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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB DEPARTAMENTO DE CINCIAS HUMANAS - CAMPUS V PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CULTURA, MEMRIA E DESENVOLVIMENTO REGIONAL

ION CARQUEIJO SCARANTE

UM CONVITE LEITURA DE ANSIO MELHOR

Santo Antnio de Jesus - BA 2008

ION CARQUEIJO SCARANTE

UM CONVITE LEITURA DE ANSIO MELHOR

Dissertao apresentada ao Programa de Psgraduao em Cultura, Memria e Desenvolvimento Regional do Departamento de Cincias Humanas, da Universidade do Estado da Bahia UNEB, Campus V, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre. Orientadora: Prof. Dra. Maria da Conceio Reis Teixeira

Santo Antnio de Jesus - BA 2008

FICHA CATALOGRFICA Elaborao: Biblioteca Central / UNEB Bibliotecria: Juliana Braga CRB-5/1396 (Biblioteca Campus V / UNEB) S71c Scarante, Ion CarqueijoUm Convite Leitura de Ansio Melhor / Ion Carqueijo Scarante Santo Antnio de Jesus Ba.: [s.n], 2008. 144 f.: il. Inclui anexos. Orientador: Profa. Dra. Maria da Conceio Reis Teixeira Dissertao (Mestrado) Universidade do Estado da Bahia. Campus V. Departamento de Cincias Humanas. 1. Biografia Ansio Melhor. 2. Literatura Baiana. I. Teixeira, Maria da Conceio Reis II. Universidade do Estado da Bahia Campus V. Departamento de Ps-graduao em Cultura, Memria e Desenvolvimento Regional. III. Ttulo CDD: 928

TERMO DE APROVAO

ION CARQUEIJO SCARANTE

UM CONVITE LEITURA DE ANSIO MELHOR

Dissertao apresentada ao Programa de Psgraduao em Cultura, Memria e Desenvolvimento Regional do Departamento de Cincias Humanas, da Universidade do Estado da Bahia UNEB, Campus V, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre.

______________________________________________ Prof. Dra. Maria da Conceio Reis Teixeira UNEB

___________________________________________ Prof. Dra. Clia Marques Telles UFBA

___________________________________________ Prof. Dra. Rita de Cssia Ribeiro de Queiroz UEFS

Santo Antnio de Jesus - BA 2008

memria do meu pai, Maralo Joo Scarante, que soube to bem me ensinar o valor da leitura.

AGRADECIMENTOSSo tantos e to especiais... A Deus por ter me proporcionado estes encontros acadmicos e pessoais inesquecveis, encontros que me ajudaram a elaborar muito do que digo aqui e muito do que sou hoje como pessoa, como profissional e, tambm, por ter me apresentado a Ansio Melhor. minha me, meu pai, meus irmos por terem acreditado em mim. Joana Tmile Carqueija pela companhia nas minhas buscas ansiosas nos arquivos da cidade da Bahia. Christiane Oliveira pela presena constante, pelos sorrisos. Ao professor Lamartine Augusto, pela imensa contribuio neste estudo, possibilitando o meu contato com documentos pessoais, fotografias, epistolrio e produo literria de Ansio Melhor na Fundao Lamartine Augusto. E a sua secretria Marielza, por sua pacincia diante da minha sede pelo arquivo. Aqui fica o meu registro de gratido. Ao professor Joo Eurico Matta, por abrir as portas do seu arquivo particular para mim, na minha busca por mais imagens de Ansio Melhor. Aos funcionrios de arquivos e bibliotecas nas quais pesquisei: da Biblioteca Municipal Ansio Melhor e da Fundao Lamartine Augusto em Nazar (BA); da Biblioteca da Universidade do Estado da Bahia, Campus V; da Biblioteca Pblica do Estado da Bahia; da Biblioteca da Academia de Letras da Bahia; da Biblioteca Central da Universidade Federal da Bahia; do Instituto Geogrfico e Histrico da Bahia. Ao programa de Ps-Graduao em Cultura Memria e Desenvolvimento Regional da UNEB, pela oportunidade. Aos meus colegas do curso de Ps-Graduao com quem pude compartilhar uma gama de sentimentos, alegrias, preocupaes, incertezas. Em especial a Hildete Leal e a Dernival Ferreira pelo apoio e incentivo constantes. Aos professores do Programa de Ps-Graduao, por todas as lies que aprendi e pelas memrias que carrego comigo. Em especial ao professor Dr. Paulo Guerreiro e ao professor Dr. Daniel Francisco dos Santos pelos bons ventos que me proporcionaram nesta travessia. s professoras Dra. Clia Marques Telles e Dra. Rita de Cssia Ribeiro de Queiroz, pelo apoio bibliogrfico e por me ajudarem nas reformulaes deste texto. professora Dra. Maria da Conceio Reis Teixeira, em especial, minha orientadora, pela doura no existir, pela pacincia, pelo carinho e, sobretudo, pelo estmulo proporcionado neste estudo, nas formulaes e reformulaes desta dissertao. Minha verdadeira gratido. A todos aqueles que aceitem este convite e se arrisquem leitura destas grafias.

A arte uma escada de Jacob. H uma preocupao mais humana, mais sensvel mais viva no folhear o livro das dores da vida e o artista sobe um pouco acima da Terra para olhar a concepo amarga do soffrimento ou para sentir mais de perto as alegrias alheias. (Ansio Melhor, 1928).

RESUMO

Nesta dissertao, intitulada Um Convite Leitura de Ansio Melhor, objetivou-se realizar um levantamento sobre a vida e a produo literria do escritor baiano Ansio Melhor (18851955), cujo nome se impe pela variedade da sua produo literria: contos, poemas, artigos, crnicas, novelas, estudos sobre o folclore baiano, alm de desenvolver atividades ligadas ao teatro, ao jornalismo e educao. O texto composto por trs momentos: o primeiro, Sua Majestade o Homem, constitui-se do levantamento biogrfico do escritor Ansio Melhor; o segundo, intitulado Mltiplos olhares: a representatividade literria de Ansio Melhor, situao no panorama literrio nacional e regional e apresenta, tambm, as leituras de intelectuais que se debruaram sobre os seus textos; o terceiro, Dos arquivos a obra anisiana, revela a sua obra localizada em arquivos na capital baiana e na cidade natal do escritor, Nazar-BA. Acredita-se que este estudo contribui para a historiografia literria baiana e aponta caminhos para novas pesquisas sobre este autor.

Palavras-chave: Arquivos; Biografia; Literatura Baiana; Regionalismo.

ABSTRACT

In this dissertation, intitled an Invitation to the Reading of Ansio Melhor (1885-1955), was objectified to carry through a survey on the life and the literary production of the bahian writer Ansio Melhor, whose name imposes for the variety of its literary production: stories, poems, articles, chronicles, novels, studies on the bahian folklore, besides developing on activities to the theater, the journalism and the education. The text is composed by three moments: the first one, Its Majesty the Man, consists of the biographical survey of the writer Ansio Melhor; the second, intitled Multiple looks: the literary representation of Ansio Melhor, points out it in the national and regional literary panorama and presents, also, the readings of intellectuals who if had leaned over on its texts; third, Of the archives the anisiana workmanship, discloses its workmanship located in archives in the bahian capital and the native city of the writer, Nazar-BA. One gives credit that this study it contributes for the bahian literary historiography and points ways with respect to new research on this author.

Keywords: Archives; Biography; Bahian Literature; Regionalism.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: O escritor Ansio Melhor ............................................................................. Figura 2: Casa em que nasceu Ansio Melhor.............................................................. Figura 3: Cartaz O poeta ANSIO MELHOR em diferentes tipos .......................... Figura 4: O Conservador..............................................................................................

20 22 32 35

Figura 5: Os alunos em aula de Educao Fsica ......................................................... 37 Figura 6: A banda de msica do Asilo de Meninos ..................................................... 38 Figura 7: O jornal O Conservador ............................................................................... 41

Figura 8: Casa, anexa ao prdio do Clemente Caldas .................................................. 42 Figura 9: Aluno de Ansio Melhor ............................................................................... 42 Figura 10: Aluno de Ansio Melhor ............................................................................. 43 Figura 11: Fachada do Colgio Clemente Caldas na dcada de 1970 ......................... Figura 12: Senhora Hilda Muricy Melhor, esposa de Ansio ...................................... Figura 13: Tmulo do escritor ..................................................................................... 44 48 55

SUMRIO

APRESENTAO ....................................................................................................... 1 SUA MAJESTADE O HOMEM .............................................................................. 1.1 ANSIO MELHOR: UM ESBOO BIO-LITERRIO ........................................... 1.2 O TRABALHO REALIZADO NA IMPRENSA NAZARENA ............................. 1.2.1 Entre o jornalismo e a literatura ....................................................................... 1.3 PORTADOR DA VOZ POTICA: DESTAQUE NO TROBAR E NO CANTAR 1.4 UMA VIDA DEDICADA EDUCAO ............................................................. 1.5 OS AMORES ........................................................................................................... 1.6 A VIDA EM SALVADOR ...................................................................................... 1.7 A MORTE, O SEPULTAMENTO.......................................................................... 2 MLTIPLOS OLHARES: A REPRESENTATIVIDADE LITERRIA DE ANSIO MELHOR ...................................................................................................... 2.1 UM REGIONALISTA NO PANORAMA NACIONAL ......................................... 2.2 UM FICCIONISTA NO CENRIO BAIANO ....................................................... 2.3 UM OLHAR SOBRE A CRTICA .......................................................................... 2.3.1 O olhar dos crticos ............................................................................................. 2.3.1.1 O olhar de Castellar Sampaio ......................................................................... 2.3.1.2 O olhar de Carlos Chiacchio ........................................................................... 2.3.1.3 Outros olhares: crticas in memorian ............................................................ 2.4 MAIS HOMENAGENS O CENTENRIO DE ANSIO MELHOR ................. 2.4.1 Homenagem da Academia de Letras da Bahia ................................................. 2.4.2 Homenagens em sua terra natal ......................................................................... 3 DOS ARQUIVOS A OBRA ANISIANA ............................................................ 3.1 OS MEUS VERSOS (A COLLEO DOS PRIMEIROS) ....................................... 3.2 A NOVELSTICA ANISIANA ..............................................................................

13 20 21 24 25 31 36 45 51 53 56 56 61 68 71 73 75 78 84 86 89 90 90 91

3.3 ENTRE TROVAS E MEMRIAS PARTICIPAO NA REVISTA DA 96 ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA ................................................................ 3.4 PARTICIPAO EM OUTRAS REVISTAS LITERRIAS ...................... 100 3.5 VIOLAS: CONTRIBUIO AO ESTUDO DO FOLCLORE BAIANO ............. 102

3.6 A OBRA CATALOGADA .................................................................................... 3.6.1 Catlogo Ansio Melhor ..................................................................................... 4. CONSIDERAES FINAIS .................................................................................. 5 REFERNCIAS ....................................................................................................... 6 ANEXOS..................................................................................................................... ANEXO A Certido de nascimento do escritor.......................................................... ANEXO B Correspondncia de Ansio Melhor com Astrio Cruso........................... ANEXO C Requerimento feito pelo escritor com o objetivo de conseguir a sua aposentadoria.................................................................................................................. ANEXO D Certido de bito do escritor.................................................................... ANEXO E Programao da Semana de Ansio Melhor............................ ANEXO F Lembrana da missa em homenagem ao escritor................................

