buscar os restos do fruto, mas ele seguiria o plano original

    traçado com Zibul até o fim. Para não levantar suspeitas, se uniu à reverência.

    Para sair do estado de torpor, Helel apertou os olhos com força e se levantou

    com cuidado. Verificou o movimento de cada uma das mãos, o que despertou

    preocupação nos generais. Mas seu sorriso malévolo lhes deu alguma segurança.— Agora que vocês aprenderam que não podem me deter, iremos em direção

    ao último estágio. Com Ruash preso e Malakyaveh aniquilado, vou vencer Deus de

    uma vez por todas. Mas, se não o encontrarmos, já o teremos vencido sem luta. Aí sim

    terei alçado a verdadeira supremacia.

    Todos gargalham em concordância e o discurso continuou.

    — Hoje me tornei o grande EU SOU. Agora, cada uma das estrelas terá um

    nome que me glorifique e os anjos se espantarão com um poder maior do que o dEle jamais foi.

    Helel passou pelos seus comparsas e se posicionou na beira da montanha sobre

    uma porção de rocha mais elevada. De lá, podia contemplar a imensidão escura do

    Terceiro Céu com seu exército e, além dela, todos os territórios do Reino. Impetuoso,

    levantou os punhos cerrados para o alto e abriu as enormes asas.

    — Quem ousará não me servir?  — bradou, cantando com voz de majestade.

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    Os anjos alinhados em batalhões na base da montanha responderam em naipes

    agudos com vozes dividas:

    — Todos lhe servirão!

    — Todos se curvarão!

    Quem tomou a frente do exército na ausência dos grandes oficiais foi o capitão

    Mamom. Ele mesmo puxava os gritos de júbilo dos rebelados. Obviamente, queria

    chamar a atenção de Helel mais uma vez.

    Essa atitude não provocaria tanto Leviatã se partisse de qualquer outro anjo

    cobiçoso. Mas ver que Mamom assumira o comando de seu batalhão lhe provocou

    tamanha ira que o anjo oriental começou a se transmutar na mais terrível fera que os

    céus viram. Contudo, o toque aveludado de Asmodeu em seu ombro o acalmou comogelo em água fervente.

    Foi nesse momento que um estouro iniciou uma trepidação na montanha.

    Ouviu-se um craquelar que correu da base ao topo, causando uma expectativa de

    medo. Quando Helel olhou para trás, ficou assustado ao ver o tronco seco da árvore

    pela rocha, aumentando vigorosamente o tremor. Os generais se desequilibraram,

    mesmo apoiando-se uns nos outros. O desespero deles foi quando o topo da montanha

    se moveu com velocidade para baixo, precipitando Helel, Leviatã, Asmodeu, Astarote eZibul atrás da formação dos batalhões. Foram arremessados tão violentamente que não

    conseguiram escapar em voo. De forma estranha, as rochas da elevação se curvaram

     jogando os cinco para o centro do salão. Miguel voltou! , supôs Leviatã para si mesmo.

    Soldados da retaguarda correram para socorrer seus líderes. Com olhos

    arregalados pelo cataclismo inesperado, acharam que o salão poderia ter rachado no

    impacto da queda dos corpos.

    — Não se mexam ou vamos cair! — alertou um soldado.Quando Helel e seus generais eram amparados, suas expressões transformadas

    pelo pavor instigaram os soldados para se virar para onde olhavam congelados. Era a

    montanha rochosa que vinha na direção dos rebeldes, transformando-se numa figura

    que eles conheciam muito bem. Os anjos ergueram as mãos na frente dos rostos, como

    se a proteção fosse possível. O terror aumentou quando o som grave de um shofar,

    seguido de um tom agudo longo ecoou em todas as direções pelo salão transparente. As

    ondas sonoras refletidas causaram tamanho desconforto que os milhões de anjos não

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    tiveram alternativa senão curvarem-se diante da rocha com as mãos nos ouvidos. O

    líder dos rebelados, caído desajeitado no chão, no centro da formação, não acreditava

    no que seus olhos viam.

    — Impossível! — relutou Helel antes do impacto iminente da montanha

    transmutada em sua direção.

