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Ano XIV Set 17 Número 13

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XIV

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TEATRO E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES | 6

TEATRO E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES

SUMÁRIO

PÁGINA 26

LEITURAS DA CENA: DO DIDATISMO À INTERLOCUÇÃOMaria Lúcia de Souza Barros Pupo (SP)

PÁGINA 50

TEORIA E PRÁTICA DO ESPECTADOR: APONTAMENTOS SOBRE A IMPORTÂNCIA DAQUELE QUE ESTÁ NO “LUGAR DE ONDE SE VÊ”Davi de Oliveira Pinto (MG)

PÁGINA 64

BOA NOITE, GUARAMIRANGA. BOA NOITE, NORDESTE.Nilde Ferreira (CE)

7 | LEITURAS DA CENA:DO DIDATISMO À INTERLOCUÇÃO

PÁGINA 82

PLATEIA – REDE DE FORMAÇÃO ARTÍSTICABárbara Bof, Dora Sá, Gláucia Vandeveld, Mariana Maioline, Michelle Barreto e Reginaldo Santos (MG)

PÁGINA 110

FORMAÇÃO DE PÚBLICO E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES: DUAS DIMENSÕES NECESSÁRIAS E COMPLEMENTARES PARA A RECEPÇÃO TEATRAL Martha Lemos de Moraes (DF)

PÁGINA 126

FORMAÇÃO DE PÚBLICOS: A EXPERIÊNCIA COM O FESTIVAL PALCO GIRATÓRIOGaliana Brasil (PE)

PÁGINA 144

ESCOLA DE ESPECTADORES DE PORTO ALEGRE: EM CARTAZ DESDE 2013Renato Mendonça (RS)

PÁGINA 166

UM PROJETO ENTRE SONHOSSolange Dias e Cássio Castelan (SP)

PÁGINA 188

A SEGUNDAPRETA, O PÚBLICO E OS NOVOS QUILOMBOSSoraya Martins e Anderson Feliciano (MG)

SUMÁRIO

TEATRO E FORMAÇÃO DE ESPECTADORES

PÁGINA 206

FORMAR NOVOS PÚBLICOSAna Durán e Sonia Jaroslavsky (Buenos Aires/ARG)

PÁGINA 234

CONSTRUINDO NOVOS OLHARES: A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO DO ESPECTADORCorredor Latino Americano de Teatro e Jorge Dubatti (Buenos Aires/ARG)

PÁGINA 274

O GALPÃO E O PÚBLICO: A PROMISCUIDADE, A CONVIVÊNCIA E A FORMAÇÃO DE UMA ESTÉTICA / GALPÃO EM MOMENTOS DE ‘TRANS’FORMAÇÃOEduardo Moreira e Inês Peixoto (MG)

CINE HORTO EM FOCO

PÁGINA 316

OS NÚCLEOS DE PESQUISA DO GALPÃO CINE HORTO E A IMPORTÂNCIA DA EXPERIMENTAÇÃO DE LINGUAGENS PARA A CENA CONTEMPORÂNEAAna Luisa Santos (MG)

SUMÁRIO

GALPÃO EM FOCO

TEATRO E POLÍTICA

PÁGINA 336

TODO TEATRO É POLÍTICA: COMO UM GRUPO DE ARTISTAS OCUPA A POLÍTICA INSTITUCIONALLeonardo Lessa e Gustavo Bones (MG)

EXPEDIENTE

PRODUÇÃO EDITORIAL: Marcos Coletta

JORNALISTA RESPONSÁVEL: Luciene Borges (MG 09820 JP)

CONSELHO EDITORIAL: Adélia Nicolete, Marcos Coletta, Nina Caetano e Sara Rojo.

COLABORADORES DESTA EDIÇÃO: Ana Durán, Ana Luisa Santos, Corredor Latino Americano de Teatro (Gabriel Fernandez Chapo, Manuel Ortiz e Maria Viau), Davi de Oliveira Pinto, Eduardo Moreira, Galiana Brasil, Gustavo Bones, Inês Peixoto, Jorge Dubatti, Leonardo Lessa, Maria Lúcia Pupo, Martha Lemos de Moraes, Nilde Ferreira, Rede Plateia (Bárbara Bof, Dora Sá, Gláucia Vandeveld, Mariana Maioline, Michelle Barreto e Reginaldo Santos), Renato Mendonça, Solange Dias, Sonia Jaroslavsky e Soraya Martins.

REVISÃO: Élida Murta e Rachel Murta | Trema Textos

TRADUÇÃO: Gabriela Figueiredo e Thiago Landi

DIAGRAMAÇÃO: Carol Cafiero

Subtexto – Revista de Teatro do Galpão Cine Horto n. 13 – ISSN 1807-5959

CPMT – Centro de Pesquisa e Memória do Teatro do Galpão Cine Horto

Rua Pitangui, 3613 – Horto. CEP 31030-065Belo Horizonte – Minas Gerais – Brasil / Tel. +55 31 3481 5580http://galpaocinehorto.com.br/cpmt/ [email protected]

A Revista Subtexto é uma publicação independente. Todas as opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade exclusiva dos autores.

Publicação Eletrônica. Versão em Português. SETEMBRO DE 2017

Editorial | 14

EDITORIal

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OLÁ, LEITORAS E LEITORES,

Com satisfação chegamos à décima terceira edição da Subtexto – Revista de Teatro do Galpão Cine Horto, uma publicação voltada para a discussão das artes cênicas e performativas realizadas no Brasil e, desde 2015, também no exterior, com textos de autores estrangeiros e em edição bilíngue (Português e Espanhol).

17 | Editorial

Como de costume, a cada ano elegemos um tema que acreditamos merecer um olhar mais atento, seja por sua urgência ou pertinência. Na edição anterior refletimos sobre o Teatro Político e suas diferentes manifestações na atualidade, em uma coletânea expressiva de textos críticos e provocativos. Guiados por esse eco, decidimos abordar, neste ano, a formação de espectadores, um tema que toca na base da cadeia produtiva do teatro e repercute em todas as demais discussões sobre esta arte. Da arena ao palco italiano, da rua à ocupação de espaços alternativos, do edifício teatral à sala de aula, o espaço da cena sempre esteve ligado ao tipo de relação estabelecida com o público – o acontecimento cênico, por sua natureza, busca instaurar um espaço de encontro e compartilhamento no presente da representação. Foram e são inúmeras as experiências estéticas e dramatúrgicas fundadas no desejo de se relacionar com o espectador de diferentes maneiras. Já há algum tempo, o espectador contemporâneo vem sendo pensado como um ser autônomo, não só para a construção de sentidos, mas da própria obra junto ao artista. Se o espectador como mero observador já não satisfaz às artes em geral, no teatro isto se torna ainda mais evidente, justamente pela presença física do artista e da plateia dividindo um mesmo lugar e um mesmo tempo. O espectador como testemunha, como cúmplice, o cocriador, o “espect-ator” de Boal – são algumas expressões bastante utilizadas na discussão sobre o tema para denotarem algo além do ato contemplativo.

Editorial | 18

Mas qual é a distância entre o ideal de um espectador emancipado e o perfil de público que frequenta o teatro hoje no Brasil? Quem são essas pessoas? Que instrumentalização e que conhecimento estão disponíveis para esse espectador fruir e participar do acontecimento teatral? Que estratégias os artistas e educadores têm usado para aprofundar a relação com o público e aliciar novos espectadores? Como as instituições privadas, o poder público, as políticas de fomento cultural e a escola têm investido nessa formação? Como abordar a relação com o espectador em um país de enorme escassez de público para a as artes, num problema estrutural que vai muito além de democratização e acessibilidade? Essas foram algumas perguntas lançadas para as autoras e os autores que escrevem nesta edição, cujas participações agradecemos imensamente.

19 | Editorial

De reflexões teóricas a relatos de experiência, os onze textos apresentados na Seção Principal constroem um panorama sobre a formação do espectador, apontando caminhos, práticas e desafios para a criação de um público para o teatro. Abrimos a edição com um texto de Maria Lúcia Pupo, uma das principais referências em teatro-educação do Brasil, refletindo sobre o conceito de ‘mediação artística’ e citando experiências no Brasil e no exterior. A seção principal segue com outros dez textos de diversas partes do País (CE, DF, MG, PE, RJ, RS e SP), ampliando a discussão sobre a formação do espectador sob a ótica de diferentes realidades e contextos. Importantes experiências, como o Festival SESC Palco Giratório, o Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga, a Escola de Espectadores, de Porto Alegre, a Segunda Preta, em Belo Horizonte, e o Parque Escola, de Santo André, são relatadas criticamente por seus idealizadores e realizadores. Fechando essa seção, dois artigos vindos de Buenos Aires (ARG) nos apresentam os projetos Programa de Formação de Espectador, da Secretaria de Educação da Cidade de Buenos Aires, e o Corredor Latino-Americano de Teatro. Acreditamos que esta coletânea inédita de textos contribui substancialmente para a atualização e a renovação das discussões sobre o tema, juntando-se a uma bibliografia cada vez mais crescente.

Editorial | 20

Na seção Galpão em Foco, Eduardo Moreira e Inês Peixoto dialogam com a Seção Principal e refletem sobre a relação do Grupo Galpão com o público, sempre marcada pela afetividade, trazendo relatos de espectadores que, de alguma forma, cruzaram suas vidas com a trajetória do grupo, que completa 35 anos em 2017. Na seção Cine Horto em Foco, Ana Luisa Santos tece uma retrospectiva sobre os Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto, projeto por ela iniciado em 2009 com o Núcleo de Pesquisa em Figurino, e do qual foi uma das coordenadoras, até seu desligamento da equipe, em 2016. Além de ressaltar a importância dos núcleos como espaço privilegiado de experimentação e pesquisa para artistas de diversas áreas, o texto de Ana Luisa Santos deixa registrada sua importante passagem pelo Galpão Cine Horto. Por fim, na seção Teatro e Política, Gustavo Bones e Leonardo Lessa nos oferecem um relato inédito sobre o percurso político único vivido por Belo Horizonte nos últimos anos, que se inicia com os movimentos Praia da Estação e Fora Lacerda e culmina na eleição das vereadoras Cida Falabella e Áurea Carolina e na criação da Gabinetona, como um modelo de mandato coletivo integrado por diversos artistas, em 2017.

21 | Editorial

Em 2017, nossa décima terceira revista Subtexto renova o desejo que nos move desde a primeira edição: oferecer aos leitores um conteúdo cuidadosamente pensado e organizado que possa ampliar a troca de conhecimentos e enriquecer a pesquisa e a discussão na área das artes cênicas, conectado às questões e às demandas do presente.

Boa leitura!

Marcos Coletta

Coordenador do Centro de Pesquisa e Memória do Teatro do Galpão Cine Horto

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TEaTRO E FORMaÇÃO DE ESPECTaDORES

23 | Editorial

TEaTRO E FORMaÇÃO DE ESPECTaDORES

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Maria Lúcia de Souza Barros Pupo 1(São PauLo/SP)

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lEITURaS Da CENa: DO DIDaTISMO À INTERlOCUÇÃO

1 - Maria Lúcia de Souza Barros Pupo (SP) é professora titular no

Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes

da USP, onde atua particularmente na Licenciatura em Artes Cênicas e

orienta pesquisas de mestrado e doutorado no campo da Pedagogia do

Teatro. Sua experiência profissional abrange a atuação em diferentes

contextos brasileiros, assim como em países como a França, o

Marrocos e a Bélgica. Publicou, pela Editora Perspectiva, No reino da

Desigualdade: Teatro infantil em São Paulo nos anos setenta; Entre o

Mediterrâneo e o Atlântico, uma aventura teatral; Tatiana Belinky, uma

janela para o mundo e, pela Editora Hucitec, Para alimentar o desejo de

teatro, além de artigos especializados no Brasil e na França.

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DEBATES APóS O ESPETÁCULO COM OS ARTISTAS responsáveis constituem para nós, espectadores brasileiros, as iniciativas mais comuns no espectro da chamada mediação artística. Nessas ocasiões, após um frequente e incômodo silêncio inicial, instalam-se tentativas de interlocução entre a plateia e - quase sempre - os atores, cujo grau de êxito vai depender de fatores imponderáveis.

Ao trazer à tona mais especificamente a noção de mediação teatral, estamos designando ações deliberadas visando à aproximação entre indivíduos ou grupos e obras teatrais. Dentro desse conjunto encontramos múltiplas instâncias, tais como a crítica jornalística, ensaios, encontros, congressos e, mais recentemente, redes sociais que também cumprem essa função.

29 | Leituras da Cena:do Didatismo à Interlocução

Uma primeira distinção se impõe: mediação tendo como alvo o público ou o espectador? Quando se menciona o termo público, é a um conjunto quantitativamente organizado, a uma noção sociológica pretensamente homogênea que se faz referência. Quando as operações de mediação se dirigem ao espectador, a ênfase incide na elaboração de significados suscitados pelo acontecimento teatral na percepção do seu destinatário. Não é difícil deduzir as implicações que resultam da escolha de um ou outro termo quando se trata de conceber ou implantar políticas públicas, por exemplo: a tônica vai variar entre a dimensão quantitativa da mediação e o grau de elaboração simbólica que ela tem em vista promover. Cabe lembrar aqui a reiterada constatação: os obstáculos que freiam a frequentação e a leitura do espetáculo não se reduzem apenas a distinções de classe ou a barreiras de ordem econômica. Basta lembrar do número de vezes em que já ouvimos comentários do gênero “isso não é para mim”, não necessariamente associados ao preço a ser pago pelo ingresso, mas a outros fatores, menos tangíveis e mais insidiosos.

Dado que as artes da cena cobrem hoje igualmente a dança, a performance, o circo, a ópera, além de todos os hibridismos entre estas categorias consagradas, poderíamos alargar aquele conceito e pensar de modo mais amplo uma mediação cênica ou da cena. Seja como for, o campo que nos ocupa aqui é o das mediações “ao vivo”, realizadas por profissionais como professores, artistas, responsáveis institucionais, entre outros.

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Provém da França uma série de publicações que fundamentam a emergência de políticas públicas na esfera cultural e, dentro delas, configuram o campo da mediação artística. Em sua origem nos anos 1950, a meta de tais políticas era lutar contra discriminações, na contramão de determinismos sociais.

31 | Leituras da Cena:do Didatismo à Interlocução

Até em torno do final do século passado, os discursos sobre o assunto - que influenciaram bastante as práticas no Brasil - traziam para o primeiro plano a figura do mediador como detentor de um cabedal cultural a ser transmitido aos despossuídos desse legado; a ele caberia a nobre missão de reduzir as desigualdades entre os espectadores diante da fruição artística. Nessa perspectiva, era preponderante a intenção de oferecer explicações sobre a obra, tendo em vista a redução daquelas diferenças. O caráter didático de tais intervenções saltava aos olhos; o pressuposto era o de que a comunicação de um saber construído seria condição suficiente para transformar a atitude diante da obra por parte daquele que ouve. Seria legítimo levantar uma dúvida central: a exposição professoral de referências artísticas por parte do mediador não poderia, no limite, gerar um efeito oposto à desejada superação das diferenças?

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O que se observa hoje, em círculos que em diferentes países problematizam a mediação artística, é um deslocamento do conceito. Mais recentemente, são as trocas entre os espectadores do acontecimento teatral que vêm para a berlinda; discursos especializados perdem a proeminência em prol do diálogo entre pares.

Essa mudança de ótica nas últimas décadas está em grande medida associada às intensas mutações que vêm atravessando a cena contemporânea. A transgressão dos gêneros, o questionamento da fábula e da mimesis, por exemplo, não permitem o repouso do espectador. Não é raro que, no âmago de situações permeadas por considerável desconforto, ele seja convidado a preencher lacunas propostas pela cena, ou a viver experiências surpreendentes em que é absorvido e incorporado como elemento constitutivo da ficção engendrada em cena. Dentro desse panorama de transformações acentuadas², os parâmetros habituais de leitura da representação se revelam desadaptados e as modalidades de mediação teatral, como não poderia deixar de ser, são levadas à contínua reinvenção.

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2 - Ver: DESGRANGES, Flávio. A inversão da olhadela. Alterações no ato do espectador teatral. São Paulo: Hucitec, 2012.

Em sua acepção mais recente, a mediação teatral enfatiza o encontro, a interação e a escuta como vetores que levam à fruição da cena; as relações dos espectadores entre si, a partir daquilo que o espetáculo dá a conhecer, constituem o cerne das trocas pretendidas. Assim, não se trata de montar estratégias fixas ou de prever em detalhes as etapas do encontro entre mediador e participantes, mas, sobretudo, de convocar repertórios, experiências e visões de mundo dos espectadores, em um ambiente de acolhimento no qual diferentes posições possam ser manifestadas e julgamentos esquemáticos de tipo certo/errado ou gostei/não gostei sejam evitados.

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É dentro desse espírito que a Associação Nacional de Pesquisa e Ação Teatral – ANRAT, sediada em Paris, organiza regularmente sessões de mediação voltadas a crianças, jovens ou adultos a partir da chamada “análise coral”, terminologia criada por Yannick Mancel. Trata-se de fazer emergir imagens do espetáculo recentemente assistido, de modo a descrevê-lo coletivamente em termos concretos, a partir de seus elementos constitutivos: espaço, iluminação, som, figurino, movimentação do ator e assim por diante.

Engendra-se assim a construção de uma leitura global composta de múltiplos pontos de vista quase sempre divergentes, de observações frequentemente contraditórias, de desacordos por vezes inconciliáveis. Essa riqueza de apreciações constitui a matéria-prima mesma da análise coral. Cabe ao coordenador fazer circular a palavra e promover a capacidade de escuta entre os participantes, em contraposição a manifestações de caráter peremptório. Metáforas e conotações podem ter lugar, desde que possam ser compartilhadas.

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Em função dos espectadores que compõem o grupo, a análise coral pode desembocar em um discurso crítico sobre a representação, ou na elaboração de formas – modalidades de escrita, croquis, cartazes, maquetes – que expressem as leituras realizadas, de modo a que a subjetividade dos participantes seja incorporada mediante associações de ideias, memórias, impressões.

Outra importante experiência de mediação a ser trazida à tona foi assumida pelas Secretarias de Cultura e de Educação do município de São Paulo no período compreendido entre 2001 e 2004: trata-se do Projeto de Formação de Público. Apesar de ter buscado resultados de ordem sobretudo quantitativa, o Projeto contribuiu para suscitar um vivo interesse em torno da recepção e da mediação nas artes da cena entre artistas, docentes e pesquisadores.

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Sua estrutura era formada por professores universitários que coordenavam a atuação de monitores – estudantes de teatro em formação ou recém-diplomados, diretores e atores – que intervinham diretamente junto a jovens alunos de escolas municipais e seus respectivos docentes. A partir de espetáculos escolhidos, os monitores propunham atividades de preparação aos alunos e professores, de modo a sensibilizá-los aos espetáculos aos quais assistiriam. Logo após, regressavam à escola e coordenavam encontros voltados à apreciação daquilo que havia sido assistido. Conversas com a equipe artística também compunham a sequência.

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Se inicialmente os monitores privilegiavam considerações sobre o texto do espetáculo, explanações sobre sua inserção histórica ou sua temática, pouco a pouco passaram a ser orientadas no sentido de abordar mais diretamente as linguagens da cena, o que trouxe a dimensão lúdica para o primeiro plano. O jogo do telefone sem fio, por exemplo, serviu de mote em determinada ocasião para que os jovens experimentassem corporalmente a deformação dos fatos originada pelo sensacionalismo da mídia, um dos motivos que eles viriam a descobrir pouco depois, ao assistir a uma encenação de Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues. A preocupação em fornecer explicações cedia lugar à familiarização dos espectadores com a construção da cena.

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De início, tinha-se em mente formar os professores do Ensino Fundamental para que eles mesmos passassem a conduzir a apropriação do fenômeno teatral por seus alunos, de modo a poderem, de modo gradativo, dispensar os monitores. No entanto, rapidamente se verificou que o universo teatral era absolutamente desconhecido por esses docentes; para a maior parte deles seu primeiro contato com essa arte se deu através das idas ao teatro no âmbito do Projeto.

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A tônica da atuação dos responsáveis passou então a ser a sensibilização e a formação desses docentes e aqui uma linha de ruptura aparece com nitidez: os monitores não teriam mais como meta fornecer explicações, mas, sim, provocar leituras pessoais dos espetáculos pelos docentes, a partir de suas experiências como espectadores.

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Pouco a pouco, as apreciações posteriores ao espetáculo também assumiram a forma de improvisações de caráter lúdico; cenas elaboradas pelos espectadores – tanto professores quanto alunos – manifestavam, em linguagem simbólica, sua visão acerca das obras assistidas. No coração do Projeto, vínculos eram assim estabelecidos entre as metáforas criadas pelos artistas e outras, formuladas pelos espectadores. Uma cena dialogava com a outra cena.

Cabe salientar aqui uma observação relevante. Os responsáveis pelo Formação de Público não seguiram a progressão que poderia, à primeira vista, ser considerada como a mais desejável, ou seja, partir de espetáculos tidos como fáceis para, em seguida, passar a outros, considerados mais complexos. Diante de espetáculos densos e bem construídos, a capacidade de leitura dos não iniciados era ativada ao máximo, independentemente da existência ou variedade de aquisições anteriores, possibilitando cada vez mais a interpretação das conotações e a apropriação das dimensões que mais lhes falavam de perto.

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Outra iniciativa a ser destacada é a Escola do Espectador, implantada em 2013 pela Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre. Trata-se de uma extensão da Escola do Espectador criada pelo filósofo e professor argentino Jorge Dubatti e instalada também em outras cidades latino-americanas como México, Santiago do Chile ou Montevidéu.

O modelo argentino, instalado em Porto Alegre com pequenas alterações, é constituído de encontros semanais ou quinzenais de pessoas que tenham assistido a espetáculos os mais variados, ao longo dos quais se partilham instrumentos de teoria, história e crítica que suscitem e enriqueçam o prazer do espectador. A noção de convívio é central na concepção de Dubatti³; nessa perspectiva, trocas de ideias sobre a obra e a partir dela tornam-se fonte de entusiasmo entre os fiéis frequentadores.

3 - Verificar o conceito em: DUBATTI, Jorge. Filosofia del teatro III. El teatro de los muertos. Buenos Aires: Actuel, 2014.

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Além dos habituais debates, em sua versão gaúcha a Escola do Espectador incorporou atividades de ordem prática em conexão com os espetáculos escolhidos. Muito bem acolhida em Porto Alegre, a Escola infelizmente teve suspensas suas atividades em razão de dificuldades orçamentárias aliadas a uma falta de interesse político pelo programa.

A partir dessa ruptura, seu mentor – jornalista e crítico teatral – retomou recentemente a Escola do Espectador, mas dessa vez na esfera privada, o que, como não poderia deixar de ser, altera profundamente o alcance e a dinâmica dos encontros.

Como se pode facilmente observar, estamos trazendo à tona políticas culturais fragilizadas pela ausência de continuidade e carentes de uma avaliação criteriosa que possa lançar bases para eventuais retomadas e correções.

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Perspectivas de continuidade em torno da reflexão sobre mediação teatral é o que temos almejado na Universidade de São Paulo, seja na formação na Licenciatura em Artes Cênicas, seja no campo das pesquisas de mestrado e doutorado. Obras contemporâneas marcadas pela ousadia tornam-se assim estimulantes para os estudantes, desafiados a formular práticas de mediação artística igualmente ousadas, de modo a colocá-las em evidência.

Entre os princípios que vêm norteando atualmente essas ações de formação e pesquisa, destacamos:

A mediação não visa a corrigir pretensas insuficiências ou preencher supostas lacunas; não se trata de explicar ou de concluir;

A leitura e a apropriação da cena realizada por cada espectador são pessoais e intransferíveis;

Mediar a leitura da cena supõe convidar o espectador a traduzir o impacto que a obra exerce sobre ele e suscitar a criação de redes de sentido com a cena.

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Nessa perspectiva, associações de ideias, ativação de lembranças, formulação de questões aos personagens, emissão de hipóteses sobre aspectos lacunares, troca de imaginários vêm se revelando procedimentos fecundos para o estabelecimento de diálogos não só a respeito da obra, mas, sobretudo, com a obra.

É assim que a palavra é dada aos corpos, os participantes experimentam situações lúdicas e a subjetividade constitutiva da relação entre cada pessoa e a obra ou acontecimento artístico é trazida à tona. A cena é interpelada pelo próprio ato de jogar. O que se tem em vista é que o espectador desenvolva uma capacidade de escuta daquilo que a cena provoca nele e nos demais participantes.

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Nem sempre, no entanto, o consenso e o acordo se fazem presentes; por vezes a conciliação de visões divergentes se revela improvável e o conflito se instaura. Nesses casos é sempre interessante ir de encontro às marcas do passado escolar que valorizava respostas corretas e, na direção oposta, evidenciar dúvidas, inquietações e discordâncias. Elas são inerentes ao caráter transgressor da criação artística e a observação continuada nos mostra que procedimentos de mediação que tentam apaziguar divergências e neutralizar o caráter virulento das manifestações artísticas acabam prestando desserviços à descoberta da natureza peculiar da própria arte.

A experiência acumulada nas esferas da graduação e pós-graduação com espectadores de todas as idades e de várias condições sociais revela a importância que eles atribuem às trocas estabelecidas entre si nas oficinas e nos encontros coordenados pelos estudantes universitários. Ocasiões dessa natureza, em que espaços de diálogo são criados em torno de uma manifestação artística, são raros e por isso mesmo tendem a ser reconhecidos pelos participantes como verdadeiros oásis dentro de um cotidiano não raro embrutecedor.

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4 - DELDIME, Roger; PIGEON, Jeanne. La mémoire du jeune spectateur. Bruxelles: De Boeck, 1988.

Jeanne Pigeon é uma pesquisadora belga que há algumas décadas se voltou para a análise cuidadosa de lembranças de espectadores acerca de encenações do Théâtre des Jeunes Années, em Lyon, França, assistidas entre os anos de 1968 e 19844. Entre as interessantíssimas conclusões a que chega com seu estudo, Pigeon nos revela a importância daquilo que na época era conhecido como “animação pedagógica”, ou seja, iniciativas direcionadas a explorar pistas proporcionadas por espetáculos – no caso, criados por aquela companhia – em prol da ampliação da visão de mundo de crianças e jovens.

A intensidade das lembranças dos espectadores entrevistados, que na época estavam na infância ou adolescência, foi diretamente correlacionada pela pesquisa às animações nas quais tinham estado envolvidos. O fato de terem, no passado, se voltado coletivamente para o exame das encenações assistidas e para o estabelecimento de vínculos com elas permitiu uma verticalização da experiência daqueles jovens espectadores, confirmada mais tarde pela força das lembranças geradas.

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No mesmo estudo, Pigeon pôde ir ainda mais longe e estabeleceu correlações positivas entre a memória daqueles espectadores então jovens e o envolvimento dos docentes que propunham a ida ao teatro. A relevância da figura do professor como intermediário na relação do espectador com a cena foi identificada como primordial: quanto mais empenhado e motivado ele se revelava, mais fortes eram as lembranças que o espetáculo engendrava.

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As práticas de mediação teatral entre nós, tanto na esfera da instituição escolar quanto no campo da ação cultural começam paulatinamente a dar origem a estudos promissores. Um saber específico sobre o tema pode ser elaborado e difundido por mediadores que vierem a analisar sua praxis e a formação universitária, sem dúvida, pode impulsioná-los nesse sentido.

Em médio prazo espera-se que, em um círculo virtuoso, a universidade contribua para a formulação de políticas públicas envolvendo a relação entre o espectador e a cena, quiçá mais amplas, ambiciosas e contínuas, permitindo ampliar formas de estar e de agir no mundo.

Davi de oliveira Pinto¹ (ouro Preto/MG)

univerSiDaDe FeDeraL De ouro Preto - uFoP

TEORIa E PRÁTICa DO ESPECTaDOR:aPONTaMENTOS SObRE a

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NO “lUgaR DE ONDE SE vê

1 - Davi de Oliveira Pinto (MG) é ator, diretor, dramaturgo

e compositor de canções para teatro. Atualmente,

integra o DUO DAIA, com a atriz Iara Fernandez, fazendo

leituras dramáticas de cenas e peças teatrais. É Doutor

em Artes pela UFMG e professor do Departamento de

Artes Cênicas e do Programa de Pós-Graduação em Artes

Cênicas da UFOP.

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NESTE TEXTO, eu tomo como referência para a reflexão que exponho ao longo da minha escrita diversos projetos de pesquisa, sejam os financiados pelo CNPQ² ou pela FAPEMIG³, sejam os de dois orientandos de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto4, sejam os de alunos de graduação que foram meus orientandos numa série de pesquisas sobre o espectador teatral e a mediação teatral5.

Tanto na elaboração quanto da execução desses projetos, eu li e discuti muito sobre a teoria e a prática do espectador em três vertentes: o conceito de espectador teatral, a mediação teatral e a recepção teatral.

Aqui, eu apresento uma pergunta e, mais do que respondê-la, me ponho a pensar sobre o assunto, tecendo considerações e, assim, compartilho o meu pensamento e o meu sentimento com o leitor. A pergunta é: qual é a importância do espectador teatral para o fazer e o pensar teatral?

53 | Teoria e Prática do Espectador: Apontamentos Sobre a Importância Daquele Que Está no “Lugar e Onde Se Vê”

Essa pergunta me leva a indagar o que é teatro e onde o espectador se localiza na arte teatral. Não pretendo construir um conceito de teatro aqui, mas me interessa examinar a segunda indagação porque, até onde sei, a maioria das pessoas, tanto os profissionais e amadores do teatro quanto os “leigos”, me dá a impressão de fazer coincidir teatro com ator. Eu mesmo, que comecei minha carreira no teatro como estudante do Curso Técnico de Ator do Centro de Formação Artística (atualmente, Centro de Formação Artística e Técnica) da Fundação Clóvis Salgado, pensava que teatro era, sobretudo, exercer a função de ator. Com o tempo, o exercício profissional de outras funções que não a de ator (diretor, dramaturgo, compositor de canções para teatro, produtor e professor), fui me apercebendo de que essa conexão aparentemente inevitável entre teatro e ator não era tão “natural” como parecia.

2 - Mediação teatral na escola pública de educação básica: investigações metodológicas

3 - Mediação teatral e escola pública: perspectivas metodológicas

4 - São eles: Ana Amaral, com a pesquisa “A mediação teatral como ferramenta de emancipação de professores e alunos da educação de jovens e adultos”, e Emerson Pereira, com a pesquisa “A mediação teatral como estratégia de dinamização da relação entre a produção artística do DEART e a comunidade ouro-pretana”.

5 - Conferir em http://lattes.cnpq.br/5661114112130354, item “Orientações concluídas”.

Teatro e Formação de Espectadores | 54

O teatro é uma arte “generosa”, visto que abriga, no seu fazer e no seu pensar, uma série de funções, exercidas não necessariamente por atores. Participando de uma equipe de criação e apresentação teatral, já vi, inúmeras vezes, pessoas das mais diversas formações se juntando em torno de um projeto no qual cada uma delas contribuía à sua maneira. Muitas dessas pessoas nunca subiram num palco para atuar nem nunca subirão. Baseando-me nessa “lacuna”, eu poderia dizer que elas nunca fizeram teatro? Um músico que compôs canções para uma peça infantil que foi encenada nunca fez teatro? Nunca pensou teatro? Um produtor que se empenhou para que tudo desse certo, do ponto de vista administrativo e financeiro, nunca fez teatro? Nunca pensou teatro? Não me parece razoável negar a pessoas como essas que indico como exemplos a atribuição de serem fazedores e pensadores do teatro.

55 | Teoria e Prática do Espectador: Apontamentos Sobre a Importância Daquele Que Está no “Lugar e Onde Se Vê”

Estendo essa problematização a uma situação bastante comum, me reporto às provas de habilidade específica exigidas para o candidato a cursos superiores de teatro – não necessariamente de interpretação, atuação ou representação, como queiram chamar o que o ator faz em cena – como condição de ingresso. Por exemplo, um curso de Licenciatura em Teatro, cujo objetivo principal é formar professores de teatro, que coloca como requisito que o candidato faça bem exercícios corporais e vocais e apresente uma cena, como ator. Qual é a real necessidade de verificar se esse candidato tem habilidade específica para fazer isso, quando vai ensinar isso? Para ensinar algo, é necessário ser um exímio executor desse algo? Para ser professor de português, é indispensável ser um membro da Academia Brasileira de Letras? Para ser professor de física, é preciso ter publicado best sellers de física, ser um “notável” na área? Ou seria mesmo necessário saber os conhecimentos principais da área e também os conhecimentos de educação necessários para ser um bom professor “de”? Se o curso vai formar professores, por que o formato da prova de habilidade específica é pautado explicitamente na ideia de que teatro é ator?

Teatro e Formação de Espectadores | 56

Eu, em oficinas que dei vida afora, antes de ser um professor universitário, não concebia a possibilidade de um aluno meu não atuar. Tinha que atuar, senão não estava aprendendo teatro, não estava fazendo a oficina, não estava participando devidamente da aula. Mesmo já na universidade, a mesma coisa. Muito recentemente, de tanto pensar o espectador teatral, é que comecei a modificar o conceito de teatro como igual ao de ator, do qual, a meu ver, deriva essa atitude inflexível. Ora, um aluno pode muito bem observar todo o processo, auxiliar na direção, na dramaturgia, no cenário, no figurino, na maquiagem, na iluminação, na sonoplastia, na música, na produção, na preparação corporal, na preparação vocal, na promoção de reflexões alinhadas com o processo de criação, no registro do processo e da apresentação, entre outras funções. E estará – esta é a minha convicção atual – fazendo e pensando teatro tanto quanto seus colegas que estiverem atuando.

E me dei conta disso ao constatar, aos poucos, que há outro que também faz e pensa teatro e que não está na equipe de criação e apresentação teatral. É o espectador teatral. Para mim, essa foi uma descoberta muito importante: o espectador como uma das funções do fazer e do pensar teatral, em pé de igualdade com qualquer uma das outras funções. Um fazedor e pensador de teatro, e não somente alguém que fica passivamente na plateia (ou onde quer que seja) vendo o que os outros fazem no palco (ou onde quer que seja).