104 105 114 116 125 126 127 128 129 130 134

ANEXO G Indicao para a comemorao do centenrio do escritor........................ 135 ANEXO H Dirio oficial da Bahia suplemento em homenagem ao centenrio do 137 poeta ANEXO I Estante que pertenceu a Ansio Melhor quando ele residia em Salvador, no bairro do Toror ANEXO J Alguns amigos e admiradores do poeta Ansio Melhor ANEXO L Homenagem pstuma ANEXO M O peridico O Conservador ANEXO N O semanrio O Olho da Rua ANEXO O A revista A Cigarra ANEXO P Almas Enfermas 139 140 141 142 143 144 138

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APRESENTAO

Esta dissertao, intitulada Um convite leitura de Ansio Melhor, tem como temtica a vida e a obra de Ansio Melhor (1885-1955), escritor baiano, da cidade de Nazar, que comps uma obra que se impe pela diversidade de gneros literrios: novelas, poemas, artigos sobre o folclore regional, trovas, peas teatrais, crnicas, contos. Tornar transparente essa produo, desvelar as primeiras incurses literrias do escritor e destacar a importncia documental do conjunto de sua obra, contribuir para que algumas lacunas da historiografia literria baiana possam, em parte, ser preenchidas, constituem os objetivos deste trabalho. O que direcionou, num primeiro momento, a escolha do escritor para ser objeto do presente estudo foi a sua intensa produo literria e por ele apresentar em suas obras temticas locais. A relao de proximidade com um escritor, com uma obra literria, nasce muitas vezes de uma relao localista, telrica: a obra anisiana diz muito do Recncavo Sul e, em especial, apresenta recortes da cidade de Nazar, cidade em que vive a autora desta dissertao. Deve-se acrescentar, tambm, a estas justificativas assinaladas a necessidade de apresentar ao meio acadmico um escritor pouco lido, pouco estudado, que at ento passou despercebido pelos estudos acadmicos da modernidade. Aps localizar-se extensa documentao que muitos planos foram traados para que fossem pontuados neste estudo elementos importantes que pudessem (re)constituir a vida e a obra do escritor. Planos foram diversas vezes alterados, redirecionados, pelo fato de ter sido encontrado um rico material produzido pelo escritor que apontava caminhos abrangentes e tentadores. Assim, aps incansveis buscas em bibliotecas, em arquivos e em especial nas pginas do peridico O Conservador, enfim, a vida e a obra deste autor, a partir de seus prprios escritos, imperaram como objeto deste estudo. Percebeu-se que seria mais importante, neste momento, apresent-lo, trilhando as suas pegadas para inscrev-lo na memria cultural-literria brasileira. Traa-se neste estudo a histria de vida do autor, a fim de caracterizar o contexto histrico-social em que ele viveu. Registra-se sua atuao como jornalista, fundando jornais noticiosos, literrios e polticos em sua cidade natal. Registra-se a sua originalidade na construo de sua novelstica, de suas crnicas e de seus contos, que reside na sua busca por um efeito potico/metafrico entremeado de folclore e memria, visto que as tradies orais do Recncavo Baiano lundus, cantigas, trovas, lendas so acopladas as suas narrativas e contribuem para dar forma cidade natal do autor e revelam o olhar de um literato-folclorista

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enamorado de sua terra e de sua gente. Apresenta-se um levantamento biogrfico, intelectual e de parte da produo literria do autor, que comps uma variedade de gneros literrios na primeira metade do sculo XX, em sua cidade natal. Para empreender este estudo, foi necessria a leitura terica sobre memria, tradio, folclore, regionalismo, crtica literria, fontes primrias, arquivo, entre outros; a consulta a teses sobre resgate da obra de autores baianos; para a coleta de dados biobibliogrficos, com o objetivo de resgatar o itinerrio pessoal e literrio do autor foram realizadas pesquisas em arquivos com o objetivo de encontrar seus textos dispersos em peridicos e a sua fortuna crtica, bem como para obteno de informaes sobre a literatura baiana no sculo XX, para este fim foram empreendidas visitas nas seguintes instituies: Biblioteca Pblica do Estado da Bahia (nos Barris em Salvador); Academia de Letras de Ilhus; Academia de Letras da Bahia; Instituto Geogrfico e Histrico da Bahia; Biblioteca Central da Universidade Federal da Bahia; Fundao Lamartine Augusto e Biblioteca Municipal Ansio Melhor, ambas em Nazar - BA; foi realizada a leitura de sua obra publicada e dos textos dispersos encontrados em peridicos baianos e revistas de cunho literrio; alm disso, leu-se e fotografou-se documentos referente ao seu centenrio de nascimento e documentos pessoais bem como seu epistolrio, material concedido por Lamartine Augusto e Joo Eurico Matta. Desse modo, esteve-se muitas vezes diante de arquivos que guardam informaes sobre o escritor. Nesses arquivos visitados aparecem os vestgios da histria pessoal, intelectual, profissional do escritor, assim como muitos indcios da histria de seu tempo e dos seus lugares j que ningum vive fora de um contexto, de um cenrio. A cada estante aberta, a cada pasta examinada, a cada peridico lido, a cada manuscrito encontrado (a bela caligrafia) mais surpresas, mais encantamento pela vida e obra deste escritor; encantamento que se mostra a cada captulo deste estudo, apesar do esforo empreendido por escond-lo. Cada pea encontrada cartas, manuscritos de crnicas, de poemas, documentos pessoais, recortes de jornais, notcias sobre a vida e sobre a morte do escritor foi muito importante na constituio deste estudo, pois o trabalho com acervos se faz a partir de um conjunto de investigaes interdisciplinares, por isso comum dizer que a um arquivo interessa tudo, e interessa mais ainda o uso que se far deste tudo, no todo ou em partes; como salienta Compagnon (1999), do ponto de vista da apreenso do ato de conscincia que representa a escritura como expresso de um querer-dizer, todo documento, seja uma carta, uma anotao, pode ser to importante quanto um poema ou um romance. Mas nem tudo revelado pelos arcontes (os guardies, os donos dos arquivos). O arquivo, essa morada da censura, desperta no pesquisador uma paixo, uma inquietao em saber mais sobre o objeto

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pesquisado. Mal de arquivo a expresso utilizada por Jacques Derrida (2001) em livro homnimo para designar esta sensao. Nesse livro, o autor apresenta os ideais que Freud denominou de pulso de amor e de morte e caracteriza a perturbao em que vivem os pesquisadores que se envolvem nesta trama arquivstica, marcada pela espera sem horizonte acessvel ou pela impacincia de um desejo de memria:[...] estar com mal de arquivo, pode significar outra coisa que no sofrer de um mal, de uma perturbao ou disso que o nome mal poderia nomear. arder de paixo. no ter sossego, incessantemente, interminavelmente procurar o arquivo onde ele se esconde. correr atrs dele ali onde, mesmo se h bastante, alguma coisa nele se anarquiva. dirigir-se a ele com um desejo compulsivo, repetitivo e nostlgico, um desejo irreprimvel de retorno origem, uma dor da ptria, uma saudade de casa, uma nostalgia do retorno ao lugar mais arcaico do comeo absoluto. (DERRIDA, 2001, p. 118)

O arquivo um local de poder. Trata-se de um poder que se inscreve, se imprime, se consigna. Jacques Derrida (2001) apresenta dois sentidos para a palavra arquivo (arkh): o comeo (princpio da natureza ou da histria) e o comando (princpio da lei, da ordem social). Com base nesses significados, pode-se pensar nos arquivos de Ansio Melhor como um lugar de comeo, no qual foram encontrados elementos que compem suas referncias pessoais, profissionais, literrias, familiares; e, tambm, pode-se pensar nos seus arquivos como lugar de comando, de autoridade sobre aquilo que dever ser lembrado e que Derrida (2001, p. 32) denominou de poder de consignao, isto , a ao de organizar metodicamente o conjunto documental, sincroniz-lo de modo a adquirir uma configurao ideal, do ponto de vista do arconte, dando a idia de um todo homogneo. Nesse ponto reside o mal dos arquivos, pois o arconte, o dono do arquivo que pode ser o prprio autor, os familiares, os amigos, pesquisadores, instituies de ensino e pesquisa manipula a memria e exerce um papel de poder sobre os documentos e pode mascarar, destruir, interditar, recalcar ou desviar as informaes, tornando o arquivo, muitas vezes, excludente e repressivo. E, aps viver o mal de arquivo, o pesquisador tambm manipula o arquivo, na sua sede por ele, pela memria, ao construir outros textos. Pode-se inferir da leitura dos arquivos sobre Ansio Melhor, que ele um dos muitos exemplos de escritores que, pelo valor esttico de sua produo e pela sua versatilidade, poderia manter-se lembrado, ao menos, nos artigos e ensaios produzidos em sua terra natal. E suas obras poderiam ter sido reunidas, re-editadas. Ao contrrio, encontram-se dispersas em arquivos baianos, se decompondo com o passar dos anos. Algumas esto desaparecidas e,

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possivelmente, permanecero figurando apenas nas antigas listas (incompletas) das produes literrias do escritor. Uma hiptese que pode ser levantada sobre o autor encontrar-se atualmente esquecido o fato de ele ter vivido numa pequena cidade do interior, um tanto distante do furor literrio-cultural que a capital baiana vivia na primeira metade do sculo XX. Acredita-se, tambm, que este esquecimento se deu pela dificuldade que encontrou na publicao de seus livros e, por conseqncia, da dificuldade em criar um pblico leitor e uma opinio crtica em torno de suas obras, tal como outros escritores de sua poca. Somando-se a essas hipteses levantadas, est o fato de Ansio Melhor ter encontrado no jornal o espao para expor seus contos, crnicas, poemas e captulos de suas novelas. O descaso com que essa mdia era tratada pela alta literatura, ou pelo cnone, quela poca, no estimulava o crtico literrio a escrever sobre os textos, pois acreditava-se que estes tinham apenas a finalidade de entreter o leitor. Os autores que publicavam nesse espao eram considerados autores menores, pois a tiragem e a continuidade dos jornais davam um carter efmero as suas produes. Muitas crnicas e contos de Ansio Melhor, por exemplo, encontram-se dispersos e ainda no houve quem os reunisse em um livro. O presente trabalho encontra-se dividido em trs captulos, a saber: 1 Sua Majestade o Homem, 2 Mltiplos olhares: a representatividade literria de Ansio Melhor, 3 Do(s) arquivo(s) a obra anisiana. O primeiro captulo, Sua Majestade o Homem, constitui-se de um levantamento biogrfico de Ansio Melhor. Documentos sobre o escritor, bem como homenagens de amigos e admiradores localizados nos arquivos, algumas de suas correspondncias e o prprio conjunto de sua obra, permeada de emoes do autor, de suas memrias, ajudaram a compor seu retrato. Buscou-se montar um mosaico da relao Ansio Melhor com sua obra, uma relao em que a voz do homem e a voz do escritor se mesclam. A sua infncia, a sua dedicao leitura, o seu autodidatismo, a sua vida como homem de imprensa, a sua contribuio para a divulgao do teatro em Nazar, e cidades circunvizinhas, a sua dedicao educao e ao trabalho filantrpico que desenvolveu em sua cidade, a paixo por sua regio, nortearam a construo desta primeira parte do estudo. Alguns momentos de sua vida so aqui reconstrudos em parte, e deve-se aos documentos encontrados; algumas poucas informaes afloraram naturalmente em conversas informais realizadas com guardies da sua memria Lamartine Augusto, Joo Eurico Matta na busca ansiosa por mais imagens de Ansio Melhor, j que uma das dificuldades encontradas neste empreendimento reside, justamente, em este escritor encontrar-se ausente h 53 anos. Assim, a sua vida no aparecer completa, por isso esse seu resgate biogrfico apresenta saltos considerveis. Neste resgate biogrfico,