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    CCCCapítuloapítuloapítuloapítulo 2222

    Alguns dias celestes antes da invasão do Terceiro Céu.

    QuandoQuandoQuandoQuando a aa a rebelião não era rebelião não era rebelião não era rebelião não era nem uma partícula de poeira suspensa no ar, a paz era

    respirada pela vastidão da existência. Paz, na essência da palavra. Uma época onde

    Deus habitava em seu trono, desde sempre, posicionado no mais alto topo no centro

    universal. Coisa nenhuma estava acima e tudo estava abaixo de seus pés. De olhos

    fechados ou abertos, era impossível saber no que ele estava pensando. Contudo, nada

    saía de seu controle. Através de sua capacidade de estar em vários lugares ao mesmo

    tempo, Deus permanecia assentado em seu trono e também percorria livremente sua

    criação. Na manhã em que as mudanças começariam, ele foi caminhar descalço pelos

    campos gramados do Primeiro Céu, em sua forma habitual.

    Deus vinha andando com uma expressão tranquila, vestido com uma túnica

    branca. Como segunda túnica, um tecido cru preso ao ombro direito o cingia no lado

    esquerdo do corpo. Interessante é que os anjos gostavam de se vestir parecidos com ele.Uns e outros tinham adereços distintos, mas a base era em geral a mesma.

    O rosto largo era marcado pela expressão de seu sorriso. Trazia uma barba

    grisalha sem bigode, como uma pequena juba penteada. Os cabelos, também grisalhos,

    ondulavam até os ombros. Maduro e forte, Deus aparentava cerca de sessenta anos, se

    fossem contados ali no Primeiro Céu.

    Leves raios solares gradativamente revelavam a mais natural beleza que se podia

    contemplar naquela dimensão. O calor despertava o perfume dos arbustos aromáticos edas flores silvestres. Afluentes de ribeiros serenos circundavam pomares sobre um

    gramado extenso e ondulado. Ao longe, florestas cortadas por rios caudalosos eram um

    espetáculo musical à parte. O relevo que permeava o horizonte mais parecia um pano

    verde e marrom que o Criador estendera sobre o chão. Ele tornara a visão das nuvens

    desenhadas uma mostra artística em exposição.

    Um coral de pequenos pássaros exóticos, com bicos dotados de uma pequena

    dentição, cantava com tamanha força que a música parecia vir de outro lugar. Notas

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    agudas e harmoniosas, variando em sequencias curtas e longas, de sons capazes de

    desenhar dentro dos ouvidos.

    Deus já se tornava visível no horizonte, acompanhando o curso do Rio de Vida

    pela margem direita. As crianças angelicais, que brincavam com os grandes tanniyns,

    explodiram em gritos de alegria ao reconhecerem de longe o Pai da Criação.

    Escandalosas e felizes, elas correram para abraçá-lo. Ao verem que ele se ajoelhara com

    os braços abertos, correram mais forte ainda.

    Os pequenos se transformaram em seu animal preferido para alcançá-lo mais

    depressa. Mamíferos e répteis feitos para a velocidade. E quando conseguiram foi um

    alvoroço de felicidade. Todos foram abraçados ao mesmo tempo por Deus.

    — Bom-dia, meus pequeninos. Como vocês estão? A voz grave de Deus fazia vibrar o interior dos anjinhos pendurados em seus

    braços. Seu amor era tão grande que Ele não permitiu que nenhum se sentisse

    desprestigiado, distribuindo igualmente beijos carinhosos. E Deus seguiu pelo caminho

    levando-as assim, carregadas nos ombros. Os finos lábios de Deus abriram um sorriso

    travesso quando deu uma corridinha sobre uma elevação de terra, que desembocava em

    uma cachoeira. Quem estivesse lá em baixo poderia sentir um frio na barriga vendo

    Deus lançar dos braços aqueles pequenos pelo ar. Lá do alto, os gritos mudavam deintensidade na aceleração da queda. Na sequência, Deus mergulhou de ponta cabeça

    atrás dos anjos. Num piscar de olhos, o Criador e os pequenos anjos se transformaram

    em aves, iniciando um voo rasante sobre as águas e fazendo uma inclinação para cima.

    Pronto: já estavam em formação conjunta, sobrevoando uma densa floresta além do

    rio.