57 | Teoria e Prática do Espectador: Apontamentos Sobre a Importância Daquele Que Está no “Lugar e Onde Se Vê”

Há uma situação que tenho observado no meio que une teatro e academia, ou seja, nas universidades que oferecem cursos de graduação e pós-graduação em teatro. Trata-se de uma supervalorização do processo de criação ou de investigação ou de treinamento, enfim, de tudo que, a meu ver, se faz antes que ocorra o encontro com o espectador que não participou desses processos. O “produto” é visto com desprezo, inclusive, associando-o a um significado negativo de parte do sistema capitalista que torna tudo mercadoria.

Na área de formação de professores de teatro, que é a sobre a qual eu estou mais razoavelmente inteirado, se diz muito que, como o teatro na escola foi e ainda é usado para “enfeitar” datas festivas (Dia das Mães ou dos Pais ou da Família ou da Criança etc.) e ilustrar temas transversais (meio ambiente, violência, patrimônio cultural, relações étnico-raciais etc.) e trabalhos de forma não muito elaborada, na qual a qualidade estética da cena não é levada em conta como se gostaria que fosse ou se pensa que deveria ser. Como contraponto, se faria um processo longo e se diria para a direção da escola que não se vai apresentar “produto” nenhum, somente se for “orgânico”, se “brotar” do processo. Enfim, se não houver apresentação no final, mesmo que seja uma aula aberta ou coisa do tipo, não tem problema, o aprendizado do teatro está garantido.

Teatro e Formação de Espectadores | 58

SERÁ?

Trago aqui uma fala de um estudante que participou como meu aluno de um processo de criação teatral e que me deu uma pista preciosa da importância do espectador como função primordial para o pleno fazer e pensar teatro. Numa disciplina que visava à montagem de uma cena teatral com uma turma de alunos de Licenciatura, ou seja, que faziam o curso de formação de professores de teatro, eu havia tido uma série de altercações com a turma, a ponto de me descontrolar e gritar com a equipe pelo fato de um dos alunos, o responsável pela iluminação, ter chegado muito atrasado para a apresentação da cena, sendo que turmas de crianças e suas professoras já estavam no prédio do Departamento onde trabalho, em outra sala que não a de apresentação.

59 | Teoria e Prática do Espectador: Apontamentos Sobre a Importância Daquele Que Está no “Lugar e Onde Se Vê”

Com o atraso, eu tive que inventar atividades para “distraí-los” enquanto tudo ficava pronto para a apresentação. Furioso, esbravejei com todos, reclamando da falta “total” de compromisso com o coletivo e respeito aos espectadores que já estavam aguardando e chegando ao ponto de incomodar tanto o referido aluno, um dos mais disciplinados e educados da turma, que ele veio na minha direção, gritando comigo também, querendo saber quem eu era para tratá-lo dessa forma. Isso, instantes antes de começar a apresentação. Ou seja, uma atitude docente, da minha parte, pedagogicamente incorreta. Ainda bem que professor também é gente...

Após essa lamentável perda de controle da minha parte, apresentamos a cena, e a recepção das crianças e professoras não poderia ter sido mais calorosa. Todos saíram alegres e isto modificou o ambiente, que havia estado em péssima ebulição momentos antes.

Posteriormente, enviei uma mensagem pedindo desculpa a esse aluno que havia confrontado com mais intensidade, ao que ele me respondeu me desculpando e me pedindo desculpa também, acrescentando que “o importante era que a cena tinha ficado bonita e as crianças tinham gostado”.

Teatro e Formação de Espectadores | 60

No semestre letivo seguinte, o Departamento recebeu demandas de apresentações teatrais por conta do Dia da Criança (sim, ele existe e é praticado na maioria das escolas!) e eu, sem consultar a turma, ofereci a cena com que havíamos concluído as aulas do semestre letivo anterior. Para minha surpresa, vários alunos dessa turma, em que pesassem todos os desencontros vivenciados, toparam apresentar a cena, e assim a fizemos pelo menos mais nove vezes, além das duas que tínhamos apresentado como fechamento da disciplina.

Ou seja, de um processo não muito harmônico, não muito equilibrado, surgiu um produto que, ao ser apresentado ao espectador, possibilitou que nós atribuíssemos um significado positivo que superou as desavenças, ressignificando as relações tumultuadas e marcando o início de uma colaboração que se estendeu ao longo de todo o semestre letivo seguinte: o processo das apresentações da cena criada.

61 | Teoria e Prática do Espectador: Apontamentos Sobre a Importância Daquele Que Está no “Lugar e Onde Se Vê”

A reação do espectador pode, portanto, modificar a relação de uma equipe de criação teatral com o que conseguiram apresentar. Essa mudança, na verdade, eu já havia observado inúmeras vezes como professor de iniciação teatral. Os alunos desconfiavam até o último segundo do que estávamos preparando e, diante da reação da plateia, tinham elementos para atribuir outro significado ao processo de criação e ao fazer e pensar teatral.

Minha experiência de ator também me leva a concluir que apresentar o produto para uma plateia – de preferência, para várias plateias – é uma parte fundamental do aprendizado da arte teatral. Não somente para os atores, mas para toda a equipe.

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Há autores que tratam da relação entre ator e espectador, ou entre espetáculo e espectador, ou que abordam a interação do espectador com a arte teatral como um dos fatores de mudança do teatro ao longo dos tempos. Talvez essa predominância do “processo” sobre o “produto” seja uma dessas influências do espectador teatral sobre a cena, causando mudanças. Isso porque, se nos detivermos, vamos constatar que todos os participantes de uma equipe teatral são, também, espectadores do processo de criação e apresentação. Todos estamos sempre, mais ou menos, no “lugar de onde se vê” (significado da palavra teatro, de origem grega). Consequentemente, quem faz e pensa teatro (antes que o espectador também passe a fazer e pensar o teatro que outros pensaram e fizeram) traz para a equipe da qual faz parte, podendo ser amadora ou profissional, acadêmica ou não, a bagagem do nosso mundo atual.

Estamos mudando. Cada vez menos tempo para as coisas. Cada vez mais informação, e mais rápida. Cada vez mais atividades simultâneas. Seremos espectadores desenfreados? Estamos trazendo essa velocidade desconcertante para o fazer e o pensar teatral? Não temos mais paciência para os processos de criação e apresentação teatral? Se der, a gente ensaia, se der a gente apresenta? E está tudo “de boa”?

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A importância do espectador no fazer e no pensar teatral tem a medida da presença contínua da expectação: ela está em todos nós, atores, diretores, dramaturgos, cenógrafos, figurinistas, maquiadores, iluminadores, sonoplastas, compositores de música para teatro, produtores, preparadores corporais, preparadores vocais, dramaturgistas, fotógrafos, entre outros integrantes, adquirindo as nuances que cada um acrescenta à equipe da qual faz parte. O espectador, que chega um pouco depois para “completar” a equipe, também contribui com as suas nuances no ato mesmo da apresentação teatral.

Parece-me plausível pensar que deveríamos ter um olhar mais atento à formação do espectador não somente com escolas, comunidades, grupos, segmentos populacionais, mas também nos cursos que formam os profissionais do teatro. Precisamos melhorar o nosso olhar sobre a cena, o nosso falar sobre a cena, o nosso pensar sobre a cena, o nosso trocar a partir da cena. Afinal, quanto melhores espectadores formos, a tendência de um melhor teatro aumenta consideravelmente - seja qual for o teatro que se faça e se pense.

nilde Ferreira¹ (GuaraMiranGa/Ce)

bOa NOITE, gUaRaMIRaNga. bOa NOITE, NORDESTE.

1 - Nilde Ferreira (CE) é especialista em gestão pública

municipal, gestora cultural com experiências nos setores

Público e Terceiro Setor e é arte-educadora. Foi secretária

de Cultura de Guaramiranga (1998-2008), presidiu o

Conselho de Dirigentes Municipais de Cultura do Ceará

(2005-2007), foi vice-presidente do Conselho Estadual

de Cultura do Ceará (2005 e 2006); coordenou a Escola

de Artes e Ofícios do Instituto Dragão do Mar de Arte e

Cultura (2011 a 2013); é coordenadora geral do Festival

Nordestino de Teatro de Guaramiranga e sócia-fundadora

da Associação dos Amigos da Arte de Guaramiranga.

Teatro e Formação de Espectadores | 66

UM BORDÃO INDICA QUE VAI COMEÇAR o Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga: “Boa noite, Guaramiranga. Boa noite, Nordeste”. Dita pela primeira vez no ano de 1993, a chamada ecoa, anos após ano, como se fosse uma deixa para a hora em que o público entra (e fica) em cena no Festival que traz o nome da pequena cidade de Guaramiranga como seu adjetivo mais próprio.

67 | Boa noite, Guaramiranga. Boa noite, Nordeste.

Para conhecer o festival de teatro realizado pela Associação dos Amigos da Arte de Guaramiranga - AGUA, é preciso conhecer Guaramiranga, um pequeno município cearense, localizado na microrregião do Maciço de Baturité, distante 109 quilômetros da capital do Estado, Fortaleza. Com população de pouco mais de seis mil habitantes, Guaramiranga guarda seus ares de cidade interiorana, com tranquilidade, clima e vegetação que a diferenciam dos cenários de praia e sertão que formam a imagem dada do Ceará. Inserida na Área de Proteção Ambiental da Serra de Baturité (APA), caracteriza-se por sua exuberante vegetação cujos resquícios de Mata Atlântica dão um charme especial à paisagem. Dona de um rico ecossistema e uma das cidades mais altas do Ceará (985m de altitude), vem se tornando um importante polo de turismo cultural do estado, graças a uma política articulada entre Poder Público, iniciativa privada e organizações civis, que a coloca entre os lugares mais procurados do estado, por motivos de interesse cultural (dados da Setur - CE /2012).

Hoje em dia, Guaramiranga é berço e sede dos principais eventos culturais de médio e grande portes realizados no Maciço de Baturité; conta com um diverso polo de gastronomia e hotelaria e atrai um fluxo turístico e de visitantes de mais de 120 mil pessoas/ano (conforme dados do município, com base no ano de 2016).

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No aspecto cultural, esse lugar se origina em comunidades de trabalhadores rurais e seus gostos pela arte, pelas heranças da tradição e pela festa. Da zona rural é que temos os registros das tradições mais antigas, das festas de colheitas animadas pelos dramas (teatro popular), dos artistas que inspiram vocações para nossas criações contemporâneas, das bebidas e comidas inventadas para enfrentar os invernos frios pelos quais costumávamos passar.

Nesse ambiente de formação do que se pode considerar como povo guaramiranguense, o teatro foi a linguagem mais presente nas criações artísticas: os dramas nas festas comunitárias, os autos nas celebrações religiosas, os jograis nas atividades escolares, o teatro de revista para entreter veranistas. Um teatro baseado na improvisação, enriquecido pela poética da contemplação à natureza e aquecido pela sátira a aspectos sociais próprios de sua época. Um teatro feito para expressar a criatividade, para pertencer a uma comunidade, para celebrar a alegria. É esse teatro que serve de inspiração para a criação do Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga. C

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69 | Boa noite, Guaramiranga. Boa noite, Nordeste.

Quando pensou o Festival Nordestino de Teatro - FNT, Guaramiranga procurava criar um novo caminho de crescimento econômico - com desenvolvimento social - sustentado pelos valores presentes em suas vocações culturais mais fortes.

Teatro e Formação de Espectadores | 70

O FNT nasceu em um conjunto de políticas que o município de Guaramiranga definiu, na década de 1990, para enfrentar desafios de crescimento social e combater diversos problemas derivados de mais de três décadas de estagnação econômica e ausência de políticas públicas de desenvolvimento, como uma ação estratégica para que o município alcançasse, em médio prazo, dois objetivos principais: o primeiro deles dizia respeito à valorização das vocações culturais e artísticas do município, das quais se destacavam as artes cênicas, especialmente, o teatro popular; como objetivo complementar, o festival destinava-se a gerar fatos que impulsionassem o desenvolvimento local pela atração de novos recursos financeiros, oportunidades de conhecimento, formação e trabalho.

A proposta de realização do Festival foi bem recebida no Ceará e, tornando-se parte da estratégia de descentralização das ações do Governo do Estado, estruturou um importante espaço para a difusão teatral nordestina, em diálogo com os circuitos de circulação teatral do Brasil, desde o início.

71 | Boa noite, Guaramiranga. Boa noite, Nordeste.

Atualmente, o Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga está inserido no amplo campo dos circuitos de produção/ circulação/ fruição do teatro brasileiro e sua trajetória de sucesso pode estar fundamentada em duas fortes referências. A primeira está no propósito de fortalecer o teatro nordestino em sua multiplicidade, em sua complexidade de expressões – longe do mero exibicionismo e disposto à reflexão. A outra referência está em sua forte relação com seus públicos – característica que o identifica desde o princípio.

Neste ponto, voltamos ao bordão que principia este texto e à forma como explica imediatamente a relação do Festival com seu público: ser de Guaramiranga e ser do Nordeste são as referências principais que norteiam a formação dos públicos no Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga.

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O processo inicial de relação com o público se deu de forma muito espontânea, pela atração da novidade que o Festival representava para Guaramiranga e para o Ceará. A diversidade da programação como plataforma principal favoreceu (e favorece) a formação de um público heterogêneo que vai compondo espaços de fruição à medida que acompanha cada edição do Festival.

No roteiro da construção das 23 edições realizadas, os espaços e as formas de relacionamento com o público se tornaram objeto dos sistemas de planejamento do projeto, consolidando a proposta de fortalecer as dimensões relativas aos públicos e à formação de plateia por meio de uma programação que se elabora em trajetórias dinâmicas, as quais buscam se relacionar a temas sociais contemporâneos, abordar questões pertinentes ao campo cultural e à cidade, criar espaços de interação e ampliar canais de visibilidade, divulgação e comunicação.

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73 | Boa noite, Guaramiranga. Boa noite, Nordeste.

O relato de algumas experiências realizadas com foco nos públicos e na formação de plateias pode ajudar a esclarecer o caminho percorrido pelo Festival para conquistar e manter um dos melhores públicos de festivais de teatro no Ceará. Escolhemos aquelas que marcam a linha do tempo do processo aqui exposto.

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O conselho da comunidade

A participação da comunidade no planejamento e na realização do Festival é definitiva para a construção dos canais de relacionamento com o público, os quais constituem fortes atributos do projeto.

A Cortesia como convite

O baixo poder aquisitivo da população de Guaramiranga na década de noventa se configurava um impedimento de participação no Festival, quando o mesmo realizava programação paga. Para contornar esse problema e garantir a participação do público local, o Festival criou um sistema de formação de plateia por meio do qual mantinha um acompanhamento do perfil do público e distribuía “cortesias” às pessoas cadastradas. Esse sistema funcionou até o momento em que o Festival passou a realizar programação completamente gratuita e a distribuição dessas cortesias se fez desnecessária.

75 | Boa noite, Guaramiranga. Boa noite, Nordeste.

O júri popular

Desde a primeira edição o público foi incentivado a participar das experiências de apreciação artística oportunizadas, votando para escolher, por meio da chancela de “júri popular”, o melhor espetáculo da Mostra Nordeste. Essa participação incentivou, também, o interesse pelos debates dos espetáculos, que são um aspecto importante da conceituação do FNT. O Festival retirou há mais de uma década o caráter competitivo da Mostra Nordeste, mas mantém a premiação para o “melhor espetáculo na opinião do público”.

Um festival para as crianças

O grande interesse das crianças de Guaramiranga por teatro foi a motivação para que o Festival tivesse, desde o início, espetáculos infantis em sua programação. No entanto, ter alguns espetáculos na programação se mostrou ineficaz para atender a uma demanda que logo aprendeu a “protestar” contra a classificação etária, na porta do teatro! Aos poucos, a programação infantil foi sendo ampliada e resultou no “FNT para Crianças”: um festival dentro do festival, todo para crianças e adolescentes. Esse espaço se tornou uma das melhores experiências para a formação de plateias no FNT, oferecendo a possibilidade de fidelização de um público que começa a frequentar o Festival já na infância.

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77 | Boa noite, Guaramiranga. Boa noite, Nordeste.

O sistema de ensino como parceiro

Por meio da ação “Caravanas do FNT”, as escolas públicas das 12 cidades do Maciço de Baturité participam, com seus alunos, da programação do Festival. Muitas delas incluem o projeto em seus calendários e ações pedagógicas. Essa foi a forma escolhida para uma aproximação efetiva com o público das cidades vizinhas e tem excelente alcance do público jovem.

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Programação estruturada em mostras temáticas

Uma ferramenta importante para a formação de plateias no FNT foi a estruturação de sua programação em mostras temáticas. Atualmente, 7 (sete) mostras organizam os conteúdos oferecidos em cada edição do Festival:

A Mostra Nordeste é a mostra principal, estruturante, e apresenta espetáculos selecionados a partir de processo de inscrição aberto a todos os estados do Nordeste. Os espetáculos apresentados nessa Mostra são a base dos Debates do FNT, realizados diariamente com a participação de debatedores/mediadores convidados e abertos ao público.

A Mostra Nordeste Universitária reúne espetáculos elaborados em processo de formação acadêmica. É espaço destinado à experimentação e à reflexão sobre processos de ensino do teatro e produção teatral na universidade.

A Mostra Ceará Convida apresenta espetáculos nacionais e/ou internacionais numa proposta de intercâmbio com outros centros de produção teatral e com objetivo de promover o Festival para alcançar públicos mais amplos.

79 | Boa noite, Guaramiranga. Boa noite, Nordeste.

A organização do conteúdo da programação artística em mostras temáticas é a forma escolhida pelo Festival para favorecer a fruição e a aproximação do público com as diversas ideias presentes em cada edição, possibilitando que cada pessoa elabore, a partir de um mapa geral, a própria “rota de participação”.

A Mostra Palco Ceará é o espaço que o Festival dedica à valorização da forte produção teatral do Ceará, apresentando espetáculos expoentes desta produção.

A Mostra FNT para Crianças é o festival em formato especial para crianças e adolescentes.

A Mostra Música no FNT é o espaço da confraternização, inspirado nas tradições locais de festejar na rua. É uma aproximação do Festival com o público que se interessa pela forte cena musical local e faz uma interseção entre as mais fortes linguagens artísticas da cidade: o teatro e a música.

A Mostra Cena Plural é um espaço aberto para experimentos, performances, improvisos e para as artes em interseção com o teatro.

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Esse formato, atualmente utilizado, tem permitido verificar uma melhor compreensão do público sobre a dinâmica, os espaços e a abrangência da programação, ao mesmo tempo que auxilia a composição de bagagem cultural e a ampliação de referências artísticas baseadas em experiências oportunizadas pelo Festival.

A riqueza de programação que se compõe pelo conjunto das mostras temáticas contribui, também, para que o Festival ocupe espaço de visibilidade nos meios de comunicação de vários estados do Nordeste, ampliando seu alcance junto aos públicos focais.

Ao longo dos anos, muitas foram as estratégias utilizadas e muitos são os ajustes feitos no sentido de atrair e manter o público, atender a demandas de novos públicos e formar plateias. Mas cabe admitir que a experiência mais bem-sucedida nessa questão tem se mantido no campo da intangibilidade: ela se dá pelas relações de afeto que marcam tão fortemente a cidade e seu festival.

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Bárbara Bof, Dora Sá,Gláucia vandeveld,Mariana Maioline,Michelle Barreto ereginaldo Santos¹ (BeLo HoriZonte/MG)

PlaTEIa - REDE DE FORMaÇÃO aRTíSTICa

1 - Bárbara Bof é sócia-fundadora da Associação No

Ato, onde atua na coordenação geral dos projetos e é

idealizadora e coordenadora do FETO – Festival Estudantil

de Teatro. Integrou a comissão de seleção e júri de

diferentes festivais estudantis do País. É pesquisadora

em Gestão Cultural e em atividades ligadas à formação e

cultura.

Dora Sá é atriz e formou-se pela UniRio em 2002. Em

2007 mudou-se para Belo Horizonte, onde se especializou

em Mediação pela Escola Guignard da UEMG. Foi

curadora e produtora responsável pela realização

do projeto Palco Giratório (SESC) em Minas Gerais.

Atualmente, faz parte do Arande Coletivo de Atores e

desenvolve sua pesquisa sobre Mediação e Curadoria em

projetos, como a Rede Plateia de Formação Artística.

Gláucia Vandeveld é atriz, formada pela Escola de

Arte Dramática da Escola de Comunicação e Artes

da Universidade de São Paulo – EAD. ECA. USP, com

especialização em Arte – Educação pela Fundação

Clóvis Salgado/ CEFAR – Palácio das Artes. É professora

integrante do Núcleo Pedagógico do Galpão Cine Horto

e coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Teatro para

Educadores.

Mariana Maioline é atriz, diretora, professora de teatro

e produtora cultural e graduada em Artes Cênicas pela

UFMG. É atriz convidada do Grupo Espanca!. Ministra

aulas no Instituto de Longevidade Motivato e no

Complexo Penitenciário Estevão Pinto.

Michelle Barreto é atriz, diretora e produtora cultural,

formada pelo Curso Técnico de Teatro do CEFAR/

Fundação Clóvis Salgado e graduada em Licenciatura

em Teatro pela UFMG. É produtora da Associação No

Ato, realizando entre outros projetos o FETO - Festival

Estudantil de Teatro. Trabalha também como produtora na

Imago Filmes.

Reginaldo Santos é Mestre em Educação pela Faculdade

de Educação da UFMG. Graduado em Licenciatura em

Teatro pela Escola de Belas Artes da UFMG. Coordenador

do Projeto Conexão Galpão e do Programa de Ações

Formativas em Teatro do Galpão Cine Horto. Integrante do

Grupo Serelepe EBA/UFMG. É professor, ator, músico e

diretor teatral.

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85 | Plateia - Rede de Formação Artística

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UMA PAIXÃO COMEÇA COM O PRIMEIRO ENCONTRO

O contexto

Compreender o que leva uma pessoa a se sentar na plateia de uma atividade cultural tem sido um desejo que move artistas, instituições e pesquisadores. As discussões sobre o assunto se ampliam e, nas últimas décadas, órgãos como SESC, VOX Populi e outros pesquisadores nacionais mostram que o consumo cultural dos brasileiros continua associado às atividades de lazer, como praticar esportes, ou um passeio no shopping, e ao hábito de assistir televisão.

87 | Plateia - Rede de Formação Artística

No caso do teatro, linguagem artística destacada aqui, 61% dos entrevistados nunca assistiram a uma apresentação teatral (SESC, 2014), e uma parte significativa afirma não ter ido por falta de costume, interesse ou gosto. A relação das pessoas com práticas culturais, como a ida ao teatro, é geralmente estimulada no processo de formação educacional e no meio familiar. Não se deseja algo que não se conhece, não é possível gostar de algo que não dialoga com seus registros simbólicos.

Com o desejo de contribuir para mudanças na dinâmica artística e cultural brasileira, a Associação No Ato Cultura, Educação e Meio Ambiente, idealizadora e gestora do FETO – Festival Estudantil de Teatro, promoveu a realização de um grupo de trabalho, durante a edição do Festival em 2014, que reuniu profissionais, entre professores, pesquisadores, artistas e gestores². Esse grupo lançou um olhar provocador sobre o cenário artístico, pedagógico e político no País, discutindo caminhos e propondo ações que poderiam estreitar as relações entre artes cênicas e educação, pensando na formação de públicos³.

2 - Alexandre de Sena, Amanda Dias Leite, Bárbara Bof, Cida Falabella, Cristiano Peixoto, Dora Sá, Eduardo Kawamura, Fernanda Vidigal, Gláucia Vandeveld, Leonardo Lessa, Narciso Telles, Paulo Celestino, Reginaldo Santos, Rita Gusmão, Rodrigo Soares e Walter Lima Torres.

3 - Utilizamos a palavra sempre no plural, pois entendemos que os diversos públicos são pessoas reais, que têm determinados perfis sociais, têm suas trajetórias de vidas/experiências, seus hábitos e valores” (OLIVEIRA, 2014), e não poderiam, dessa maneira, nesse processo de interlocução, ser tratados como um único conjunto genérico de pessoas.

Teatro e Formação de Espectadores | 88

Os encontros do grupo culminaram na criação da PLATEIA – Rede de Formação Artística, que busca transformar a relação dos diversos públicos com manifestações artísticas, alimentar a formação de espectadores4 e aprofundar as relações entre educação e cultura.

Para tanto, a opção foi a ferramenta da mediação, com a intenção de multiplicar significados e diminuir a distância entre as pessoas e as obras. O trabalho realizado pelos mediadores tem o propósito de ambientar e aproximar os públicos, de forma lúdica e sensível, do universo da obra, concretizando as pontes entre eles e os artistas. Dessa maneira, cada ação da PLATEIA se configura de acordo com a proposta artística da obra em questão e a partir das estratégias escolhidas pelo mediador, juntamente com os artistas envolvidos.

89 | Plateia - Rede de Formação Artística

UM OLHAR SOBRE AS PRIMEIRAS MEDIAÇõES

Relatos

A primeira ação da PLATEIA aconteceu dentro da programação do projeto Diálogos Cênicos, ao final do ano de 2014. Ela foi realizada no espetáculo O Gol não Valeu, da Cia ZAP 18, no qual, no primeiro momento, as pessoas, ao entrarem no foyer do teatro, encontravam à sua disposição duas mesas de totó. Nossa ideia era propor uma inserção no tema e na atmosfera da peça.

Em seguida, após a apresentação, as pessoas foram convidadas a participar de uma conversa com os artistas e o mediador. Esse primeiro experimento revelou a potencialidade da proposta que, enfim, saía do papel.

4 - Para Gasperi (2017), “a construção cênica contemporânea se dá em uma rede colaborativa, em que as experimentações teatrais se caracterizam através de um diálogo constante entre a encenação e o público presente objetivando concretizar a participação do espectador como um colaborador do processo de criação espetacular, pois ele percebe a encenação além do viés textual, mas pelo lugar sinestésico e pode reagir diretamente na encenação, transformando a estrutura estática da obra, na busca de uma tessitura de vozes dialógicas entre ação e reação direta, na comunhão dos elementos teatrais”.

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Quando cheguei ao Teatro nesse dia, fui surpreendido com a imagem de alguns funcionários do CCBB que se divertiam nas mesas de totó, riam alto e se revezavam nas mesas. Um tempo depois encontrei a coordenadora do Centro Cultural que me pediu desculpas pelo ocorrido. Logo eu disse que não via problema algum e ficamos por isso mesmo. Mas na entrada do público pude perceber que eles (os funcionários) foram muito atenciosos, estavam sorridentes e receptivos às pessoas. De alguma maneira esse acontecimento modificou o ambiente, creio que eles foram atravessados por essa ação. Quando as pessoas chegaram para ver o espetáculo, principalmente as crianças de uma escola pública, as mesas já estavam livres e puderam também se divertir. Após o espetáculo, perguntei às crianças e a toda a plateia o que diferenciava, na visão deles, o espetáculo de futebol e o espetáculo teatral ou se não tinha diferença. Percebi que nas respostas, tanto as crianças como os adultos, refletiam sobre as memórias pessoais relacionadas ao futebol, dos avós ou dos pais (no caso das crianças) e transformavam essas memórias em perguntas e reflexões, criando afinidades com o espetáculo. Falavam do futebol jogado na rua, por exemplo, na relação específica da “trave do gol” que estabelece a relação espacial do jogo, como no espetáculo onde a trave também mudava de lugar, trazendo esse imaginário das crianças. E a mesa de totó? Influenciou em algo? Acredito que sim, criando um elo entre o espaço teatral e a plateia, aproximando-os. Não só a eles, mas também aqueles funcionários que se transformaram de alguma maneira (pelo menos naquele momento) a partir dessa ação.

Reginaldo Santos, mediador.

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Desde então, a Rede PLATEIA realizou 28 ações envolvendo 10 mediadores em diversas apresentações culturais (de teatro, dança e música), participando de festivais de Belo Horizonte, como o VAC - Verão Arte Contemporânea, FETO - Festival Estudantil de Teatro, Mostra Boa Nova, entre outras apresentações individuais para as quais o projeto foi convidado. Entendendo que as ações são pensadas a partir do diálogo com os artistas e as obras e buscando apropriar-se das particularidades de cada trabalho, seguem abaixo relatos dos mediadores e artistas que vivenciaram5 algumas ações.

5 - Aqui diferenciamos os conceitos de vivência e experiência. A vivência, segundo Bünchen e Ormezzano (2012),“é viver a experiência, é vivenciar o que se passa, é imergir naquilo que se experimenta; por sua vez, experiências podem ser fatos isolados que ocorrem em nossa vida. Vivências são fatos vividos, o próprio fato de existir. A vivência compreende todo campo de experiências do indivíduo; é como se uma palavra completasse a outra”.

Teatro e Formação de Espectadores | 92

15 de maio de 2015 – Noturno - do Grupo Teatro Invertido

Na entrada do público entregamos microgarrafinhas com algumas gotas de água e pedimos a quem as recebeu que cuidasse bem delas. Ao final do espetáculo iniciamos um bate-papo com a seguinte pergunta: “O teatro pode matar a sua sede?”. A partir dos comentários e reflexões ouvidas durante a conversa após a peça, percebemos que essa ação no início do espetáculo tornou os espectadores mais receptivos e abertos a uma conversa sobre sensações, perspectivas, olhares e questões que os intrigavam.

Gláucia Vandeveld e Reginaldo Santos, mediadores.

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16 de maio de 2015 – Tácht - do Grupo Armatrux

Convidamos a banda de Folk Music e Blues dos anos 1920, The Lee Gang, para recepcionar as pessoas no foyer do teatro buscando proporcionar uma atmosfera que dialogasse com o espetáculo. Ao final da peça e iniciando um bate-papo com a plateia, lançamos a pergunta:“Sua memória o trai?”. Foi possível perceber, então, que grande parte das pessoas foi atravessada por esses acontecimentos6, trazendo memórias e um olhar reflexivo sobre o espetáculo e seus bastidores.

Gláucia Vandeveld e Reginaldo Santos, mediadores.

6 - O acontecimento é fruto da ação humana e, para ser compreendido, para tornar-se experiência, precisa ser vivenciado de forma corpórea, relacional. “Compreendemos a partir de nossos corpos, através das relações que estabelecemos com os outros e através das maneiras pelas quais nos colocamos em contato com os objetos do mundo”* (BÁRCENA et al., 2006, p. 234, tradução nossa). Tanto o jogo quanto a ida ao teatro estabelecem essas relações corporais, subjetivas e com o outro, e nos colocam em contato com a novidade, com um mundo a ser descoberto.

[*] Texto original: “Comprendemos a partir de nuestros cuerpos, através de las relaciones que establecemos com los demás y de las formas através de las cuales nos ponemos em contacto con los objetos del mundo”.

Teatro e Formação de Espectadores | 94

4 de fevereiro de 2017 - Colóquio Sentimental do Laboratório de Estudos do Corpo da Escola de Belas Artes - UFMG

Nessa ação, parti de três detonadores que foram importantes para que fosse possível criar uma atmosfera acolhedora para o público:

1. Organizar as pessoas na sala em formato de roda, de forma que todos consigam se ver;

2. Uma breve apresentação do Projeto PLATEIA e, em seguida, da Medidora;

3. Solicitar que respondam as perguntas só mentalmente.

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Em seguida propus as perguntas:

A. Por que você escolheu vir ao teatro hoje?

B. Que parte do espetáculo lhe causou uma sensação? Você consegue determinar ou colocar em palavras o que e/ou por que você sentiu isso?

C. Que parte do espetáculo lhe causou identificação? Você consegue determinar ou colocar em palavras o que e/ou por que você sentiu isso?

D. Você mudaria a sua primeira resposta? (Essa pergunta pode ser repetida ao final do encontro.)

E me marcou o relato de um senhor, com seus 55, 60 anos, que se declarou por fora do universo cênico, mas que queria mudar a resposta à primeira pergunta gatilho da ação, e que o faria em público: “Eu vim para ver não só uma peça de teatro do amigo de infância do meu filho. Eu vim para ver um grande espetáculo”.

Dora Sá, mediadora.

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11 de fevereiro de 2017 - 19:45! - da Cia Miúda

Fui ao ensaio do grupo e juntos pensamos várias possibilidades para a ação que faríamos no dia do espetáculo. Escolhemos uma em que os públicos fariam uma interferência no cenário antes do início da peça, de forma que a presença deles não estaria apenas na plateia, mas também dentro da cena. Depois do espetáculo, a proposta era fazer um bate-papo tendo a ação anterior como ponto de partida.

No dia do espetáculo tivemos um contratempo e não foi possível fazer a ação de interferência no cenário. Era a minha primeira mediação na Rede PLATEIA, me senti perdida e me perguntei:

- Como eu começaria o bate-papo sem ter feito a ação anterior?

- Como eu poderia fazer com que as pessoas tivessem o desejo e se sentissem de fato à vontade para uma conversa?

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Foi então que me lembrei da minha própria experiência7: meus avós, grandes frequentadores de teatro e cinema, sempre que terminamos de assistir a algo, eles dizem: “Vamos sair pra comentar?”. Geralmente saímos para beber e falar das nossas impressões, sensações, sentimentos e associações que fizemos com a obra. Como estamos em família, sentimos muita liberdade para conversar sem uma exigência de conhecimento técnico ou teórico sobre arte.

Inspirada nessa experiência, fiz a mediação nesse dia. Contei às pessoas essa história e fiz a proposta:

- Hoje, em vez de sairmos pra comentar, eu proponho: vamos ficar pra comentar?

Mariana Maioline, mediadora.7 - Segundo Larrosa (2002), a “experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece”. Para o autor o sujeito da experiência é como um território de passagem, permitindo-se ser atravessado, afetado, transformado pelos acontecimentos. O sujeito não pode transmitir uma experiência para outro, ela é única, individual, subjetiva.

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19 de fevereiro de 2017 - A Santa do Capital - da Cia Cóccix

Nós, da Cóccix Companhia Teatral, ficamos muito satisfeitos com a atividade proposta pelo PLATEIA - Rede de Formação Artística dentro do Festival VAC - Verão Arte Contemporânea, uma vez que os mediadores tiveram diálogo aberto com nossa equipe, participando de um ensaio aberto e estabelecendo uma dinâmica de conversa mediada com os artistas e espectadores ao final do espetáculo.