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abrem-se lacunas entre a infncia e a adolescncia de Ansio Melhor. Pouco se sabe, por exemplo, sobre a suas atividades escolares, sua vivncia nas salas de aula, nos poucos anos que freqentou a escola na condio de aluno. Segundo Antoine Compagnon (1996), a leitura repousa em uma operao inicial de depredao, de apropriao de algo, assim como se mastiga os alimentos por muito tempo para da ento digeri-los. Foi da leitura, da depredao e apropriao dos textos anisianos que foram observados os sinais do percurso percorrido pelo autor, e dado a conhecer um pouco do seu labor literrio. Por meio da leitura conheceram-se as suas recordaes do passado, as suas experincias pessoais, por isso uma obra de arte pode ser considerada produto secundrio da linguagem, pois ela elaborada a partir de dados primordiais. Essa concepo assegura que a obra de arte, neste caso a literatura, no espontnea como um gemido de dor, como uma gargalhada, como o sono, e outras necessidades fsicas. A obra de arte supe um comeo, uma causa primeira, uma origem, s vezes, desconhecida, oculta: as fontes primrias, matria da histria, como afirmam Regina Zilberman, Maria Eunice Moreira, Maria da Glria Bordini e Maria Luiza Ritzel Remdios (2004). Para essas autoras, as fontes podem compreender todo material utilizado pelo artista seja na fase de gestao ou de produo de sua obra: as suas recordaes de sua infncia, seus sonhos, histrias particulares ou coletivas, a tradio local ou nacional, seus escritos, suas leituras. As fontes primrias certificam o passado e oferecem elementos palpveis, concretos sobre um tempo que j no , mas que foi. Elas so matria-prima na construo de uma narrativa. E a memria fica a meio caminho entre o coletivo e o individual, o histrico e o pessoal, o apropriado e o original (ZILBERMAN, et al, 2004, p. 19) como um ponto de interseco entre as fontes e a obra de arte. Em Mltiplos olhares: a representatividade literria de Ansio Melhor, segundo captulo deste estudo, buscou-se apresentar o escritor a partir do olhar dos crticos de sua poca, bem como o olhar de amigos, admiradores de sua incurso literria e de seus feitos em sua terra natal. Registram-se as homenagens prestadas ao escritor pela imprensa baiana na ocasio de sua morte e na ocasio do centenrio do seu nascimento; apresenta-se a representatividade literria do escritor, situando-o no regionalismo nacional e no panorama dos ficcionistas baianos do sculo XX; mostra-se a sua obra atravs dos olhares dos seus leitores, aqui representados por literatos, folcloristas, memorialistas, jornalistas, crticos literrios. No terceiro captulo, Do(s) arquivo(s) a obra anisiana, apresenta-se um levantamento sobre a obra anisiana, bem como comentrios sobre alguns dos seus livros publicados. O

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levantamento dos exemplares foi uma das dificuldades encontradas para o andamento inicial da pesquisa. Nas bibliotecas pesquisadas na capital baiana (Biblioteca Pblica, Biblioteca da Academia de Letras da Bahia, Biblioteca Monteiro Lobato) foram encontrados apenas dois dos livros publicados por Ansio Melhor: Violas e Maria Cabocla, edies fac-similares realizadas pela Fundao Cultural do Estado da Bahia em 2002. J em relao ao peridico O Conservador, foram encontrados no setor de jornais e revistas raros da Biblioteca Pblica de Salvador uma quantidade razovel, alguns textos apresentam-se incompletos ou carcomidos, mas alguns exemplares que puderam ser consultados permitiram, entre os caminhos desprezados pelos fungos, a reconstituio da vida e obra do autor que fazia das pginas de O Conservador no s o suporte para publicar seus textos literrios. Esse meio massivo de comunicao nas mos de Ansio Melhor era tambm uma espcie de dirio, no qual o autor, todos os dias, surpreendia o leitor, contando-lhe detalhes de sua vida, fazendo-lhe confisses, expondo sentimentos. As quatro novelas anisianas foram localizadas nos acervos da Biblioteca Municipal Ansio Melhor, da biblioteca da Fundao Lamartine Augusto em Nazar e da biblioteca particular do professor Joo Eurico Matta, (filho de Edgar Matta companheiro de redao de Ansio Melhor no peridico O Conservador). O curioso que duas dessas peas Almas Enfermas e Maria do Cu so datiloscritos, cujos originais no foram localizados at o momento. Estas obras foram datilografadas e distribudas pelo amigo de Ansio Melhor, Walter Ferreira, j falecido, um apaixonado pela obra anisiana, a amigos que tinha em comum com o escritor. Em alguns desses datiloscritos foram encontrados bilhetes do colecionador, uma espcie de dedicatria aos amigos de Ansio Melhor. Walter Ferreira, colecionador da cultura nazarena e da obra anisiana, colaborou para a formao do arquivo de Ansio Melhor da biblioteca da Fundao Lamartine Augusto, doando, alm de datiloscritos de novelas e de contos, alguns documentos pessoais, manuscritos e fotografias pertencentes ao autor. J a obra Maria Lcia, localizada na Fundao Lamartine Augusto, uma cpia xrox do original, tambm doada por Walter Ferreira, e ignora-se a existncia de outros exemplares desta obra. Muitas partes desta novela se encontram apagadas comprometendo, em parte, a leitura. Dentre os textos que foram localizados, at o presente momento, que situam Ansio Melhor no Panorama da Literatura Brasileira, destaca-se neste estudo uma biografia registrada na Enciclopdia de Literatura Brasileira, Vol.II, organizada pelo crtico literrio Afrnio Coutinho (2001, p.1044). Cumpre-se dizer que Afrnio Coutinho alm de grande observador dos movimentos literrios ocorridos no Brasil, renovou o debate crtico cujo devotamento como pesquisador o fez resgatar movimentos literrios, obras, autores subestimados pelo

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cnone literrio ou mesmo esquecidos pela historiografia brasileira. Nessa enciclopdia, Afrnio Coutinho apresenta dentre outros tantos nomes que ajudaram a compor a paisagem literria brasileira, o escritor nazareno Ansio Melhor poeta, romancista, contista, teatrlogo, jornalista, membro da Acad. Letr. BA (COUTINHO, 2001, p.1044). Cita-se a relao das obras localizadas pelo crtico, que d uma idia da dimenso da obra anisiana. De posse desta lista, buscou-se em arquivos baianos os ttulos enumerados por ele. Muitos dos ttulos citados no foram encontrados at o momento, no se sabe se ainda existem, e os que existem necessitam ser reeditados para no incorrerem no risco de tambm desaparecerem. E muitos outros ttulos esto ausentes nesta lista, visto que, Ansio Melhor, nos trinta anos de circulao do jornal O Conservador, publicava todos os dias um ou mais textos de criao poemas, trovas, contos, crnicas, captulos de romances. Apresenta-se nesse captulo um catlogo organizado pela pesquisadora com as obras por ela encontradas, seguidas da data de publicao, do local onde se encontram e da classificao quanto ao gnero literrio boa parte salientada pelo prprio escritor. Deve-se acrescentar que essa catalogao ainda no est completa, alguns ttulos de livros apontados nas listas encontradas no foram localizados, bem como nem todos os exemplares de O Conservador, pertencentes ao acervo da Biblioteca Pblica de Salvador, puderam ser consultados, por causa do avanado estgio de decomposio em que se encontram e, esses volumes tambm no esto completos. O peridico era publicado todos os dias durante 30 dcadas, ininterruptamente de 1912 a 1942 portanto so muitos textos, muito mais do que se conseguiu catalogar, haja vista o curto espao de tempo destinado a este curso de mestrado (dois anos). Ao longo dos trs captulos do presente estudo, buscou-se proporcionar uma viso do conjunto da obra anisiana, fazendo uma reconstituio do perfil intelectual e pessoal do autor, manifestado em sua prpria potica e pelos crticos e admiradores de sua obra. Alm disso, pretende-se apresentar suas produes ditas e dispersas com o intuito de examinar suas idias e assinalar sua contribuio para a Literatura Baiana. O leitor desta dissertao perceber que em muitos momentos a vida do escritor aparecer por meio da obra. Na realizao de um trabalho desta especificidade h dificuldades em dissociar a vida da obra, da a sensao de algumas idias parecerem repetitivas, e a sensao de que algumas informaes deveriam ser ditas anteriormente, ou mais adiante ou mesmo que algumas poderiam ter sido recalcadas.

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1 SUA MAJESTADE O HOMEM1Levanta a tua idia como um pharol. D a ella toda a fora das tuas convices, para que ella illumine e deslumbre; convena e arraste; prenda e suggestione. Ansio Melhor.2

Figura 1 - Fotografia do escritor Ansio Melhor.31

Sua Majestade o Homem o ttulo de uma crnica de Ansio Melhor que faz parte da coletnea Idias e Emoes folhetins DO Conservador. Esse texto discorre sobre a humildade e aponta a vaidade como desdobramento do egosmo. O autor disserta tambm sobre a perseverana que um homem de letras deve ter para levantar a idia que acredita, pesando-a na balana da conscincia, fazendo dela uma clava para vencer os obstculos e triunfar. Por acreditar que este texto representa muito os ideais de Ansio Melhor, o seu ttulo foi tomado como emprstimo para nomear este captulo que apresenta elementos da sua vida. 2 A forma original dos textos encontrados foi mantida, respeitando a pontuao, a ortografia, maisculas e minsculas, questes de regncia, inverses e espaamento que o autor utilizou, j que essas caractersticas gramaticais e literrias so prprias dos autores do perodo vivido por Ansio Melhor.

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1.1 ANSIO MELHOR: UM ESBOO BIO-LITERRIO Neste estudo, buscou-se, especialmente, na produo literria do escritor Ansio Melhor informaes que permitiram resgatar o homem, o cronista, o educador, o poeta, o romancista, o pesquisador do folclore do Recncavo Baiano. A obra anisiana encontra-se dispersa em arquivos na capital baiana e na cidade natal do escritor, Nazar. Da leitura de sua obra, mais importante fonte de informaes encontradas sobre o escritor, apreende-se que sua poesia e a sua vida mesclam-se. Ansio Melhor nasceu na cidade de Nazar4 situada no Recncavo Baiano5, no dia 07 de maio de 1885. Viveu toda sua infncia e adolescncia numa modesta casa localizada rua do Batatan, atual rua Deputado Manoel Lopes Bittencourt, na antepenltima casa do final da rua, nmero 1456. Era filho do comerciante Manoel Gonalves Melhor e Sofia Amlia de Jesus Santos. O seu pai, o Sr. Manoel, era dono da maior padariamercearia do bairro do Batatan, em Nazar. Ansio Melhor era o filho mais velho de Dona Sofia e do Sr. Manoel, teve apenas um irmo, que se chamava Antonio dos Santos Melhor7. Sendo seus avs paternos Jos Gonalves Melhor e Dona Maria Augusta Gonalves Melhor e avs maternos o Sr. Jos Leandro dos Santos e Dona Joanna de Jesus Santos.