    Com o vento fresco batendo nas penas claras, Deus se sentia muito feliz por

    estar unido à sua família. Juntos, planaram sobre manadas de répteis gigantes e outrosanimais. A natureza estava sob suas asas.

    Os arcanjos Gabriel e Miguel, distantes e discretos até aquele momento, se

     juntaram à formação abrindo as asas de penas largas e assimétricas. Com volumosas

    túnicas da cor do céu balançadas ao vento, os dois acompanhavam Deus desde quando

    começara sua caminhada no alvorecer.

    — Aproveitem o voo, rapazes.

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    Um pouco acanhados, abriram mais as asas. Miguel, um jovem e loiro arcanjo

    de barba por fazer, ficou tão à vontade com o convite de Deus que girou no ar com um

    grito de felicidade.

    — Uuhúúúú!

    Voando ao seu lado, Gabriel era um cintilado arcanjo de pele negra. Seus

    cabelos em cachos cilíndricos sobrepostos se agitavam como cordas pendidas do topo

    da cabeça. Seus dentes largos e brancos revelavam um sorriso cheio de humor. Batendo

    as asas com intensidade, brincou com seu irmão:

    — Há! Há! Há! Exibido! Você está parecendo um sevivon, girando desse jeito.

    Todos os anjos eram irmãos quando formados no mesmo instante e a partir da

    mesma porção de luz. Isso gerava um elo inquebrável. A relação de amizade entreMiguel e Gabriel era tamanha que estavam juntos em todas as atividades.

     Através do olhar da ave em que estava transmutado, Deus de longe observou

    pontos de várias cores se movimentando numa clareira abaixo e à esquerda. Assim que

    desceu em movimento espiral na mesma direção, a passarada acompanhada dos

    arcanjos veio em seguida.

     Ao pousar em sua forma física habitual, Deus encontrou uma mesa comprida

    posta no meio do gramado pelos Anjos Simples. Esses eram adultos de várias etniasque escolheram o Primeiro Céu como habitação no Reino. Cerca de vinte anjos com

    vestes talares e coloridas preparavam o alimento matinal com muita alegria. Sobre a

    mesa de madeira escura e rústica, havia muitas opções de frutas, sucos e mel. Os jarros

    e demais utensílios de argila queimada davam um toque ainda mais aconchegante. Os

    dois bancos eram compridos, feitos para mais de dez pessoas se sentarem lado a lado.

    Gabriel e Miguel se dispuseram a ajudar os Anjos Simples nas tarefas matinais.

    Logo deram um jeito de ir buscar a água do rio nos vasos de barro, apoiados nocinturão de um tecido da cor de suas asas. Para ambos, não havia diferença de castas

    entre os anjos e sim apenas funções diferentes em um mesmo reino. Todos eram

    igualmente importantes e dignos de amor e respeito.

    Depois de cumprimentar cada um dos presentes com a tranquilidade de

    costume, Deus foi até um canto e se assentou no chão para recostar numa pedra larga

    próximo ao Rio de Vida, pondo as mãos atrás da cabeça. Ele preferia admirar a

    paisagem debaixo da copa da Árvore da Vida até que todos chegassem.

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     A Árvore da Vida produzia um fruto macio e amarelado de doçura ímpar, com

    doze colheitas anuais. Esse fruto era compartilhado com os anjos do Reino. Bastava

    uma pequena porção, ingerida regularmente, para absorver a vida eterna. Suas folhas

    serviam até para a cura de enfermidades, mas os anjos nunca ficaram doentes. Uma

    única condição era preciso para ingerir o fruto, que era a mesma para entrar no Salão

    do Trono: uma conduta limpa de qualquer transgressão ao amor genuíno.

     A pequena comunidade de Anjos Simples tinha uma festividade sem igual.