A participação da mediadora Dora Sá no ensaio aberto foi fundamental, uma vez que o espetáculo ainda estava tomando os seus contornos finais, pois tratava-se de uma estreia. A mediação aconteceu por meio de perguntas, com provocações reflexivas que permitiram ao espectador refletir sobre seu cotidiano, levando em consideração seu estado ao sair de casa para ir ao teatro e a possibilidade de transformação de seu pensamento após o término da peça. Isso além de ter a oportunidade de poder dizer de suas sensações durante o percurso da encenação, fazer perguntas sobre o processo de criação da obra, expor suas vivências, um momento para fruir inspirações poéticas, curiosidades e exercer seu ponto de vista crítico como espectador, uma vez que ele também é parte da obra.

Integrantes da Cia Cóccix Teatral

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Dos nossos primeiros encontros com esses públicos, que se deram de diferentes maneiras e abordagens, reconhecemos a importância e a potência desse projeto. Mesmo com a consciência de que ainda temos um longo caminho a percorrer em relação ao entendimento sobre a mediação - como fazer, o que propor, que relação se estabelece com os artistas e os públicos - a sensação ao final de cada uma das ações, na nossa avaliação, independentemente se funcionou ou não, é que houve uma aproximação entre as obras e os públicos de forma afetiva, podendo criar um vínculo entre a pessoa que assiste e a linguagem teatral, tornando-a frequentadora, crítica e principalmente parceira nessa construção.

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CONHECER E RESPEITAR O OUTRO PARA UMA LONGA RELAÇÃO

Por que “Públicos”?

Na trajetória de desenvolvimento da Rede sentimos a necessidade de compreensão de alguns conceitos. Alguns deles, optamos por defini-los nas notas de rodapé. No entanto, há uma palavra que entendemos ser importante dedicar-lhe um espaço: PÚBLICOS, nosso objeto principal de estudo.

Maria Carolina Vasconcelos Oliveira (2014) traz, em seu artigo Sobre os públicos e a necessidade de Desmistificar Categorias, uma nova percepção sobre o conceito de público:

Uma reflexão sobre o tema “diálogos com o público” precisa começar pela constatação de uma necessidade: a de desmistificar a categoria “público”, colocá-la no plural, entender os públicos como pessoas reais que têm determinados perfis sociais, têm suas trajetórias de vidas/experiências, seus hábitos e valores. Não se trata de um conjunto genérico e homogêneo de pessoas; não se trata de uma espécie de entidade a quem se deve simplesmente passar uma mensagem, entregar algo. Trata-se sobretudo de um conjunto de interlocutores em processo de comunicação.

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Para nós, da PLATEIA, considerar o interlocutor e conhecê-lo é fundamental para o processo de comunicação, no que concerne a criar pontes para que se dê a fruição da obra artística.

Nos públicos almejados pela Rede incluem-se: as escolas e instituições, o público espontâneo, os frequentadores de teatro, os próprios artistas e os demais interessados pelo teatro no sentido de ampliar essa interlocução e não a categorizar.

O Projeto pretende atuar em frentes de ação, sempre procurando destacar paralelos entre a experiência singular dos espectadores e a fruição artística, procurando criar possibilidades que contribuam para desenvolver e aflorar as habilidades sensíveis (percepção, olhar estético, construção de sentidos) e também para aproximar os públicos das obras artísticas.

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FELIzES PARA SEMPRE?

Onde estamos, para onde vamos?

Após três anos de existência da Rede PLATEIA, propusemos um número de ações significativas de forma não consecutiva e abrangendo grandes eventos como festivais e mostras, sendo percebido o alcance do projeto na interlocução entre obra, artistas e os públicos espontâneos que já costumam frequentar os teatros da cidade. As ações de mediação podem contribuir para a elaboração do universo simbólico de um ou mais indivíduos ali presentes. Mas um dos nossos desafios está em trazer para a plateia aquela pessoa que nunca pensou que poderia ocupar esse lugar de espectador-criador do próprio espetáculo, usando como gatilho aquela obra que o tocou sensivelmente, que o fez pensar sobre determinado assunto e criando nele o desejo de retornar ao teatro e se tornar fomentador e financiador de espetáculos.

Dessa maneira, inúmeras pontes faltam ser consolidadas, como, por exemplo: a divulgação do trabalho da Rede entre os artistas, no intuito de tornar este projeto contínuo; alcançar as escolas de educação formal e não formal e outras instituições com ações antes, durante e depois dos espetáculos; impulsionar e fortalecer o uso da plataforma virtual, aproximando o projeto dos públicos e dos artistas; financiamento para que as ações possam ser mais ousadas e criativas, propiciando outras opções que não apenas a conversa após o espetáculo; investimento na formação continuada dos mediadores e estrutura para transporte, alimentação, oficinas com alunos de escolas públicas e privadas.

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A escola é considerada como um ponto fundamental a ser atingido pela Rede. Afinal, como foi dito, não se gosta de algo que não se conhece. Nosso desejo é que os grupos acompanhados assistam a espetáculos de diferentes gêneros e estilos, o maior número possível deles na companhia de um do(a)s mediadores(as) da PLATEIA. Como já é sabido, muitas crianças não vão ao teatro, seus professores e pais também não, o que faz com que a linguagem fique distante desses públicos. Pensando na Rede PLATEIA como um projeto de formação artística é de fundamental importância essa aproximação com as escolas, propiciando a esses alunos frequentar, conhecer, fazer, contextualizar e ter o teatro como uma vivência recorrente e prazerosa, aproximando-os da linguagem teatral e garantindo a continuidade e a ampliação de público e, por que não dizer, a descoberta de artistas em potencial.

Nessa trajetória de três anos, entendimentos foram conquistados, pessoas foram ao teatro pela primeira vez, experiências foram trocadas, relações novas e afetuosas com o teatro foram estabelecidas.

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Entretanto, sabemos que se trata apenas de um pequeno trecho de um longo caminho. E já percebemos algo fundamental: não há um destino pronto, a olhos vistos, a se alcançar. A metodologia não está fechada. Cada encontro entre públicos e artistas é único, composto das histórias individuais dos presentes, da obra apresentada e do tempo em que está inserida. Parte do nosso trabalho com a Rede PLATEIA é estabelecer processos, revê-los e reinventá-los. Uma mediação é nascente de possibilidades e estamos sempre atentos aos novos rumos que se abrem.

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Aumentar de forma significativa o número de pessoas nas casas de espetáculos e ainda proporcionar a ampliação da percepção dos espectadores sobre a obra podem parecer metas muito ambiciosas. Mas envolver-se pessoalmente na conexão entre plateia e artistas, fazendo isto com esmero, é palpável e parte da nossa realidade.

Seguimos contribuindo de forma prática, por meio do teatro, para a formação de pessoas criativas e sensíveis, encontro a encontro, espetáculo a espetáculo. Uma pessoa que sai de um teatro com sua humanidade e seu senso crítico aguçados leva para a rua essas qualidades. E não é disso que precisamos?

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REFERÊNCIAS

BÁRCENA-ORBE, Fernando; BONDÍA, Jorge Larrosa. Pensar la educación desde la experiencia. Revista Portuguesa de Pedagogía, n.40-1, p. 233-259, 2006. [Caderno Mais, nº 423, p. 18].

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. In: Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro: ANPED - Autores Associados, n. 19, p.20-28 jan/fev/mar/abr, 2002.

BÜNCHEN, Adriane Leandra; ORMEZZANO, Graciela. Professoras de educação infantil: experiências, vivências e significações musicais. Revista Espaço Pedagógico, v. 18, n. 1, 2012.

DE GASPERI, Marcelo Eduardo Rocco. O ESTREITAMENTO ENTRE O ESPECTADOR E A CENA CONTEMPORÂNEA. Universidade Federal de Minas Gerais. Disponível em: http://portalabrace.org/vcongresso/textos/territorios/Marcelo%20Eduardo%20Rocco%20de%20Gasperi%20%20O%20Estreitamento%20Entre%20o%20Espectador%20e%20a%20Cena%20Contemporanea.pdf. Acesso em: 08 jun. 2017.

OLIVEIRA, Maria Carolina Vasconcelos. Sobre os públicos e a necessidade de desmistificar categorias. Revista Diálogos Cênicos, 2014.

Martha Lemos de Moraes¹ (BraSÍLia/DF)

DoutoranDa eM PeDaGoGia Do teatro

univerSiDaDe De São PauLo

FORMaÇÃO DE PúblICO E FORMaÇÃO DE ESPECTaDORES: DUaS

DIMENSõES NECESSÁRIaS E COMPlEMENTaRES

PaRa a RECEPÇÃO TEaTRal

1 - Martha Lemos de Moraes (DF) é professora de

teatro, pesquisadora, artista cênica e produtora cultural,

atualmente professora no curso de licenciatura em Artes

Cênicas da Universidade de Brasília - UnB e na Secretaria

de Educação do Distrito Federal. Autora do livro Teatro e

Formação de Espectadores: uma proposta de programa

educativo, editora PACO (2017), e doutoranda em Teatro

e Educação pela Escola de Comunicação e Artes - ECA

- Universidade de São Paulo - USP. É mestre em Arte

Contemporânea (2014) e especialista em Gestão Cultural

pela UnB (2008).

Teatro e Formação de Espectadores | 112

QUANDO SE TRATA DE DISCUTIR a “formação de espectadores”, a priori duas instâncias reflexivas me são invocadas: a reflexão sobre “espectador” (tanto sobre o seu significado quanto sobre “quem” são os sujeitos espectadores contemporâneos); e sobre “formação”. Essas reflexões, somadas a uma análise de conjuntura do momento histórico em que vivemos, contribuem para a compreensão dos complexos fenômenos que envolvem a recepção teatral, bem como acerca das lacunas entre artista, obra, espectador e mercado, cena de teatro e sala de espetáculo. Acredito que, a partir daí, professores de teatro, artistas e gestores culturais possam contribuir para a formação de público e de espectadores de forma potente e efetiva.

113 | Formação de Público e Formação de Espectadores:Duas Dimensões Necessárias e Complementares para a Recepção Teatral

O termo “espectador” ao qual me refiro não está dissociado do seu contexto: carregou diferentes significados ao longo da história e também carrega na atualidade. Possui diversas interpretações e por isso merece esclarecimento. Em primeiro lugar, ressalto que não se trata de um sinônimo de “público” ou “plateia”. “Público” é uma palavra mais generalista, que subentende qualquer aglomerado de pessoas. O diretor teatral Eugênio Barba (2014, p.23) esclarece:

Nunca usei o termo “público”. Grotowski afirmava que o ator não deve recitar para o “público”, mas para cada um dos espectadores. Dizia que o singular coletivo “público” parecia uma abstração sociológica, ou então uma psicologia da multidão que tomava o lugar da independência de opinião de cada indivíduo.

Teatro e Formação de Espectadores | 114

Ou seja, tratando-se dos fenômenos da recepção, o termo “público” não abrange os aspectos individuais do espectador. Para o autor, a recepção teatral se aproxima mais do campo da antropologia, pois este individualiza cada sujeito imerso em sua cultura. No caso do termo “plateia”, pressupõe-se um grupo de pessoas reunidas para assistir a qualquer evento. Apesar de se aproximar um pouco mais dos fenômenos relativos à recepção teatral, por incluir a noção de evento – que poderia ser estendida ao espetáculo – ainda remete aos aspectos quantitativos, portanto, ao número de pessoas que participam de um determinado evento ou espetáculo. Conforme sinaliza Pupo (2015, p.332),

Observa-se que o termo espectador - e não o seu correlato público - está no centro de nossas preocupações; não é, pois, ao conjunto quantitativamente configurado dos fruidores que voltamos nossa atenção, mas à subjetividade necessariamente envolvida na relação de cada indivíduo com a obra artística.

115 | Formação de Público e Formação de Espectadores:Duas Dimensões Necessárias e Complementares para a Recepção Teatral

Portanto, “espectador” é o termo que inclui os aspectos qualitativos da recepção, que é “pessoal e intransferível” (RANCIÈRE, 2010), que leva em consideração os de processos de aprendizagem de sujeitos, de formação em sentido pedagógico.

Existem projetos de formação de público, de formação de espectadores ou de ambos. Todos são importantes e necessários, num país em que a recepção teatral ainda é elitizada. Os projetos de formação de público estão preocupados com o acesso físico do espectador ao teatro. Nesses projetos, “formação” é entendida não no sentido pedagógico, mas no de “constituir”, “criar” um público frequentador (FORMAÇÃO, 2017). Pretende-se democratizar o acesso ao Teatro a partir de ações culturais que facilitem o acesso físico do espectador às salas de espetáculos. Assim, ingressos com preços populares ou entrada franca, flexibilização do horário de espetáculos para receber escolas, transporte escolar, estratégias de divulgação, etc. são alguns exemplos de ações as quais esses projetos buscam realizar.

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Os projetos de formação de espectadores preocupam-se com a fruição, a experiência estética dos sujeitos, em como se dá o seu diálogo com a obra. Para Flávio Desgranges (2011, p.159), o acesso qualitativo ao teatro está relacionado ao acesso que ele chama de “linguístico”, que significa “o estabelecimento de condições pedagógicas que estimulem o espectador a efetivar uma leitura crítica, coerente e criativa da obra teatral”. E complementa:

Para o acesso linguístico, é relevante que um projeto de formação de espectadores compreenda atividades que despertem nos participantes o gosto pelo teatro, o desejo do gozo estético, a vontade de conquistar do prazer da autonomia interpretativa em sua relação com o espetáculo. E para que isso aconteça, pode ser conveniente instaurar um processo pedagógico que possibilite aos espectadores em formação a apropriação da linguagem teatral. Um processo em que a fome de teatro seja despertada pelo próprio prazer da experiência. (DESGRANGES, 2011, p.59)

117 | Formação de Público e Formação de Espectadores:Duas Dimensões Necessárias e Complementares para a Recepção Teatral

Porém, o próprio termo “espectador” possui diversas interpretações, desde sua etimologia grega antiga: espect = esperar, dor = dor (aquele que esperava a dor e a catarse²). No século XIX o efeito da catarse foi ressignificado pelo drama burguês como “contemplação”. A partir daí, uma hegemônica noção do termo se dá no sentido de contemplação, recorrente até a atualidade. No sentido contemplativo, “espectador” remete a “assistir com prazer”, a “admirar o Belo”. Não se trata de uma noção de “passividade” diante do evento estético, uma vez que, conforme Rancière (2010), não existe este binarismo ativo/passivo na recepção artística – pois cada espectador é um indivíduo, e reportar um indivíduo à passividade é o mesmo que considerá-lo um objeto, uma “parede”. Ainda assim, a noção de “contemplação” me parece não dar conta da arte moderna e, menos ainda, da contemporânea. Torna-se adequada ao contexto do drama burguês do século XVIII e em seus resquícios estéticos presentes no teatro recente, pois se trata de espetáculos que pouco solicitam a participação do espectador.

2 - Aristóteles desenvolveu o conceito de catarse para explicar a recepção do drama nas tragédias gregas. Em A Poética, o autor apresenta originalmente a catarse como “a purificação de tais emoções”, em que, conforme tradução e comentários de Eudoro de Sousa (1995), a própria escolha da palavra “purificação” (em vez de “purgação” ou “expurgação”) já implica uma atitude decidida. Na leitura de Rosenfeld (2012), o termo representa a ‘descarga’ pela experimentação do terror e da piedade. Pavis (2003, p.40), define no dicionário do teatro que “a catarse ocorre no momento em que o espectador se identifica com o herói trágico”. Para ele, Aristóteles apropriava-se de um termo médico que assimila a identificação a um ato de evacuação e de descarga afetiva, sendo uma das finalidades e uma das consequências da tragédia.

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No Brasil, Augusto Boal (1996) propõe no Teatro do Oprimido o conceito “espect-ator”, tanto no ponto de vista estético do espetáculo, que literalmente convida o espectador à participação no Teatro Fórum, quanto dentro da perspectiva da alteridade inerente ao jogo teatral. Segundo o autor, no jogo teatral ocorrem dois estados de consciência: executa-se a ação, mantendo-se nela imerso, ao mesmo tempo que se distancia para se ver de fora, noutra perspectiva, a do espectador. Vê-se fazendo e vê-se vendo, ao mesmo tempo.

Apesar dessa noção de alteridade não condizer com a visão dicotômica entre fazer/fruir, Boal utiliza-se do binarismo “ativo/passivo” para diferenciar o espect-ator do espectador (pois este, para ele, pressupõe passividade). Nesse ponto, concordo com Rancière: se consideramos os seres humanos como sujeitos e não como objetos, a palavra “espectador” já contempla a atividade, uma vez que “passividade” na recepção artística não existe com seres humanos. Portanto, o termo “espect-ator”, apesar de bastante sugestivo, soa como uma redundância.

119 | Formação de Público e Formação de Espectadores:Duas Dimensões Necessárias e Complementares para a Recepção Teatral

Parto do pressuposto de que, num sentido estrito de “formação”, ninguém “forma” ninguém (NÓVOA, 2000). Um professor não é capaz de “formar” um aluno, pois seres humanos vivem em constante “formação”. Os sujeitos “se formam”, pelas suas experiências³ (LARROSA BONDIA, 2001). Nesse sentido, talvez, de fato, “formação” não seja a melhor palavra para tratar de formação de público, plateias ou espectadores. Para Rancière (2010), o termo “formar” carrega o peso da unilateralidade, como se alguém, detentor do conhecimento, pudesse transmitir um determinado saber ao outro, menos inteligente ou menos culto. O autor defende a emancipação do sujeito em detrimento da transmissão de conhecimento, partindo da perspectiva de que todo espectador é ativo na relação com o espetáculo, cocriador, plenamente capaz de traduzir signos e fazer associações simbólicas. Ou seja, não é preciso “formar espectadores”, mas, sim, contribuir para sua emancipação e autonomia (MORAES, 2017).

3 - Larrosa Bondia (2001) defende como “experiência” aquilo que nos atravessa, que nos toca. Não basta vivenciar algo ou acumular alguma informação, pelo contrário: o bombardeio de informação e a opinião sobre tudo são obstáculos cotidianos da vida contemporânea para a experiência. Estendo essa noção para a experiência estética: não basta a recepção teatral para que o espectador vivencie uma experiência estética.

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Porém, reflito: por que as pessoas, de forma geral, vão tão pouco ao Teatro? Quais são as lacunas entre cena de teatro e sala de espetáculo? Se o teatro é elitista, como é possível contribuir para a ampliação do acesso físico e linguístico ao Teatro? Como possibilitar que os espectadores façam da ida ao Teatro uma experiência prazerosa, plena de sentidos?

121 | Formação de Público e Formação de Espectadores:Duas Dimensões Necessárias e Complementares para a Recepção Teatral

Não há uma relação “causal” e diversas são as análises que buscam compreender essas lacunas relacionadas à frequentação/fruição de público/espectador, mas considero importante destacar uma questão latente referente à convulsão política e social que estamos vivendo: a incompatibilidade entre a “lei de oferta e procura”, um dos fundamentos do capitalismo, com a formação de público e/ou de espectadores. No atual sistema capitalista, consumista, neoliberal, quando a demanda por um produto é maior que sua oferta, o preço sobe. Por outro lado, quando o suprimento de certo produto excede a demanda, seu preço cai. Acontece que a arte não é mercadoria, embora seja tratada como tal. E por isso, a lógica da formação de público e espectadores é inversa: quanto menor a oferta, menor a procura. As pessoas gostam do que conhecem e procuram o que gostam. Sem oferta frequente, acessível, e ações que fomentem o desejo pelo teatro, não haverá público frequentador e fruidor. Por outro lado, quanto maior for a oferta, maior será a procura. Ou seja, quanto mais experiências sensíveis pelo teatro, mais os sujeitos o desejarão. Mas, infelizmente, em tempos de golpe parlamentar, as políticas públicas de incentivo à cultura têm se tornado cada vez mais escassas, sucateadas, deixando a oferta de programação artística à mercê dos interesses de mercado.

Teatro e Formação de Espectadores | 122

Flávio Desgranges (2010), em A pedagogia do Espectador, defende que não se nasce espectador, torna-se espectador. Trata-se de uma construção cultural, que pode ser entendida como “formação”, em uma perspectiva ampliada. Porém, não se trata de acumular técnicas ou conteúdos relacionados à história do teatro, ou qualquer tipo de conhecimento racional. Essa construção se dá pelo saber sensível. Assim, não se ensina a ser espectador, mas se aprende, pela experiência artística e estética com a linguagem teatral.

Segundo Desgranges (2011), a partir da leitura de espetáculos teatrais é possível estimular o sujeito à leitura crítica de si mesmo e do mundo que o cerca. É importante salientar que a leitura não pretende “compreender o que o artista quis dizer”. O espectador é entendido como um cocriador, portanto, a leitura se dá na fricção entre o efeito estético produzido e a criação simultânea do espectador, que está relacionada à sua forma de ver / sentir / pensar o mundo. Acrescento que o inverso também é verdadeiro: a partir da experiência estética de outras linguagens artísticas e de situações do cotidiano (o olhar sensível a um pôr do sol, a leitura crítica de um outdoor, de um vídeo, de uma reportagem de jornal), potencializa-se a fruição teatral.

123 | Formação de Público e Formação de Espectadores:Duas Dimensões Necessárias e Complementares para a Recepção Teatral

Pela ótica da pedagogia do espectador, “formar espectadores” significa estimular o despertar dos múltiplos sentidos. Os sentidos despertos possibilitam “uma interpretação aguda dos signos utilizados nos espetáculos diários. Com um senso crítico apurado, esse cidadão-espectador, consumidor-espectador, eleitor-espectador, procura estabelecer novas relações com o entorno e consigo mesmo” (DESGRANGES, 2010, p.64).

Assim, se num sentido estrito de “formação” não é possível formar espectadores, numa perspectiva ampliada alguns projetos de formação de público e espectadores têm realizado um trabalho de resistência e demonstrado sua potência em espaços culturais, companhias de teatro, trupes, festivais, ou são realizados pelos próprios professores de teatro em sala de aula. É possível “capacitar o espectador para um rico e intenso diálogo com a obra, criando, assim, o desejo pela experiência artística (DESGRANGES, 2010, p.29). Portanto, a formação de espectadores à qual me refiro estimula, media, troca, compartilha leituras. Desdobra sentidos, provoca a sensibilidade, a disponibilidade à experiência estética – ultrapassando o momento da recepção propriamente dito. Porque o caminho da arte é o da sugestão, da provocação, não o da proposição.

Teatro e Formação de Espectadores | 124

REFERÊNCIAS

BARBA, E. Queimar a casa: origens de um diretor. São Paulo: Perspectiva, 2014.

BOAL, A. O Arco-íris do desejo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.

DESGRANGES, F. A Pedagogia do Espectador. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 2010.

_________. Pedagogia do Teatro: Provocação e Dialogismo. 3.ed. São Paulo: Hucitec, 2011.

FORMAÇÃO. In: DICIONÁRIO online Aurélio. Disponível em: https://dicionariodoaurelio.com/formacao. Acesso em: 05 jun. 2017.

LARROSA BONDIA, J. Notas Sobre Experiência e o Saber de Experiência. Tradução de João Wanderley Geraldi. Conferência proferida no I Seminário Internacional de Educação de Campinas, Universidade Estadual de Campinas, 2001.

MORAES, M. L. Teatro e formação de espectadores: uma proposta de programa educativo. Jundiaí: Paco, 2017.

125 | Formação de Público e Formação de Espectadores:Duas Dimensões Necessárias e Complementares para a Recepção Teatral

NÓVOA, A. Vida de professores. 2.ed. Porto: Porto Editora, 2000.

PAVIS, P. Análise dos Espetáculos: Teatro, Mímica, Dança, Dança-teatro, Cinema. São Paulo: Perspectiva, 2003.

PUPO, M. L. Luzes sobre o Espectador: artistas e docentes em ação Rev. Bras. Estud. Presença, Porto Alegre, v. 5, n. 2, p. 330-355, maio/ago. 2015.

RANCIÈRE, J. El Espectador Emancipado. Vila Boa: Ellago Ensayo, 2010.

ROSENFELD, A. O Teatro Épico. São Paulo: Perspectiva, 2012.

Galiana Brasil¹ (reCiFe/Pe)

FORMaÇÃO DE PúblICOS: a EXPERIêNCIa

COM O FESTIval PalCO gIRaTóRIO

1 - Galiana Brasil (PE) é atriz, gestora cultural com foco

em mediação de públicos e curadoria. Especialista em

Ensino de Arte (UFPE) e Literatura e Interculturalidade

(UNICAP), com produção teórica e atuação nos campos

de Pedagogia da Arte e Estudos Culturais. Foi curadora

do SESC Palco Giratório entre 2003 e 2014. É Gestora de

Artes Cênicas do Instituto Itaú Cultural (SP).

Teatro e Formação de Espectadores | 128

SOBRE PARTIDAS

Este texto é um registro em perspectiva, um olhar pelo retrovisor do tempo, legitimado pela ação sistemática, engajada e colaborativa em uma rede polifônica e diversa. Ainda assim, e por isto mesmo, é um recorte intransferível da vista de um ponto.

Entre 2003 e 2014 integrei a rede de curadoria do Palco Giratório – um conjunto de políticas de intercâmbio e difusão das artes cênicas, nascido no Departamento Nacional do Sesc e desenvolvido em parceria com diversas representações da instituição em praticamente todos os estados brasileiros. A título de simplificação, poderíamos reduzi-lo a um “projeto” de circulação de espetáculos – o que neste Brasil continental já não seria pouco – mas... só que não. O Palco Giratório é uma espécie de organismo vivo, pulsante. Uma de suas características mais significativas era a identidade fluida. Não cabe numa logo, numa cor, numa marca. Espécie de rizoma, ou um polvo com muitos tentáculos, que por ser bem nutrido conseguia se retroalimentar tamanha a fome e, em igual medida, a sustança que corria em suas veias.

129 | Formação de Públicos:A Experiência com o Festival Palco Giratório

O meu lugar de fala é de quem colaborou com essa mutação a partir de um momento bem emblemático – a criação de uma curadoria compartilhada composta de 23 membros (no início não havia adesão de todos os estados; em 2014, quando encerrei minha participação na rede, todas as unidades federativas já compunham sua curadoria) que, sob a coordenação do Departamento Nacional da instituição, foi convocada a pensar modos de (re)programar as artes cênicas numa malha geográfica profunda e absolutamente diversa – passando por todas as regiões e todos os estados brasileiros, muito além de suas capitais, penetrando em seus interiores, caatingas, regiões pantaneiras, pampas, quebradas, litorais, beradeiras... A ideia era avessar e transpassar o Brasil com teatro, dança e circo. Criar e revelar toda sorte de desdobramentos que esses grupos e suas produções poderiam render. Combinações caleidoscópicas de ações de troca: escambo de afetos, sotaques, poéticas... Uma brincadeira séria que tinha na relação com os públicos seu maior sentido de ser. Partimos de um conjunto de ações revistas permanentemente nesse coletivo – de conceitos norteadores como diversidade de linguagens e territórios – assim como autonomia de espaço e pensamento para proposições locais.

Teatro e Formação de Espectadores | 130

Em Recife, realizamos por sete anos o Festival Palco Giratório. Seu maior ponto de interseção com outros festivais dessa rede estava na programação: os mesmos grupos (17, em média) selecionados para a circulação de cada ano. Fora disso: tudo. Um universo de possibilidades e combinações como, para início de prosa, todos os grupos não selecionados para circular naquele ano. Era um grande desafio imprimir identidade a um festival que tinha a maior parte dos recursos comprometidos com a programação nacional. Era elemento de primeira grandeza nessa alquimia pensar as estratégias de como afetar diversos públicos, visando a ampliação, adesão e mesmo transformação a partir da criação de vínculos e experiências de fruição.

131 | Formação de Públicos:A Experiência com o Festival Palco Giratório

SOBRE (EN)CANTAR SUA ALDEIA

O ponto zero desse desafio foi partir da cidade. É na cidade que a cultura acontece. Mapear suas zonas (únicas, intransferíveis) se faz condição. Então... Olhar os coletivos locais, não apenas selecionar trabalhos – isto também –, e movimentar suas sedes, montar encontros, oficinas, residências, apresentações: esse movimento contínuo que impulsiona a cadeia produtiva e traz adesão. Assim como pensar possibilidades de ocupação dos espaços públicos, para além da praça charmosa, marco zero do lugar, mas os sítios periféricos, mercados públicos, becos, vielas. Plantar as flores nos cimentos, lajes e asfaltos buscando, a partir dos lugares, afetar pessoas que necessariamente não se fariam espectadoras.

Teatro e Formação de Espectadores | 132

Toda programação manda um recado – ou deveria. Ela atende a um chamado ou canta uma dor, denuncia, profetiza. É preciso sair de trás da mesa, circular, transitar para além das zonas de conforto. E isso inclui o confronto. Estar atento e ter os sentidos acordados. Às vezes o ano é de ouvir, noutros, de chamar. Em algumas edições o festival celebra junto com os artistas. Em outras, mais fricciona e provoca, porque contrariar também é pedagógico, e necessário. Um festival não pode ser a televisão do lugar. Ele já não se conforma com a “casa cheia” (dxs mesmxs), mas, um tanto além, pensa onde estão todxs aquelxs que não vieram e o que fazer para seduzi-lxs.

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Por muito tempo pensamos em formação, “atividades formativas” como processos externos ao ato da apresentação. Os bate-papos instituídos de maneira informal, mas sistemáticos, como o pós-espetáculo. Os Pensamentos Giratórios como mesas mais aprofundadas de discussões em torno de questões provocadas pelos espetáculos em circulação. Sempre com vozes diversas – dos grupos visitantes e de personas locais. Assim também se davam os intercâmbios entre grupos, Trocando em Miúdos, encontros provocados entre um grupo circulante e um coletivo local para troca de procedimentos, modos de produção, práticas, celebrações e rodas de lamentos – por que não? –. Oficinas em formatos mais tradicionais, Residências de mais fôlego. Um olhar incansável sobre a formação dos artistas, sobre o despertar de novos, sobre as discussões de interesse de diversas comunidades.

135 | Formação de Públicos:A Experiência com o Festival Palco Giratório

Processos de formação são, em boa medida, modos de conversa, técnicas de sedução, cantos de sereia, loas e vênias. Ritos xamânicos que pedem passagem para o acesso de outras dimensões, extracotidianas, do contrário os conceitos serão apenas isto: os conceitos. O Palco trazia seus conceitos bem desenhados, o locus era a própria instituição com sua capilaridade absoluta. O jogo maior era penetrar nessas sendas e, o melhor, no como chegar. Em Recife criamos a Cena Gastrô. Um diálogo intercultural em que chefs de gastronomia inspirados por espetáculos (seus títulos, sinopses, críticas, composições) criavam menus exclusivos durante o período do evento. Era o teatro reencontrando sua origem bacante, outros sentidos interligados. Era uma provocação para o público que saía do teatro e ia para o restaurante devorar a peça, novamente. Antropofagia que aprofundava e ampliava as zonas de impacto do encontro cênico para outros níveis de (in)consciência.

Teatro e Formação de Espectadores | 136

SOBRE OS QUE NÃO PARTICIPAVAM DA FESTA. NÃO PORQUE NÃO QUERIAM...

Outra chave definidora nos processos de formação de públicos nessa experiência foi o trabalho sob a perspectiva da Acessibilidade Comunicacional. Como continuar alheio a uma parcela robusta da população que tem seu acesso historicamente negado às obras artísticas e aos eventos culturais por causa de barreiras de toda ordem – arquitetônicas, atitudinais? E o que fazer para, uma vez dando-se conta desse equívoco histórico que atravessa gerações, começar um processo de mudança de paradigma na busca da construção de contextos, de entendimentos, de atuação?

137 | Formação de Públicos:A Experiência com o Festival Palco Giratório

O processo de pensar inclusão foi gradativo, mas o norte era claro: ampliar a zona de alcance e não retroceder. A cada edição novas aquisições – equipamentos, entendimentos, adesões, profissionais. Mas, antes de tudo, mudanças nos preconceitos estruturais:

1.Acessibilidade nos eventos culturais não é custo, mas uma dívida institucional;

2.Os equipamentos são tão necessários quanto os profissionais capacitados;

3.Não se podem condicionar os recursos à presença dos sujeitos usuários. A ordem é inversa, as pessoas não vêm porque até então não foram convidadas. Silenciamento e negação. É preciso um trabalho de busca, conquista e viabilização.

Teatro e Formação de Espectadores | 138

A partir desses preceitos se iniciou um trabalho com a proposição de garantir interpretação em libras e audiodescrição. Era preciso ter um recorte de espetáculos dentro da programação que desse conta da diversidade. Era preciso garantir aos sujeitos cegos, com baixa visão, com deficiência auditiva a possibilidade de construir um repertório poético durante o festival. Para tanto, garantir acessibilidade e recursos assertivos para trabalhos de teatro, dança, circo, rua, palco, animação, além de opções para adultos e crianças. Isso requeria pré-produção – acesso aos textos para estudos dos diálogos, criação de roteiros, visitas às instituições, transportes exclusivos, e, nas últimas edições, oficinas de dança, teatro, e até de figurinos pensadas para esses públicos.

Com a sequência das edições – e a manutenção do vínculo com ações pontuais entre elas –, pode-se observar não apenas o aumento significativo no número de espectadores, inclusive espontâneos, para além das instituições parceiras, como o registro de depoimentos compartilhando impressões poéticas, olhares críticos sobre alguns trabalhos e mesmo sobre a programação, apontando um processo de relação estética em construção, fruto direto dessa relação inaugural.

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SOBRE O MELHOR DO FIM, OU SEJA, SOBRE RECOMEÇO

Falávamos em “formação” de público. Hoje, pelas mais recentes vivências na gestão das artes cênicas no Itaú Cultural, em especial pela participação nos comitês² de público e diversidade, penso em processos de mediação para e com os públicos. Nesses tempos de liquidez, de virtualidades e algoritmos, está cada vez mais difícil – e necessário – ousar modos de fazer pontes entre as pessoas e as artes, seus processos e mecanismos. Ao mesmo tempo, as questões políticas, afirmativas, identitárias emergem revoltas, transfiguradas. E o caminho para ter com elas, através da arte, é cada vez mais arenoso, escorregadio, assombroso – e necessário.