As Fotografias presentes neste estudo foram gentilmente cedidas pela Fundao Lamartine Augusto, Nazar BA, com exceo das fotografias dos jornais O Conservador, e da revista A Luva, essas foram feitas pela pesquisadora no Arquivo da Biblioteca Pblica dos Barris, em Salvador - BA. 4 Conforme a Enciclopdia dos Municpios (1958), volume XXIII IBGE, In. SANTOS, Milton. Contribuio ao Estudo do Recncavo: 3. Nazar, Boletim Baiano de Geografia, n. avulso, outubro de 1969, p. 4. O povoamento se fez a partir da foz do rio Jaguaripe, por colonos vindo de Itaparica. A lavoura aucareira foi o principal motor da expanso humana. Um aparecimento da Virgem Maria na localidade deu a origem a romarias e edificao de uma capela, a partir de 1649, que, dedicada a Nossa Senhora de Nazar iria dar seu nome cidade. Segundo SANTOS (1969, p. 4), o municpio foi importante centro comercializador de frutas, de cana-deacar, de farinha de mandioca, razo por que a cidade popularmente chamada de Nazar das Farinhas. Nazar funcionava como entreposto dos produtos regionais que eram exportados para Salvador por via martima. O povoamento passou a ser vila e sede de municpio (desmembrado de Jaguaripe) em 1831. Em 1849 Nazar tornou-se oficialmente cidade. Limita-se com os municpios de Aratupe, Jaguaripe, Muniz Ferreira e So Felipe. Localiza-se s margens do Rio Jaguaripe, cuja nascente est localizada no municpio de Castro Alves- BA. 5 Consoante Pascal Motti apud SANTOS (1969, p.1), Recncavo um mosaico associando as regies do acar, do fumo, da mandioca e dos frutos, e do petrleo, desde algumas dcadas. Atualmente, com recentes subdivises atribudas ao Recncavo Baiano, Nazar integra o Recncavo Sul da Bahia, uma vez que foi estabelecida uma diviso no mapa poltico do Recncavo Baiano. 6 Informaes colhidas e datilografadas por Walter Ferreira, amigo, pesquisador e admirador de Ansio Melhor. Tratam-se de anotaes datilografadas em folha avulsa, armazenada em pasta-catlogo, constante no arquivo da Fundao Lamartine Augusto - Nazar- BA. 7 Segundo Lamartine Augusto, em seu livro Porta do Serto (1999, p. 247), Antnio dos Santos Melhor, homem de prestgio em Nazar, foi prefeito da cidade por dois perodos, de 1951 a 1955 e de 1959 a 1963. Poltico do velho estilo dos coronis, Santos realizou uma administrao de carter popular.

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Figura 2 Fotografia da casa em que nasceu Ansio Melhor.8

Consoante depoimentos de amigos e admiradores, Ansio Melhor foi um homem de corao bondoso, de conversa agradvel, de voz doce. Era de feies bonitas e mantinha um bigode de seda, Castro Alves como se pode notar na fotografia apresentada na abertura deste captulo. Do ponto de vista filosfico e religioso, o poeta era catlico, foi membro da Loja Manica Fraternidade Nazarena e pertenceu Fraternidade Esotrica da Comunho do Pensamento, cuja sede est localizada em So Paulo. Homem puro, humano e abnegado, sentimental, de ar solitrio e discreto, no era afeito aos tumultos da multido, possua um vasto crculo de amigos muito fiis na capital e no interior. Em Nazar, fez apenas o curso elementar, ou de primeiro grau. Todo conhecimento adquirido a partir da, resultado de sua dedicao pessoal aos estudos, o que faz dele um autodidata. Conforme os relatos do amigo, admirador e colecionador de suas obras, Oswaldo Cruso (1978, p. 1-2):Quem o visse folheando gramticas de vrias lnguas, jamais acreditaria que aquele simples empregado da Padaria Batatan do Sr. Melhor, situada Rua do Batatan, hoje Rua Deputado Joo Bittencourt, lia obras de Dante, Musset, Cervantes e at Goethe na lngua original, legando tambm s letras de sua terra natal, pginas encantadoras de poesia regionalista, nos livros que escreveu.

8 A casa, localizada no Bairro do Batatan, foi demolida recentemente para ser construda outra de arquitetura moderna.

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Homem de escassos recursos financeiros, mas muito respeitado e admirado por todos, Ansio Melhor teve efetiva participao na vida pblica e cultural na sua cidade natal. Seu autodidatismo foi exaltado por escritores e jornalistas. Dentre os jornais de sua poca, pode-se citar O Paldio da cidade de Santo Antnio de Jesus, fundado em 15 de novembro de 1901, que apresenta a notcia intitulada Os que se distinguem pelo prprio esforo. Nela o autor, o diretor e proprietrio do jornal, Antnio Mendes Arajo, expressa sua admirao inteligncia de Ansio Melhor:So raros, na Bahia, os homens de saber, gerados em atmosfera sem dilataes e amplitudes. Raros e admirveis. Dessa estirpe, temos perto de ns um exemplo, um diamante de primeira gua, de raro brilho: Ansio Melhor. (ARAJO, 07 nov. 1945, p. 1)

As suas memrias da infncia, dos tempos da mercearia do seu pai so evocadas em seus textos. O seu soneto O fechar-se o comrcio s 8 horas, um exemplo disso. Trata-se de um poema com doses de humor, em homenagem s leis trabalhistas. Nele o poeta apresenta suas lembranas de quando comeou a trabalhar, ainda menino, como caixeiro, no j referido estabelecimento de seu pai:Que felizardo agora o caixeiro! Pudera, s oito horas dando o fora! Tomar seu banho pelo corpo inteiro, E ir rua onde a menina mora! Oh ! meu tempo em que fui, sem ter dinheiro, Vendedor de aguardente a toda hora! De calcinhas de brim, soo e sombreiro Desses de dois mil ris venda agora! A lei foi uma lei muito bem justa, Balco! Eu c sei bem quanto isso custa! Caixeiros vos vingastes em segredo! Coitado do patro que vive aflito, Que em casa recebido sempre a grito, E se v obrigado a ir mais cedo! (MELHOR, apud MATTA, 1990, p. 191-192)

Em suas crnicas, o autor revela imagens de sua infncia, como em Amigos Mortos das memrias de minhas memrias (MELHOR, 1941, f. 02), em que relata seu convvio, quando criana, com um grupo de ex-escravos que residia no bairro em que ele nasceu; conforme o escritor, eram cerca de cinqenta africanos, viviam todos de pequenas roas, mercados de frutas e quitutes de origem africana os quais comercializavam na feira de Nazar.

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Na mesma obra, ele afirma que seu pai tornara-se uma sombra amiga para aquela gente, fiscalizando as suas compras de terras e de mocambos, garantindo-lhes na polcia as suas danas e rituais e at casando-os na Igreja do bairro (MELHOR, 1941, f. 02) o que denota que o pai do escritor tinha algum prestgio face sociedade nazarena daquela poca. O poeta, ainda menino, atendia esses ex-escravos no balco da mercearia, falando a lngua deles, o nag, que impulsionado pela curiosidade aprendeu a falar. E o poeta ouvia-lhes suas histrias, suas crenas, seus sonhos, suas dores. Dessa sua curiosidade pelos povos africanos, dessa sua proximidade com eles, ouvindo-os e aprendendo com esses seus amigos, Ansio Melhor volta o seu olhar para as tradies orais de sua regio e na luta contra o apagamento dessas tradies, apega-se ao telrico e as suas memrias para compor seus poemas e suas narrativas. Parafraseando Lowenthal (1988, p. 83) relembrar o passado crucial para que o sentido de identidade seja compreendido, a continuidade de uma comunidade depende inteiramente da memria, por isso a importncia em recordar experincias vividas no passado, porque elas ligam as pessoas aos seus selves anteriores, por mais diferentes que tenham se tornado. Assim, so das memrias de suas memrias que Ansio Melhor (re)escreve sua histria e a histria de sua terra, um processo de interseco entre suas experincias vividas, a memria coletiva e a experincia de criar atravs da linguagem verbal.

1.2 O TRABALHO REALIZADO NA IMPRENSA NAZARENA

A imprensa representou um importante veculo para a divulgao das produes literrias de Ansio Melhor. Ele foi colaborador atuante de vrios jornais nazarenos, como por exemplo, O Conservador, fundado por ele em companhia dos conterrneos Edgard Matta e Milito Santos, em 05 de maio de 1912, semanrio que se fez importante veculo de informao no Recncavo Baiano at o ano de 1942. Ansio Melhor foi o redator-gerente desse jornal, que circulou ininterruptamente, todos os dias da semana, at o ano de 1942, num total de trinta anos divulgando a histria de Nazar e do Recncavo Sul Baiano. Era de cunho noticioso, literrio e popular, conforme se depreende das informaes constantes no cabealho do prprio jornal. H nesses trinta anos de jornal uma diversidade de gneros textuais contos, crnicas, poemas, noticirio, notas de falecimento, agradecimentos, avisos, documentrios, notcias, crticas literrias, pesquisas sobre o folclore da sua regio em sua

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maioria produzidos por Ansio Melhor. Em todos os seus exemplares h publicaes do escritor. Ansio Melhor foi tambm redator dos jornais nazarenos: O Regenerador que circulou entre 1801-1929, e do jornal A Semana, semanrio poltico; e fundou a revista literria (mensal) A Cigarra em 1914, que circulou em Nazar (teve 11 nmeros publicados) e o jornal humorstico semanrio O Olho da Rua em 19239. Muitas de suas criaes literrias apareceram nesses espaos e provavelmente proporcionaram-lhe um nmero significativo de leitores.

1.2.1 Entre o jornalismo e a literatura

Ansio Melhor, desde a adolescncia, demonstrava interesse pelos jornais. o que se depreende em uma de suas crnicas:Quando a meninada do meu bairro trepava os cajueiros, jogava o pio e mergulhava o poo do Ara, eu j retalhava os jornaes, collecionando versos e phantasias, formando volumes de miscelanias, como se chamavam esses livros de antologia popular. (MELHOR, 1934, f. 2)

Da reunio de alguns de seus folhetins, o escritor publicou o livro Idias e Emoes10, uma coletnea composta por vinte e seis crnicas de autoria de Ansio Melhor, publicadas em O Conservador. O folhetim, gnero textual to utilizado por Ansio Melhor, o texto-av da crnica dos tempos atuais e surgiu no Brasil no sculo XIX por influncia da imprensa francesa, apresentando-se com caractersticas semelhantes s do fuilleton. O termo folhetim era utilizado para designar romances publicados em captulos nos rodaps de jornais. Tambm designava o espao ocupado na primeira pgina do jornal. Desse modo, a crnica, o captulo do romance ou a coluna propriamente dita, publicadas no jornal, poderiam ser chamados folhetim: um espao privilegiado de regularidade semanal, que tornava o folhetinista conhecido. Essas caractersticas podem ser reconhecidas no folhetim anisiano produzido nas primeiras dcadas do sculo XX em Nazar.

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Cf. exemplar do semanrio O Olho da Rua em anexo. Idias e Emoes folhetins DO Conservador, um livro produzido pelo prprio Ansio Melhor, que reuniu algumas de suas crnicas para o Jornal O Conservador. Os exemplares encontrados na Biblioteca Ansio Melhor e na Fundao Lamartine Augusto so cpias do original e no apresentam informaes sobre a data em que fora publicado e nem sobre a grfica ou editora que o publicou.