    Deus apreciava passar as manhãs recheadas de alegria naquela região, onde sempre

    aconteciam comemorações adornadas de cânticos e danças. Era um lugar que

    despertava o desejo de viver para sempre. Deus apreciava tanto a simplicidade daquele

    lugar que até começou o cultivo um jardim por ali. O cultivo de plantas era uma

    ocupação que agradava tanto o Criador que, por puro divertimento, ele enxertou o

    Código do Céu em várias modalidades da vida vegetal.De todos os planetas, luas e estrelas que orbitam no cosmos, Deus confiou o

    Primeiro Céu aos cuidados de um anjo de habilidades espetaculares. Ele sonhava que

    aquela dimensão seria o berço de toda a novidade criativa do Reino. Por isso, ungiu

    um querubim dotado de grande inteligência e com diversas habilidades artísticas e

    musicais.

    Mas o Anjo de Luz há tempos não aparecia ali. Dizia estar muito ocupado preparando

    a apresentação de novas canções, que tinha se tornado sua prioridade. Talvez, porqueno Primeiro Céu poucos o veriam trabalhando, mas em Tziyon as regências do coral o

    tornaram muito popular.

    — Seria bom se ele cumprisse a missão que se aproxima — disse em voz baixa.

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    — Alguém já viu Ruash e Malakyaveh hoje? — perguntou Deus para a família

    que terminava de arrumar a mesa.

    — Ruash está um pouco mais abaixo do rio com outros anjos e Malak já deve

    estar a caminho, mas o senhor deve saber disso — respondeu um anjo com fisionomia

    maternal, sorrindo enquanto partia pão com uma pequena faca de pedra.

     Assentado sobre uma grande pedra branca, Ruash observava o nado dos peixes

    contra a correnteza do rio, a caminho da desova. As águas frias e espumantes

    contornavam os pés do ser feito da própria essência de Deus. Ele tinha a forma de um

    saudável ancião, vestido com uma túnica idêntica a que Deus estava usando. Era

    educado e muito polido. Suas ações exemplares descreviam seus intentos melhor do

    que palavras. Os cabelos eram brancos e bem curtos e o rosto largo exibia bolsasdebaixo dos olhos sobre um belo sorriso de lábios finos. As espessas sobrancelhas

    decoravam seus olhos de amor, cada ruga sua era um troféu. Parecia ter próximo de

    cem anos. Ainda assim Ruash era forte, tal como Deus e Malakyaveh.

    O ancião seguiu caminhando em direção à mesa apoiado num cajado da sua

    altura, mas ele reparou que uma fruta da Árvore da Vida que caíra no chão havia

    despertado a curiosidade de uma pequena menor. Ela olhou para o alto do tronco

    áspero e viu um anjo escondido entre os galhos com uma túnica idêntica a que Deus eRuash estavam usando: um manto branco até os tornozelos de mangas compridas,

    presa com uma cinta de tecido cru na cintura e nos ombros. Fácil de reconhecer.

    Pedindo segredo com o dedo sobre a barba castanha, Malakyaveh segurava um

    riso traquina para não ser descoberto, mas a árvore balançou com uma corrente de

    vento tão inesperada que o derrubou do galho mais alto. Ele, porém, caiu em pé e de

    prontidão.

    — Já tinha visto você, seu arteiro — brincou Ruash.Com sua voz rouca e grave, o ancião Ruash deu um leve cascudo com a ponta

    de seu cajado no alto da cabeça de Malak. Rindo bastante, arrumou as ondulações dos

    cabelos nos ombros enquanto Deus o trazia para a mesa com as mãos em seus ombros.

    Os três pareciam ser a mesma pessoa, mas em épocas diferentes na linha da

    vida. É como se alguém pudesse viajar no tempo e encontrar num único lugar a si

    mesmo com trinta e três, sessenta e seis e noventa e nove anos.

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    Com as mãos repousadas sobre a cabeceira da mesa fibrosa, Deus observava

    atentamente aquela pequena porção da família reunida, como se percebesse os

    movimentos de forma lenta em seus mínimos detalhes.

    Ruash ouvia outros dois anjos comentarem sobre os peixes que viram no rio.

    Malakyaveh brincava de fazer cócegas na pequena que o vira escondido na árvore.

    Gabriel e Miguel serviam os anjos na mesa, que ficavam agradecidos pela gentileza.

    Todos saudáveis e felizes.

     Antes de saborearem as frutas e o mel, os anjos presentes agradeceram ao

    Senhor num cúmplice silêncio pela comida que criara. Ele devolveu um olhar tão

    profundo que qualquer pessoa se perderia em seu brilho; ou melhor, se encontraria.