É preciso abrir um canal de possibilidade e quanto mais raras, encobertas estejam, mais se devem perseguir modos de dar a vê-las: as possibilidades. É preciso acreditar em novos mundos, outras configurações. Ver esse trabalho – da construção de pontes junto aos públicos – também como uma ação cíclica, de passagens e aberturas.

141 | Formação de Públicos:A Experiência com o Festival Palco Giratório

Os públicos são entidades temidas ou ideais predeterminados e perseguidos? São objetos de estudo (do que se alimentam/onde habitam?) nas pesquisas em busca de perfis? São e pode-se fazer tudo isso e mais um leque amplo (de possibilidades) a depender de quem os busque, os categorize – de quem os queira. O trabalho com público tem muito mais perguntas que certezas, e isto pode não ser assustador. Contanto que as perguntas não sejam as mesmas, que as respostas de ontem tenham seu sentido questionado, que os resultados depois de algum tempo já não façam sentido ou, pelo menos, não suficientemente. A suficiência é inimiga da produção, da criação, da gestão cultural desde o princípio de tudo, e o público – o para quem – habita todas essas esferas da criação. De um modo ou de outro, esse outro sempre está. Mesmo na ausência, mesmo aqueles públicos que ainda não o são, talvez aguardem a pedra de toque, o canto xamânico que lhes tire de um estado tal para um outro. Mas isso é ponte para outra travessia...

2 - Os comitês são coletivos formados por colaboradores, criados para a discussão de políticas institucionais. Em sua maioria, são alimentados por Grupos de Trabalhos e de Estudos..

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renato Mendonça¹ (Porto aLeGre/rS)

ESCOla DE ESPECTaDORES DE PORTO alEgRE: EM CaRTaZ DESDE 2013

1 - Renato Mendonça (RS) coordena a Escola de

Espectadores de Porto Alegre desde 2013. Trabalhou

durante 15 anos como editor de Teatro e de Música no

jornal Zero Hora. Entre 2007 e 2014, frequentou a oficina

de dramaturgia DRAN, orientada pela atriz e diretora

Graça Nunes. Cursou o mestrado do Programa de Pós-

Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da UFRGS, entre

2011 e 2013. É coeditor do site Agora Crítica Teatral.

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INICIATIVA PIONEIRA NO BRASIL no desenvolvimento das ideias do argentino Jorge Dubatti², a Escola de Espectadores de Porto Alegre (EEPA) funciona ininterruptamente desde março de 2013. Inicialmente ligada à prefeitura da capital e, a partir de abril de 2017, de modo autônomo, a EEPA já discutiu 85 espetáculos-tema, com a presença de mais de 185 artistas e técnicos em suas aulas. As montagens debatidas são principalmente produções locais, mas também nacionais e internacionais durante os períodos de realização dos festivais Porto Alegre Em Cena, Palco Giratório e FITRUPA (Festival Internacional de Teatro de Rua de Porto Alegre).

147 | Escola De Espectadores De Porto Alegre:Em Cartaz desde 2013

2 - Jorge Dubatti é um ensaísta, crítico e teórico argentino, autor dos livros El convivio teatral (2003) e El teatro sabe (2005), além de propor conceitos como os de Cartografia Teatral e de Teatro Comparado. Criou a pioneira Escola de Espectadores de Buenos Aires, em 2001, inspirado pelo livro homônimo escrito pela pesquisadora Anne Ubersfeld.

Desde sua criação, há quatro anos, por iniciativa da coordenação de Artes Cênicas da Secretaria Municipal de Cultura, a EEPA manteve algumas características. As aulas da escola são gratuitas, e não existem períodos de matrícula definidos, permitindo que a admissão à Escola se dê a qualquer momento. Além disso, as aulas são realizadas em teatros da capital gaúcha – entre 2013 e 2016, na Sala Álvaro Moreyra, no Centro Municipal de Cultura; a partir de 2017, no Teatro de Arena de Porto Alegre.

Teatro e Formação de Espectadores | 148

Outra característica importante da Escola é o perfil diversificado do corpo discente: temos alunos protéticos, advogados, artistas plásticos, professores e estudantes, entre outras ocupações, com uma minoria ligada diretamente à área artística. A idade dos alunos varia entre 12 e 81 anos. Mantemos uma média de 25 alunos por encontro, em constante renovação.

É importante observar que a didática praticada se baseia na experiência iniciada por Dubatti na Escola de Espectadores de Buenos Aires, criada em 2001, com as devidas adaptações à realidade local, considerando fatores como as atrações em cartaz que possam servir de espetáculos-tema e uma estratégia de aula que seja atrativa para os alunos. Basicamente são aulas quinzenais, nos sábados pela manhã.

149 | Escola De Espectadores De Porto Alegre:Em Cartaz desde 2013

A nova fase da EEPA, iniciada em 2017, também inclui, além das aulas tradicionais, a realização de oficinas de atuação (conduzidas pela atriz Suzana Saldanha) e de crítica teatral (ministradas por mim). Por essas oficinas é cobrada uma mensalidade simbólica. Também deverá entrar no ar o site da EEPA, ampliando nossa presença virtual, que já conta com uma página no Facebook (faça busca por “Escola de Espectadores”). Os comentários que os alunos produzirão na oficina de crítica teatral serão postados no site. Por sua importância e por seu ineditismo, retomaremos a discussão dessas estratégias mais adiante neste texto.

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Também deve ser notado que a coordenação da EEPA é feita por mim desde a sua criação. O convite para que eu assumisse partiu de Breno Ketzer, coordenador de Artes Cênicas na época. A se cumprir a frase de Jorge Dubatti “Cada Escola de Espectadores tem a cara de seu coordenador”, a EEPA espelha uma formação eclética e disposta ao debate.

Sou jornalista, dramaturgo e músico. Trabalhei 15 anos como editor de Teatro e de Música no jornal diário Zero Hora, de Porto Alegre, e frequentei entre 2007 e 2014 a oficina de dramaturgia DRAN, orientada pela atriz e diretora gaúcha Graça Nunes. Cursei o mestrado do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da UFRGS, entre 2011 e 2013. Além disso, sou um dos editores do portal nacional Agora Crítica Teatral (www.agoracriticateatral.com.br), que funciona desde julho de 2015.

151 | Escola De Espectadores De Porto Alegre:Em Cartaz desde 2013

O ano de 2017 marca uma série de transformações na Escola de Espectadores de Porto Alegre. Fatores como a crise nas finanças públicas da Prefeitura de Porto Alegre e a necessidade de a EEPA se renovar me levaram à decisão de emancipar a escola do poder público e buscar um caminho autônomo, que deverá implicar a transformação da EEPA em uma OS (Organização Social).

Antes de detalhar nossas estratégias de aula, faço questão de reconhecer a importância fundamental dos alunos da EEPA no sucesso da Escola. Não é raro encontrar ex-alunos nas filas e nos saguões dos teatros de Porto Alegre. Experimento emoções conflitantes: por um lado, lamento que eles não estejam mais frequentando a escola; por outro, ao ouvir deles invariavelmente a afirmação de que a EEPA foi fundamental em suas formações como espectadores, me sinto orgulhoso de tê-los formado.

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Estratégias de aula

Não é exagero afirmar que encaramos nossas aulas como um desafio semelhante àquele experimentado pelo artista que anseia pela satisfação de seu público. Seja pela mudança de perfil das turmas, seja pela própria acumulação de conhecimento, seja pela provocação que nos é trazida pelos espetáculos em cartaz, o fato é que experimentamos vários procedimentos em aula até agora.

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Talvez a lição mais decisiva que aprendemos foi justamente no primeiro encontro da escola, em 16 de abril de 2013, no Teatro de Câmara Túlio Piva. Naquela ocasião, dividimos a aula em duas etapas: na primeira, expusemos ao público uma apresentação em PowerPoint sobre o nosso espetáculo-tema da aula, Natalício Cavalo; na segunda parte, conversamos com a gaúcha Patrícia Fagundes, diretora da montagem e líder da Cia Rústica de Teatro. O encontro permitiu acesso a insights do processo criativo de Natalício Cavalo, garantiu discussões sobre a trajetória do grupo, mas teve escassa participação dos alunos, que assumiram um papel secundário na discussão. A importância maior dessa aula pioneira foi nos obrigar a repensar nossa didática, abrindo espaço para os alunos. Essa primeira lição que a EEPA aprendeu pode ser ilustrada com o depoimento de Peter Brook (1999):

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Certo dia, numa universidade inglesa, quando dava as conferências que serviram de base para meu livro O teatro e seu espaço, eu me vi sobre o palco de um auditório, de frente para um enorme buraco negro, distinguindo vagamente lá no fundo do buraco umas pessoas sentadas na escuridão. [...] Para que alguma coisa relevante ocorra, é preciso criar um espaço vazio. O espaço vazio permite que surja um fenômeno novo, porque tudo que diz respeito ao conteúdo, significado, expressão, linguagem e música só pode existir se a experiência for nova e original. Mas nenhuma experiência nova e original é possível se não houver um espaço puro, virgem, pronto para recebê-la. (BROOK, 1999, p.3)

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As dificuldades se iniciavam pelo tipo de sala: o Teatro de Câmara Túlio Piva tem palco italiano, espacialmente instituindo a autoridade de mestres explicadores³ ao erguer uma barreira entre quem detinha o conhecimento (palco) e quem era ignorante (plateia). Segundo: a iluminação se dava exclusivamente sobre o palco, deixando o público na “escuridão de sua ignorância”. Terceiro: na condição de mediador da aula, me refugiei na formação de jornalista e entrevistei Patrícia Fagundes adotando procedimentos jornalísticos, reduzindo espaço para intervenções da plateia.

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3 - Valemo-nos dos conceitos de “mestre explicador” em contraponto a “mestre emancipador”, como proposto por Jacques Rancière. No livro O mestre ignorante – cinco lições sobre emancipação intelectual, o francês parte das ideias do pedagogo Joseph Jacotot (1770-1840) para definir “mestre explicador” como aquele que transfere ao aluno “sua ciência”, desprezando a capacidade deste de estabelecer relações e assumir iniciativas que o fariam também aprender. Essa atitude faria o “mestre explicador” assumir um papel embrutecedor que reafirma e reforça “a parábola de um mundo dividido em espíritos sábios e espíritos ignorantes, espíritos maduros e imaturos, capazes e incapazes, inteligentes e bobos”. Em contraponto, o “mestre emancipador” seria aquele que reconhece nos discípulos uma ciência própria e a capacidade autônoma de aprendizagem, colaborando com a orientação e o estímulo. (RANCIÈRE, 2005, p.20)

Já na segunda aula, a EEPA mudou-se para a Sala Álvaro Moreyra (formato de caixa preta, com proximidade entre cena e plateia), e as atividades se desenvolveram sempre com luz de serviço a iluminar democraticamente a todos. A dinâmica em aula foi modificada, determinando grosso modo três momentos, cada um com aproximadamente 40 minutos.

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Na primeira parte de aula, já foram experimentados vários formatos. Entre março e setembro de 2013, eu preparava apresentações em PowerPoint relativas aos grupos e espetáculos que iríamos debater, contextualizando-os em relação a estéticas do teatro contemporâneo e ao panorama da cidade. Entre setembro de 2013 e novembro de 2014, foi a vez de a atriz e diretora Graça Nunes ocupar o primeiro terço com aulas expositivas que tinham por assunto, na medida do possível, temas afins com os espetáculos escolhidos. Dois exemplos: quando a peça foi Os Homens do Triângulo Rosa (baseada no livro Bent, de Martin Sherman), o tema foi ‘Homoafetividade no palco’; quando o espetáculo foi Medéia Vozes, a exposição se pautou pelos mitos gregos. A partir de 2015, conceitos teóricos eram apresentados expositivamente por mim ou pelo depoimento de artistas envolvidos no espetáculo-tema, enfatizando um elemento de encenação. Por exemplo, na aula relativa à montagem As quatro direções do céu, em que o cenário criado a partir de sucatas de alumínio se destacava, o depoimento ficou por conta do cenógrafo do espetáculo, Felipe Helfer. Na vez do espetáculo-tema O Mal Entendido, em que a luz é fundamental, quem depôs foi o iluminador da peça, Carlos Azevedo. A partir de 2016, conseguimos realizar algumas atividades práticas nessa primeira parte da aula, como leituras dramáticas e mesmo breves cenas, aproveitando a infraestrutura da Álvaro Moreyra e, agora, do Teatro de Arena.

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Na segunda parte da aula, com os artistas sentados junto aos alunos, evitando se manifestar, e só o coordenador à frente, os alunos expressam livremente seus pontos de vista sobre o tema da aula. É quando o coordenador deve se colocar no papel de mestre emancipador e estar atento para encorajar os alunos e cortar quando a discussão se desvia, evitando assumir protagonismo que iniba e/ou influencie as impressões dos alunos. Não ignoro que mantenho ascendência sobre os alunos, por isso minhas intervenções evitam ser definidoras ou mesmo marcadas por uma teoria ou corrente estética.

A terceira parte é reservada à discussão informal entre alunos e artistas, que normalmente respondem a dúvidas, críticas e questionamentos recolhidos por eles durante o debate no momento anterior.

161 | Escola De Espectadores De Porto Alegre:Em Cartaz desde 2013

Evidentemente, essas estratégias sofrem ajustes dependendo do tipo de espetáculo, do material com que se conta (vídeos dos espetáculos, textos dramáticos, vídeos de entrevistas gravadas por meio de Skype) e da própria disponibilidade dos artistas convidados.

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Importância de uma escola de espectadores

O título acima se justifica plenamente quando nos defrontamos com pesquisas como Públicos de Cultura, realizada pelo SESC nacional entre agosto e setembro de 2013, e Usos do Tempo Livre e Práticas Culturais dos Porto-Alegrenses, iniciativa do Observatório da Cultura da Prefeitura de Porto Alegre, levada a cabo entre novembro e dezembro de 2014.

Públicos de Cultura informa que, dos 2,4 mil entrevistados de 25 estados brasileiros, 75% nunca foram a espetáculos de dança ou balé em uma sala de espetáculos, 61% nunca assistiram a uma peça de teatro em qualquer local, 57% nunca foram ver uma peça em sala de espetáculo. Usos do Tempo Livre e Práticas Culturais se centra sobre os gostos de 1,2 mil porto-alegrenses, mas os dados também impressionam: 43,2% nunca assistiram a uma peça de teatro, 58,7% nunca foram a uma apresentação de dança ou balé.

163 | Escola De Espectadores De Porto Alegre:Em Cartaz desde 2013

Podemos enumerar vários fatores para esse desinteresse pelas artes cênicas: abundância de alternativas de entretenimento, insegurança nas grandes cidades, descolamento do teatro contemporâneo do gosto dos grandes públicos, sucateamento das salas públicas de espetáculo, crise econômica... Não nos cabe discutir isso neste texto, mas podemos reconhecer que há um grande público potencial para o teatro – o desafio é como atraí-lo para os espetáculos.

Teatro e Formação de Espectadores | 164

A Escola de Espectadores se propõe como alternativa. Na medida em que aproxima o público dos artistas, em que reforça e afirma a autonomia estética dos alunos, em que consagra as artes cênicas como uma experiência transformadora a ser valorizada e cultivada, a EEPA faz sua parte na conquista e consolidação de público. Além disso, é sabido que a comunicação boca a boca é a forma de convencimento mais potente no que se refere ao teatro, e a conversão de cada aluno em um arauto entusiasmado, ainda que em uma escala pequena, pode fazer a diferença.

Em uma tentativa para definir esse trabalho, já de quatro anos, valemo-nos de uma imagem de Dubatti para dizer que a EEPA busca tornar o espectador “um ‘companheiro’, um cum panis, alguém que ‘compartilha o pão’ com o artista e os técnicos”. Os verbos podem ser vários para referir-se às metas da EEPA – emancipar, informar, estimular –, mas o principal é aquele que faz do teatro uma arte única: conviver.

165 | Escola De Espectadores De Porto Alegre:Em Cartaz desde 2013

REFERÊNCIAS

BROOK, Peter. A porta aberta: reflexões sobre a interpretação e o teatro; tradução Antonio Mercado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante – cinco lições sobre emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

Solange Dias e Cássio Castelan¹ (Santo anDrÉ/SP)

UM PROjETO ENTRE SONhOS

1 - Solange Dias (SP) é dramaturga, diretora, integrante

do Teatro da Conspiração e uma das diretoras do Projeto

Parque Escola.

Cássio Castelan (SP) é ator, diretor, integrante do Teatro

da Conspiração e diretor geral do Projeto Parque Escola.

Teatro e Formação de Espectadores | 168

O PROJETO PARQUE ESCOLA

O Teatro da Conspiração de Santo André (SP), formado no ano de 2000, iniciou em 2004 no Parque Escola de Santo André uma oficina-montagem para jovens atores e não atores, com o objetivo de compartilhar sua pesquisa baseada na dramaturgia e na construção coletiva da cena a partir do ator. Pensada no início para durar apenas seis meses, como contrapartida para a utilização do espaço do Parque para ensaios e apresentações de seus espetáculos, esta oficina se transformou no Projeto Parque Escola, durando dez anos e resultando em um processo de criação e vivência continuada, com um núcleo fixo denominado Teatro da Transpiração, ensaiando, produzindo e apresentando nove espetáculos.

169 | Um Projeto Entre Sonhos

No primeiro semestre de 2004 o Teatro da Conspiração realizou duas temporadas de seu terceiro espetáculo, Cantos Periféricos, no Parque Escola, e, em julho, iniciou sua contrapartida: uma oficina que tinha por objetivo montar Sonho de Uma Noite de Verão, de Shakespeare, ao ar livre, utilizando as belas dependências do Parque Escola – um espaço público voltado para estudos sobre meio ambiente e reciclagem -, com um elenco formado não somente por atores, mas, também, por quem se interessasse em participar.

Teatro e Formação de Espectadores | 170

Os participantes, na maioria jovens, vinham do próprio bairro, além de ex-alunos e alunos de oficinas de teatro de São Bernardo do Campo (SP), da Escola Livre de Teatro - ELT, dos Centros Educacionais de Santo André - CESAS e da Escola Municipal de Iniciação Artística de Santo André - EMIA; do curso de Educação Artística da FAINC - Santo André e outros participantes, que vinham das cidades de Ribeirão Pires, São Caetano do Sul, Mauá e São Paulo.

171 | Um Projeto Entre Sonhos

Para o Teatro da Conspiração várias perguntas foram colocadas ao longo dos anos de projeto: como organizar um processo que é coordenado horizontalmente por um grupo de pessoas, no caso, os Conspiradores, mantendo a autonomia e o espaço de criação? Como garantir troca de experiência real entre os coordenadores e os participantes? O que fazer para que a criação seja compartilhada com o maior número de pessoas possível, no caso, o público?

As respostas para essas questões eram dadas a cada domingo de ensaio e a cada dia de apresentação dos espetáculos durante dez anos.

A melhor forma para entender esse projeto é a partir dos seus espetáculos e de seus processos de criação.

Teatro e Formação de Espectadores | 172

OS ESPETÁCULOS

SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO

Primeira temporada em dezembro de 2004 e, a segunda, em março de 2005.

O primeiro impulso para a criação do espetáculo foi uma área ao ar livre, com uma árvore no centro, no Parque, que se assemelha muito à de um teatro de arena. O desejo de uma montagem que tivesse uma linguagem jovem, feita por jovens, crianças e adultos e para jovens, também nos mobilizava. Entender como organizar um processo de montagem com dez coordenadores e trinta e cinco participantes no elenco, em seis meses, era uma questão a ser levada em conta. A escolha do que montar recaiu sobre Sonho de uma Noite de Verão, de William Shakespeare, pois entendíamos que a trama, com seus encontros e desencontros de fadas, enamorados e artesãos dialogava não somente com o público jovem, mas com todos os públicos, entendendo Skakespeare como um clássico realmente popular. Durante as 12 apresentações tivemos uma média de público de 100 pessoas, a maioria vinda do próprio bairro, o que nos surpreendeu, mostrando a potência do projeto que estávamos fazendo, inclusive como formação de público, nascendo, assim, o Teatro da Transpiração e o Projeto Parque Escola.

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ROMEU E JULIETA

Apresentações em novembro e dezembro de 2005.

Pensando em um projeto de continuidade, durante a temporada de março de 2005 de Sonho de uma noite de Verão abrimos inscrições para a próxima montagem: Romeu e Julieta. Foram 100 inscritos, chegando ao final, na apresentação, com 50 participantes. A encenação foi pensada como um desfile de escola de samba cujo enredo foi Romeu e Julieta. Elaboramos o espetáculo buscando correspondências entre os elementos constituintes da cena de teatro e os de um desfile de escola de samba. Assim, as marcações eram pensadas como evolução; os figurinos, como fantasias (com costeiros, talas e adereços); os cenários eram compostos por carros alegóricos e alegorias; a trilha foi feita exclusivamente por sambas que faziam alusão ao carnaval, executadas ao vivo por uma bateria. Grandes coros funcionavam como alas. Exemplos disso: a personagem Ama era representada por uma Ala das Baianas, e a cena do casamento de Romeu e Julieta se desenvolvia com as evoluções de uma Comissão de Frente. Se a encenação remetia a uma escola de samba, o modo de produção, também. Toda a confecção de cenários, adereços e figurinos se deu em um sistema próximo ao de um barracão de escola de samba, com todos os integrantes participando da execução dos mesmos e com a utilização de materiais recicláveis e de baixo custo, já que essa montagem, como as demais, não contava com apoio financeiro, apenas com a cessão do espaço pelo Parque Escola.

175 | Um Projeto Entre Sonhos

A TEMPESTADE

Apresentações em novembro e dezembro de 2006

Nessa montagem demos continuidade ao processo de autonomia do Teatro da Transpiração, abrindo inscrições para novos integrantes, que se juntaram a boa parte do elenco que permaneceu de Romeu e Julieta. A adaptação do texto de Shakespeare, os figurinos, cenários e produção foram coordenados por integrantes do Teatro da Transpiração e divididos em núcleos de trabalho. A encenação buscou um diálogo entre o primitivo e o moderno, em que os núcleos de personagens remetiam a tribos urbanas (skatistas, cultura hip-hop, naturalistas, cultura afro, punks). O texto adaptado buscou retratar o vocabulário e o “jeito” dessas culturas. Tudo observado pelo próprio Sir William Shakespeare em carne e osso, ao vivo e em cores. O tradicional Shakespeare comentando uma montagem atual de um de seus clássicos. Shakespeare virou personagem de sua obra. Se, em Sonho de uma Noite de Verão, concretizamos um espaço de criação e fazer teatral no Parque Escola e, em Romeu e Julieta, iniciamos a parceria Conspiração e Transpiração, em A Tempestade ampliamos e aprofundamos este diálogo projetando novas questões.

Teatro e Formação de Espectadores | 176

177 | Um Projeto Entre Sonhos

PRIMEIRAS ESTÓRIAS

Apresentações em novembro de 2007, março de 2008 e, em julho de 2008, na Casa da Palavra de Santo André.

Se nos espetáculos anteriores abordamos o universo shakespeariano e o transportamos para a nossa realidade, em 2007 optamos por trabalhar com o universo de Guimarães Rosa, não para adaptá-lo ou trazê-lo para os dias atuais, mas, sim, para trabalharmos os contos de Primeiras Estórias em sua forma original. Para essa montagem fizemos um convite a todos, atores e público: que entrássemos no sertão de Guimarães através de uma travessia. Era uma forma de ocuparmos espaços do Parque que ainda não havíamos utilizado, como trilhas e escadarias, ao mesmo tempo que nos permitiu aprofundar o trabalho do ator na delicadeza da palavra poética do universo roseano. Chegamos a isso escolhendo cinco contos. O grupo foi dividido em cinco núcleos de trabalho, sendo que a direção de cada núcleo coube a um integrante do Teatro da Conspiração. Durante a apresentação, cada conto era encenado em um lugar diferente do Parque, com a plateia, também dividida, porém em quatro grupos, que se deslocavam até o local onde se realizavam as cenas que se repetiam até que todos os grupos de plateia tivessem passado por todas. Ao final, todos, atores e público, se reuniam para a última cena. Para que esse jogo acontecesse, todas as cenas tinham um tempo cronometrado de 15 minutos e, durante o deslocamento, o público era conduzido por guias que lhes contavam trechos de Grande Sertão Veredas. Um mergulho, um “entrar no sertão”.

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MACUNAÍMA

Apresentações em outubro e novembro de 2008 e, em dezembro de 2008, nas Oficinas Culturais Amácio Mazzaroppi – São Paulo

Com quatro espetáculos montados, começamos a perceber que os autores que mais nos interessavam eram, até então, os clássicos. O nome de Mário de Andrade veio naturalmente após a experiência de Guimarães Rosa e, se no espetáculo anterior optamos por abordar a essência de sua literatura, em Macunaíma retomamos a ideia de “misturar os diferentes”, tão própria da Antropofagia da Semana de 1922, e tão condizente com espírito de experimentação que tínhamos no Projeto Parque Escola. A opção foi pensar Macunaíma como uma ópera-rock. Uma banda de rock como personagem-chave, como fio narrativo da história. O texto de Mário de Andrade se misturava com um repertório que incluía Led Zeppelin, Queen, Pink Floyd, Raul Seixas, Rita Lee, Ira e Língua de Trapo, entre outros – as músicas como elementos narrativos e não apenas como atmosfera sonora. O figurino era o uniforme básico do jovem: calça jeans, camiseta branca e tênis, e uma ambientação cênica que remetia ao psicodelismo das décadas de 1960 –1970. O básico do rock and roll dialogava com o básico do projeto: trabalhar clássicos em leituras contemporâneas e com a produção realizada em núcleos de trabalho.

179 | Um Projeto Entre Sonhos

MUITO BARULHO POR NADA

Apresentações em outubro e novembro de 2009.

Depois de cinco anos de Transpiração, muitos componentes que estavam desde o início do Projeto saíram buscando novas trajetórias no teatro. Mas outros chegaram trazendo novas potencialidades. Havia a vontade de avançar em territórios menos conhecidos, mas também a necessidade de reconfigurar o grupo. Retomar com Shakespeare parecia ser um processo natural de volta às origens, como que repensando a própria trajetória dentro de novos contextos e desafios. Partimos, então, para Muito Barulho por Nada, que nos oferecia enamorados e núcleos cômicos. Escolhemos transitar nessa montagem pelo campo das danças urbanas, universo até então distante dos participantes. A ênfase no trabalho do corpo e na movimentação específica proposta pelo break e pelo hip-hop, que nos era absolutamente distante, nos levou para um novo formato de adaptação do texto. Cada cena era pensada e reescrita pelos participantes da mesma, o que nos aproximava do caminho trilhado na montagem de Sonho de uma Noite de Verão, em 2004. Foi uma fase de retomada de processos e de reestruturação do grupo. Momento importante que apontou novos caminhos a seguir.

Teatro e Formação de Espectadores | 180

GERAÇÃO 80

Apresentações em outubro e novembro de 2010.

O Teatro da Conspiração comemorou dez anos em 2010 e o trabalho realizado no Parque Escola fez parte desta comemoração. Já não dissociávamos Conspiração e Transpiração.

Escolhemos realizar a montagem de Geração 80, texto de Adélia Nicolete que fora montado pelo Teatro da Conspiração em 2002 e assistido por muitos integrantes do Teatro da Transpiração. Criado em processo colaborativo, o texto reflete a década de 1980 através do resgate histórico, político e comportamental, retratando acontecimentos importantes desta época (comício das Diretas Já, as primeiras perdas e discussões sobre a AIDS, entre outros) e mostra como eles influenciaram a vida de um grupo de amigos recém-formados em um colégio do ABC Paulista em 1980, com as músicas fundamentais que também marcaram a época. Dentro do Projeto Parque Escola foi a primeira experiência a partir de uma dramaturgia pronta, com divisão de personagens e trabalho de texto, e também a primeira vez que Transpiradores coordenaram núcleos de figurinos e cenários. Um trecho do programa escrito para a montagem descreve bem o que foi esse momento:

181 | Um Projeto Entre Sonhos

A montagem original (Conspiração), realizada em processo colaborativo, contou com as lembranças, as memórias, com a transpiração de atores, diretora, dramaturga e técnicos. Nossa montagem atual conta com a inspiração e a conspiração dos Transpiradores, que aceitaram o desafio e nos ensinaram muito sobre o texto, sobre o trabalho em grupo, e sobre o fazer teatro ao lançarem novos olhares, descobrirem detalhes que não havíamos percebido e encherem de vida o belíssimo texto de Adélia Nicolete. Tivemos que aprender sobre desapego, dar espaço. Entendemos que outros atores e atrizes podem (e devem) reconstruir esses personagens e esse espetáculo que amamos tanto. Eles nos apontaram novos caminhos, novos significados, ampliaram nosso olhar. O Teatro da Transpiração trouxe um novo vigor, um novo olhar do jovem de 2010 para nossa G80. Descobrimos também o óbvio: o Conspiração e o Transpiração estão hoje tão juntos que são praticamente uma coisa só, quando pensamos e falamos de um, falamos do outro, misturou tudo. A relação ficou adulta.

Teatro e Formação de Espectadores | 182

....E O QUE SENTIA ERA UMA ENORME SAUDADE DO FUTURO... (PERDOE-ME SE EU NÃO SOUBE ME DESPEDIR)

Apresentações em março e abril de 2012.

Encenar Geração 80, dramaturgia nascida em sala de ensaio do Teatro da Conspiração, trouxe-nos a vontade de ter uma dramaturgia nascida do Teatro da Transpiração. Após vários anos passando por processos de adaptação, sabíamos que havia experiência acumulada para tal. Partimos de um procedimento: cada participante escreveu uma carta em que narrava um fato de sua vida. Essa carta foi entregue a outro participante que tratou de transformá-la em cena. Vários workshops, individuais e coletivos, foram realizados a partir desse primeiro procedimento e sempre apontavam para uma dramaturgia e uma cena que flertavam com o contemporâneo e com o pós-dramático. Após meses de trabalho, e muito material levantado, identificamos pontos comuns e sempre presentes: falávamos de ritos de passagens, de momentos de ruptura. No trabalho mais longo realizado até então, os integrantes do Teatro da Conspiração foram, pouco a pouco, se colocando como observadores e orientadores do processo. Os Transpiradores assumiram as funções: texto, figurinos, cenários, iluminação, trilha sonora, produção e os caminhos da encenação foram discutidos, elaborados e realizados por eles, cabendo aos Conspiradores fazerem a amarração final deste material, que, por sinal, já estava muito bem organizado. A montagem “... e o que sentia...” trouxe à cena fragmentos que mais questionavam do que respondiam: de onde você vem? O que o modifica? O que você traz consigo? Quão importantes e necessários são os ritos de passagem em um mundo onde se compartilha e celebra diariamente com milhares de pessoas o seu pequeno e particular mundo?

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SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO

Apresentações em abril e maio de 2014.

Após uma parada nos ensaios, entre os meses de maio a julho de 2012, retomamos o trabalho projetando a próxima montagem. A vontade era de algo que se relacionasse com os dez anos de projeto, que faríamos em 2014. A decisão do grupo, Conspiradores e Transpiradores: Shakespeare. Mas qual Shakespeare? Resolvemos, então, estudar. Durante os meses seguintes de 2012 lemos peças e textos teóricos, assistimos a filmes sobre e a partir de suas obras, realizamos seminários sobre ele e sua obra. A escolha, ao final desse ciclo de estudos, foi montar novamente Sonho de uma Noite de Verão, mas com uma diferença: em vez de adaptá-lo, como em 2004, usar o texto integral. Tal escolha nos levou a novos processos de trabalho. Estudos de mesa, análise ativa e o trabalho mais aprofundado com a palavra passaram a fazer parte de nossos ensaios, ao longo dos 19 meses de processo, que se iniciou com o estudo, em agosto de 2012, e se encerrou com a estreia, em abril de 2014. Buscamos a relação com a palavra não no sentido de preservar, mas, sim, de revelar toda a poesia do texto, de deixar fluir o que ele trazia, trabalho este apoiado por construção corporal e vocal rigorosas. A produção revelou o mesmo cuidado que havia com o texto: figurinos e cenários pensados com esmero e executados com o máximo cuidado. Se a montagem de 2004 tinha o frescor de um grupo de jovens que se atiravam à cena, a de 2014 (que tinha participantes daquela primeira) trazia um olhar amadurecido e ampliado sobre a obra. Remontar Sonho de uma Noite de Verão foi entender a necessidade do tempo para o amadurecimento de um processo artístico.

187 | Um Projeto Entre Sonhos

PENSANDO HOJE O QUE FOI ESSE PROJETO

O Projeto Parque Escola abre e fecha seu ciclo entre Sonho de uma noite de Verão. Depois de dez anos, foi necessária uma parada para que novas travessias fossem trilhadas por Conspiradores e Transpiradores, caminho natural em processos criativos transformadores. Olhando hoje, de longe, é possível perceber que, naquele momento, construímos um espaço legítimo de criação entre profissionais e amadores, atores e não atores que tinham um único desejo de fazer teatro pelo simples prazer de fazer e compartilhar este prazer com quem quisesse ver e ouvir essas histórias, sem as obrigações de prazos de editais e de respostas aos modos formais de produção. A necessidade do encontro e as possibilidades que surgiam deste encontro nos moviam e nos levaram todo domingo, pela manhã, ao Parque Escola de Santo André durante dez anos.

Soraya Martins e anderson Feliciano¹ (BeLo HoriZonte/MG)

a SEgUNDaPRETa, O PúblICO E OS NOvOS qUIlOMbOS

1 - Soraya Martins (MG) é doutoranda em Literaturas

de Língua Portuguesa pela PUC Minas. Mestre em

Teoria da Literatura e graduada em Letras pela UFMG.

Atriz formada pelo Teatro Universitário da UFMG,

cursou Semiologia do Teatro no Dipartimento di Musica

e Spettacolo dell´Università di Bologna, Itália. Desde

2011, atua no cenário artístico mineiro como atriz e

pesquisadora do teatro negro brasileiro.