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Em Idias e Emoes folhetins DO Conservador, o autor caminha por entre aspectos polticos, sociais, culturais e pessoais e enquadra-se no perfil do folhetinista:Obrigatoriamente verstil, o folhetinista, colibri ou borboleta, deve ser capaz de passar em revista os principais acontecimentos da semana, sejam tristes ou alegres, srios ou jocosos, econmicos ou polticos, sociais ou culturais. Tudo isso com as variaes de estilo que cada assunto requer. (FARIA, 1992, p. 306)

O papel do folhetim registrar, tambm, acontecimentos dirios, por isso a sua importncia histrica para o Recncavo Baiano. Desse modo, o folhetim anisiano pertencia ao jornalismo por ser em sua essncia informativo e muitas vezes crtico, nele o literrio insinuase na informao, cedendo, muitas vezes, espao para o devaneio, para as descries sobre a natureza, apresentando muitos momentos em que o literrio desbanca o que puramente referencial. o que acontece quando o autor apresenta as praias de Itaparica e conversa com um interlocutor imaginrio:Lcia Esta a cidade das belas paisagens. Um grande poeta das cores, artista e homem, retina e sensibilidade, arrancaria dessas praias para o enquadrado das telas, assombrosos trechos da natureza, harmonias admirveis de cores e deslumbramentos. Imagina, Lcia, que o meu olhar se estende por guas azues e praias alvadias. Sinto-me debaixo de um cahir de tarde fresca e suave, vendo o sol a descer vermelho, brilhante. (MELHOR, [s.d.] p. 3)

A interlocutor Lcia aparece em muitas crnicas de Ansio Melhor, ela a grande personagem de seus folhetins, aparece tambm em suas novelas e em muitos de seus contos:Lcia um amor que venho guardando de criana [...] vive em todos os meus versos e nas pginas de todos os meus contos. Apareceu nas minhas novellas e eu tinha alegrias serenas, zelos de pae amoroso para ella, que se tornava creana, mal eu sentia hora por hora o caminho dos annos. E chamei-a Maria Cabocla, Maria das Graas, vi-a correr pelos campos, vi-a, num mpeto de amor atirar-se no mar [...] Outros, disse eu graciosa leitora, chamam a dona destas cartas Musa, Inspirao, Phantasia; chamo-a Lcia, comprehende? (MELHOR, Idias e Emoes, p. 22,23,24)

No raro, Ansio Melhor dirige-se em suas crnicas ao leitor, interlocutor imaginrio, como se pode perceber no texto Sua Majestade Homem. O uso do verbo no modo imperativo uma constante em todo o texto e o cronista segue figurando seu leitor, como algum que, paternalmente, deve lhe ensinar alguma lio. No s a figura do leitor destacada no texto, percebe-se os contornos do escritor, cujo perfil desvela impresses, experincias pessoais com

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que tenta conquistar a confiana, a cumplicidade dos leitores com suas digresses em torno dos que vencem pelo esforo e crem nos prprios ideais:Caminha. Levanta a tua idia, pesa-a na balana da tua conscincia e faze della uma clava, para vencer embaraos e triumphar no esprito do povo. Aquelle que faz triumphar uma idia collocou uma estrella no infinito. Anda; s homem. A onda anonyma achata, porque pesada [...] Sozinho, tu fars bem melhor que um cento. Lana a tua palavra ao vento e ella no ter a esterilidade da semente da parbola christ [...] (MELHOR, Idias e Emoes, p. 115).

Dentre os gneros literrios publicados em O Conservador, as crnicas so os que mais evidenciam o modo de escrever de Ansio Melhor, bem como apontam pistas de seu percurso intelectual e de sua evoluo como escritor. A crnica, antes de ser crnica propriamente dita, foi folhetim, isto , figurava nos rodaps dos jornais como artigo sobre os assuntos do dia.Ora, a crnica est sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimenso das coisas e das pessoas. Em lugar de oferecer um cenrio excelso, numa revoada de adjetivos e perodos candentes, pega o mido e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas. Ela a amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas e tambm nas suas formas mais fantsticas, sobretudo porque quase sempre utiliza o humor. (CANDIDO, 1992, p. 14)

Antonio Candido, em A vida ao rs-do-cho (1992, p.165 166), afirma que encontrou as origens da crnica no Brasil no Correio Mercantil do Rio de Janeiro, particularmente entre as dcadas de 1854 e 1855, num espao de folhetim intitulado Ao correr da pena, sob a responsabilidade de Jos de Alencar, considerado importante escritor da Literatura Brasileira. O autor semanalmente discorria sobre temas da atualidade atravs de alguma crnica. Consoante Antonio Candido, gradativamente, esse texto foi ganhando um aspecto despretencioso, pessoal e teve o seu tamanho reduzido, tornou-se um gnero menor o que o permitiu ser lido por um nmero cada vez maior de pessoas, pois o cronista utiliza-se de uma linguagem natural, que se aproxima do dia-a-dia, trata-se de um texto curto que foi enveredando cada vez mais na poesia e numa verso mais moderna ganhou um tom humorstico. O cronista Ansio Melhor escreve do simples rs-do-cho (CANDIDO, 1992, 165). A escrita anisiana no a escrita de algum como se estivesse observando os fatos do alto de uma montanha. Ela vive dos fatos dirios. De cunho revelador e insinuante, faz parte do dia-adia das pessoas e principalmente no jornal, suporte transitrio, que encontra abrigo. Quando a crnica passa do jornal ao livro, adquire maior durabilidade, podendo atravessar dcadas,

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sculos. O autor selecionou algumas crnicas dispersas no peridico O Conservador e publicou-as no livro intitulado Idias e Emoes, certamente com o desejo de perpetu-las. Nada escapa aos olhos do cronista, este precisa conhecer o presente, o passado e o futuro, como sinaliza a etimologia da palavra crnica. O cronista do passado organizava cronologicamente os acontecimentos, apresentando-os por meio da arte de escrever, para fixar os fatos que um dia fizeram parte do presente. Walter Benjamin (1992, p. 165-166) assinala que a crnica do passado tinha o papel de historiar um perodo vigente ou que se revelava em documentos recentes. Este estudioso afirma ser o presente a base da crnica. No tempo em que os jornais no existiam, os reis se valiam da crnica para guardar a memria dos acontecimentos importantes. A partir desses textos tinham-se imagens de sociedades passadas, via literatura. J o cronista moderno, que se utiliza do jornal, tem um papel mais leve, aproxima-se do leitor como numa conversa ao p-do-ouvido. s vezes o cronista tem a notcia como ponto de partida para escrever o seu texto, mas, sem receios, volta as costas para ela, pois sua inteno no necessariamente informar. O coloquialismo presente nas crnicas anisianas aproxima o autor dos seus leitores, investe a oralidade na escrita, tratando de tudo, oferecendo sua viso sobre acontecimentos que antes foram difundidos sem nenhuma emoo. Desse modo, a crnica um gnero hbrido, situa-se na fronteira entre o jornalismo e a literatura; une a objetividade do jornalismo subjetividade da literatura:L fora um jovem intellectual matou-se. Um momento de desespero, uma carta anonyma apagou-lhe a vaidade de viver. O anonymato no deprime, levanta; No ataca, defende; no mancha, purifica. Valer-se do anonymato cuspir injrias ao vento; morder sem dentes; como envenenar a gua; s degrada a quem o faz. O anonymato a escuma da covardia. Matar-se por ser atacado pelo annimo julgar-se muito fraco, muito desiludido [...] (MELHOR, Idias e Emoes, p. 36)

As crnicas, muitas vezes, revelam a auto-imagem do cronista. Em A Tribuna e o Palldio (MELHOR, 1934, p. 2), texto que homenageia esses dois peridicos interioranos, Ansio Melhor revela o que o jornal representa em sua vida:O jornal no vale tanto pela decorao das gravuras e o tamanho do formato, como pelo mrito das idias, o amor que se tem vinculado terra do nascimento, porque todo o jornal tem vida, tem brios, enche-se de foras escondidas do patriotismo resistncias hericas para defender as causas que esposa. (MELHOR, 1934, p. 2)

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E diz mais, que tudo isso se encontra no na simples folha do jornal, mas na figura mxima de seu dirigente. E discorre sobre o trabalho solitrio do jornalista, aliando ao texto suas vivncias enquanto leitor de jornais dos mais variados e, especialmente, enquanto jornalista de uma pequena cidade do interior baiano. O trabalho rduo do jornalista o que ele quase denuncia ao confidenciar em uma de suas crnicas:Descobri-o no crebro que age, muitas vezes numa salinha humilde, enobrecida, apenas, de livros; na mo que fez correr a penna sobre as tiras de papel, s vezes, retalhos da prpria folha inutilizada pelo desacerto da mquina ou impreciso da guilhotina. (MELHOR, 1934, p.2)

Ele confessa, assim, que o desejo de se tornar um jornalista nasceu a partir das experincias vividas e especialmente de seu fascnio pela leitura, pelas influncias estticas do poeta Castro Alves, dos contos de Coelho Neto e das crnicas de Pedro Ramos que eram publicadas nos jornais que ele colecionava. Alm dessas revelaes, o autor estabelece um paralelo entre os peridicos da capital e do interior baiano e afirma que o jornal do interior apresenta-se distinto dos jornais da capital, visto que aquele nasce por uma necessidade e no por um simples capricho da ambio do jornalista. O momento em que ele viu de perto um jornalista, aos dezesseis anos de idade, est assim por ele relatado:Trazia elle dentro da carteira de viajante os primeiros nmeros de O Paldio. E eu invejei aquele homem que sabia reunir em linhas, centenas de pedacinhos de chumbo para divulgarem coisas to bonitas como os versos de Castro Alves, as phantasias de Coelho Neto e, pertinho de mim, as chronicas lapidares de Pedro Ramos! Via-me tambm viajante pela minha gazeta! (MELHOR, 1934, p. 2).

O cronista revela ainda o seu desejo em trabalhar na imprensa:A minha vontade de trabalhar na imprensa teve grande influncia naquele seu desassombro de periodista que no conhece obstculos, fazendo de sessenta centmetros de papel, uma coisa to til nos lares sertanejos como o po no almoo matutino de todos os domingos. (MELHOR, 1934, p. 2).

Segundo o escritor, o jornal de interior valoriza cada leitor de sua cidadezinha, conhece seu pblico muito de perto, anota dia a dia os acontecimentos: ora a crnica de cunho social, ora o comentrio sobre os falecimentos, ora o nascimento de mais uma criana. Assim, constri, a cada dia, a histria dessa gente do interior, registra suas tradies, quase tudo construdo por um s indivduo.