    — Não foi nada, minha família! Estou feliz por gostarem de tudo.— Gostar é pouco. Eu amo é tudo isso sim! — confessou um desinibido

    anjinho para gargalhada geral.

    O cheiro das flores que Deus plantou em seu jardim se mesclava na brisa fresca

    que vinha do rio. As abelhas trabalhavam para fazer o mel que o Criador tantoapreciava.

    Enquanto caminhavam por uma trilha no gramado ao norte da Árvore da Vida,

    Deus descansou os braços nos pescoços de Ruash e Malak. O segundo segurou na mão

    direita de Deus encostada em seu braço.

    — Vocês dois nem imaginam a ideia que tive. Vamos expandir o Reino e deixar

    nossa família ainda maior — disse com empolgação latente.

    — Vamos analisar — disse Ruash em tom de professor. — O vazio espacial foicheio de suas visões fantásticas, materializadas pela sua Palavra através de Malakyaveh.

     A explosão criacional no centro do Reino dos Céus deu origem à existência em que

    estamos, e que continua em expansão até agora...

    Malakyaveh continuou a relembrar com bom humor.

    — Bem, o Reino dos Céus está formado em três dimensões cíclicas, uma sobre

    a outra: O Primeiro Céu onde estamos, o Segundo Céu circundando sobre nós e o

    Terceiro Céu acima de tudo. Fauna e Flora estão completas e com ordem para

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    autoevolução. Os anjos estão organizados nas mais diversas funções. Eu lhe pergunto:

    O que falta ser criado, Adonai?

    Deus então falou sobre seu novo plano com os dois governantes, mas o som de

    sua voz não foi escutado pelos arcanjos Miguel e Gabriel. A dupla, discreta nesses

    momentos, percebeu que devia ficar de fora da conversa. Os arcanjos afastaram-se em

    silêncio. Os três governantes se assentaram num tronco uns quinze metros à frente. Ali

    conversaram pelo resto da manhã.

    Um jovem serafim com sardas e bochechas avermelhadas surgiu por detrás de

    Miguel e Gabriel, mas ambos perceberam sua chegada minutos antes.

    — Ei, do que eles estão falando, hein? — sussurrou, enxerido.

    — Não sabemos. O assunto não nos diz respeito — cortou Miguel comseveridade. — Se Ele quiser nos revelar o assunto, nós saberemos.

    — Caramba, Miguel! Só perguntei por perguntar... Olha, já está na quase na

    hora deles irem ao Segundo Céu. Só vim até aqui avisar que os preparativos estão

    prontos para a proclamação do Rei.

    — Há! Há! Eles sabem disso, jovem. Fique tranquilo — assegurou Gabriel com

    os cachos dos cabelos balançando com o movimento da cabeça.

    Deus, Ruash e Malakyaveh estavam sorridentes. Parecia que o novo plano deDeus era muito bom. Juntos, levantaram-se do tronco e retornaram. Pareciam estar

    encerrando a conversa. Só foi possível perceber que haviam terminado quando

    passaram pelos anjos e o som de suas vozes voltou a ser percebido.

    — É maravilhoso! Esta proclamação será histórica — disse Ruash.

    — É verdade, o plano é perfeito. Depois que o processo for iniciado, o que

    poderia dar errado? — comentou Malakyaveh.

    Deus manteve silêncio com um sorriso contido. Girou o rosto para Gabriel,Miguel e o jovem serafim e com objetividade comunicou:

    — Vamos subir agora. Os anjos daqui irão para Tziyon um pouco mais tarde.

    Quanto a vocês, não permiti que soubessem do assunto agora porque é meu desejo que

    todos conheçam juntos.

    Os anjos abaixaram suas cabeças, envergonhados. Gabriel tomou a frente.

    — Perdoe-nos, Senhor. Não queríamos parecer intrometidos.

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    Deus repousou sua mão no alto de suas frontes com carinho paternal, um

    depois do outro.

    — A curiosidade é uma coisa boa, meus jovens. Eu os amo, assim como amo

    aos demais. Quero compartilhar com vocês os meus sonhos para que me ajudem a

    realizá-lo. Poderei contar com vocês?

    Os seres alad