Anderson Feliciano (MG) é mestrando em Dramaturgia

e pós-graduado em Estudos Africanos e Afro-brasileiros

(2009) pela PUC Minas, além de performer e dramaturgo.

Desde 2007 vem desenvolvendo projetos focados nas

questões raciais e de gênero. É autor dos livros infantis A

Verdadeira História do Saci Pererê (2009) e Era Uma Vez

em Pasárgada (2011). Escreveu textos dramáticos para

companhias de Brasil, Chile e Argentina.

Teatro e Formação de Espectadores | 190

VOU APRENDER A LER PRA ENSINAR MEUS CAMARADAS.

I.No início a segundaPRETA era um desejo. Era a vontade de – vários artistas, pretas e pretos – criar um espaço onde pudéssemos, além de nos fortalecer e nos cuidar, mostrar nossas produções artísticas e gerar conhecimentos sobre nós mesmos. Um espaço de fabulação onde pudéssemos nos inventar constantemente. A segundaPRETA como lugar de diálogo tenso e necessário sobre a produção de estéticas contemporâneas negras, para além do entendimento equivocado daquilo que se denomina arte negra, associada somente à religiosidade e às mazelas sociais.

191 | A SegundaPRETA, o Público e os novos Quilombos

Somos aquelas sementes plantadas por Abdias do Nascimento brotando e gerando estranhos frutos. Aquele bando de gente preta descobriu que junto é mais forte e armou-se o quilombo. A segundaPRETA – espalhada aos quatro cantos pelos ventos de Iansã – vem reconfigurando material e simbolicamente o espaço comum das artes em Belo Horizonte.

Teatro e Formação de Espectadores | 192

193 | A SegundaPRETA, o Público e os novos Quilombos

A primeira temporada aconteceu no Teatro Espanca!, de 20 de janeiro a 20 de fevereiro de 2017, tendo como homenageada a atriz Ruth de Souza. A programação foi tecida por artistas de várias gerações e com modos diferentes de pensar a poética negra: In Sã: o universo do Rosário em nós, UP3; Nossa Senhora da Açotéia, de Adyr Assumpção; Mãe da Rua, da Cia Espaço Preto; Contava com céu pra tudo, de Dan Costa e Lucas Costa; Pixaim Elétrico, de Michelle Sá; Violento, de Preto Amparo; Lótus, de Danielle Anatólio; e Ciberterreiro, do Coletivo Black Horizonte.

É importante ressaltar que, na primeira temporada, tivemos um público estimado de 300 pessoas, sendo que a maioria destas pessoas esteve presente em todas as ‘segundas’.

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Como falar da formação de público para um projeto que está na cena artística de Belo Horizonte há tão pouco tempo?

Desse questionamento surge um dos aspectos fundamentais da segundaPRETA, que é o diálogo que ela mantém com os projetos que vieram antes e, a partir daí, a necessidade de problematizarmos a invisibilidade das produções artísticas que, em sua concepção, apresentam uma estética negra. Somos artistas e espectadores e, por não nos sentirmos contemplados nos espaços destinados às artes no geral, criamos o projeto. Nesse sentido, a segundaPRETA se instaura como um novo Quilombo e abre frestas para pensarmos outras possibilidades de sensibilização por e através das artes.

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195 | A SegundaPRETA, o Público e os novos Quilombos

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II.É importante, antes de iniciarmos nossas considerações acerca da formação de público na segundaPRETA, problematizarmos a noção mesma de espectador. Para Margaret Wilkerson:

O teatro na comunidade negra é um evento, cujo significado advém, em grande parte, da sua interação com a plateia. [...] Nesse sentido, o que caracterizaria um teatro negro seria sua atenção para com a plateia, na medida em que os elementos teatrais refletissem as esperanças, sonhos, sistemas de valores e padrões culturais do publico a que se dirige. (WILKERSON apud MARTINS, p.86, 1995).

197 | A SegundaPRETA, o Público e os novos Quilombos

Estabelecida a ideia de teatro como evento, é importante ressaltar que nessa proposta, como aponta Leda Maria Martins (1995), “o espectador torna-se um dos signos motores da representação, que reflete e é refletido em um discurso que, simultaneamente, o evoca e é por ele evocado, pois a linguagem cênico-dramática movimenta a experiência e a memória coletiva”. Partindo dessa perspectiva de que o espectador é um dos signos motores, que ele reflete e é também refletido, que evoca e é evocado, nos parece interessante então problematizarmos: quem forma quem? De que memória coletiva estamos falando? Como essa memória coletiva tem sido elaborada esteticamente? E de que forma ela tem levado em conta nossa multiplicidade?

Teatro e Formação de Espectadores | 198

segundaPreta. Dia de Exu. Princípio dinâmico de individualização e comunicação. A instância propulsora de interpretação, a ambivalência e a multiplicidade fazem desse orixá um topos discursivo que intervém na formulação de sentido da cultura negra. Exu é metáfora da própria encruzilhada das culturas da diáspora.

Aqui, na segundaPRETA, na encruzilhada de discursos, lugar de contato e contaminações, de encontro e desencontro, da mediação e da mudança, a relação entre artista e espectador se confunde. E se confunde porque essa relação é forjada na e a partir de uma mesma memória traumática (que ressignificada se transforma em potência criadora) que nos aproxima e, ao mesmo tempo, nos distancia. É nas fissuras que nascem desse jogo de aproximação e distanciamento que surgem novas formas de estarmos negras e negros no mundo.

199 | A SegundaPRETA, o Público e os novos Quilombos

Esse equilíbrio precário nos permite refletir e bordar outras possibilidades éticas e estéticas que, articuladas a um pensamento que ressoa nossa complexidade, gera uma atividade primária de fabulação, ou seja, nós nos inventando e nos construindo o tempo todo como sujeito-artista-espectador preta/o.

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III. De fato a segundaPRETA tem se tornado um importante movimento para nós, artistas-investigadores negras/negros. Além de abrir espaço para nossas apresentações, tem, com os debates, possibilitado a construção de um diálogo, muitas vezes frágil, mas importante, para pensar a denominada arte contemporânea negra. É espaço de agenciamento no qual podemos olhar para trás, e para nós mesmos, ressignificando e nomeando o que vemos.

203 | A SegundaPRETA, o Público e os novos Quilombos

Em sua segunda edição, a segundaPRETA vem com uma programação que expande as possibilidades de pensar a representação do corpo negro e suas particularidades em cena e, mais uma vez, firma-se como espaço de sensibilização onde, num processo intenso de intercâmbios, nos formamos.

Em nosso Quilombo particular a arte assume seu papel principal na organização do sensível, estabelecendo uma nova ordem, outros discursos e a possibilidade de elaboração de uma afro-perspectiva que potencialize nossas produções estéticas.

Unidos, cientes de nossas complexidades, devagar, devagarinho, vamos criando novas configurações de conhecimento e poder.

Teatro e Formação de Espectadores | 204

REFERÊNCIAS

FANON, Frank. Los Condenados de la Tierra. México D.F., México: Fondo de Cultura Económica, 1980.

FOUCAULT, Michel. La microfisica del poder. Madrid, España: La Piqueta, 1976.

FOUCAULT, Michel. Vigilar y castigar. Buenos Aires, Argentina: Siglo Veintiuno Ediciones, 2005.

KILOMBA, Grada. Decolonizar el conocimiento. Disponível em: http://gradakilomba.com/decolonizing-knowledge-a-lecture-performance-by-grada-kilomba-at-the-event-right-to-move-goethe-institut-barcelona-25-may-2016-2100/

MARTINS, Leda Maria. A Cena em Sombras. Belo Horizonte: Ed. Perspectiva, 1995.

MBEMBE, Achile. Necropolítica. Barcelona, España: Editorial Melusina, 2011.

MBEMBE, Achile. Critica a la Razón Negra. Buenos Aires, Argentina: Editorial Futuro Anterior, 2016.

205 | A SegundaPRETA, o Público e os novos Quilombos

RANCIÈRE, J. O espectador emancipado. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.

ROLNIK, Suely. A descolonização do pensamento na obra de Grada Kilomba. Disponível em: http://brasileiros.com.br/2016/09/o-conhecimento-e-colonizacao/

ana Durán e Sonia Jaroslavsky¹ (BuenoS aireS/arGentina)

FORMaR NOvOS PúblICOS

1 - Ana Durán (ARG) é jornalista especializada em Artes

Cênicas, professora de Língua e Literatura e mestre em

Ciências Sociais com habilitação em Educação (FLACSO).

Criou e dirigiu a revista de Artes Cênicas Funámbulos

(1997-2011). É coordenadora e criadora do Programa

de Formação de Espectadores (Secretaria de Educação

do Governo da Cidade de Buenos Aires); do Programa

Carrusel – Escuela de la Mirada e da disciplina Arte e

Cidadania no Programa Adultos 2000. Coordena a área

de Gestão de Públicos do Teatro Nacional Cervantes.

Sonia Jaroslavsky (ARG) é fundadora do primeiro

Programa de Formação de Espectadores (Secretaria

de Educação do Governo da Cidade de Buenos Aires);

criadora do Programa Carrusel – Escuela de la Mirada;

docente no curso de Produção de Espetáculos e titular da

matéria Gestão de Projetos, orientada a novos públicos

(Universidade de Palermo). Coordena a primeira área de

Gestão de Públicos do Teatro Nacional Cervantes.

Teatro e Formação de Espectadores | 208

O QUE É A FORMAÇÃO DE ESPECTADORES?

Buenos Aires é a cidade com a maior quantidade de expressões artísticas vinculadas às artes cênicas na América Latina (teatro, dança, performances, circo, dança-circo, infantil, teatro de rua, musical, etc.), mas apenas uma pequena parcela da população tem acesso a estes bens culturais. Ainda que pareça mentira, muitos dos jovens (40%) nunca foram ao teatro ver um espetáculo, e um número ainda maior não conhece o circuito de teatro independente no qual se formam os artistas que representam o país nos festivais internacionais. Se o assunto for dança, então, a porcentagem sobe para mais de 85% de desconhecimento.

209 | Formar Novos Públcos

Em 2005, criamos o Programa de Formação de Espectadores dentro da Secretaria de Educação da Cidade de Buenos Aires (G.C.B.A.). Naquele ano, os objetivos principais se concentravam em levar o público jovem ao teatro, partindo da certeza de que ali, naquelas pequenas salas, se tramava uma arte original à qual muitos não tinham acesso. No saguão dos teatros já era fácil comprovar que apenas um pequeno grupo de espectadores assistia a quase todos os espetáculos, uma vez que quase todos se conheciam. Uma elite de “prossumidores” – nas palavras de Néstor García Canclini – dava forma ao grupo de espectadores especializados aos quais eram destinados os espetáculos, cujas estéticas e linguagens, em sua maioria, eram bastante acessíveis – o que indicava que a acessibilidade não tinha relação com a dificuldade estética.

Teatro e Formação de Espectadores | 210

Com o passar dos anos, o Programa (PFE), seus objetivos, alcances, questionamentos e expectativas se tornaram mais complexos. Enquanto instituições como o Proteatro (Instituto para Proteção e Fomento da Atividade Teatral Não Oficial da Cidade) e a Prodanza (Instituto para Proteção e Fomento da Atividade da Dança Não Oficial da Cidade) deram profundidade e continuidade ao Programa, sua ancoragem na área de programas socioeducativos da Secretaria de Educação do Governo da Cidade de Buenos Aires promoveu uma abertura a outros horizontes, propondo interações com outros agentes.

A rigor, o PFE não é original, já que desde os anos 1960, pelo menos, os alunos das escolas de Buenos Aires vão de micro-ônibus assistir a peças de teatro. No entanto, é original a sua institucionalização, uma vez que este é o único programa que está integrado à estrutura da Secretaria de Educação e que faz uma seleção rigorosa dos espetáculos em cartaz – com a anuência de um júri especializado – dedicada exclusivamente à formação de espectadores. D

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Em excursões organizadas com mais de um mês de antecedência, os jovens assistem a espetáculos independentes de teatro e dança contemporâneos, além de sessões de cinema dedicadas a curtas de diretores contemporâneos independentes ou filmes de arte. Além disso, os docentes contam com atividades prévias e posteriores para trabalhar em sala de aula e que podem ser adaptadas para as disciplinas e os grupos de alunos. A repetição da experiência para cada grupo depende da decisão da instituição educativa à qual pertencem os estudantes.

A respeito dos objetivos, espera-se que os alunos, ao assistirem a diversos espetáculos, possam:

Desenvolver a sensibilidade na relação com as expressões culturais da atualidade;

Dispor de ferramentas técnicas para a análise e a fruição das artes, como o teatro, o cinema e a dança;

Ampliar o horizonte de experiências estéticas para apreciar os bens culturais que a cidade de Buenos Aires oferece;

213 | Formar Novos Públcos

Valorizar os espetáculos de teatro e dança e o cinema como vias de acesso ao campo cultural contemporâneo;

Dispor de ferramentas para a seleção e o consumo crítico dos bens culturais da sociedade onde vivem;

Apreciar diferentes montagens e reconhecer a diversidade de espaços nos quais se dão as apresentações teatrais;

Reconhecer elementos das linguagens do teatro, da dança e do cinema em suas diferentes propostas estéticas;

Aproximar-se do trabalho profissional em teatro e em dança a partir do encontro e da troca com os atores e diretores envolvidos nos espetáculos assistidos.

Teatro e Formação de Espectadores | 214

O PFE, como dispositivo, se estrutura da seguinte forma: uma atividade anterior à excursão relacionada indiretamente à obra artística, uma conversa-debate com os artistas após a apresentação e, por último, buscando enriquecer a experiência, atividades a serem realizadas em sala de aula.

Eis alguns aspectos de destaque:

O Programa se coloca como mediador entre as obras e os alunos. Nesse sentido, a conversa-debate parte da seguinte pergunta: “O que lhes chamou a atenção no que acabam de ver?”. O intuito é instigar a curiosidade e a variedade da recepção dos alunos. Ou seja, o objetivo do programa não é impor conteúdos, mas balizar as leituras possíveis de cada grupo e orientá-las, no que for possível, ao campo conceitual das artes cênicas;

215 | Formar Novos Públcos

Para que a conversa/debate seja conduzida da forma mais eficaz, o grupo de espectadores não ultrapassa os 50 alunos. De toda maneira, as salas independentes costumam ter essa capacidade;

O ritual do espectador é trabalhado com os alunos desde a entrada até a saída do teatro. A proposta da conversa-debate é essencial para o Programa, uma vez que permite que as diferentes sensações e ideias, frutos do encontro com a obra, sejam colocadas em palavras.

Teatro e Formação de Espectadores | 216

Os alunos são guiados por três perspectivas (a emocional, a técnica e a temática) para circular quase livremente pela experiência vivida, que será aprofundada em sala de aula a partir de diferentes disciplinas (Dança, Educação Física, Teatro, Línguas, Literatura, História, Sociologia, Psicologia, etc.). Em uma primeira instância, eles são induzidos a contar suas experiências como espectadores e, em uma segunda, a dialogar abertamente com os intérpretes, coreógrafos, diretores ou especialistas acerca do espetáculo ou do filme.

217 | Formar Novos Públcos

As artes cênicas na escola

Em primeiro lugar, nos perguntamos por que levar as artes à escola, ou melhor, por que mediar uma aproximação dos jovens a essa experiência. Logo, concluímos que as artes abrem possibilidades de criar e decodificar metáforas, de ampliar o mundo em que vivemos, de desenvolver potenciais cognitivos particulares, orientados a elas. Elas permitem imaginar o que não existe, capturar o momento presente, desenvolver uma visão crítica da sociedade em que vivemos, ampliar as possibilidades de mirar em temas existenciais, que no cotidiano se apresentam como triviais. As artes impactam nas emoções e constroem coesão entre aqueles que vivem esta experiência, mas, além disto, permitem a ampliação do horizonte da experiência escolar e da sua subjetividade midiática. Por outro lado, em nossa experiência, é imperativo tomar partido para priorizar e fomentar aquelas formas artísticas presentes, vivas e cujas linguagens possam falar diretamente com os jovens; formas que, ao transporem os muros da escola, poderiam se constituir como a via de ampliação da experimentação artística.

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A mediação

Néstor García Canclini afirma que uma política realmente democratizadora deve começar pela educação primária e secundária, “onde se forma a capacidade e a disponibilidade para se relacionar com os bens culturais e deve abarcar um conjunto amplo de meios para redistribuir não apenas as grandes obras, mas também os recursos subjetivos necessários para apreciá-las e incorporá-las”. (CANCLINI, 1987).

221 | Formar Novos Públcos

Hoje em dia, com diz o filósofo Byung-Chul Han, “vive-se um cenário que ameaça a capacidade das pessoas de estabelecer vínculos com as artes” (HAN, 2015). A aproximação das experiências artísticas é um direito cultural dos cidadãos. As políticas de democratização cultural (a chamada “linha francesa”) deram enfoque ao acesso à cultura e às artes como forma de diminuir as desigualdades sociais, ao passo que o marketing das artes adotado pelas instituições, especialmente as anglo-saxãs, mirou na fidelização para assegurar a sustentabilidade dos espaços. No entanto, não se pode subordinar uma gestão de públicos às estratégias do marketing e, neste sentido, deve-se ter cuidado com a linguagem com que são formatados os projetos, pois tais estratégias caminham em sentido oposto ao de qualquer outro percurso vinculado às formas latino-americanas de promoção cultural, que, mais na linha de García Canclini, enfatizam a cidadania. Contudo, isso não quer dizer que se deve optar por um ou outro modelo, ou por aquele enfoque, mas que se deve estar atento para não ignorar um posicionamento e um percurso teórico-prático que nos identifique a partir de nosso lugar geográfico.

Teatro e Formação de Espectadores | 222

Nós, do Programa de Formação de Espectadores [www.formarespectadores.com.ar], pensamos a mediação cultural na esfera estatal a partir de ações que incentivem a aproximação de produções artísticas e espaços culturais com pessoas ou grupos de baixa participação cultural. Esses assistem às obras com o docente e têm a escola como agente mediador.

A relevância que ganha esse tipo de programa na escola está no fato de que o meio escolar é decisivo para a formação de capital cultural, especialmente naqueles setores com maior dificuldade de acesso a esses bens.

Como se media:

Com conteúdos educativos orientados aos docentes, alinhados a cada ciclo de formação, e também com conteúdos orientados aos alunos;

Através de guias ou cartilhas pedagógicas com atividades prévias e posteriores, elaboradas a partir de noções artísticas. Nesse material, aparecem também alguns conceitos do sistema ou campo teatral e informações sobre os circuitos teatrais, vinculando-os com todo o sistema teatral existente no país;

223 | Formar Novos Públcos

A partir de atividades presenciais com os alunos e docentes ao final da apresentação;

Reconhecendo o docente como principal agente mediador;

Realizando as atividades em horários pensados especialmente para o público jovem, propondo mudanças no sistema teatral atual;

Realizando atividades de formação que sirvam de apoio aos docentes;

Realizando pesquisas e análises qualitativas e quantitativas das atividades.

Teatro e Formação de Espectadores | 224

Não se concebe a formação de espectadores sem um agente mediador, pois este busca intervir na desigualdade de acesso à oferta artística e na participação cultural. Nossa proposta é a de uma mediação pedagógica que se dispõe a aprender com os outros na linha que propõe Jacques Rancière em O mestre ignorante, ou, mais adiante, em O espectador emancipado: a leitura do mediador não é a única nem a imprescindível para abordar um acontecimento cênico. A mediação artística, assim compreendida, possibilita que todo sujeito ou comunidade adquira melhor compreensão sobre qualquer manifestação artística e também sobre espaços de circulação e exibição onde se encontram essas produções – estatais, privadas ou independentes –, promovendo assim uma abordagem territorial e cidadã. O vínculo com a arte e com o universo cultural que nos rodeia nos afeta e nos coloca em contato com as sensibilidades sociais contemporâneas. Contudo, é essencial “dialogar” com a arte, e não consumi-la como um produto. Ao mesmo tempo, é nossa responsabilidade “mirar” aquilo que é diferente como parte do diverso, do único e irrepetível e, portanto, como valorável – seja da comunidade, da minoria, ou de onde mais quer que seja. A arte regional, dos povos originários ou de qualquer grupo minoritário nos indica sua maneira de estar e transitar nesse mundo:

225 | Formar Novos Públcos

A arte produz subjetivação (entendida aqui como as operações que a sociedade solicita aos sujeitos para estar no mundo); permite ao indivíduo ingressar no mundo da significação, naquilo que funda a sua diferença e seu laço com os demais. Ser sujeito da cultura significa estar em uma rede simbólica que tem o desejo como protagonista. O espaço artístico-cultural garante esta dupla noção de pertencimento, que permite aos sujeitos, ao mesmo tempo, estarem num mundo de valores onde também se é valorizado. Os espaços artístico-culturais promovem a criatividade e a construção de linguagens, textos e símbolos. Ao se orientarem pela construção de saberes e modelos de identificação, facilitam o surgimento de formas de ser, de pensar, de se relacionar e de valorizar-se a si mesmo e aos demais. Em definitivo: promovem a integração e o respeito pelo diferente ao mesmo tempo em que se tornam fundamentais para a geração de sujeitos-cidadãos. (UNICEF, 2008, p.28)

Teatro e Formação de Espectadores | 226

Nesse sentido, observa-se que os atos provocados pelo mediador são os responsáveis pela melhoria da experiência em torno das práticas artísticas. A compreensão se faz através de exercícios pedagógicos, perguntas e ações que permitam construir esse conhecimento ou saberes.

A mediação, assim compreendida, gera entendimento não só individual – mas coletivo – sobre a manifestação em questão; permite a apreciação artística e o gozo que se vive ao experimentar a aproximação a uma obra; dá o aporte no desenvolvimento cultural de uma comunidade. Assim, cabe pensar que a mediação não seria tanto o resultado, mas o processo, a experiência vivida e os aprendizados e mudanças que se produzem a partir dela.

227 | Formar Novos Públcos

O mediador – ou o grupo de mediadores (que seria o mais enriquecedor) – pode ter um perfil diverso de especialidades, como a Sociologia, a Pedagogia, a Gestão Cultural, ou mesmo ser um curador ou um artista com dimensão sociológica ou pedagógica. É importante promover a multidisciplinaridade, uma vez que a atividade se torna mais rica quando os mediadores provêm dos âmbitos artísticos ou do campo das Ciências Sociais, pois aportam conhecimento tanto para o aspecto pedagógico quanto para a elaboração dos materiais e a gestão dos grupos.

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Teatro e Formação de Espectadores | 230

Rede Ibero-Americana de formação de públicos: RIDP

Para seguir avançando e aprofundando nesses conceitos, mas também para trocar experiências e práticas, desde 2011, gestores e profissionais que levaram a cabo os distintos programas no Chile, Uruguai e Argentina participaram de seminários e fóruns internacionais que abordaram a questão da promoção de audiência e da formação de públicos. Os eventos foram realizados em Buenos Aires, Montevidéu e Santiago e, a partir deles, surgiu o interesse de ampliar a colaboração por meio da estruturação da primeira Rede Ibero-Americana de Desenvolvimento de Públicos – RIDP. O intuito é facilitar o intercâmbio de experiências e gerar uma rede a partir de interesses comuns.

231 | Formar Novos Públcos

A RIDP se propõe a formar uma plataforma de associação e colaboração entre profissionais, programas, organizações culturais e entidades de distintas magnitudes que declarem interesse pelo estímulo à audiência, pela formação de públicos e que realizem seus trabalhos em cidades ibero-americanas.

Objetivos da RIDP

Promover a cooperação no universo da formação de públicos e do estímulo às audiências;

Fomentar o intercâmbio de experiências e aprendizados nesse âmbito em todo o território ibero-americano;

Motivar o desenvolvimento de estudos e indagações sobre os públicos da cultura na Ibero-América;

Articular espaços de encontro, análise e debate entre profissionais da região que se interessem pelo assunto;

Impulsionar a difusão e a publicação de insumos e conteúdos que fortaleçam o campo do estímulo às audiências e da formação de públicos.

Teatro e Formação de Espectadores | 232

Sócios-fundadores

Entre os sócios-fundadores da Rede, se encontram o Teatro Solís, de Montevidéu (Uruguai), o Grande Teatro Nacional, de Lima (Peru), e o Teatro do Lago, de Frutillar (Chile). Além deles, são sócios os seguintes programas: Programa de Formação de Espectadores e Carrossel das Artes, de Buenos Aires (Argentina) e Programa de Audiências para as Artes e Ciências (Chile). Por fim, destacam-se os profissionais Ana Durán e Sonia Jaroslavsky (Buenos Aires), Javier Ibacache e Paula Vergara (Santiago), Daniela Bouret e Gonzalo Vicci (Montevidéu).

233 | Formar Novos Públcos

REFERÊNCIAS

CANCLINI, Néstor García (Ed.) Políticas culturales en América Latina. México DF: Editorial Grijalbo, 1987.

DURÁN, Ana; JAROSLAVSKY, Sonia. Cómo formar jóvenes espectadores en la era digital. Buenos Aires: Editorial Leviatán, 2012.

DURÁN, Ana. Nuevos públicos. Artes escénicas y escuela. Buenos Aires: Leviatán, 2016.

HAN, Byung-Chul. La sociedad del cansancio. Barcelona: Editorial Herder, 2015.

UNICEF. Arte y Ciudadanía. El aporte de los proyectos artístico culturales a la construcción de ciudadanía de niños, niñas y adolescentes. Buenos Aires: UNICEF- Fundación Arcor-Ministerio de cultura de la Nación - Crear vale la pena, 2008. Disponível em: http://www.unicef.org/argentina/spanish/ArteyCiudadaniaWeb.pdf

Corredor Latino americano de teatro e Jorge Dubatti¹ (BuenoS aireS/arGentina)

CONSTRUINDO NOvOS OlhaRES: a IMPORTâNCIa Da

FORMaÇÃO DO ESPECTaDOR

1 - María Viau (CLT/Argentina) é coordenadora de

redes no Corredor Latino-Americano de Teatro – Antena

Argentina. É licenciada em atuação pelo Instituto

Universitário Nacional de Arte (IUNA) e graduada em

atuação pela Escola de Teatro de Buenos Aires (ETBA). É

gestora cultural e docente teatral. Participou em mais de

40 obras de teatro nos diversos circuitos teatrais: estatal,

privado e independente.

Gabriel Fernandez Chapo (CLT/Argentina) é coordenador

da área de Investigação e Formação do Corredor Latino-

Americano de Teatro – Antena Argentina. Dramaturgo,

diretor teatral, pesquisador e professor universitário,

é licenciado e bacharel em Letras pela Universidade

Nacional de Lomas de Zamora. Atua como professor

universitário na Universidade Autônoma de Entre Rios

(UADER) e na Universidade de Cinema de Buenos Aires.

Manuel Ortiz (CLT/Chile) é diretor executivo do Corredor

Latino-Americano de Teatro – Antena Argentina.

Licenciado em Artes pela Universidade do Chile, destaca-

se, em sua formação, o estágio de estudos FONDART na

Itália, Polônia e Eslovênia. Trabalhou como ator, diretor e

dramaturgo no Teatro Nacional Chileno. Como docente,

trabalhou na Universidade do Chile e na Universidade

Nacional de Córdoba, entre outros centros de formação.

Jorge Dubatti (Universidade de Buenos Aires/Argetina) é

professor universitário, crítico e historiador teatral. Entre

suas principais contribuições para a teatrologia estão

suas propostas teóricas de Filosofia do Teatro, Teatro

Comparado e Cartografia Teatral, disciplinas nas quais foi

pioneiro. É doutor (área de História e Teoria da Arte) pela

Universidade de Buenos Aires.

Teatro e Formação de Espectadores | 236

O CORREDOR LATINO-AMERICANO DE TEATRO ASSOCIAÇÃO CIVIL é uma plataforma de intercâmbio internacional sem fins lucrativos que articula atividades entre criadores, organizações e instituições vinculadas às artes cênicas. Sua missão é fomentar a permanente troca de reflexões e experiências teatrais latino-americanas, atendendo à diversidade e às múltiplas potencialidades criativas e produtivas de nossas sociedades.

A Plataforma realiza seus projetos graças a uma lógica associativa de interação entre as principais quatro redes articuladas pelo CLT: Rede de realizadores; Rede de espaços e festivais, formação e investigação; Rede de integração Teatro e Sociedade, além da Rede de Audiência, em que se enquadra o tópico da formação do espectador que desenvolveremos a seguir. Articuladas a partir das “Antenas CLT”, as redes contam com equipes de profissionais que trabalham em diferentes países. Atualmente, a plataforma conta com antenas na Argentina e no Chile; além das Coordenações Internacionais no Brasil (nos estados de Santa Catarina – na cidade de Florianópolis – e Minas Gerais – na cidade de Nova Lima); no México (na cidade de Pachuca); em El Salvador (na cidade de San Salvador) e na Colômbia (na cidade de Medellín).

237 | Construindo Novos Olhares: a Importância da Formação do Espectador

Na Argentina, devido à sua amplitude territorial, se desenvolvem Coordenações Regionais que funcionam simultaneamente nas regiões sudeste, norte e noroeste da Província de Buenos Aires, e também no norte argentino, na Província de Jujuy. Em seus dois anos e meio de trajetória, o CLT desenvolveu mais de 50 atividades em seus países-sede, vinculando-se ocasionalmente a diversos outros projetos e eventos teatrais na América Latina, na Europa e na África.

A estrutura do CLT permite pensar as diferentes problemáticas do fazer teatral como uma ação constante que integra pensamentos dos vários países da comunidade teatral latino-americana. Para isso, observa o teatro como um fenômeno complexo repleto de campos de produção e inserção social.

Teatro e Formação de Espectadores | 238

A formação do espectador é vista aqui como um fenômeno sociocultural que assumiu, nos últimos anos, um grande protagonismo na cena teatral latino-americana a partir de ações que se desenvolvem no continente e, particularmente, na Argentina.

A abordagem de tal fenômeno é interessante, uma vez que serve para pensarmo-nos culturalmente. Historicamente, o espaço formativo esteve ao lado dos que exerciam a profissão: os artistas, atores, atrizes, diretores, cenógrafos, iluminadores, figurinistas, jornalistas, produtores e todos aqueles que possuíam incidência direta na construção do objeto artístico. Nesse modelo, o público era um mero espectador-voyeur. O que acontece, então, com um sujeito-espectador que nos oferece um olhar formado?

239 | Construindo Novos Olhares: a Importância da Formação do Espectador

Inicialmente, ele nos dá a possibilidade de nos repensarmos artisticamente. Quando o espectador competente não se restringe ao crítico ou ao jornalista, mas clama por uma generalidade, nos vemos obrigados a nos construir de outra maneira. Tal generalidade está sujeita à conjuntura sócio-político-cultural de cada lugar.

O ideal de um “espectador formado” se sustenta no reconhecimento substancial dessas diferenças: um espectador na Argentina é diferente de um espectador no Brasil ou no Chile. Assim, como Corredor Latino-Americano de Teatro, colocamo-nos em frente a esse fenômeno e, levando em consideração o contexto de cada país, nos propomos a pensar a Rede de Audiência como outro pilar que nos possibilite o diálogo com um espectador que se forma na pluralidade e na diferença, para, a partir daí, construir uma identidade latino-americana.

por María Viau

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Teatro e Formação de Espectadores | 242

A formação do espectador na Rede de Formação e Investigação/CLT ARGENTINA

É evidente que, entre os produtos culturais cujo consumo é fomentado e favorecido aos mercados da arte e do entretenimento, o teatro – como experiência cênica de risco e experimentação – não aparece entre as primeiras opções. O cinema e a música, no caráter de linguagens industrializantes e de fácil expansão a outros mercados de consumo, são os preferidos da indústria cultural na promoção de seu acesso ao público.

Para equilibrar as deficiências do sistema cultural e aproximar as artes cênicas do público em geral, a prática teatral – com sua natureza artesanal, convivial, efêmera e irreproduzível por vias técnicas e tecnológicas – demanda o trabalho de associações civis e culturais (como é o caso do Corredor Latino-Americano de Teatro) ou de organismos governamentais.

243 | Construindo Novos Olhares: a Importância da Formação do Espectador

Muitos estudos científicos demonstram que as necessidades culturais são resultado de uma criação e de uma educação: todas as práticas culturais (visitas a museus, concertos, etc.) e as preferências por literatura, pintura ou música estão intimamente relacionadas ao nível educacional e, seguidamente, à origem social. Um espectador que não possua um código específico se sente perdido em um caos de sons e ritmos, cores e linhas: o encontro com o objeto de arte não se dá como “amor à primeira vista”, e o prazer do amante pressupõe um ato de cognição. Por isso, as diversas estratégias de aproximação e fomento do contato de espectadores com o fazer cênico possuem inegável valor e transcendência sociocultural.

Nesse sentido, os projetos que envolvem a tentativa de aproximar a linguagem teatral a novos públicos geram, em termos políticos, ideológicos e artísticos, princípios de uniformidade entre os cidadãos de uma nação, além de produzirem a possibilidade de recepcionar bens culturais. É comum que os fenômenos de não inclusão derivem de processos de concentração do poder simbólico e dos espaços de legitimação, reconhecimento e circulação dos valores artísticos.

Teatro e Formação de Espectadores | 244

O fomento de espectadores de teatro costuma gerar uma aproximação de natureza dupla, que possui, inicialmente, a instância da apreciação e, em segundo lugar, a da análise e crítica do espetáculo sem caráter avaliativo. Essas operações favorecem a presença de sujeitos com espírito crítico e reflexivo, que se permitem ser atravessados por uma experiência estética que costuma mobilizar valores e emoções éticas e ideológicas.

por Gabriel Fernandez Chapo

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245 | Construindo Novos Olhares: a Importância da Formação do Espectador

Teatro e Formação de Espectadores | 246

Um olhar chileno sobre a formação do espectador

Pensar o exercício de formação de espectadores a partir do Corredor e, portanto, sob uma perspectiva latino-americana implica uma inerente contradição. Desenhado e realizado em função de comunidades e territórios específicos, tal exercício não apenas leva em consideração a idiossincrasia e a tradição cultural dessa comunidade, como também considera a institucionalidade cultural do território e a relação do teatro com outros tecidos sociais, como a educação e a reabilitação. Ainda que seja evidente que, no que toca à questão, existem fatores em comum aos países latino-americanos, é evidente também que os espectadores de cada território – e, portanto, sua necessidade de formação – são diferentes. O público teatral de Buenos Aires e o de Santiago, para comparar duas capitais vizinhas, ou o de São Paulo e o de Florianópolis, comparando duas capitais brasileiras, são completamente opostos.