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Conforme o prprio escritor, trs pessoas contriburam para que ele trilhasse no caminho das letras: Affonso Costa, Rosendo Filho e Antonio Mendes. Affonso Costa foi para ele mais que um irmo, foi o responsvel por levar o seu nome para fora dos limites de Nazar, tornando-o conhecido nas sesses do Atheneu Muniz Barreto e na Academia de Letras da Bahia, sempre exaltando suas qualidades de literata e jornalista. Os outros dois amigos jornalistas, influram no seu esprito de forma diferente, sempre enviando notcias das matas e do litoral baiano. Os peridicos A Tribuna (de Nazar) e O Palldio (de Santo Antonio de Jesus), serviram de inspirao para o escritor, que os mantinha em sua mesa durante o processo de criao de seus textos. Ele confessa que antes de ler os jornais da capital ou os de fora da Bahia, lia todos os jornais do interior baiano, e desse contato dirio com vrios jornais, o escritor se mantinha sempre bem informado e aperfeioava a cada dia suas habilidades de jornalista-autodidata. E cita outros jornais que faziam parte do seu cotidiano de leitor:Conheo A Ordem, desde os tempos do velho Jos Ramiro, A Pena desde o tempo de Joo Gumes, a Folha do Norte do tempo em que Arnold Silva publicou o primeiro nmero; at os jornaes meninos de poucos annos, como o Sudoeste, A Cachoeira, O Combate e vejo na mocidade de Deraldo, de Laudionor e outros, aquella mocidade enthusiasta que j se vae tornando em sombras ao p de minha figura. (MELHOR, 1934, p. 2)

Em sua crnica Imprensa em Nazareth, publicada em julho de 1929 em O Conservador, o cronista apresenta uma espcie de inventrio com nomes de jornais e revistas que circularam em Nazar com seus respectivos representantes. Trata-se de uma lista de 45 nomes, entre jornais e revistas, e dos quais ele dizia possuir 31 deles, de alguns guardava coleo completa de mais de um ano. Dentre os jornais elencados que fizeram parte da vida de imprensa de Nazar, pode-se citar, entre outros: O Regenerador (1901-1929), O Artista Nazareno (1873-1874); A Tribuna Liberal (1885-1887); O Trabalho, do redator Astrio Embiruu; A Semana, semanrio poltico do diretor e proprietrio Nestor Silva; A Cidade de Nazar do diretor e proprietrio Pedro Ramos; O Correio de Notcias, de propriedade e direo do professor Ferreira da Cunha; A Notcia, noticioso e poltico, de propriedade e redao de Ceciliano Souza. Alm da participao em O Conservador, Ansio Melhor foi proprietrio e/ou redator-gerente de outros rgos de imprensa em Nazar: A Ribalta, rgo da Escola Dramtica A. Azevedo, cujos redatores eram Rosendo Filho e Ansio Melhor; A Cigarra, revista literria; O Asylo, rgo do Asylo de Meninos Desvalidos; e O Olho da Rua, jornal humorstico.

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Conforme o depoimento do autor em sua crnica Mistral relembrado (1929, p. 2), o exerccio da leitura foi condio sine qua non para a sua formao intelectual: se me fosse perguntado como eu comecei a amar os livros, como consegui dar forma aos pensamentos no trato obscuro das letras, eu responderia que levado pela imaginao de Alencar e Victor Hugo e a Lamartine. Muitas foram as vozes, outros livros que inspiraram Ansio Melhor. Alguns autores so citados em suas crnicas. Dentre os nomes mais citados por ele nos textos consultados, pdese enumerar os seguintes: Goethe, Cervantes, Botticelli, Miguel ngelo, Victor Hugo, Benvenuto Celini, Zola, Ea de Queirs, Afrnio Peixoto, Ansio Teixeira, Amadeu Amaral, Xavier Marques, Pedro Calmon, Pedro Barros, Fenelon, Montaigne.

1.3 PORTADOR DA VOZ POTICA: DESTAQUE NO TROBAR E NO CANTAR

Em 20 de abril de 1926 Ansio Melhor foi nomeado representante da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais da regio de Nazar. O escritor recebeu o comunicado por meio de uma correspondncia, assinada pelo diretor, o escritor teatral Gasto Tojeiro e subscrita por Cardoso de Menezes, secretrio geral da instituio, figuras importantes no teatro brasileiro na poca. A correspondncia foi publicada no peridico O Conservador e tinha o seguinte teor:Rio de Janeiro Exm. Sr. Ansio Melhor Bahia Por ordem do nosso Presidente e com grande prazer meu, levo ao conhecimento de v. exa. que na ltima reunio desta Sociedade foi indicado e aceito por toda a Directoria o nome de v. exa. para ser em Nazareth, Santo Antonio de Jesus e Amargosa, nesse estado, o representante legal da Sociedade Brasileira de Autores Theatraes, devendo nesse caracter apresentar-se a qualquer Empresa Theatral que ahi funccione. (O CONSERVADOR, 1926, p. 1).

Ansio Melhor se dedicou ao teatro em Nazar. Mobilizava a comunidade para assistir s apresentaes de espetculos que produzia. Apresentava quadrinhas, advinhaes, contos populares, pequenas peas que escrevia e encenava alguns personagens, conforme a figura 3, na qual o poeta aparece caracterizado de homem da natureza; em continncia representando um soldado; fazendo um conferencista; fazendo um violeiro; e alm de mostrar algumas caracterizaes feitas pelo artista, o cartaz apresenta tambm uma caricatura do poeta com o enunciado O ciclista do 448:

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Figura 3 Fotografia do cartaz O poeta ANSIO MELHOR em diferentes tipos

O cartaz fotografado apresenta uma idia resumida das facetas do escritor. Pouco se sabe sobre a histria do teatro em Nazar e estas imagens so, at o momento, um dos poucos

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registros encontrados sobre as atividades teatrais desenvolvidas por Ansio Melhor. Tem-se, desse modo, uma lacuna na histria da vida do escritor, neste mergulho arqueolgico em busca de seus vrios perfis. Em seu livro Criaturas da minha vida11, h alguns textos que possivelmente foram dramatizados por Ansio Melhor. Trata-se de um livro composto por textos curtos, do gnero fbula. Dentre eles pode-se citar: Arco e Flexa; O rgo e o Violino; Varanda de Sto, este ltimo dedicado a Carlos Chiacchio que o autor apresenta como o animador benevolente de suas letras (MELHOR, [s.d.], p. 14). Ansio Melhor era intrprete de sua poesia. A oratria do poeta provocava uma incontida euforia coletiva nos palcos, em sua maioria improvisados, nos quais encenou seus textos em prosa e em versos. Conforme apresenta a figura de nmero 3, todo o visual do poeta era planejado para comover o seu pblico, para domin-lo e encant-lo por meio de sua grandiloqncia. No teatro, espao de entretenimento e difuso do saber, o poeta despia-se de sua timidez e promovia aos seus expectadores a reflexo e a reconstruo de um saber. Segundo Joo Eurico Matta, a voz de Ansio Melhor era doce, soprano, alta, clara e de timbre vigoroso como a de um tenor12. Em uma retrospectiva Alta Idade Mdia, Paul Zumthor (1993, p.136) diz que a voz est situada no corao de uma potica. quela poca, os intrpretes da poesia eram julgados no tocante qualidade vocal considerando-se os elementos: a altura, a clareza e a suavidade dos sons. Alm da operao vocal (o cantar), tais julgamentos dos intrpretes ocupavam-se tambm da arte potica de produzir o texto (o trobar). Ansio Melhor, cuja voz, acredita-se, est situada no corao de uma potica, possui, conforme as pistas encontradas em seus textos, em fotografias e em entrevistas realizadas, os critrios estabelecidos na Idade Mdia referentes qualidade fsica da voz e habilidade potica com que produzia seus textos. Mesmo que seus poemas e narrativas tenham encontrado na escrita o meio para se perpetuarem, a poesia anisiana no existe apenas para ser lida em silncio. Exige ser pronunciada, ou mais, pode ser dramatizada, lida em voz alta, pois nota-se em seus textos o vibrar da voz, semente inaugural de toda comunicao (ZUMTHOR, 1993). O que caracteriza suas produes so as acentuadas marcas orais. Impressa, a obra potica anisiana oculta inicialmente suas razes orais. Lida, porm, faz-se ouvir, inscreve-se no universo da11

O livro foi cuidadosamente copiado, datilografado, por Walter Ferreira. O datiloscrito faz parte do acervo da Fundao Lamartine Augusto, Nazar - BA e foi doado por Walter Ferreira em 1985. Na cpia, no h indicao de data em que foi publicado, nem da editora, ou grfica que o publicou. 12 Comentrio feito por Joo Eurico Matta na ocasio da visita ao seu arquivo particular, em sua residncia, Salvador em 17 de maio de 2007.

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voz, integra-se no que Paul Zumthor (1993) denomina oralidade secundria, ou seja, aquela oralidade prpria dos textos, que mesmo escritos, conservam marcas orais: uma forma qualquer de oralidade precede a escritura ou ento por ela intencionalmente preparada, dentro do objetivo performtico (ZUMTHOR, 1993, p. 109). A dedicao de Ansio Melhor s atividades teatrais foi reconhecida na regio de Nazar e municpios vizinhos. A imprensa local apresenta registros das atividades litero-musicais promovidas pelo poeta. O Conservador no texto intitulado Uma festa de arte, descreve um dos espetculos musicais realizados:Ansio Melhor, com a harmonia de voz e conhecimentos scnicos que possui, cantou com expresso e naturalidade as canes: A saudade (msica de madeimoselle Mercedes Tavares Freire), A minha dor (Theotnio Freitas), a Seguidilha (msica de Pedro Embiruu) e os maxixes de Sacode a saia Xiquinha (composio musical de Euphrsio Pinto e Ai! Que brinquedo! Msica original do poeta. O Phenix no pde comportar o nmero de espectadores, tendo, por falta de accomodaes, voltando muitas pessoas levadas aquella casa de funes cinematogrficas, com o fim de ouvir o querido poeta e escritor nazareno.(CONSERVADOR, 1920, p. 1)

O peridico O Palldio, do municpio de Santo Antonio de Jesus, publica:Ansio Melhor est com vontade de realizar nesta cidade uma serata literomusical, vindo de Nazareth, em companhia da sua bem organizada orquestra. Ansio canta e tem imitaes risveis, verdadeiro cmico e verdadeiro bohemio no tablado. Parece-nos que Santo Antonio ter de o apreciar. Demais, trata-se de um rapaz de esprito e talento, cuja cultura tem se feito por esforo prprio e num meio como aquelle que todos conhecemos Nazareth. Anunciaremos a data certa em que se realizar o belo passatempo. (O PALDIO apud O CONSERVADOR, 1920, p. 2).

A visita de Ansio Melhor a Santo Antonio de Jesus foi noticiada em O Paldio e peridico O Conservador (1920, p. 2) reapresentou as impresses do jornal da cidade de Santo Antonio de Jesus, que alm de tecer elogios serata litero-musical promovida pelo artista publicou um poema em homenagem ao poeta, de autoria de Honorina Galvo Rocha13, uma poetisa da cidade de Santo Antonio de Jesus, como mostra a figura:

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Trata-se do poema Almas Enfermas, que se encontra em anexo.

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Figura 4 Fotografia de O Conservador.

No palco, Ansio Melhor era intrprete, o portador da voz potica (ZUMTHOR, 1993, p. 57) de seus textos. Essa sua atividade era um meio massivo de difundir suas produes em verso e em prosa, e de despertar em seus expectadores o interesse pela leitura. E apresentava em suas peas teatrais, obras de memria, elementos que constituem a tradio oral. Parafraseando Zumthor (1993, p. 143), nenhuma frase a primeira na tradio, talvez nem mesmo toda palavra, essas podem ser muitas vezes, efetivamente, citao. no seio da tradio no desempenho do jogo da memria que a voz potica se ergue, se manifesta de forma diferente do que quando se esboa na escritura, esses textos orais, ou oralizados, apresentam-se com mais fora do que se estivessem escritos, pois se reagrupam na conscincia popular, no imaginrio da comunidade.