247 | Construindo Novos Olhares: a Importância da Formação do Espectador

Não temos boas notícias sobre os aspectos que nos unem nos dias atuais. Esvaziamento cultural, corte de investimentos em cultura e educação, fechamento de teatros e um enorme et cetera. Mas nem todas as notícias são ruins. Em nosso caminho, encontramos experiências excepcionais que – alcançando um nível de organização das comunidades, dos artistas e espectadores – conseguiram driblar o difícil cenário latino-americano atual. É o caso da Feira das Artes Cênicas de Maule, no Chile, organizada por um coletivo que, por meio de um trabalho duradouro, conseguiu formar e fidelizar um público importante, o que não só viabiliza o festival, como faz com que ele seja financiado com o valor dos ingressos. O público alcançado assiste a cerca de 10 peças ao ano, uma média muito acima da nacional. Outro caso que merece destaque é o processo desenvolvido em Medellín, na Colômbia, no qual artistas organizados conseguiram levar a cabo uma agenda legislativa, conseguindo, assim, suporte estrutural para o desenvolvimento da arte cênica na região, o que beneficiou tanto os artistas como o público.

Teatro e Formação de Espectadores | 248

249 | Construindo Novos Olhares: a Importância da Formação do Espectador

Nosso percurso nos mostrou que esses casos se multiplicam ao longo do continente. O que une tais experiências é o trabalho conjunto com a comunidade, a organização, um trabalho em rede e duradouro. Assim, no panorama atual, refletir sobre o exercicio de formação de público requer um pensamento em longo prazo, que busque novos corredores que permitam o encontro dos artistas com os espectadores.

por Manuel Ortiz

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Teatro e Formação de Espectadores | 250

A FILOSOFIA DO TEATRO E A PRÁXIS DO ESPECTADOR HISTÓRICO-REAL²

por Jorge Dubatti

Estas reflexões se enquadram em uma “Filosofia do Teatro”, disciplina da Teatrologia que desenvolvemos na Universidade de Buenos Aires há quase duas décadas e que, felizmente, despertou interesse e se desenvolveu em outros contextos. Uma filosofia do teatro, no sentido mais profundo do termo, é uma filosofia da práxis teatral, um pensamento produzido a partir de uma “razão da práxis”, ou seja, como Mauricio Karton destaca, a partir de uma reflexão sobre o “teatrar” do teatro segundo a própria experiência do teatrar.

251 | Construindo Novos Olhares: a Importância da Formação do Espectador

A Filosofia do Teatro defende que o teatro é um acontecimento convivial/poético/espectatorial (segundo a síntese do “teatro-matriz”, patrimônio cultural da humanidade: convívio + poiesis + expectação). Portanto, esse acontecimento precisa ser indagado a partir da singularidade do próprio acontecer, e o que acontece não pode ser pensado a partir de uma lógica que seja alheia às coordenadas impostas pelo acontecimento. Ab esse ad posse [se é, pode ser] – do ser (acontecimento teatral) ao poder ser (a teoria teatral), nunca ao contrário. São prioridades, portanto, os percursos indutivos de investigação (passagem de uma observação empírica à elaboração de uma lei empírica, e desta à elaboração de uma lei abstrata), o exame crítico, a revisão e o questionamento dos percursos dedutivos que partem de um saber a priori. O que não acontece não pode ser pensado.

2 - A convite do CLT, Jorge Dubatti publica neste artigo um fragmento do livro Hacia un espectador compañero. Praxis de las Escuelas de Espectadores 2001-2016 (ainda não publicado).

Teatro e Formação de Espectadores | 252

Buscamos uma razão prática³. O que acontece no teatro acontece apenas no teatro, na construção de sua zona única de experiência e subjetivação. Entender o teatro requer, consequentemente, condições específicas de produção de conhecimento e validação, que surgem e são demandadas pelo próprio acontecimento. São necessárias, assim, uma epistemologia, uma teoria e uma metodologia que atendam a essas necessidades. Uma epistemologia das Ciências do Teatro que esteja vinculada, em muitos aspectos (mas não em todos), a uma epistemologia das Ciências da Arte, uma vez que, como escreve Jean-Luc Nancy, existem artes (no plural) e não uma única arte que englobe todas. A base empírica e a atitude radicante são fundamentais. Trata-se de perceber e problematizar as particularidades do teatro, não de anulá-las, como lamentavelmente propõem alguns estudiosos de teatro.

253 | Construindo Novos Olhares: a Importância da Formação do Espectador

O teatro é um acontecimento territorial, o que faz com que o pensar teatral assuma uma atitude radicante. Aqui, nos apropriamos livremente do sentido que Nicolas Bourriaud (2009)4 dá ao termo ‘radicante’. O estudo consiste não em aplicar a priori um princípio radical ao estudado, mas em reconhecer um território, seus detalhes, seus acidentes, suas rugosidades e irregularidades a partir de um descobrimento radicante de sua territorialidade.

3 - Opomos uma Razão Prática (vinculada à observação do acontecimento, do que acontece na práxis) a uma Razão Lógica (que encontra seu fundamento na coerência pura abstrata, não necessariamente conectada aos fatos observados) e a uma Razão Bibliográfica (aquela que, de acordo com um critério de autoridade, magister dixit, se sustenta no fato de que algo que foi escrito/publicado pode ser tomado como verdade confiável). Em nome da razão lógica e da razão bibliográfica grandes disparates sobre o teatro podem ser sustentados ou, o que é pior, o vínculo com o objeto estudado pode ser perdido. Razão prática, razão lógica e razão bibliográfica implicam três concepções e exercícios epistemológicos completamente diferentes.

4 - Dizemos que “nos apropriamos livremente” porque Bourriaud nos “inspira” a pensar uma ferramenta de trabalho que é, ao mesmo tempo, diferente, complementar e herdeira da que ele desenvolve. Devemos “antropofagizar” as teorias para que possamos utilizá-las em uma cartografia diversa. Potestad e direito ao pensamento cartografado é reivindicar a antropofagia teórica a fim de produzir uma nova teoria territorializada.

Teatro e Formação de Espectadores | 254

Existe atualmente uma nova cartografia mundial da divisão do trabalho em Teatrologia que já não aceita uma língua comum e universal, tampouco um Messias teórico, e sim trabalhos territoriais, radicantes, que partem do particular. A posteriori, existem o intercâmbio e a apropriação local de saberes e conhecimentos trocados. Surge daí a importância dos encontros entre artistas e teóricos: congressos, colóquios, espaços de diálogo e troca. Diálogo de cartografias. Precisamos estudar territorialmente para depois transmitir, trocar, dialogar com outros estudos territoriais; para, enfim, poder obter visões maiores, visões do conjunto, que somente podem surgir a partir do conhecimento do teatro concreto e particular. Em suma, nos interessa pensar que vivemos em uma época de pensamento cartografado: não podemos pensar no Todo se não pensamos em territorialidade, em tendências, conexões entre fenômenos particulares que nos permitam desenhar uma cartografia radicante. Nosso trabalho nas universidades de arte se fundamenta aí.

255 | Construindo Novos Olhares: a Importância da Formação do Espectador

Essa filosofia da práxis teatral é um pensamento cartografado na realidade da Escola de Espectadores de Buenos Aires (EEBA). Os depoimentos reunidos no Apêndice5 buscam gerar um diálogo de cartografias a partir das diferentes experiências das escolas que se definem em sua territorialidade: Mar del Plata, México DF, Lima, Montevidéu, La Paz, as prisões de Ezeiza ou Devoto, na Argentina, etc. Nenhuma é igual à outra e a questão é promover o diálogo sobre seus vínculos, contrastes e divergências.

A práxis teatral não inclui apenas a criação de mundos poéticos por meio da dramaturgia, da direção, da atuação, da iluminação, etc.; implica também espectar esses mundos, cocriá-los a partir do exercício do espectador como parte inseparável da função ontológica do acontecimento teatral. Ser espectador é práxis teatral, o que faz com que pensar a espectação seja uma filosofia da práxis teatral. Entre a complexidade do teatrar, uma das dimensões menos estudadas é a dinâmica do espectador, que é, muitas vezes, imprevisível e surpreendente.

5 - O apêndice citado se encontra no livro Hacia un espectador compañero. Praxis de las Escuelas de Espectadores 2001-2016 (ainda não publicado).

Teatro e Formação de Espectadores | 256

A partir de uma perspectiva lógica, poderíamos construir a priori um sujeito espectador ideal, um modelo consistente e rigoroso que não entre em contradição com os embasamentos científicos racionalistas. No entanto, esse modelo daria conta das dinâmicas do espectador real e histórico, em sua encruzilhada territorial e temporal? Ele alcançaria a contundência do indivíduo que se senta no teatro e cria/participa da zona de experiência convivial do acontecimento, a partir da peculiaridade de seu comportamento? Ele mediria a contundência dos indivíduos que constroem uma pluralidade de zonas de subjetivação dentro do mesmo acontecimento, se apropriando dele? Se seguíssemos a abordagem da Filosofia Analítica, nosso interesse não se voltaria tanto para “o” espectador como “este” espectador, “estes” espectadores que assumem condutas únicas, imprevisíveis e que desafiam a previsibilidade da lógica racionalista.

257 | Construindo Novos Olhares: a Importância da Formação do Espectador

É justamente com esse/esses espectadores reais, concretos, particulares (“indivíduos”, segundo P. F. Strawson) que trabalhamos desde 2001, no marco da EEBA. Ao longo de 17 anos de trabalho ininterruptos, a EEBA foi se transformando em um espaço de (auto) observação dos comportamentos dos espectadores histórico-reais; na plataforma de uma “Filosofia da Práxis Espectatorial”. Um espaço aberto ao estudo dos casos para, a partir do empírico, chegar ao desenho de formulações teóricas. Este texto é um exercício da Filosofia do Teatro: propusemo-nos a pensar em algumas questões vinculadas às práticas dos espectadores que frequentam a Escola, que observamos empiricamente e, a partir daí, analisamos, sem esquecer sua origem empírica. Estas são nossas primeiras reflexões, resultado de nossa práxis de diretor-docente da EEBA durante 17 anos.

Teatro e Formação de Espectadores | 258

O lugar do espectador na zona convivial

Assistimos, nos últimos anos, à reconsideração do teatro como acontecimento. Não se trata apenas de um acontecimento de linguagem e comunicação. A base do acontecimento teatral está na estrutura ancestral da reunião, no convívio, no fenômeno humano da cultura vivente, no qual uma zona singular de experiência(s) e subjetividade(s) coletiva(s) é gerada. Em uma encruzilhada de espaço e tempo, se reúnem no teatro os artistas, os técnicos e os espectadores. Se os espectadores mudam, muda o convívio e, consequentemente, muda o acontecimento. A relevância do espectador no convívio levou Eduardo Pavlovsky a imaginar essa situação em sua obra Camelo sem óculos6, que, ainda que ionesquiana e absurda, é bastante reveladora:

259 | Construindo Novos Olhares: a Importância da Formação do Espectador

O DELEGADO: As outras pessoas do público não estão escutando. (Pausa. Com a voz forte) Eu sou o representante do público todo. (Levanta-se e senta-se)

O ORADOR: (Levemente confuso) O senhor é o representante? O representante do público?

O DELEGADO: (Levanta-se) Fui nomeado há dois dias em votação democrática no Sindicato do Público de Teatro. Ou o senhor não sabe que nós também temos nosso sindicato? (Senta-se)

O ORADOR: (Completamente confuso) Sindicato? Representante do público?

O DELEGADO: Sim, eu sou o delegado. Ganhei, em eleições democráticas, o direito de representar o público em todos os teatros da cidade. Tenho direito (Mostra um regulamento) de acordo com nosso artigo 142 inciso 8 de interromper a obra quando eu quiser e quantas vezes eu quiser. (Guarda o regulamento. Com a voz forte.) Um direito social. O público teatral também conquistou o direito de ter um representante, seu delegado. (Pausa) Por quê? Não gostou?

O ORADOR: (Muito nervoso) Não, não. Digo. Sim, sim, claro! Está certo. Claro. Direitos sociais7.

6 - Do original: Camello sin anteojos. Tradução nossa.

7 - Teatro completo VII: Hombres, imágenes y muñecos, Camello sin anteojos, Circus-loquio (con Elena Antonietto), Dirección contraria, Buenos Aires: Ed. Atuel, 2010, pp. 35-36.

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Ninguém vai ao teatro para estar sozinho. O encontro teatral consiste em viver com os outros, sentir, olhar, emocionar-se, interagir, discutir com os demais. É uma reunião de corpo presente, aurática, territorial e efêmera, que não permite intermediação tecnológica pela televisão, pelo rádio, pelo cinema, pelas redes digitais ou qualquer outro mecanismo que permita a anulação do corpo presente. Analisamos as relações entre convívio e tecnovívio. O convívio é necessário e imprescindível no acontecimento teatral, já o tecnovívio é apenas contingente. Se o convívio desaparece, produz-se uma mudança de paradigma, que demanda outro mapa conceitual. É impossível tirar do teatro a presença dos corpos vivos do artista, dos técnicos e do espectador. O teatro não se deixa enlatar nem capturar por máquinas, da mesma maneira que o tempo não pode ser contido. Essa singularidade do teatro (que definimos como teatro-matriz) faz com que ele seja único e um dos tesouros culturais mais maravilhosos da humanidade.

261 | Construindo Novos Olhares: a Importância da Formação do Espectador

Sem espectadores não há teatro. De mãos dadas com a Semiótica e a Teoria da Recepção, assistimos a uma valorização da presença e do papel do espectador no acontecimento teatral. O espectador é um cocriador. Alfredo Alcón, a partir de uma razão da práxis sustentada por uma vasta experiência como ator, afirma, em um diálogo na EEBA:

A palavra ‘teatro’ se origina do grego (théatron) e pode ser traduzida como ‘observatório’. No entanto, o espectador não se limita a “observar”, nem se resigna na suposta passividade da contemplação. Tampouco se admite que ele não possui a força e o talento necessários para entrar em cena. Marco de Marinis (Em busca do ator e do espectador. Compreender o teatro II) concorda com Alcón:

O teatro se faz entre os que estão abaixo e os que estão acima do cenário. Se a pipa voa, se a comunhão é produzida, é porque isso foi feito a dois. O ator não pode fazê-lo sozinho sem o público.

O espectador não é um ator fracassado e sim um dos protagonistas da relação teatral, da mesma maneira que, evidentemente, o leitor não pode ser considerado como um escritor fracassado.

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Felizmente, o espectador se converteu em um lugar por excelência para repensar e redefinir o teatro. Hoje, o espectador pode ser um laboratório de (auto)percepção teatral. Daí surge a importância do trabalho com os espectadores histórico-reais e a necessidade de se criarem escolas.

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Espectadores histórico-reais, explícitos, abstratos e voluntários

Em nosso trabalho na direção da EEBA, distinguimos ao menos quatro tipos de espectadores. Um histórico-real, que possui suas características particulares (sua história, sua personalidade, sua relação com o teatro, sua ideologia e sua subjetividade, sua memória, seu desejo e seus sonhos, seu pertencimento de classe, seus gostos, suas emoções mutáveis, sua educação, seu vínculo com a sexualidade e com as práticas de gênero, suas circunstâncias, etc.). É a esse indivíduo que a Filosofia Analítica se refere. Um espectador impossível de capturar, imprevisível, repleto de arestas, contraditório, sempre desviante ou francamente deslocado do que a convenção espera. Um espectador que permite apenas uma aproximação parcial, fragmentada e sempre relativa. Nunca saberemos completamente o que ele faz com os espetáculos. É aquele que assiste aos acontecimentos teatrais e se incorpora como um aluno escolar. Nos termos do Teatro Comparado e da Poética Comparada, esse conceito de espectador histórico-real possui um correspondente na noção de micropoética: é o “microespectador”, o indivíduo. As dinâmicas e observações sobre a relação desse espectador histórico-real com o acontecimento podem ser pensadas como uma micropoética. Cada espectador constrói sua micropoética única e cada espectador é, em cada evento teatral, uma nova micropoética. A possibilidade de agrupar esses espectadores em conjuntos (por exemplo, o conjunto ou grupo de espectadores que frequentam a EEBA) é correlata à noção comparatista da macropoética: espectador/indivíduo, grupo de espectadores/conjunto de indivíduos.

Teatro e Formação de Espectadores | 264

Em segundo lugar, vemos um espectador imaginado e explicitado pelo(s) artista(s) e outros fazedores da práxis teatral (produtoras, gestores, críticos, agentes culturais, educadores, etc.) a fim de organizar suas práticas e as respectivas consequências, inclusive, negando-o, como o fez Eugène Ionesco:

Um produtor propunha que eu mudasse tudo em minhas peças para deixá-las acessíveis. Eu lhe perguntei com que direito ele vinha intrometer-se nas minhas construções teatrais, que cabiam apenas a mim e ao meu diretor; ora, me parecia que o fato de dar dinheiro para a produção do espetáculo não era razão suficiente para ditar, nem para corrigir minha obra. Ele declarou que representava o público. Eu respondi que nós tínhamos, exatamente, que lutar contra o público, melhor dizendo, contra ele, o produtor. Lutar contra ele, ou não levá-lo em consideração. (IONESCO, Eugène. Notas e contra notas).

265 | Construindo Novos Olhares: a Importância da Formação do Espectador

Esses desenhos de espectadores explícitos respondem a diferentes concepções teatrais. Eles fazem parte das poéticas trabalhadas que, inclusive, podem ser opostas, como é possível depreender a partir da confrontação das seguintes observações de Federico García Lorca e Manuel Gálvez:

Eu espero para o teatro a chegada da luz de cima, sempre, do paraíso. Quando os de cima chegarem à plateia tudo estará resolvido. Existem milhões de homens que nunca viram teatro. Ah! Como sabem vê-lo quando o veem!”. (Garcia Lorca)

Éramos aristarcos. Ou acreditávamos sê-lo. Condenávamos os que, como García Velloso, escreviam para o grande público. Mas García Velloso se rebaixava ao mau gosto popular – ou “se elevava” porque o público ralé vai ao paraíso – por motivos de doutrina, se ousamos dizê-lo. Ele acreditava que com os atores e públicos do seu tempo – ou seja, os atores e público do teatro vernáculo – não era possível fazer literatura de boa qualidade. Parecia-lhe necessário ir formando lentamente os intérpretes e ir educando a sensibilidade e o gosto do público. (Manuel Gálvez)

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Esses espectadores imaginados e explícitos não precisam, necessariamente, coincidir (e, em geral, não coincidem) com os espectadores histórico-reais que assistem aos espetáculos de Lorca e de Gálvez. Mas não só os artistas constroem espectadores explícitos: os próprios espectadores também o fazem. Na EEBA, escutamos, o tempo todo, alunos desenhando espectadores imaginários, seja para pensar em suas práticas, ou para especular sobre possíveis exercícios de espectação. Frequentemente os ouvimos falar do espectador de Ibsen, ou do espectador reclamado por Pina Bausch, ou de como eles imaginam ser o espectador do teatro comercial.

267 | Construindo Novos Olhares: a Importância da Formação do Espectador

Em terceiro lugar, está um espectador abstrato. Um modelo ideal que surge de uma construção intelectual dos teatrólogos. Autossuficiente, consciente, rigoroso, fundamentado, dotado de previsibilidade, desprendido de uma relação direta com os casos particulares, como muitos dos que foram desenhados pela Teoria da Recepção Teatral em sua vertente interna da Semiótica do Teatro – por exemplo, o “espectador emancipado”, de Jacques Rancière. O correlato a esse espectador abstrato, no plano da Poética Comparada, é a poética abstrata ou arquipoética. Essas construções teóricas dos espectadores, tal como observamos anteriormente em relação aos imaginados ou explícitos, não coincidem necessariamente (e normalmente não coincidem) com os espectadores histórico-reais que assistem aos espetáculos. Esses são muitíssimo mais complexos e heterodoxos, produto de misturas contrastantes, repletos de variáveis e em permanente metamorfose.

Teatro e Formação de Espectadores | 268

Por fim, falamos de um espectador “voluntário” ou implícito, que é desenhado idealmente pelo espetáculo e correlato à noção de espectador-modelo de Umberto Eco (Lector in fabula). Que espectador voluntário ou implícito essa obra desenha? Ou seja, que modelo de espectador é demandado por ela como máquina inteligente, que vai além do que pensam os artistas?

Dadas essas quatro diferenças, cabe a pergunta que se refere à presença real nas Escolas de Espectadores: quem é o espectador histórico-real que se senta na sala onde se reúne a escola? É difícil responder a essa pergunta, que se caracteriza por sua inacessibilidade. As pesquisas sociossemióticas, os estudos de mercado e o conhecimento alcançado pela experiência no campo teatral ao longo dos anos não dão conta de revelar o mistério do funcionamento do público como soma de espectadores histórico-reais. Alfredo Alcón refletiu sobre os espectadores na reunião da EEBA:

269 | Construindo Novos Olhares: a Importância da Formação do Espectador

Há dias em que você tem a impressão de que não sabe por que eles foram ao teatro essa noite. Parece que, em algumas apresentações, se reúnem todos os que não gostam de jogar. Há dias que o público está pintado. Costumamos dizer: ‘São de (Saulo) Benavente’, ou seja, estão desenhados, fazem parte do cenário.

E completou:

Quando o público está assim, tenho a fantasia de ir para o proscênio e, com uma gilete, cortar as minhas veias. Tenho certeza de que eles continuariam impávidos. Não há o que fazer nessas noites... Assim como há dias em que o público ri de qualquer palhaçada. Essa comunhão é muito difícil.

Teatro e Formação de Espectadores | 270

Porém, talvez o maior mistério esteja no que acontece no seu íntimo: como ele pensa os espetáculos, o que o estimula, se ele se deixa conduzir pelo que é proposto na obra, por que ele se entedia, por que ri, do que se lembra e o que ele faz com os espetáculos quando eles terminam. Alcón chamava essa experiência interna de “viagem do espectador”. August Strindberg demonstrou sua preocupação com a imprevisibilidade do público no prólogo de A senhorita Júlia, em 1888:

Na vida real, um acontecimento – ou seja, relativamente um descobrimento! – resulta, geralmente, de uma série de motivos mais ou menos profundos; mas o espectador escolhe, na maioria dos casos, aquele que sua mente assimila com maior facilidade ou o que enaltece sua capacidade de discernimento. Alguém se suicida: Problemas com os negócios! - fala o burguês. Desgraça amorosa! - dizem as mulheres. Doença! - fala o enfermo. Esperanças frustradas! - diz o fracassado. E pode ser que o motivo realmente esteja em todas as partes, ou em nenhuma, e que o morto tenha ocultado o motivo que fundamenta sua ação, destacando qualquer outro que embeleze consideravelmente a sua memória!

271 | Construindo Novos Olhares: a Importância da Formação do Espectador

Precocemente, Strindberg descarta a possibilidade de guiar o espectador em uma única direção de estímulo. Cada um está fazendo a própria viagem, diria Alcón. O espectador faz o que quer (em matéria de subjetividade) e o que pode (em matéria de formação) com os espetáculos.

Editorial | 272

galPÃO EMFOCO

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galPÃO EMFOCO

eduardo Moreira e inês Peixoto ¹ (BeLo HoriZonte/MG)

O galPÃO E O PúblICO: a PROMISCUIDaDE, a CONvIvêNCIa E a

FORMaÇÃO DE UMa ESTéTICa.

galPÃO EM MOMENTOS DE ‘TRaNS’FORMaÇÃO

1 - Eduardo Moreira (MG) é ator, dramaturgo e diretor

teatral. Cofundador e integrante do Grupo Galpão.

Inês Peixoto (MG) é atriz e diretora teatral. É integrante

do Grupo Galpão desde 1992.

Galpão em Foco | 276

O GALPÃO E O PÚBLICO: A PROMISCUIDADE, A CONVIVÊNCIA E A FORMAÇÃO DE UMA ESTÉTICA

O teatro do Galpão se formou e foi gerado na maior promiscuidade possível com o público. Não havia nenhum tipo de isolamento ou de barreira. Tudo era literalmente criado e apresentado em espaços externos e sem qualquer separação em relação ao público que por ali circulasse. Isso desde a oficina dos alemães do Teatro Livre de Munique, em Diamantina, que gerou o embrião de criação do grupo em 1981. Foi nas ruas dessa cidade histórica de Minas Gerais que criamos uma cena de rua que era uma espécie de auto medieval. Todos os ensaios eram feitos em espaços públicos, no meio da rua ou em pátios de escolas, com a constante intervenção das pessoas que por ali transitavam e assistiam.

277 | O Galpão e o Público: a Promiscuidade, a Convivência e a Formação de uma Estética / Galpão em Momentos de ‘Trans’formação

Posteriormente, já em nosso primeiro espetáculo como Grupo Galpão, E a noiva não quer casar…, seguimos com a mesma característica. Todos os ensaios foram feitos no pátio externo da residência estudantil do Borges da Costa, no campus da Escola de Medicina da UFMG, sempre contando com a presença e a intervenção dos que ali viviam e que nos assistiam.

Como boa parte de tudo que aconteceu com o Galpão, essa característica se deu menos por uma escolha do que por uma falta de opção. A falta de uma sede própria e a necessidade de ocupar os espaços disponíveis possíveis nos forçavam a estar nos lugares mais improváveis do teatro, seja em nossos ensaios, seja em nossas apresentações.

Galpão em Foco | 278

Ensaios de espetáculos como Ó pra cê vê na ponta do pé…, A comédia da esposa muda e Corra enquanto é tempo, por exemplo, foram todos feitos em meio às atividades de professores com as crianças na creche da Escola de Arquitetura da UFMG. Lembro-me ainda dos ensaios finais, no último mês antes da estreia de Corra enquanto é tempo, que eram feitos no salão do D.A. da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - Fafich, que ficava ao lado do bar da escola. Como o único banheiro disponível para os frequentadores do bar era no fundo do salão, nossas cenas contavam sempre com a presença de um beberrão apertado para ir ao banheiro, que atravessava apressado o espaço da representação.

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Essa promiscuidade com o público, forçada por nossa precariedade de estrutura, especialmente nos primeiros tempos, denominados internamente como “os anos heroicos”, acabou moldando uma forma de fazer teatro que sempre esteve e continua misturada, de forma indelével, com a presença e a participação do público.

Foi em 1989, sete anos depois de nossa fundação, que, depois de uma longa temporada por festivais na França e na Itália, conseguimos voltar para o Brasil com um montante de dólares que, finalmente, nos permitiu comprar nossa sede na Rua Pitangui, 3.413. A aquisição foi um marco para a organização do nosso trabalho. A partir daí, não tínhamos mais que perambular por espaços emprestados, improvisados, sem autonomia de horário e dispúnhamos de um lugar não só para ensaiar, mas também para guardar cenários, figurinos e objetos de cena.

281 | O Galpão e o Público: a Promiscuidade, a Convivência e a Formação de uma Estética / Galpão em Momentos de ‘Trans’formação

O espaço próprio deu-nos a intimidade e a privacidade necessárias à criação. Não é à toa que a aquisição do espaço coincide com o mergulho num processo radical de trabalho ao longo de nove meses, que gerou a adaptação de Álbum de família, de Nelson Rodrigues, com direção de Eid Ribeiro.

O espetáculo foi, sem dúvida, um dos pontos de ruptura mais significativos na história do Galpão. Foi ali que se processou um desvio de rota, em que os atores do grupo, tanto na forma como no conteúdo, se voltaram para um processo que privilegiava a precisão de detalhes e a criação elaborada de personagens muito mais relacionada com o teatro de palco em contraposição a uma interpretação mais expandida e tipológica do teatro feito em espaços abertos. A leitura expressionista da obra de Nelson, sob a batuta de Eid, foi nossa primeira incursão no gênero trágico, numa narrativa que se rendia abertamente à quarta parede, sem nenhuma relação direta com o público.

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Logo em seguida, o grupo voltaria à rua, só que de forma bem diferenciada. A parceria com Gabriel Villela em Romeu e Julieta e A Rua da Amargura levaria a teatralidade e a encenação ao paroxismo, em que o ato teatral se transformava, sobretudo, num theatron, numa grande encenação para ser vista e admirada. A estrutura do espetáculo teatral invadia as ruas, enchendo os olhos do público com a utilização de estruturas que verticalizavam a cena. A utilização da música tocada ao vivo pelos atores, o recurso da voz amplificada pelos microfones sem fio (que finalmente libertava os atores do esforço vocal que inevitavelmente levava ao grito e à necessidade de suprimir o texto), as luzes, os cenários, os figurinos coloridos, as maquiagens chamativas, tudo contribuía para que o público desfrutasse de uma potência teatral levada às últimas consequências.

283 | O Galpão e o Público: a Promiscuidade, a Convivência e a Formação de uma Estética / Galpão em Momentos de ‘Trans’formação

Além dos dois trabalhos dirigidos por Gabriel Villela, outros espetáculos de rua do grupo que o seguiram, como Um Molière imaginário, Um homem é um homem, Till, a saga de um herói torto, Os gigantes da montanha e De tempo somos seguiram a trilha da encenação como espetáculo. Apresentações eram feitas para até cinco ou seis mil espectadores, desde que a geografia do espaço permitisse. O aparato técnico também nos permitiu contar histórias mais complexas, atingir dramaturgias mais variadas que iam de Shakespeare e Molière até Brecht e Pirandello. O teatro de rua do Galpão arrastava multidões e era impossível conceber uma cena mais restrita ou para um público mais íntimo e reduzido.

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A trilha estética inaugurada com Romeu e Julieta refundou a ideia do teatro de rua no Brasil. Sua difusão e seu sucesso junto a público e crítica geraram também críticas como, por exemplo, a do diretor Amir Haddad que contrapunha a ideia de um “autêntico teatro de rua” em oposição a um “teatro na rua”. Esse “teatro na rua” seria uma estética teatral que simplesmente transferia a estrutura do teatro feito no palco para a rua. A crítica é sedutora e levanta pontos interessantes, mas é limitada e reducionista e, por isso mesmo, não convence. Isso porque não há como negar que, não obstante a espetacularização das montagens do Galpão, a atmosfera do espaço público e a relação direta e transparente com o público heterogêneo da rua sempre foram determinantes na construção e na execução desses espetáculos.

285 | O Galpão e o Público: a Promiscuidade, a Convivência e a Formação de uma Estética / Galpão em Momentos de ‘Trans’formação

Isso pode ser claramente notado, por exemplo, na adaptação de dramaturgias de textos clássicos como Romeu e Julieta, de Shakespeare, e Um doente imaginário, de Molière, e, ainda mais radicalmente, em Os gigantes da montanha, de Pirandello, e Um homem é um homem, de Brecht. Trazer essas dramaturgias tão elaboradas para o público heterogêneo da rua requer um trabalho sistemático, que precisa levar em conta a multiplicidade de leituras. Nesse sentido, um espetáculo não deve restringir as interpretações, mas, sim, ampliá-las. A rua acaba sendo um laboratório privilegiado para isso, uma vez que lá estão os públicos mais variados e ecléticos, das mais diferentes camadas sociais, culturais e cronológicas. O encontro com esses públicos tão distintos atuou de forma marcante nas adaptações dessas dramaturgias tão variadas.

Galpão em Foco | 286

A construção dessa narrativa, fruto da adaptação dessas dramaturgias, no caso do Galpão, foi sempre levada a cabo junto com o próprio público. O exemplo mais notório se deu no processo de construção de Romeu e Julieta, quando o grupo se mudou com toda a estrutura da montagem para o pequeno arraial de Morro Vermelho, distrito de Caeté (MG). Os ensaios, que eram realizados na praça de chão batido em frente à igreja, eram acompanhados pelos trabalhadores rurais e as crianças e os velhos da pequena comunidade. As reações e os comentários do público foram fundamentais para que fizéssemos escolhas e tomássemos decisões importantes para a escolha de figurinos, opções de cortes de texto e a interpretação dos personagens.

287 | O Galpão e o Público: a Promiscuidade, a Convivência e a Formação de uma Estética / Galpão em Momentos de ‘Trans’formação

Outro exemplo de relação direta e radical com o público se deu no processo que redundou na escolha do texto Till, de Luis Alberto de Abreu, para a nossa adaptação de rua em Till, a saga de um herói torto. Decididos a fazer um processo de direção interna, mas sem ter certeza sobre que peça escolher, montamos quatro workshops de textos que foram apresentados ao público. Na ocasião, os espectadores não só comentavam os trabalhos apresentados como, também, votavam sobre qual peça seria mais conveniente para um próximo espetáculo do grupo.

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Mesmo nosso último espetáculo, Nós, com direção de Marcio Abreu, em 2015, que foi apontado pela crítica e pelo público como uma mudança de rota na trajetória do grupo, é um trabalho que tem como pilar central a convivência com o público. A cena todo o tempo abraça os espectadores, convidando-os a vivenciar o ato teatral, inclusive com o compartilhamento de uma sopa e um baile catártico no final.

Essa relação tão íntima com o público, que moldou a estética e a forma de operar do nosso teatro, também foi marcante para criar uma descendência de grupos e artistas mais jovens que nasceram e firmaram suas opções a partir da experiência e dos encontros com o Galpão. Como o grupo viaja com frequência, apresentando seu repertório continuamente por várias capitais e cidades do interior há muitos anos, o Galpão criou um público cativo que vem acompanhando sua trajetória através desses vários espetáculos. São inúmeros os depoimentos de jovens artistas que decidiram abraçar o teatro após assistirem às apresentações e terem contato com as oficinas ministradas pelo Galpão.