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1.4 UMA VIDA DEDICADA EDUCAO

Falar de Ansio Melhor implica falar da histria da cidade de Nazar. Apaixonado pela regio do Recncavo Baiano, dedicou-se a ensinar jovens e crianas da sua cidade natal. A histria do poeta tal como a histria de Nazar encontram fonte segura nas colees seguidas de o semanrio O Conservador. Nas pginas desse peridico, alm da publicao das obras anisianas, h o registro de sua vida, de seus passos, de seus feitos na sua terra, como sua dedicao educao e ao combate ao analfabetismo no Recncavo Baiano; ele acreditava que a melhor maneira de extingui-lo era incentivando a todos prtica da leitura. Para tanto, fez circular nas pginas dos vrios peridicos que escreveu uma diversidade de gneros literrios, alm de divulg-los oralmente em reunies de amigos, em festas cvicas e nos sales, muitos deles improvisados, de teatro na regio. O Conservador, pela riqueza de detalhes, proporciona ao leitor voltar no tempo e reconstruir na memria o Asilo de Meninos, na poca em que Ansio Melhor reabriu o estabelecimento de ensino, tornando-se o Diretor do Colgio Clemente Caldas, que abrigava o asilo. Ansio Melhor iniciou os preparativos para as oficinas e banda de msica para que as crianas e jovens pudessem ser iluminados pelo saber e pela sensibilidade musical. Nessa viagem ao passado, v-se a fisionomia alegre da crianada e a satisfao das famlias que se encontravam presentes na solenidade de abertura e na missa de Ao de Graas que foi realizada na capela da instituio, pelo cnego Joo Carlos de Mattos, no dia 20 de agosto de 1926, tarde chuvosa. Aps a missa foi assinado o termo de reabertura do lar das crianas desprotegidas, s quais Ansio Melhor chamava os filhos de So Bernardo. E assim comeou o seu trabalho filantrpico como diretor do Colgio do Asilo de Meninos Desvalidos. A data escolhida para a reinaugurao foi a data de aniversrio da idealizadora da Instituio, a Senhora Bernarda Caldas. O Asilo reabre mantendo 20 crianas asiladas e nesta hora a direo cuida de dotar o estabelecimento de oficinas para o aprendizado de crianas (O CONSERVADOR, 1926, p. 2). O trabalho desenvolvido pelo professor Ansio Melhor, mestre Ansio, como era comumente chamado por seus alunos, obteve grande reconhecimento. Segundo Lamartine Augusto (1999, p. 315), o Colgio Clemente Caldas foi fundado pelo Dr. Isaas Alves em 1912, com o curso primrio, o equivalente hoje s primeiras sries do ensino fundamental; o curso ginasial, correspondente hoje ao perodo da 5 8 srie do Ensino Fundamental e o curso agronmico, tudo isso em regime de internato e externato, sob

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a direo geral e direo administrativa do Dr. Landulfo Alves de Almeida. O cargo de diretor geral foi ocupado por Ansio Melhor em 1926 fato que foi noticiado pelo O Conservador:Surto promissor e esperanoso este para Nazareth e toda a zona, pois o apreciado escriptor um moo que bem pode servir de optimo modelo mocidade e bem desempenhar as funces de educador de creana. Realmente as crianas no precisam somente de um mestre que lhes ensine a ler, escrever e contar. Precisam tambm de boa educao moral, dada e praticada pelos seus prprios mestres. E nesta escola moral que eles aprendem a brandura, a pacincia, o domnio da clera e o cultivo das virtudes. (...) Parabns, pois a Nazareth e a zona por mais este ncleo de educao intellectual e moral, superiormente dirigido por Ansio Melhor. (O CONSERVADOR, 1926, p. 2)

Os comentrios elogiosos sobre o trabalho realizado ultrapassaram as fronteiras de Nazar e podem ser vistos estampados na Revista A Luva, numa edio especial sobre a Bahia. O colgio Clemente Caldas aparece como uma das principais referncias da cidade de Nazar e regio do Recncavo Baiano, no qual muitos jovens adquiriram o conhecimento das letras, do civismo, do cristianismo, alm da prtica de esportes como apresenta a revista:

Figura 5 Os alunos em aula de Educao Fsica (A LUVA, 1928, n. 78.)

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Sob a inspirao do professor Ansio Melhor, criou-se a Banda Meninos do Asilo, que alcanou grandes triunfos, participando das festas religiosas, inclusive o 02 de fevereiro, dia da Padroeira da cidade, Nossa Senhora da Purificao de Nazar. Segundo Lamartine Augusto (1999, p. 183), Ansio Melhor,em 1927, com o propsito de manter os 20 internos que viviam no asilo, convidou um reconhecido msico da Filarmnica Euterpe, de Nazar, Jos Anastcio de Brito, conhecido como Zeca Piston, para organizar a banda da instituio. Alguns instrumentos foram adquiridos da Sociedade Carlos Gomes da cidade de Aratupe, outros foram doados, compondo o instrumental. Muitos foram os ensaios realizados pelo maestro Piston,e a 1 de fevereiro de 1928, a alegre bandinha composta exclusivamente de garotos, alguns de apenas 8 anos de idade, partia da Volta do Tanque, garbosa e vibrante, em direo igreja matriz, onde seria celebrada a novena de Nossa Senhora de Nazar. Ia executando o dobrado Nilo Cruso. Na igreja, ainda a novena no se havia iniciado quando a Banda dos Meninos do Asilo executou a marcha So Bernardo, em homenagem a Nossa Senhora. (AUGUSTO, 1999, p. 183)

V-se registrada uma dessas participaes dos msicos mirins na figura seguinte:

Figura 6 A banda de msica dos meninos do Asilo (A LUVA, 1928, n. 78)

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Ao lado das fotografias, a revista A Luva apresenta longo artigo sobre a instituio dirigida por Ansio Melhor e presta-lhe homenagem:Vive ali, produzindo prosa e versos de fino lavor, o grande e simples Ansio Melhor, pintor de rara palheta no combinar as tintas, atravs de suas observaes, approximando da realidade os horizontes de sua viso esthetica. (A LUVA, 1928).

Em A me dos desamparados (MELHOR, [s.d.], p. 53-54), crnica em homenagem ao aniversrio de inaugurao do Colgio Clemente Caldas, em 01 de julho de 1917, muito antes de assumir a direo da instituio, Ansio Melhor descreve a senhora Bernarda Caldas, a idealizadora da instituio, a partir da observao do seu retrato. O escritor diz que um cronista moderno j no se preocupa apenas com a individualidade, mas abre os olhos para as coisas que o cercam, o que preciso saber tocar a alma das coisas, ter os olhos do esprito abertos para a comprehenso dos seres inanimados, saber arrancar tudo do nada. ser um pouco Deus e um pouco Diabo (MELHOR, [s.d], p. 53) e salienta, ainda, que um livro, uma cigarreira, falam s vezes mais do que seu prprio dono, do que a prpria figura dele, do que suas prprias palavras, j que a figura entrevistada tem, s vezes, poses estudadas (MELHOR, Idias e Emoes, p. 53) escondendo alguns traos de sua personalidade. Ainda nesse texto, o escritor demonstra sua grande preocupao com o menor desassistido. E o cronista-poeta revela: Escrevo comovido porque amo como ningum as creancinhas vagabundas, esses pedaos de tristeza que andam enfeitando a claridade das ruas com a melancolia de olhares que gemem e de bocas que no tiveram beijos (MELHOR, Idias e Emoes, p. 54). Este texto aponta o que seria a vida do poeta anos depois (a partir de 1926): a sua extrema dedicao ao Asilo de Meninos Desvalidos e ao Colgio Clemente Caldas. custa de seu prprio esforo, Ansio Melhor aprendeu sozinho vrias lnguas (francs, espanhol, italiano). O nvel de conhecimento nessas lnguas era elevado, o que lhe permitia ministr-las no Colgio. Consoante Clvis Lima, Ansio Melhor foi um Diretor multplice, senhor de todas as matrias do currculo ginasial, substitua a qualquer professor que por ventura deixasse de comparecer classe (LIMA, 1985, p. 13). Em seu soneto Solitudine (MELHOR, 1955), Ansio Melhor parece relatar seu prprio exemplo. Faz admoestaes, como um professor aos seus alunos, e se refere aos seus esforos, sua extrema e solitria dedicao aos estudos:

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Sozinho Carpirs melhor as tuas dores E tambm gozars teu minuto de glria. sempre a solido quem cura os dissabores, Quem trama, traa e traz o plano da vitria. Vive sempre contigo. E se contigo fores, Nessa rude, febril e humana trajetria, O cu se vestir sem as fingidas cores, Sem dioramas de luz, sem beleza ilusria. Tua vida acharo mesquinha e torturante... Pouco importa. V l! No gastes um instante, Um minuto dos teus, nesses gozos banais. Concentra-se. Tem f. A vaidade cigarra... As conquistas mentais no precisam fanfarra... Vence quem vence s, vence quem pensa mais.

O escritor tambm expressou sua dedicao ao ensino, em A Arte de Ensinar14, livro publicado em 1926. Nele tece comentrios sobre o papel do professor e apresenta o modo de pensar e agir da poca em que viveu. Para o autor, a arte de ensinar no se limita em fazer o educando ler, contar e escrever, vae da formao intelectual at ao aperfeioamento moral e hygiene da alma (MELHOR, 1926, p. 4) No captulo intitulado Nada sem Deus, o autor salienta que a escola sem Deus obra sem alicerce e que a instruo mal aplicada acarreta desorganizao familiar e, por conseguinte, representa perigo ptria. Em seus textos, sejam eles de carter literrio ou no, h sempre a inteno de representar, de documentar tudo que caracterstico de seu povo, de sua regio, ainda que sob seu ponto de vista. No captulo intitulado O Amor regio, por exemplo, ele ressalta que a escola deveria divulgar as tradies da localidade em que est inserida, e se refere ao passado da sua terra, Nazar, como uma temtica que deveria ser estudada na escola:Nazareth, povoao rica e prspera, foi o celeiro da guerra. Della partio a abundancia de vveres que era o sustento da soldadesca aquartelada em Funil, Itaparica e tantos outros pontos estratgicos onde se distinguiu o herosmo dos antepassados (MELHOR, 1926, p.11).

O Colgio Clemente Caldas, estabelecimento de ensino particular, sob a direo de mestre Ansio15

, foi, em 1930, equiparado ao Ginsio D. Pedro II, do Rio de Janeiro

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A obra dedicada ao Dr. Francisco M. de Ges Calmon, Governador do Estado da Bahia, e ao Dr. Ansio Spnola Teixeira, Inspetor Geral do Ensino, que na opinio de Ansio Melhor so os reorganizadores da Instruo Pblica da Bahia. 15 Expresso utilizada pelo Prof. Dr. Joo Eurico Matta, numa visita feita sua biblioteca particular em sua residncia, em Salvador em 17/maio/2007.

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(AUGUSTO, 1999, p. 315), devido qualidade dos servios prestados educao da juventude do Recncavo baiano e ao respeito conquistado pela Instituio na sociedade baiana da poca. Ansio Melhor dirigiu o Clemente Caldas por muitos anos, de 1926 a1948. Beneficiou, portanto, muitos jovens com o saber institucionalizado. E as atividades realizadas no Clemente Caldas, bem como o xito de seu diretor, foram muitas vezes noticiadas em O Conservador, conforme assinala a fotografia a seguir:

Figura 7 O jornal O Conservador (1929, p. 01).

O Colgio funcionava num prdio amplo, com vastas dependncias, nas quais Ansio recebeu alunos internos (particulares) e abrigou crianas sem lar e /ou sem condies econmicas e estrutura familiar. O prdio era situado fora do permetro urbano, ficava bastante afastado do centro da cidade. Da criou-se o estigma de que Ansio Melhor vivia recluso em Nazar. O escritor e sua famlia residiram por duas dcadas na Instituio, numa casa anexa ao prdio, conforme figura 8:

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Figura 8 Fotografia da casa, anexa ao prdio do Clemente Caldas, onde Ansio Melhor, D. Hilda e o seu filho Carlos Ansio residiram, enquanto o escritor foi diretor do Ginsio.