289 | O Galpão e o Público: a Promiscuidade, a Convivência e a Formação de uma Estética / Galpão em Momentos de ‘Trans’formação

O alimento desses inúmeros encontros tem sido fundamental também para a vitalidade artística do próprio grupo. Trocar experiências, conhecer outras realidades, transmitir um legado de trinta e cinco anos de trabalho ininterrupto tem sido uma chave para a sobrevivência e a longevidade do projeto artístico do Galpão. Pensar o teatro como um bem comum, com um pertencimento a uma e várias comunidades foi e continua sendo um dos bens mais caros na nossa longa trajetória artística.

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GALPÃO EM MOMENTOS DE ‘TRANS’FORMAÇÃO

Inês Peixoto

Fomos convidados pelo Marcos Coletta para escrever na Revista Subtexto sobre “formação de público”, ato constante e fundante da nossa trajetória nestes 35 anos de estrada, teatros e praças. Pensando sobre a palavra “formação”, nos ocorreu a ideia de também contar algumas histórias de “transformação” nas quais o Grupo Galpão desempenhou um papel decisivo. Percorrendo este nosso Brasil de norte a sul e de leste a oeste, vira e mexe encontramos pessoas que nos relatam que se jogaram nas artes cênicas inspiradas pela experiência do Galpão. Grande responsabilidade! Mas é a pura verdade e, quando nos deparamos com esses relatos, nossa emoção é grande. Garimpando algumas histórias e deixando muitas ainda por contar, lembramos aqui três encontros em que o Galpão virou bússola, um norte para escolhas e mudanças corajosas. Momentos em que provocamos a transformação da potência em ato.

293 | O Galpão e o Público: a Promiscuidade, a Convivência e a Formação de uma Estética / Galpão em Momentos de ‘Trans’formação

ADALBERTO LIMA

Foi em 1998, numa tarde de sol. Soou a campainha do Galpão. Paramos tudo e abrimos a porta. Era ele. Disse que estava em viagem por Belo Horizonte, e que tinha ido até a sede do Grupo Galpão para tirar uma foto com os atores e conhecer nosso espaço. Guardo até hoje na memória que estávamos concentrados numa preparação de workshops para o processo de montagem do espetáculo Partido. Queríamos colocar de pé um enorme carrossel de papel craft com desenhos de cavalos feitos com carvão. Um mergulho profundo na obra de Italo Calvino. Entrou. Sorriso manso, óculos arredondados e uma aparente timidez. Tomou café e falou da admiração por nosso trabalho. Depois disso nasceu uma história de amizade e admiração mútuas. Uma história de amor ao teatro que já tinha começado quando Adalberto nos assistiu no Parque da Independência, no verão de 1993, estreia de Romeu e Julieta em São Paulo. Ele, naquela época, contabilista em uma multinacional francesa do ramo automobilístico no interior de São Paulo, tinha duas paixões que ficavam em segundo plano: a fotografia e o teatro. Ou seriam o teatro e a fotografia? E foi através da fotografia que ele foi se aproximando do Galpão.

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Depois dessa visita, Adalberto começou a fotografar todos os espetáculos do grupo. E, como se não bastasse a arte do seu olhar portrait afeito às lentes com o foco quase sempre fechado no rosto dos atores, passou a nos presentear com os registros. Fotos guardadas em caixinhas construídas artesanalmente, decoradas com miniaturas de elementos dos espetáculos. Tudo feito pelo Adalberto “artesão”. Temos uma coleção invejável de caixas mágicas repletas de fotografias com o olhar de Adalberto sobre nossa trajetória. O registro de todos os personagens, dos atores e de toda a nossa equipe em nossas estreias e turnês. Todos merecedores do seu click.

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E, assim, ele foi se profissionalizando na arte de fotografar espetáculos. Ao construir com tanta maestria as caixas para as fotos, foi desenvolvendo um olhar para a cena. Criou coragem, pediu demissão e matriculou-se na SP Escola de Teatro. Formou-se diretor. Faz parte do Coletivo Circo Teatro da Ilusão, grupo que fundou com Mônica Nassif (da Cia. Circo Branco), Sueli Andrade (que trabalha com os grupos Doutores da Alegria e Grupo Sobrevento) e Nilce Xavier (atualmente em Londres). Nesse coletivo, dirigiu o espetáculo Caravana Hans, em que são narradas, de forma intimista, três histórias de Hans Christian Andersen: A pequena vendedora de fósforos, O valente soldadinho de chumbo e o Rouxinol e o Imperador. No espetáculo, seus pequenos objetos esculpidos são utilizados em cena, repletos de delicadeza. Entrou definitivamente para o mundo do teatro.

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Hoje, Adalberto Lima fotografa “sistemática e compulsivamente” os grupos que se tornaram suas paixões: Grupo Galpão, Lume Teatro, Piollin Grupo de Teatro, Grupo XIX, Grupo Macunaíma (CPT), Cia. Circo Branco, Cia. Teatro Balagan e Clowns de Shakespeare.

Não existem mais estreias sem a presença de Adalberto. Muitas vezes somos surpreendidos por ele em nossas turnês, mesmo fora do estado de São Paulo. Ele pega a estrada para nos encontrar. A entrega ao teatro o fez mais feliz. Sorte a nossa!

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RICARDO AUGUSTO E UMA TRUPE DE ITUIUTABA

Fiquei sabendo da história do Ricardo Augusto, integrante da Trupe de Truões, de Uberlândia (MG), pela Kátia Bizinotto, atriz do Grupontapé, também de Uberlândia. Liguei para ele pedindo para saber os detalhes do seu encontro com o Galpão e, naquela hora, ele estava embarcando para a África do Sul e não conseguimos conversar. Ele estava viajando para apresentar o espetáculo infantojuvenil Zapato busca Sapato, criação da Trupe de Truões em parceria com o grupo mexicano La Maquina de Teatro. Dez dias depois ele me enviou esse relato que transcrevo abaixo. Fiquei tão emocionada que resolvi deixar do jeito que ele contou, na cadência da emoção que ele sentiu ao relembrar tudo isso, acontecido entre 2001 e 2002.

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“Eu nasci em Ituiutaba e comecei a fazer teatro aos quatorze anos, na Escola de Teatro Vianinha. Quem fazia a gestão da escola era o Grupo Meca, que tinha como estrutura um teatro de grupo, em que as pessoas se revezavam em muitas funções, faziam várias coisas para fazer o teatro acontecer em uma cidade do interior. Quando eu cheguei na Escola de Teatro Vianinha o grupo já tinha mais de vinte anos, e aí eu fiquei dos quatorze aos dezesseis anos participando de uma turma de iniciação teatral. Aos dezesseis, já havia um número de alunos que estavam há dois anos fazendo teatro, e a gente optou naquele momento, junto com a coordenação da escola, por ter uma turma avançada. Definimos alguns temas que a gente gostaria de estudar, entre eles perfomances, uns teóricos de teatro, e o Getúlio e a Michele, que eram os nossos professores naquele período, acharam importante também que a gente estudasse sobre teatro brasileiro. E aí, o grupo que representava essa ideologia de “teatro de grupo”, ou que representava Minas Gerais naquele momento, era o Grupo Galpão. Nós assistimos a um documentário³ que contava a trajetória do Grupo Galpão e dava um foco especial ao espetáculo Romeu e Julieta. Nós todos que estávamos ali, naquela turma avançada, ficamos fascinados com a história do grupo, com tudo que vocês representavam para Minas Gerais naquele momento, e foi assim que eu ouvi falar do Galpão pela primeira vez. 3 - Grupo Galpão: a História de

um dos mais importantes grupos de teatro do Brasil. Produção de Paulo José. Direção de Kika Lopes e André Amparo.

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Alguns alunos da escola foram convidados para fazer parte das montagens do Grupo Meca, eu tinha por volta de dezessete anos, e ficamos sabendo, lá em Ituiutaba, que vocês viriam apresentar o espetáculo Um Molière Imaginário na programação do “UDI Em Cena”, evento promovido pelo Carlinhos Guimarães. Essa apresentação aconteceu no Center Shopping de Uberlândia. Então, eu e mais quatro amigos decidimos que nós iríamos a Uberlândia pra fazer a oficina com vocês, participar de um bate-papo e assistir ao espetáculo. Nós tínhamos, naquele período, essa turma de cinco pessoas, entre quinze e dezessete anos. Era um período em que nós estávamos decidindo o que faríamos no curso superior, na faculdade, que rumo daríamos para nossas vidas dali em diante. Já tínhamos, nós cinco, um desejo muito grande de trabalhar com teatro, com arte, foi quando ficamos sabendo que vocês viriam fazer essa apresentação aqui. Eis nossa aventura:

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Nós não tínhamos dinheiro para ir a Uberlândia, mas tínhamos muito desejo de vê-los. Fizemos uma campanha com nossas famílias para tentar viabilizar a nossa passagem para lá. Conseguimos, cada um à sua maneira, juntar uma grana que dava para pagar uma passagem para cada e uma grana pra alimentação nesses três dias em que a gente ficaria na cidade. Nós não fomos selecionados para a oficina, acredito também porque éramos muito jovens, mas fomos convidados a estar lá como ouvintes - isto nos estimulou ainda mais. Armamos o seguinte plano: o pai da Dayanne Lacerda, que atualmente trabalha no Galpão Cine-Horto, é policial em Ituiutaba. Ele nos levou até um ponto da Polícia Rodoviária, parou um caminhão que estava carregando carvão e solicitou que ele nos desse uma carona até Uberlândia. Era de noite. Uma viagem que normalmente demora de uma hora e meia a duas horas, nós levamos aproximadamente cinco horas, porque era um caminhão muito pesado e lento. Chegamos a Uberlândia de madrugada e o motorista perguntou onde gostaríamos de ficar. A gente não conhecia a cidade e não tínhamos a menor ideia de como chegar à casa de uma tia da Dayane, onde ficaríamos hospedados e que era próximo do lugar da apresentação. O motorista do caminhão nos deixou num lugar que hoje, vivendo aqui em Uberlândia, sei que é perigosíssimo. Perguntamos para uma travesti onde estávamos e como poderíamos chegar ao endereço da tia da Dayanne, a resposta dela foi que não era um lugar muito distante, mas que ela não recomendava que ficássemos vagando por ali de madrugada e tiramos parte do nosso dinheiro de alimentação pra pagar um táxi.

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Fizemos a oficina como ouvintes, assistimos ao espetáculo e saímos do teatro fascinados. Paramos ao lado de vocês, na banca de produtos do Galpão, e me lembro de nós, numa roda, dizendo que gostaríamos muito de levar algum produto daqueles para continuarmos assistindo, ouvindo, vendo vocês, mas não tínhamos dinheiro para comprar nada. Comentei que eu iria comprar algum CD pra gente levar e que depois resolvíamos a minha passagem de volta para Ituiutaba. Você, Inês, estava ouvindo a nossa conversa, me cutucou no ombro, me entregou um CD e disse: ‘Toma, é um presente do Galpão para vocês’. Ficamos hipnotizados com aquele presente, era um CD duplo com a trilha de dois espetáculos e a última faixa de um deles continha a fala do personagem “Seu Coisinha”, dizendo que queria morrer em um teatro, onde as pessoas pudessem ouvir o espírito dele caminhando pelas tábuas do palco. Aquela mensagem se tornou um hino para nós e fizemos uma espécie de pacto naquele momento: que enfrentaríamos o desejo de viver de teatro, de fazer teatro. Para alguns seria mais fácil, para outros, mais difícil. Hoje, nós cinco, cada um à sua maneira, trabalha com arte. Rafael Medeiros participou da Intrépida Trupe durante muitos anos, fez escola de circo em Belo Horizonte e atualmente vive em Buenos Aires, trabalhando com circo. Dayanne Lacerda fez a escola do Palácio das Artes, depois a da UFMG e trabalha com vocês no Galpão Cine Horto. Juliane Moreno vive no Rio de Janeiro trabalhando com contação de histórias. Willian Araújo trabalha com cinema e teatro em Belo Horizonte. Eu sou integrante da Trupe de Truões em Uberlândia. Aqui na Trupe, não só para mim, mas para todos os integrantes, vocês são uma referência muito forte. Em 2013, viajamos por 37 cidades pelo projeto Palco Giratório e por onde a gente passava ouvíamos falar de vocês. Conseguimos trazer o Chico Pelúcio para um projeto que realizamos, chamado Casa Aberta, no qual ele falou sobre a estrutura de vocês e a gestão de espaços culturais, tendo o Cine Horto como referência para o trabalho que a gente desenvolve em Uberlândia. Continuamos, ainda hoje, bebendo muito do que vocês fizeram e fazem, mesmo que não saibam. Foi pelo meu encontro com vocês que decidi viver de teatro no interior do País e ter o teatro como meu trabalho.

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Criamos o Ponto dos Truões, por meio do programa Pontos de Cultura, que é a nossa sede e desenvolvemos atividades de formação, intercâmbio e criação, além de recebermos temporadas de espetáculos. Muitas vezes, a gente ouviu vocês dizerem que não é fácil viver em grupo, por todas as dificuldades que se encontram nas relações, mas são também essas relações que nos inspiram a continuar, que nos fazem viver a nossa forma de ver o mundo, de ter paciência, de se colocar no lugar do outro, de juntos pensarmos um mundo melhor e possível. E, nesse sentido, vocês são para nós uma grande inspiração, sempre. Muito obrigado por essa oportunidade de poder contar essa história e obrigado principalmente pela trajetória de vocês, que tanto inspiram outras pessoas em seu ofício. Obrigado!”

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FERNANDA SILVA

Nós a conhecemos no 26º Festival de Curitiba, realizado em 2017. Tinha um brilho contagiante de felicidade nos olhos. Pura vida e vontade de ser. E contou como o Galpão era importante para ela. Fazíamos parte da sua história.

Selecionada pela curadoria da Mostra Oficial do Festival, dirigida por Sônia Sobral, arrebatou a todos com a leitura do manifesto Os involuntários da Pátria, de Eduardo Viveiros de Castro. Trepada nos monumentos da cidade, em frente aos palácios do poder público, emocionou a cidade com sua verdade.

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Fernanda Silva conduz há 23 anos o Grupo de Teatro Metáfora, que desde 2005 mantém o Galpão Teatro Metáfora como espaço de resistência em Parnaíba, litoral do Piauí. Tentamos descobrir o contato de Fernanda e soubemos que ela tinha perdido o celular em sua turnê pelo Sudeste do Brasil, e até hoje não conseguiu comprar outro. Não tínhamos como falar com ela. Com a ajuda de Rafael Lucas Bacelar conseguimos enviar um recado por um amigo. E, assim, fomos presenteados com este relato por e-mail, relato que nos emociona muito.

Nas palavras de Sônia Sobral: “Essa transexual, que mata um leão por dia para não morrer, é atenta, porosa e não omite. Quando visualizei Fernanda lendo a aula de Viveiros num púlpito, elevando citações de momentos contundentes na construção e descontração desse país, propus isso e ela aceitou, emocionada”.

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“Prezada Inês, infelizmente tenho a impressão de que perdemos o prazo para publicação do meu ‘depoimento’, mas estou-sou tão emocionada com a nossa ‘comunicação’ que vou escrever muito despretensiosamente, aqui, não apenas o que sinto e guardo na memória sobre eu um dia ter estado na plateia de Um Molière Imaginário aqui em Parnaíba, em 2007, mas como eu me sinto atravessada com a existência do Galpão como uma inspiração em minha vida. Eu inicio a minha carreira artística dentro de um projeto de montagens sistemáticas que ocorria neste meu torrão natal, Parnaíba, no litoral do Estado do Piauí, chamado VIA-SACRA, e que consistia em transpor para a linguagem do teatro e ao ar livre os últimos passos do filho de Deus na tradição judaico-cristã. Nossa! Uma verdadeira comoção coletiva tomava conta de toda a cidade. E é nessa atmosfera, em 1992, que tudo se inicia. Eu em minha plena adolescência e o País vivendo o seu colapso na novíssima república com o impedimento do então presidente Collor, nos anos seguintes eu não deixei de fazer teatro e... logo, logo eu passaria a ouvir falar de um tal de Grupo Galpão, que havia alcançado uma espécie de grande glória ao ir se apresentar no Globe

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Theatre, em Londres. Eu nem consigo lembrar como a notícia alcançou-me. Se num jornal impresso com grande foto de primeira página chegou às minhas mãos, se em algum momento eu assistia à televisão e vi uma reportagem ou se foi mesmo no boca-a-boca que em meus ouvidos entraram as primeiras descrições das grandes façanhas de uma troupe de teatro de rua que, sim, tinha chegado lá. Misturando a palhaçaria, o cancioneiro popular, a estética de uma potente precariedade e a ancestralidade da arte das ruas com Shakespeare e uma pulsão de vida que amalgamou tudo com um profundo senso de humanidade. Tudo isso que eu ouvia do Grupo Galpão me enchia, e ainda me enche, de esperança, de coragem...de vontade de nunca desistir. Anos depois eu pude, pela televisão assistir à A Rua da Amargura e fui ficando mais fã, mais contagiada com o jeito simples, mas profundo, de realizar a cena, de estar em cena, de tornar o corpo a cena. Em 2002, dois amigos meus e eu partimos de mochila para Porto Alegre com o objetivo de chegar no início de janeiro do ano seguinte ao I Fórum Social Mundial e, neste percurso, chegamos ao Rio de Janeiro em um período em que o Galpão realizava uma turnê na capital carioca e

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recebemos entradas de um amigo para assistirmos a A Rua da Amargura. Ao final nos metemos no camarim e nos apresentamos e fomos tão bem recebidos! Eduardo Moreira nos presenteou com o livro dos 15 anos e dois discos compactos digitais contendo espetáculos. O livro foi autografado por vários membros do elenco que iam aos poucos deixando o camarim. Naquele momento eu só pensava o tempo todo sobre as grandes maravilhas dos deuses de todas as artes que podem nos reservar pequenos momentos como esses que nos preenchem de uma profunda fé no ser humano, de uma profunda fé na arte. Eu me emociono muito em ter sido presenteada - engraçado, que até esse momento eu ainda estava vivendo em uma espécie de carcaça, pois ainda estava me sentindo obrigada a pertencer a um corpo masculino, minha identidade trans-feminina não estava pronta. Mas é a minha vida e eu admiro tanto cada um de vocês e essa memória é tão viva. A vida segue e anos depois o Galpão chega à minha cidade. Considerada tão remota, tão distante, tão à margem de tudo e o Galpão chega e assisto a Um Molière Imaginário. O Galpão solicita apoio de uma instituição com afinidade cultural para reunir artistas. Eles querem conhecer

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os artistas locais e pretendem registrar o encontro gestando em vídeo uma espécie de cartografia. Eu vou e, lá, num ‘entre-lugar’, numa escada, nos primeiros degraus, eu converso com Inês Peixoto. Uma espontaneidade comovente. Uma humanidade crua. Uma década depois, reencontro Inês Peixoto na plateia do espetáculo Mata teu Pai, com a atriz Débora Lamm, quando eu também estou na programação na Mostra Oficial, e lá vou eu, novamente, abordá-la, pedir pra tirar uma foto. Ela se lembra de minha cidade e fala dela com enorme carinho. No dia seguinte, ela vai assistir-me. Quando vi Inês Peixoto em meio à multidão, em Curitiba, eu quase caio do alto da estátua de onde eu começo a minha apresentação. No dia seguinte, fomos visitar o Campo das Artes, espaço criado pelo ator Luís Melo. Agora já sou a transexual Fernanda Silva, estou usando um vestindo longo e um casaco. Estou me sentindo intensamente viva e enormemente feliz por deixar a arte me atravessar de forma tão pura e cristalina. Minha vontade é de chorar muito, mas as lágrimas se guardam. Elas encontrariam o caminho do meu rosto horas depois, no mesmo dia, eu na plateia, em Curitiba, assistindo a NÓS, com direção de Marcio Abreu. Eu tomei daquela

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caipirinha, dada em minha mão pelo próprio Eduardo com uma cumplicidade nos olhos que jamais esquecerei. Eu comi daquela sopa. Eu subi no palco. Eu abracei Teuda Bara. Eu dancei junto. Eu deixei o teatro antes de todo o resto do público apenas para chorar pelas ruas da capital paranaense. Tão agradecida. Tão agradecida. Tão viva. Sentindo-me tão viva. Tão corajosa. Tão potente. Tão cheia de fé em mim mesma. Por isso tudo, Galpão, eu sou tão agradecida a cada um de vocês. Porque não desistiram também. Porque estão aí, sempre, não apenas em Minas, mas dentro de nossos corações. Galpão... eu bebo isso por ti. Por que se eu quiser beber... eu bebo. E eu quero muito.” (Parnaíba, 7 de junho de 2017)

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CINE hORTOEM FOCO

315 | Editorial

CINE hORTOEM FOCO

ana Luisa Santos¹ (BeLo HoriZonte/MG)

OS NúClEOS DE PESqUISa DOgalPÃO CINE hORTOE a IMPORTâNCIa Da EXPERIMENTaÇÃO DE

lINgUagENS PaRa a CENa CONTEMPORâNEa

1 - Ana Luisa Santos (MG) é performer e escritora. Mestre

em Comunicação Social/UFMG e Pós-Graduada em

Arte da Performance/FAV, atua também como curadora

em artes da presença na realização de exposições e

residências artísticas, núcleos de pesquisa e criação,

atividades de formação e política. Desenvolve trabalhos

para teatro e dança, com destaque para dramaturgia

e figurino. É idealizadora do PERFURA – Ateliê de

Performance e codiretora da plataforma O que você

queer. www.anasantosnovo.com.

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A MINHA TRAJETóRIA E A DOS NÚCLEOS DE PESQUISA DO GALPÃO CINE HORTO começam em 2009, com a primeira edição do Núcleo de Pesquisa em Figurino, em que atuei como coordenadora até 2016. A articulação para sua realização teve início um ano antes, em 2008, quando procurei o Grupo Galpão para manifestar meu interesse pela pesquisa sobre o acervo de figurinos da companhia. A partir desse contato, estabeleci um diálogo com o Galpão Cine Horto através do Centro de Pesquisa e Memória do Teatro, o CPMT, que é o espaço responsável para conservação da memória do Grupo Galpão e de tantas outras referências teatrais de Belo Horizonte.

319 | Os Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto e a importância da experimentação de linguagens para a cena contemporânea

O Núcleo de Pesquisa em Figurino inicia suas atividades como um espaço de investigação sobre o figurino como linguagem artística de criação para diferentes tipos de cena. O Núcleo realiza encontros semanais entre os pesquisadores e a coordenação no cinema do Galpão Cine Horto e, paralelamente, desenvolve o trabalho de catalogação do acervo de figurinos do Grupo Galpão em sua sede, com orientação de Paulo André, ator do grupo. A metodologia de trabalho envolve ainda a realização de palestras com figurinistas convidados e uma mostra de trabalhos, composta por experimentos, processos e registros de criações artísticas que articulam o figurino como expressão.

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A partir dessa primeira experiência com o Núcleo de Pesquisa em Figurino, o Galpão Cine Horto expande a atuação dos Núcleos para as áreas de Dramaturgia, Cenografia, Teatro para Educadores, Iluminação, Jornalismo Cultural e Sonorização/Trilha Sonora. A diretora teatral Kenia Dias assume a coordenação dos Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto. Têm início as primeiras tentativas de articulação entre as linguagens e as experimentações propostas, especialmente no que se refere aos trabalhos de conclusão dos Núcleos em que os processos são compartilhados. Na sequência, a coordenação dos Núcleos passa a ser exercida pela atriz, cenógrafa e figurinista Camila Morena. A partir de 2015, assumi a coordenação do projeto dos Núcleos no Galpão Cine Horto, além de continuar atuando como coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Figurino. A

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A gestão dos Núcleos de Pesquisa teve diferentes formatos desde 2009 com o objetivo de viabilizar as atividades financeiramente. Após as primeiras edições dos Núcleos, há uma consolidação pedagógica da proposta, de modo a possibilitar ao Galpão Cine Horto elaborar um projeto reunindo as ações previstas pelos Núcleos para o Fundo Municipal de Incentivo à Cultura da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte. A articulação dos Núcleos em projeto aprovado no Fundo Municipal permitiu ao Galpão Cine Horto oferecer Bolsas de Estudo para os pesquisadores, que, anteriormente, financiavam a realização dos Núcleos por meio do pagamento de inscrições.

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Do ponto de vista metodológico, os Núcleos de Pesquisa desenvolveram estratégias pedagógicas de acordo com as especificidades de cada área e linguagem artística e com o perfil de seus coordenadores. Em comum, os Núcleos semearam uma experiência horizontal de formação, com forte caráter experimental e de grande tonalidade investigativa. Tomando como ponto de partida as experiências e os interesses de pesquisa dos participantes e dos coordenadores, os Núcleos trabalharam a fim de criar uma articulação entre a prática da criação e produção e as referências teóricas, profissionais e artísticas compartilhadas pelos coordenadores e palestrantes convidados.

323 | Os Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto e a importância da experimentação de linguagens para a cena contemporânea

Nesse sentido, os Núcleos de Pesquisa fomentaram uma experiência de formação transversal na medida em que permitiram o engajamento de diferentes linguagens e áreas de conhecimento em um procedimento compartilhado de aprendizado pautado por diversas matrizes de experimentação e troca. Essas características são inerentes às linguagens da cena que os Núcleos de Pesquisa se propuseram a abarcar como o figurino, a cenografia, a dramaturgia, mas também a outros diálogos propostos como o teatro para educadores ou o jornalismo cultural. São áreas híbridas de estudo e atuação que implicam uma abordagem complexa dos conteúdos e das experiências tendo em vista a expansão da cena artística e suas possibilidades de leitura e aplicação.

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No contexto da trajetória de 17 anos do Galpão Cine Horto, os Núcleos de Pesquisa propiciaram um desdobramento no panorama de formação proposto pelos Cursos Livres de Teatro e as demais atividades de encontro e fomento que o centro cultural realiza. A iniciativa dos Núcleos permitiu o atendimento de uma demanda artística da cidade de Belo Horizonte ao ampliar a gama de estudos que o teatro e as demais artes da cena e da presença evocam.

Desse modo, os Núcleos de Pesquisa provocaram a ampliação e a diversificação do público do Galpão Cine Horto na medida em que criaram uma abertura para a chegada de estudantes, profissionais, técnicos e artistas interessados na pesquisa e na experimentação de linguagens que dialogam com outras áreas de criação como o design, a arquitetura, a pedagogia, as ciências humanas, as ciências sociais aplicadas e as artes visuais. Os Núcleos também permitiram a possibilidade da complementação pedagógica para as pessoas que buscaram, inicialmente, a formação teatral, através dos Cursos Livres.

325 | Os Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto e a importância da experimentação de linguagens para a cena contemporânea

Outro diferencial demonstrado pelos Núcleos de Pesquisa foi sua capacidade de articulação com outros projetos do Galpão Cine Horto, como o Oficinão e o Módulo de Criação (etapa de conclusão dos Cursos Livres de Teatro). A possibilidade de contribuição, interlocução e experiência prática no desenvolvimento de projetos de cenografia, figurino e sonorização para as montagens teatrais do Módulo de Criação, especialmente, provocou os pesquisadores dos Núcleos a aplicar os procedimentos de criação em suas necessidades reais diante de um processo de composição que envolve outros artistas do elenco e da direção do trabalho. Com a orientação dos coordenadores dos Núcleos, as experiências com as montagens do Módulo de Criação permitiram o exercício e a compreensão do “timing” de produção, tão importantes no desenvolvimento profissional e artístico de cenógrafos e figurinistas.

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A experimentação prática dos pesquisadores também proporcionou diferentes propostas de ocupação e ativação dos espaços do Galpão Cine Horto através das Mostras de Trabalhos dos Núcleos de Pesquisa. O evento que passou a integrar a programação do centro cultural incluiu, além de apresentação de experimentos cênicos no Teatro Wanda Fernandes, a composição de exposições, instalações, performances, vídeos e intervenções urbanas que possibilitaram a percepção do espaço e da linguagem do teatro e do Galpão Cine Horto como grandes laboratórios permeáveis às criações e aos diálogos artísticos das áreas de pesquisa dos Núcleos.

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As Mostras de Trabalhos também trouxeram outros espaços e experiências para dentro do Galpão Cine Horto, aprofundando a compreensão do centro cultural como catalisador de encontros. No caso do Núcleo de Pesquisa em Teatro para Educadores, por exemplo, tivemos a oportunidade de conhecer os trabalhos de professores e estudantes que estão pesquisando a linguagem teatral em escolas de diferentes regiões de Belo Horizonte e de sua região metropolitana. Em muitas ocasiões, para essas turmas, essa foi a primeira experiência de apresentar uma cena ou um experimento cênico em um teatro de centro cultural.

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As atividades dos Núcleos de Pesquisa também expandiram o alcance do Galpão Cine Horto para além de seu espaço físico e região. Através do Centro de Pesquisa e Memória do Teatro, o CPMT, o Núcleo de Pesquisa em Figurino desenvolveu entre os anos de 2012 e 2014 o projeto “Grupo Galpão: Memória feita à Mão”, em parceria com o Centro Cultural da UFMG, no hipercentro de Belo Horizonte. O projeto envolveu a instalação de um Ateliê Aberto no CCUFMG que funcionou diariamente, entre 2012 e 2014, recebendo pessoas interessadas em conhecer e acompanhar os procedimentos de catalogação e conservação do acervo de figurinos do Grupo Galpão em seus 35 anos de trajetória. As atividades do projeto incluíram também a realização de seminários, palestras e exposições no Galpão Cine Horto. Além dos pesquisadores do Núcleo, o projeto também contou com o trabalho de estudantes bolsistas dos cursos de graduação em Artes Cênicas, Conservação, Design de Moda e Museologia da UFMG.

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Os Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto possuem grande potencial e demanda no panorama da produção artística de Belo Horizonte. Ao permitir a expansão da compreensão da criação cênica, em seus diversos elementos e linguagens, o trabalho de investigação proposto pelos Núcleos valoriza os artistas e profissionais que atuam na concepção das montagens e apresentações cênicas, ampliando a percepção do teatro e das artes da presença como criações complexas e processuais que envolvem o investimento artístico coletivo do qual a apresentação pública, o momento de encontro com a plateia, é mais uma etapa de um conjunto de procedimentos iniciados meses antes.

Ao complementar a análise da cena para além do ofício do ator e da atriz, os Núcleos de Pesquisa também contribuem para a valorização dos elementos de composição da cena como linguagens artísticas. A cenografia, o figurino, a sonorização constituem também dramaturgia e podem ser desdobrados como espaços de investigação e experimentação artísticas extremamente potentes em um contexto político cada vez mais estético. Por outro lado, os Núcleos também indicam a possibilidade de entender o teatro e suas linguagens como ferramentas de articulação, diálogo, ativação de espaços e relações para além da caixa cênica.

333 | Os Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto e a importância da experimentação de linguagens para a cena contemporânea

Os Núcleos de Pesquisa valorizam os processos artísticos de trabalho e investigação contrariando a lógica mecanicista, tecnológica e temporal contemporânea de produção maquinal em série. Valorizar o processo é valorizar a produção humana, em suas corporeidades, relações, temporalidades e dinâmicas. Amplificar a compreensão dos procedimentos artísticos é um gesto político na medida em que sensibiliza as capacidades de atuação e percepção de mundo, de si mesmo e do outro como processos de composição coletivos, interdependentes e éticos. Vida longa aos Núcleos de Pesquisa do Galpão Cine Horto em sua árdua tarefa sensível!

Editorial | 334

TEaTRO E POlíTICa

335 | Editorial

TEaTRO E POlíTICa

Gustavo Bones e Leonardo Lessa¹ (BeLo HoriZonte/MG)

TODO TEaTRO é POlíTICa:COMO UM gRUPO DE aRTISTaS

OCUPa a POlíTICa INSTITUCIONal

1 - Gustavo Bones é ator, diretor de teatro e produtor

cultural. É um dos fundadores do grupo Espanca! (BH/

MG), em que coordena todos os projetos de maneira

compartilhada e atua em todos os espetáculos do

repertório da companhia. Também de forma colaborativa,

faz a gestão do Teatro Espanca!, centro cultural mantido

pelo grupo no hipercentro de Belo Horizonte. Dirigiu

peças de diversos coletivos da cidade, criou figurinos,

traduziu textos e desenvolveu trabalhos que aliam teatro

de rua, performance arte, intervenção urbana e ativismo,

buscando envolver grupos sociais marginalizados na

produção de sentidos no espaço público da cidade.

Integra a equipe da Gabinetona das vereadoras Áurea

Carolina e Cida Falabella como coordenador de mandato

aberto.

Leonardo Lessa é artista de teatro e gestor cultural. É

integrante e fundador do Grupo Teatro Invertido (BH/MG),

tendo atuado em todos os espetáculos em repertório

do grupo. Integrou a equipe do Ministério da Cultura

na gestão de Juca Ferreira como diretor do Centro de

Artes Cênicas da Funarte. Foi secretário do Redemoinho

– Movimento Brasileiro de Espaços de Criação,

Compartilhamento e Pesquisa Teatral e Coordenador geral

do Galpão Cine Horto, centro cultural do Grupo Galpão,

em Belo Horizonte. Integra a equipe da Gabinetona

das vereadoras Áurea Carolina e Cida Falabella como

coordenador geral.

Teatro e Política | 338

Para Reinaldo Maia e Cecília Bizzotto

Nós somos artistas de teatro e, por isso, trabalhamos com política. Nascemos em Belo Horizonte, nos conhecemos adolescentes na Cia de Teatro – Escola de Arte e nos formamos como professores no Curso de Artes Cênicas da Escola de Belas Artes da UFMG. O teatro nos levou a criar e a viver coletivamente e, em 2004, cada um de nós participou da fundação de um grupo: o Espanca! e o Teatro Invertido. Hoje, compartilhamos algo mais em comum: a certeza de que todo teatro é política.

Como toda gente de teatro de grupo, aprendemos na lida do dia a dia que, além de atores, éramos diretores, dramaturgos, professores, produtores, gestores, redatores, comunicadores, administradores etc. e tal. Por escolher trabalhar em grupo, viver em comunidade, decidir em coletivo, criar experimentando e investigar criando, aprendemos a gerir projetos, a administrar empresas e a enfrentar toda a burocracia imposta pela sobrevivência nesse ofício.

339 | Todo Teatro é Política: como um grupo de artistas ocupa a política institucional

Essa escolha trouxe até nós, de forma inevitável, uma urgência por pensar que melhores condições de vida e trabalho precisavam ser construídas – não só para o povo das artes, mas para todo o povo. Foi assim que, de fato, nos encontramos. Nós nos tornamos parceiros dentro das lutas por políticas públicas para a cultura. Juntos, acompanhamos e vivemos a história do Redemoinho: o começo em 2004, em Belo Horizonte, no Galpão Cine Horto, como uma rede de espaços de criação, compartilhamento e pesquisa teatral; passando por sua consolidação como um movimento brasileiro de teatro de grupo até sua desarticulação numa triste noite de março de 2009, no Teatro Vila Velha, em Salvador. Nessa movimentação, conhecemos gente de grupos de teatro do País inteiro e reconhecemos semelhanças e diferenças nos nossos fazeres. Aprendemos muito sobre a política na luta por fazer teatro.

Teatro e Política | 340

Enquanto isso, a nossa pólis, Belo Horizonte, vivia uma tragédia: no ano de 2008, por meio de uma aliança entre o atual governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT) e o senador Aécio Neves (PSDB), um empresário desconhecido foi eleito para a Prefeitura. Por longos oito anos, Marcio Lacerda (PSB) realizou uma gestão privatizante, excludente e antidemocrática, que perseguiu e criminalizou a cultura viva da cidade, rompendo com um histórico de gestões democráticas e populares que mudaram a capital mineira. Em 2009, ao fim de seu primeiro ano de governo, Lacerda baixou um decreto proibindo “eventos de qualquer natureza” na principal praça cívica da cidade. Para contestar esse absurdo, nasceu a Praia da Estação, uma performance coletiva – festa política e teatral – que transformou a nossa história e a da nossa geração. Em BH, até hoje, aos finais de semana durante o verão, as pessoas se reúnem em festiva luta. Na areia de cimento, vestidas e vestidos com sungas, maiôs e cangas, as banhistas e os banhistas recolhem dinheiro para contratar um caminhão-pipa chamado de ‘mar’.

341 | Todo Teatro é Política: como um grupo de artistas ocupa a política institucional

Inesperadamente, uma praia brotou em Minas e, em cima de um cimento duro, nasceram novos agentes políticos e culturais. Artistas, ativistas e estudantes fizeram desse encontro um laboratório de práticas políticas e performativas, misturaram seus corpos e suas lutas numa grande performance coletiva, uma mega intervenção urbana. O decreto que proibia eventos na Praça foi revogado, mas o movimento político-cultural seguiu encontrando-se ali e se desdobrou em muitas histórias. Esta – a que vamos contar aqui – é apenas a nossa versão sobre uma delas, porque somos Muitas.

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343 | Todo Teatro é Política: como um grupo de artistas ocupa a política institucional

Teatro e Política | 344

Entre um banho de sol no cimento e um mergulho no caminhão-pipa, surgiu nessa praia mais uma onda de conversas sobre a articulação de grupos e artistas da cena teatral de BH em torno do debate sobre políticas culturais. Junto com outros companheiros e companheiras fomos articuladores desse movimento, batizado Nova Cena: um espaço horizontal criado para discutir, fiscalizar, acompanhar e propor políticas públicas para o teatro. Logo depois de nossas primeiras reuniões, a Prefeitura ameaçou a cultura novamente: cancelou abruptamente o Festival Internacional de Teatro – FIT-BH, realizado há décadas, garantido por Lei e de importância única para a cena teatral da cidade. Mais uma vez, ocupamos as ruas. Agora, empunhávamos faixas e megafones, parávamos o trânsito e exigíamos respeito com nosso ofício e as conquistas de nossa cultura. Fizemos barulho – na rua e na mídia – e, mais uma vez, o prefeito foi obrigado a voltar atrás. O FIT foi realizado, atrasado, mas com um reforço de orçamento que soava como uma tentativa de calar as vozes emergentes contrárias à prefeitura. Não seria tão fácil assim para eles.

345 | Todo Teatro é Política: como um grupo de artistas ocupa a política institucional

Em mais de dois anos de atuação, escaldado pelo calor da Praia da Estação, o Movimento Nova Cena enfrentou intensas disputas pela qualificação da política cultural da cidade, tendo participado de importantes debates e vitórias, como um aumento orçamentário de 77% para a Lei Municipal de Incentivo à Cultura, e a regulamentação e a eleição do Conselho Municipal de Políticas Culturais (COMUC).

Teatro e Política | 346

Foi no processo de construção do Conselho que Cida Falabella, atriz, diretora de teatro, fundadora da ZAP 18, referência no ativismo e no pensamento sobre políticas culturais, aproximou-se do Nova Cena e de nossa militância juvenil. Como artistas-ativistas-aprendizes já havíamos estado com ela em diversos espaços: salas de aula, salas de ensaio, em cena sendo dirigidos, na plateia assistindo a seus espetáculos ou palestras, em rodas de conversa ouvindo suas histórias de décadas dedicadas ao teatro de grupo e à luta por políticas culturais, e, é claro, no cimento da Praia, em trocas descontraídas sobre como tudo aquilo ali era potente e transformador. Cida acompanhava a distância os passos do movimento e, sabendo da necessidade de qualificar a representação das Artes Cênicas na primeira gestão do Conselho, atendeu a nosso pedido para que se candidatasse à vaga, engajando-se inteira, como sempre, nessa nova luta.

347 | Todo Teatro é Política: como um grupo de artistas ocupa a política institucional

Nesse momento, a política cultural no Brasil vivia tempos de baixa. O primeiro governo de Dilma Rousseff, que tinha Ana de Hollanda à frente do Ministério da Cultura, interrompia a implementação de um pensamento estruturado e estruturante para as políticas públicas de cultura, iniciada no Governo Lula, sob a batuta dos ministros Gilberto Gil (2003-2006) e Juca Ferreira (2007-2010). Tomava conta a frustração pela descontinuidade de políticas vitoriosas, como a Cultura Viva e seus pontos de cultura, além da paralisação de processos importantes, como a aprovação da Lei Procultura em substituição à privatizante Lei Rouanet.

Teatro e Política | 348

Não sem resistência da ala conservadora do Teatro, fizemos uma bela mobilização que elegeu Cida como representante das Artes Cênicas no Conselho Municipal. Nesse primeiro mandato do COMUC, ela esteve ao lado de outras combativas representantes, vindas desse mesmo campo, como a cineasta Ana Flávia Dias Salles e o antropólogo e banhista da Praia, Rafael Barros, o Tchá Tchá. Entre 2011 e 2013, essa primeira formação do COMUC foi responsável pela estruturação dos mecanismos de participação popular e de controle social na tomada de decisões da gestão pública da cultura municipal.

349 | Todo Teatro é Política: como um grupo de artistas ocupa a política institucional

A mobilização para a eleição desse Conselho foi mais uma articulação do “povo da Praia” que, a cada ano, gerava mais festa, mais movimentação política e mais explosão de culturas. Nos primeiros verões, a turma de banhistas misturava-se com a população de rua, comerciantes e passantes, enquanto brigava com a polícia pelo direito de se encontrar na praça. A Praia era movida pela ocupação coletiva de espaços públicos, pelo direito à cidade, pela convergência das lutas sociais, e promovia debates e mobilizações, sempre com características teatrais e políticas. Na beira da Praia, artistas do teatro e da performance viraram símbolos e a cidade conheceu Ed Marte, Paola Bracho e Chapolin. A manifestação também criou seus ritos e calendários, como a Praia de Iemanjá, a Praia do Trabalhador, os Eventões e a Praia da Savassi. Aos poucos, a movimentação foi se expandindo, afetando e provocando múltiplos processos, experimentando formas de organização e construindo diálogos. Atualmente, tem forró, gaymada, baile funk, carnaval, catuaba e fonte ligada. Hoje, é território da juventude periférica, das pautas feministas e antirracistas. E esse caldeirão transborda sempre em folia e política. Dos ensaios na areia de cimento, o carnaval de rua fortaleceu-se. Nos encontros entre ativistas, movimentos, partidos, estudantes e artistas, nasceu o Fora Lacerda.

Teatro e Política | 350

351 | Todo Teatro é Política: como um grupo de artistas ocupa a política institucional

Além de proibir eventos na Praça e tentar cancelar o Festival Internacional de Teatro, o então Prefeito de Belo Horizonte criminalizou os movimentos de moradia, tentou privatizar parques e cemitérios, vender ruas, perseguiu artistas e é suspeito de ter deixado cair um viaduto construído para a Copa. Após os calorosos encontros nos verões, o “povo da Praia” seguia reunindo-se para discutir as questões da cidade. O Movimento Fora Lacerda reuniu banhistas com militantes partidários, organizações políticas, sindicatos, coletivos e ativistas insatisfeitos com os abusos do prefeito-empresário. Em reuniões abertas, o movimento organizava grandes marchas, sempre marcadas por ações performáticas em grupo. Antes do período eleitoral, o Fora Lacerda era a principal voz da oposição, capaz de mobilizar e interferir na agenda política da cidade.

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Em 2012, o prefeito disputou a reeleição, após o campo petista, que integrava o governo, inclusive com a vice-prefeitura, romper com a esdrúxula aliança. Quando o ex-prefeito Patrus Ananias (PT) saiu como candidato, o Movimento Fora Lacerda começou a se desarticular. Alguns de nós insistimos no projeto petista, representado por um de seus melhores quadros nacionais, com competência comprovada, porém, há anos distante de um trabalho orgânico com a cidade. Outros se dedicaram à construção da campanha da Maria da Consolação (PSOL), a Consola, que, embora estivesse conosco no Fora Lacerda, carecia de capilaridade e de base social. Lacerda ganhou no primeiro turno, com 52,7% dos votos, numa derrota muito difícil para todas nós. Percebemos que tínhamos acúmulo de lutas, fazíamos barulho, mas que ainda não era suficiente para trazer vitórias concretas ao nosso campo político, sempre dividido.

353 | Todo Teatro é Política: como um grupo de artistas ocupa a política institucional

Nos anos seguintes seguimos nas ruas, nas mobilizações. O movimento de retomada do carnaval de rua em BH – iniciado em 2009 quando três bloquinhos saíram pelas ruas da cidade sem festa – explodiu com a força da Praia da Estação. Contra um projeto de cidade que tinha ao longo de décadas sufocado a tradição foliã belo-horizontina, no começo, a galera da Praia puxava uma programação de pequenos blocos, movidos por amor, marchinhas, cenas e experiências, muitas vezes enfrentando a polícia e as caras amarradas. A cada ano, a festa crescia até se consolidar como um fenômeno cultural da cidade. O nosso carnaval brotou na arena democrática da Praia contestando o cerceamento do espaço público, encontrou-se com a tradição do samba e cresceu assustadoramente, sempre resistindo às tentativas de privatização da alegria.

Teatro e Política | 354

Vivemos também as jornadas de junho, disputando os sentidos daquela erupção, assistindo aos lindos espetáculos de rua encenados por vândalos-artistas e vice-versa. Em BH, essas manifestações desdobraram-se na Assembleia Popular Horizontal embaixo do Viaduto Santa Tereza e na Ocupação da Câmara Municipal, que durou nove dias. Lá estávamos nós, participando das assembleias e construindo grupos de trabalho sobre cultura na Câmara ocupada. Seguindo o rastro mobilizador das manifestações de 2013, um grupo de artivistas simulou o ensaio de um espetáculo teatral para ocupar um casarão abandonado por duas décadas pelo Governo Estadual e fazer dali um centro cultural autogestionado. Batizado de Espaço Comum Luiz Estrela, em homenagem ao artista, poeta e performer morto naquele mesmo ano, após dois meses de atividades culturais ininterruptas e muita mobilização, o casarão foi cedido em comodato pelo estado de Minas Gerais. Mesmo estando atualmente em obras de restauração, o Espaço Comum abriga importantes atividades de resistência e invenção, dentre elas, um Núcleo de Teatro que possui três espetáculos em repertório, construídos no potente encontro de artistas profissionais do teatro de BH, estudantes de artes e militantes de vários movimentos da cidade.

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Em 2014, sustentando inúmeras contradições, estivemos novamente com Dilma Rousseff nas eleições presidenciais. Depois da vitória apertada, comemoramos muito a volta de Juca Ferreira ao Ministério da Cultura, momento em que Leonardo Lessa foi convidado para dirigir o Centro de Artes Cênicas da Funarte, sediada no Rio de Janeiro.

Durante o carnaval de 2015, conversas espontâneas ao longo do Bloco da Praia mostravam que existia o desejo de ocupar a política, levar tanta potência e experimentação para a institucionalidade, trocar ideias e entrar na disputa eleitoral. Nosso carnaval também sempre foi político, carnaval de rua e de luta. E foi justo nesse bloco, o da Praia, em frente à Prefeitura, entre mangueiradas da Chapolin (Ei, Chapolin, joga água em mim!), que o sussurro das Muitas pela Cidade Que Queremos começou.

357 | Todo Teatro é Política: como um grupo de artistas ocupa a política institucional

Havia algo no ar, um sentimento de que nossas pequenas vitórias ainda eram insuficientes e de que era preciso discutir isto coletivamente. Uma lista de ativistas, militantes, partidos, organizações e coletivos culturais foi convocada para uma conversa numa tarde de sábado, em março de 2015. Um piquenique no Parque Municipal para trocar ideias sobre uma possível articulação política municipal com objetivo de ocupar espaços de poder a partir da potência diversa e criadora que os movimentos político-culturais tinham acumulado nos últimos anos.

A partir desse dia, começamos a construção de uma confluência de lutas, estruturando um campo político em reuniões abertas, debates públicos, festas e encontros nas ruas, conversando também sobre cenários e estratégias, dialogando com partidos e forças institucionais. Foi nascendo assim, lentamente, as MUITAS pela Cidade Que Queremos, gestada ao longo de todo o ano de 2015 e inspirada em experiências políticas recentes, como o municipalismo cidadanista e os estados plurinacionais latino-americanos.

Teatro e Política | 358

Enquanto ideias iam ganhando forma em BH, 2016 trazia consigo o fortalecimento de uma articulação nefasta para depor a presidenta Dilma. Em protesto, multidões tomaram as ruas de diversas cidades do País, organizadas em manifestações ou atos públicos, contra e a favor do governo. Enquanto isso, a grande mídia hegemônica abordava o tema como um processo constitucional conduzido com lisura por seus representantes políticos. O jornalismo brasileiro incitava a presença nos atos pró-impeachment e escondia os contrários, numa campanha subjetiva que criminalizava a atividade política. Em contraposição a esse discurso, artistas e agentes da cultura brasileira também se mobilizaram em eventos político-culturais, que diziam que esta grande ameaça ao estado democrático de direito tinha um nome: GOLPE.

Em Belo Horizonte, a articulação entre artistas do circo, da dança e do teatro realizou o ato “Cena pela Democracia”, ocupando a Rua Aarão Reis, entre o baixio do Viaduto Santa Tereza e a porta do Teatro Espanca!. Alguns poucos encontros preparatórios nos reuniram em mais essa ação coletiva de luta por direitos. Dessa vez, porém, a perplexidade frente ao golpe que se aproximava era que dava o tom dos debates. Trechos de espetáculos, poesias e discursos inflamados convocavam os presentes a seguirem resistindo em defesa da democracia.

359 | Todo Teatro é Política: como um grupo de artistas ocupa a política institucional

Em 12 de maio de 2016, o golpe jurídico-midiático-parlamentar consumou-se com o afastamento da presidenta. No dia seguinte, o ilegítimo mandatário do País, Michel Temer, inaugurava sua gestão decretando o fim do Ministério da Cultura. As reações de descontentamento foram imediatas e, aos poucos, por todo o Brasil, prédios públicos de propriedade do extinto MinC ou de suas entidades vinculadas, como a Funarte e o IPHAN, foram sendo ocupados por agentes culturais. Foi também embaixo do Viaduto de Santa Tereza que foi marcada uma reunião do povo da cultura de BH. Na noite fria do domingo de 15 de maio, mais de 200 pessoas mobilizaram-se em torno desse debate e, ao encontrarem o baixio do Viaduto ocupado com um evento, seguiram direto para a sede da Fundação Nacional de Artes em Belo Horizonte, dando início à Funarte MG Ocupada. Mesmo com o recuo dos golpistas e a desistência de acabar com o Ministério da Cultura, as ocupações seguiram avançando e, no dia 24 de maio, todos os estados e o Distrito Federal tinham uma OcupaMinC instalada.

Teatro e Política | 360

361 | Todo Teatro é Política: como um grupo de artistas ocupa a política institucional

Ao longo de 30 dias, o complexo de galpões da Funarte MG, antiga sede da Rede Ferroviária e localizado ao lado da Praça da Estação, abrigou um dos principais movimentos de resistência cultural da capital mineira. Além de diversas atividades artísticas, assembleias, rodas de conversa e oficinas, a Funarte MG Ocupada fez convergir diferentes forças de resistência da cidade. Por lá, passaram ambulantes, moradoras e moradores de ocupações urbanas, pessoas em situação de rua e ativistas dos movimentos sem teto, negros e feministas. Lideranças de representatividade nacional, como Guilherme Boulos (MTST) e João Pedro Stédile (MST), movimentaram noites de debates intensos e de demarcação simbólica da dimensão cultural que unia todos em defesa da democracia brasileira.

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Foi na Funarte MG Ocupada que nos reencontramos com Cida Falabella, umas das lideranças da ocupação que se revezava entre as atividades de organização do movimento, de preparação das assembleias e de articulação com ocupações de outros estados brasileiros. Cida esteve na histórica audiência pública da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados em Brasília realizada para debater o fim do MinC. Ao lado do também artista de teatro Rodrigo Jerônimo, insurgiu-se contra os parlamentares ultraconservadores Marco Feliciano e Jair Bolsonaro, que durante a sessão insistiam em desqualificar o movimento das ocupações e hostilizar os trabalhadores da cultura que o lideravam.

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Até a desocupação, no dia 15 de junho, realizamos na Funarte MG Ocupada muitas conversas sobre o papel da cultura no processo de rearticulação das esquerdas, recebemos muita inspiração pelos corpos de luta que haviam cruzado nossos caminhos naqueles dias e noites e, principalmente, alimentamos muita esperança numa nova rede de parceiros “artivistas” que havia se formado em torno da resistência cultural daquele mês.

Enquanto isso, as MUITAS realizavam explosões programáticas em ocupações urbanas, praças, parques e centros culturais, discutindo temas como mobilidade, feminismo, representatividade, cultura, moradia, transparência. A movimentação também lançou uma plataforma virtual capaz de acolher demandas e sugestões da população e, paralelamente a isto, seus integrantes faziam discussões partidárias e estratégicas, analisando dados e cenários políticos. Já havia ali amadurecido o propósito real de ocupar as eleições municipais por meio de candidaturas à vereança que representassem em seus corpos e suas trajetórias as lutas latentes da Cidade Que Queremos.

365 | Todo Teatro é Política: como um grupo de artistas ocupa a política institucional

Na ágora que havia se transformado a ocupação da Funarte MG, atravessados por uma experiência revolucionária de intervenção direta e coletiva na disputa pelo poder institucional, começamos a gestar coletivamente o desejo de que a luta pelas políticas públicas de cultura também estivesse representada na disputa por uma vaga à Câmara Municipal. Cida, com sua resistência feminista de artista periférica, colocou seu corpo, sua voz, sua história e suas ideias para nos representar nessa construção, lançando-se ao desafio de ser uma das candidatas das MUITAS pela Cidade Que Queremos.

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Esse processo construiu 12 candidaturas ao legislativo municipal de Belo Horizonte pelo Partido Socialismo e Liberdade, o PSOL, numa campanha coletiva, colaborativa e encantadora. Juntas, as candidatas das MUITAS mostravam a diversidade de corpos e lutas: eram negras, feministas, indígenas, lésbicas, gays, bi, trans, periféricas, maconheiras, lutavam pelo despejo zero, pela luta antiprisional, pela preservação da natureza e pela humanização do parto. A maioria das candidatas vinha da cultura, tinha gente do hip hop, artista de teatro, educadores populares, performers, povo de terreiro e povo originário, tinha DJ e produtor de eventos. O lema era “votou em uma, votou em todas” e firmamos compromisso com a transparência, a participação popular, o combate às opressões e aos privilégios da casta política. Os (poucos) recursos foram arrecadados entre amigas e amigos, em vaquinhas virtuais, mas, principalmente, por meio de um leilão de artes visuais, com obras doadas pelos artistas. Montamos um ateliê colaborativo, onde as pessoas criavam vídeos, jingles e clipes, faziam a comunicação, o planejamento e a avaliação do processo. Teve muita panfletagem coletiva e, é claro, um cortejo de blocos de carnaval que ligou o parque, onde tudo começou, à Praia da Estação.

367 | Todo Teatro é Política: como um grupo de artistas ocupa a política institucional

A candidatura de Cida trouxe a ela uma implicação direta, pessoal e intransferível, mas foi também, como no teatro, um projeto coletivo. Já logo em nossos primeiros passos, criamos um pequeno comitê de artistas e produtores de teatro dispostos a realizar uma campanha político-cultural em moldes radicalmente colaborativos e experimentais.

Em 20 de junho de 2016, disparamos um e-mail dirigido a artistas mais próximos de Cida, anunciando sua pré-candidatura e convidando – eles e elas – para uma reunião na semana seguinte numa sala no Edifício Maletta. Nesse encontro, já falamos sobre as demandas básicas para começar a campanha, nos dividimos em tarefas e funções sempre em analogia ao que havia de mais próximo em nosso universo: estrear uma peça de teatro. Fulana cuida do planejamento, Ciclana elabora a divulgação, Beltrana pensa em como conseguir dinheiro e prestar contas direitinho depois e Cida vai ensaiando, ensaiando, ensaiando, ensaiando…

Teatro e Política | 368

Das várias estratégias para mobilizar novos colaboradores nessa pré-campanha, a primeira e mais acertada foram os “Cafés da Cida”, encontros afetivos abertos para a discussão livre sobre temas da cidade e sua relação com a cultura. Nos debates desses cafés, realizados nas sedes dos grupos Teatro 171 e Espanca!, e das intermináveis reuniões de nosso comitê, surgiram os princípios que constituíram o programa “Cultura Pela Cidade”.

Foi também na colaboração do povo da cultura que conseguimos cobrir despesas básicas e necessárias para iniciar de fato a campanha, em 16 de agosto de 2016. Sem qualquer recurso prévio, seja de investimento pessoal ou de repasse partidário, nosso comitê mobilizou artistas e fazedores de cultura para um jantar, em que, além de uma contribuição financeira doada pela internet, esses parceiros manifestavam em vídeo seu apoio à candidatura de Cida. Iniciamos também pedidos isolados de doação financeira e de prestações de serviços. Foi assim, trabalhando em rede, que conseguimos viabilizar a criação gráfica dos materiais, a composição do jingle, a gravação do clipe, a cobertura dos eventos, a prestação de contas e a impressão dos materiais para panfletagem nas ruas.

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Durante os 45 dias de campanha oficial, Cida esteve em muitos eventos culturais, debates, além de uma grande presença nas redes sociais com a produção de conteúdos específicos sobre a “Cultura Pela Cidade”. Optamos também, em toda a campanha coletiva, por intensificar o corpo a corpo nas ruas e Cida investiu especial energia na região do bairro Serrano, onde mora há mais de 40 anos e construiu a sede de seu grupo de teatro, a ZAP 18, instalada ali por mais de 15 anos.

Em 2 de outubro, chegava ao final a linda campanha coletiva das MUITAS. Essa movimentação que já balançava a cidade há alguns anos causava naquela noite um terremoto no cenário político municipal. Elegemos a vereadora mais votada da cidade: Áurea Carolina. Uma jovem mulher negra, ex-cantora de rap, cientista política, educadora popular e mobilizadora social, formada pelos movimentos negros e feministas e com uma enorme inserção nos movimentos periféricos das juventudes. Áurea teve uma votação tão exponencial que ajudou a eleger a segunda candidata mais bem votada da coligação: Cida Falabella. Nossa companheira de luta do teatro de grupo que, mais uma vez, tinha generosamente colocado seu corpo e sua história à disposição de uma construção coletiva e teatral tinha sido eleita vereadora de BH!

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Juntas, as candidatas das MUITAS pela Cidade Queremos fizeram mais de 36 mil votos, o equivalente a 3% dos votos válidos para a Câmara Municipal de BH. Conosco estavam as outras forças da Frente de Esquerda BH Socialista, que tiveram mais 12 mil votos. Esse resultado completamente inesperado foi a maior vitória das forças de esquerda da cidade desde a década de 1990, bagunçando os arranjos políticos locais, num processo de confluência máxima que partia da cultura viva e das lutas populares.

A sinergia das lutas em nossa campanha coletiva foi a grande mobilizadora não só durante as eleições, mas, principalmente, após seu surpreendente resultado. Uma diferença de apenas 32 votos separou Cida de Bella Gonçalves, militante pelo Despejo Zero, das lutas por moradia e pelo direito à cidade. Por isso, antes mesmo da posse, inventamos juntas a Co-Vereança. Bella e o direito à cidade vieram para a centralidade do projeto político que desenvolvemos na Câmara e que, a partir dali, teria um trio de mulheres de luta à sua frente.

371 | Todo Teatro é Política: como um grupo de artistas ocupa a política institucional

Para que de fato a ocupação do espaço institucional dentro da Câmara Municipal fosse uma caixa de ressonância das lutas da cidade, logo após as eleições, iniciamos um processo de planejamento aberto e coletivo do que seriam os mandatos no legislativo. Em duas imersões com as integrantes das MUITAS e de movimentos parceiros, foram construídas as bases de composição, de organização e funcionamento de nosso mandato. Ali surgiu a Gabinetona: nome dado ao espaço de trabalho dos mandatos na Câmara, sem divisórias, coletivo e integrado. A equipe da Gabinetona deveria representar não só as candidatas eleitas, mas todas as lutas que se apresentaram coletivamente para a cidade. Por isso, todas as candidatas foram convidadas a integrar a equipe e sua composição seguiu critérios de paridade de gênero, diversidade de orientação sexual e igualdade racial, tendo as mulheres negras e as LGBTIQs como maioria na composição final.

Teatro e Política | 372

Nessa construção, também foram consideradas as parcerias mais próximas de Áurea e Cida durante a caminhada eleitoral. Do comitê da campanha “Cultura Pela Cidade”, vieram a atriz Fernanda Werneck, a iluminadora Tainá Rosa e a diretora e professora Cristina Tolentino, parceira de todas as horas. Junto com Cristal Lopez, Ed Marte e Evandro Nunes, artistas-performers-candidatas, formamos a “bancada do teatro” dentro da Gabinetona. Sua mais nova integrante veio de um intenso processo de seleção pública aberto para a cidade, realizado nos primeiros meses do mandato. Gabriela Chiari, atriz e professora, chegou com a tarefa de colocar em ação um dos desafios mais ousados de nosso planejamento: o Teatro Legislativo. Essa técnica é uma derivação do Teatro do Oprimido, formulada quando Augusto Boal ocupou o cargo de vereador no Rio de Janeiro, entre os anos de 1993 e 1996. Em nossas ações do mandato aberto pretendemos revisitar essa experiência com foco na mobilização, participação social e engajamento de comunidades ou grupos sociais com o processo legislativo. Está aí, também, o desejo de explorar o que pode haver de criativo e experimental na própria atividade parlamentar. Acreditamos que a construção legislativa, assim como a criação artística, pode levar em conta a dimensão simbólica, lúdica e performática no processo de transformação das lutas em leis.

373 | Todo Teatro é Política: como um grupo de artistas ocupa a política institucional

A partir daqui, presente e futuro se misturam. Nossa precária tentativa de relatar uma experiência coletiva de um passado tão recente já não tem como seguir. Esta é a história de um grupo de artistas de teatro que se lançaram no desafio de ocupar a política. Cida interpreta agora a personagem central e repete como um mantra que “é preciso performatizar a política”, trazer para ela as subjetividades e os afetos em lugar de tanta racionalidade e competição. Todos os dias, antes das sessões plenárias, como em dia de apresentação, trocamos olhares firmes e desejamos MERDA para a Vereatriz. Merda!

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UM balaNÇO DaS aÇõES REalIZaDaS PElO galPÃO CINE hORTO EM 2016

Em 2016 foram realizados 18 projetos para um público maior que 54 mil pessoas, dentre os quais:

Festival de Cenas Curtas: 17ª edição: 237 inscrições de 13 estados brasileiros e apresentação de 16 cenas selecionadas. 65 inscritos na Convocatória Rolê. Público de 2.300 pessoas.

Projeto Sabadão: Seis edições com 13 artistas convidados e 194 participantes.

Cursos Livres de Teatro: 459 alunos, divididos em 31 módulos. Público de mais de 1.000 pessoas nas Mostras dos Cursos (1º e 2º semestres).

Núcleos de Pesquisa: Cinco módulos de Núcleos de Pesquisa nas áreas de Figurino, Cenografia, Teatro para Educadores, Jornalismo Cultural e Dramaturgia, reunindo 165 pesquisadores e promovendo 10 palestras para um público total de mais de 300 pessoas.

Oficinas de Verão: “Dramaturgia Corporal” e “O Ator e o Cinema”, com 15 alunos cada.

Projeto Jogos de Afeto: Oficinas de teatro para cerca de 40 idosos da periferia.

Projeto Exercício do Ator: Oficinas nas cidades de Santos Dumont e Martinho Campos (MG), reunindo 50 alunos e mais de 230 espectadores.

Projeto Conexão: 43 apresentações em sete cidades de Minas Gerais para um público de 6.770 crianças e adolescentes.

PAFT – Programa de Ações Formativas em Teatro: participação de 189 professores de 98 escolas públicas de Belo Horizonte.

Festival de Verão de Cumuruxatiba (BA): Cinco oficinas e 18 atividades artísticas para um público de 2.357 pessoas.

Biblioteca do CPMT: 160 novos itens adquiridos e catalogados. 71 novos usuários cadastrados. 614 empréstimos de materiais. Público: mais de 1.600 pessoas.

Projeto Memória em Circulação – 1ª Fase: Consultoria em Memória e Preservação de acervo para grupos teatrais e espaços culturais das cidades de Teófilo Otoni e Uberlândia (MG).

4º Seminário Subtexto em Diálogo: 83 participantes e 14 palestrantes convidados.

Portal Primeiro Sinal de Teatro: 27 mil visualizações de página. 22 novos conteúdos publicados (artigos, vídeos, exposições, entrevistas, periódicos).

E mais 38 espetáculos ocuparam o Teatro Wanda Fernandes, totalizando 106 apresentações para um público de 10.812 pessoas.

EqUIPE gRUPO galPÃO

AtoresAntonio Edson, Arildo de Barros, Beto Franco, Chico Pelúcio, Eduardo Moreira, Fernanda Vianna, Inês Peixoto, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André, Simone Ordones e Teuda Bara

Conselho Executivo l Beto Franco, Eduardo Moreira, Fernando Lara, Gilma Oliveira e Lydia Del PicchiaGerente Executivo l Fernando LaraCoordenadora de Produção l Gilma OliveiraCoordenadora de Planejamento l Aline PereiraCoordenadora de Comunicação l Bárbara Prado / Beatriz FrançaCoordenadora Administrativa l Wanilda D’ArtagnanCoordenador Técnico e de Luz l Rodrigo MarçalProdutora Executiva l Beatriz RadicchiCenotécnico l Helvécio IzabelTécnico de Som l Fábio SantosAnalista de Comunicação l Ana Carolina DinizAssistente de Produção l Cleber BordinhonAssistente de Planejamento l Soraya MonteiroAssistente Financeiro l Cláudio AugustoAssistente Administrativa l Andréia OliveiraEstagiária de Comunicação l Letícia LeivaAuxiliar Técnico l William TelesRecepcionista l Cídia Edvania SantosServiços Gerais l Danielle RodriguesGestor Financeiro de Projetos l ArtmanagersAssessor Contábil l Maurício Silva

EqUIPE galPÃO CINE hORTO

Direção Geral l Chico PelúcioConselho Gestor l Beto Franco, Chico Pelúcio, Gisele Milagres e Lydia Del PicchiaCoordenação Geral l Gisele MilagresCoordenação de Produção l Graziella Medrado Produção Executiva l Bernardo GondimCoordenação Técnica l Orlan Torres (Sabará) Técnicos l Wellington Santos (Baiano) e Jésus LatalizaComunicação l Daniel Bandeira Estagiária de Comunicação l Thainá Nogueira Estagiária de Design l Carol Cafiero Orientação Gráfica l Estúdio LampejoCoordenação de Planejamento l Fernanda DinizCoordenação do Centro de Pesquisa e Memória do Teatro (CPMT) l Marcos Coletta Bibliotecário do Centro de Pesquisa e Memória do Teatro (CPMT) l Tiago Carneiro Assistente do Centro de Pesquisa e Memória do Teatro (CPMT) l Bárbara Ribeiro Coordenação Pedagógica l Lydia Del Picchia Coordenação Pedagógica dos Cursos, Oficinas e Projetos Especiais l Fábio Furtado Coordenação dos Núcleos de Pesquisa l Cris Moreira / Thálita Motta Secretaria de Cursos l José Junior Equipe Pedagógica l Camila Morena, Cristiano Peixoto, Fábio Furtado, Gláucia Vandeveld, Juliana Martins, Kelly Crifer, Leandro Acácio e Letícia CastilhoCoordenação do Projeto Sociocultural Conexão Galpão l Reginaldo Santos Atores-monitores l Dayane Lacerda, Mariana Blanco e Fabiano LanaCoordenação Administrativo-financeira l Maria José dos SantosAuxiliar Administrativo l Leandro DiasCoordenação Operacional l Ricelli PivaRecepcionista l Dayane NonatoPorteiro l Eberton PereiraServiços Gerais l Juarez Pereira e Rita Aparecida Rosa da SilvaAssistente de Planejamento e Projetos l Tania AraújoAssessoria Contábil l Maurício Silva

Família Tipográfica utilizada: UniversGalpão Cine HortoSetembro de 2017

Ministério da Cultura e

Governo de Minas Gerais

apresentam

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