No Colgio Clemente Caldas, Ansio Melhor era mais que um professor, tornou-se pai de cada aluno, de cada interno que por ali passou. Nota-se o carinho e a gratido de seus alunos observando-se as fotografias e dedicatrias que lhe ofereciam quando concluam o curso ginasial (o correspondente hoje s sries de 5 8) e tinham que deixar a instituio, como revelam as fotografias a seguir:

Figura 9 Fotografia de aluno de Ansio Melhor no Clemente Caldas em 1938 (frente e verso). 16

16 Essas fotografias pertenciam ao acervo particular de Ansio Melhor e hoje fazem parte do arquivo da Fundao Lamartine Augusto.

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Figura 10 Fotografia de aluno de Ansio Melhor no Clemente Caldas em 1943 (frente e verso).

Apesar da dedicao de Ansio Melhor e de seu empenho em manter o funcionamento pleno do Ginsio Clemente Caldas e do Asilo de Meninos Desvalidos, a situao financeira do referido estabelecimento, a partir da dcada de quarenta, no era das melhores, os impostos cobrados eram de elevadas quantias e o diretor no estava conseguindo conter a crise financeira que havia se instaurado na Instituio. Pode-se perceber sua aflio, nas cartas que enviava ao seu amigo Alexandre Bittencourt17. Num dos momentos mais difceis do seu conceituado Colgio, Ansio Melhor endereou-lhe longa epstola na qual afirmava:Tenho dormido inquieto. Continuo recebendo com sorriso enigmtico as notcias que me trazem em torno dos benefcios que... chegaro depois. Voc quem eu tenho para mostrar nas tintas da realidade o quadro dessa fase financeira de minha vida. No me possvel levar ao 2 semestre o CLEMENTE CALDAS porque vem, agora, obrigao do recolhimento de seis contos, e eu no me conto na conta dos que contam, apenas, com um conto.(BITTENCOURT, 1985, p. 14)

Ansio Melhor e Alexandre Bittencourt correspondiam-se com regularidade. Nas suas correspondncias ao amigo Alexandre Bittencourt18, h no s alegrias e jbilos da terra amada, nelas aparecem tambm confidncias, tristezas, decepes e silncios amargurados do autor. Um desses momentos marcado pela deciso de deixar Nazar no ano de 1948, ocasio em que Ansio Melhor escreve-lhe mais uma vez:17

De acordo com o professor Lamartine Augusto, em uma conversa realizada numa das ocasies em que visitou o arquivo da Fundao Lamartine Augusto, Alexandre Bittencourt era nazareno e, assim como Ansio Melhor, nasceu no bairro do Batatan, ambos eram muito amigos. 18 Alexandre Lopes Bittencourt engrandeceu a terra nazarena nas letras, na engenharia, na administrao pblica, na tribuna, na religio e na histria, conforme afirma Lamartine Augusto no livro Porta do Serto, 1999, p. 285.

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Alexandre. com arrepio de choro que lhe escrevo, tarde escura. Minhas asas no atravessaram fronteiras como voc disse. Meu vo baixo, de rla bravia nas moitas de macegas, com a meiguice das pequeninas asas caboclas. Sou, apenas, cto de vela derretendo-se. Preferia voltar a ser annimo e excluso como um caramujo. Nunca pensei deixar Nazareth, alta, nobre como ma fizeram ver na infncia.No mais a cidade que os ancestrais nos legaram. Vou-me embora definitivamente. (BITTENCOURT, 1985, p. 14)

Figura 11 Fotografia da fachada do Colgio Clemente Caldas j na dcada de 1970, perodo psAnsio Melhor.

Em 1946, o professor Braslio Machado da Silva Filho toma posse do cargo de professor de Geografia Geral e do Brasil naquele estabelecimento e adquire-o, por compra, em 1949, quando assume a diretoria, logo aps a transferncia de Ansio Melhor para a capital do Estado. O Ginsio, sob a direo do professor Braslio, em 1949, estabeleceu-se num outro prdio, situado na Travessa da Matriz e um ano depois se mudou para o antigo Solar dos

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Atade19, no bairro da Conceio.

O prdio em que funcionou o Ginsio, tornou-se o

Aprendizado Agrcola Clemente Caldas20, proporcionando juventude nazarena cursos de alfaiataria, tipografia e msica, dando continuidade a algumas das atividades criadas durante a administrao de Ansio Melhor.

1.5 OS AMORES

A leitura das obras de Ansio Melhor deixa perceber que alguns detalhes de sua vida emergem na sua prpria potica. O autor em suas crnicas, que se assemelham a um dirio ntimo, desnuda sua personalidade e revela tambm detalhes de sua vida amorosa. Ansio Melhor experimentou pela primeira vez o sentimento do amor na infncia. Segundo ele, por uma garota de 11 anos, meiga, sorridente, que lhe colocou na lapela na frestazinha da botoeira do seu palet, uma rosa-menina (CRUSO, 1979, p.23). Conforme correspondncia ao seu amigo Oswaldo Cruso, Ansio Melhor faz referncia a esse antigo amor nos seguintes termos: a jovem menina travessa casou-se e hoje faz parte da alta sociedade baiana (CRUSO, 1979, p.23). Ei-lo se confessando em uma carta ao amigo: O meu primeiro amor encontrei-o no collgio, era pequenininho, deste tamanho... Nasceu de um boto de rosa (rosa menina) rubra como um beijo do pecado. Ella com sua mozinha de onnze anos... (CRUSO, 1979, p. 23) Anos depois, o poeta encanta-se por outra mulher, a jovem Maria Isabel, e a pede em casamento.21

Mas no se casam, segundo depoimento de Cruso, por um simples capricho

entre ambos. Esse foi o segundo amor de Ansio, que o inspirou a produzir seu primeiro livro de versos, intitulado Meus Versos a coleo dos primeiros, publicado em 1911. Em Nazar, entre as dcadas de 1914 a 1918, vrios jovens artistas, como forma de cultivar a poesia e a prosa, mantinham correspondncia literria com inmeros intelectuais de diversas localidades baianas e de cidades de outros estados brasileiros, a exemplo de

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O solar dos Atade foi demolido no ano de 1971, por ordem da cmara de vereadores.Tal fato gerou comoo geral da populao e srios problemas na justia para o ento prefeito, j que se tratava de um patrimnio tombado. 20 O prdio onde foi fundado o Ginsio Clemente Caldas e funcionava o Asilo de Meninos, atualmente, encontrase decadente e no trilha mais os caminhos da filantropia, ou seja no abriga mais nenhuma criana; tambm no oferece nenhum curso tcnico aos jovens nazarenos. Ainda h uma banda de msica (chamada Banda do Aprendizado Clemente Caldas), que nas festas religiosas e comemoraes cvicas da cidade oferecem populao a alegria da msica. No antigo prdio funciona apenas uma grfica, que mantm o imvel. 21 Os documentos analisados at o momento no fazem referncia data do referido noivado nem mesmo no trabalho de Oswaldo Cruso.

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Fortaleza, So Lus, Recife, Rio de Janeiro, entre outras, era um intercambio literrio. Dentre esse grupo de escritores destacaram-se: Leonete Oliveira (So Lus), Afonso Costa (Salvador), Edwirges S Pereira (Fortaleza), Leodegria de Jesus (Recife), Maria Augusta Bittencourt (Nazar), Ansio Melhor (Nazar), Judith Costa (Bezerros - PE). Esta ltima assinava com o pseudnimo de Cludia Fernanda (CRUSO, 1979, p. 129). Dentre as correspondncias entre esses escritores, as mais freqentes foram as que mantiveram Ansio Melhor e Judith Costa. A correspondncia literria entre eles foi um dos captulos mais delicados da vida do escritor: representou para ambos um noivado espiritual. A poetisa, nascida em Bezerros- PE, no conheceu Ansio Melhor pessoalmente, a no ser atravs dos versos que trocavam via correspondncia. E da permuta de cartas veio a troca de fotografias e por conseqncia a troca dos coraes. O amor de Ansio por Judith foi correspondido. O noivado espiritual de Judith Costa durou at o dia em que a tuberculose causou a sua morte. E a poetisa de Bezerros relata, em sua ltima carta ao poeta, seu sofrimento fsico e sua alegria em receber um livro dele: Ansio, recebi seu livro. Agradecida. Pea a Deus que eu lhe possa falar delle22 Judith morreu sem nunca ter visto Ansio Melhor. O poeta pensou em publicar em um s livro os versos que escrevia para Judith e os que recebia da amada, mas a jovem poetisa, como ltimo desejo, pediu aos familiares que fosse sepultada com as cartas que recebeu do noivo, fato que o impediu, portanto, de publicar a obra por ele idealizada. As cartas que Judith enviou ao seu noivo foram organizadas por Oswaldo Cruso, a pedido do prprio Ansio Melhor, numa coletnea intitulada Os versos de Judith23, obra datilografada que, ao que parece, permanece indita. Segundo seu amigo e admirador Oswaldo Cruso, o amor idealizado de Ansio Melhor e Judith Costa transformou-se num sublime romance. E comparou a intensidade do amor de ambos ao amor experimentado por Gonzaga e Marlia, por Bilac e Amlia, por Dante e Beatriz:No sei se os amores de Dante por Beatriz, de Cames por Natrcia, de Hugo por Adle, de Gonzaga por Marlia, de Bilac por Amlia foram mais puros, mais elevados, mais cheios de lirismos do que os de Ansio e Judith. Aqueles trocaram olhares, apertos de mo e beijos, chegando alguns ao delirante matrimnio de corpo e esprito. Entre Ansio e Judith, porm, s houve o esplendor espiritual na mais terna e pura fantasia. (CRUSO, 1979, p.23)

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Cf. Carta de Judith Costa a Ansio Melhor. Texto xerografado em folha avulsa, localizado numa pastacatlogo pertencente ao Arquivo da Fundao Lamartine Augusto. 23 Datiloscrito que pertence Fundao Lamartine Augusto, Nazar BA.

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A distncia que separava o casal, a morte precoce de Judith, bem como a saudade da sua amada ficaram registrados em diversos textos do poeta. O poema Separao, letra de uma valsa composta por Ansio Melhor, parece revelar o sentimento de um amor distante, ausente, como o que experimentara pela jovem de Bezerros:Distante tambm se ama A ausncia no mata o amor... Nella a saudade derrama Alvio consolador ... Se o destino de repente To rude nos separou, Vivemos no amor ausente Tudo quanto ele gosou24

Em seu livro Cantigas ao Luar25, no qual publicou muitas trovas que comps, h um captulo dedicado a Judith Costa. Dentre as homenagens prestadas a ela nesse livro, pode-se citar o poema Bacio Morto, no qual o poeta revela a dor da separao, como se pode notar nos versos que seguem:Entre as hervas do campo, certo dia Uma flor em boto apareceu. Um golpe irado e mo da ventania Arrebatou-a tmida, vencida, E sem ter conhecido a prpria vida A pobre flor morreu [...]26

A morte de Judith Costa comoveu intensamente o poeta, apesar de ele acreditar que o amor no acabava com a morte, continuava no prximo romance. Em correspondncia ao amigo Oswaldo Cruso, Ansio Melhor envia os versos de Judith Costa para que Oswaldo pudesse perceber o talento de sua morta:

Mas leia os versos da Judith. Veja se eu no

tenho razo de derramar uma chuva de versos sobre aquella que enfeitou com as mais bellas flores dalma o meu orgulho de homem e a minha humildade de poeta? E revela ainda nesta

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Fragmento do poema Separao, uma valsa de Ansio Melhor datiloscrito que pertence ao Arquivo da Fundao Lamartine Augusto. 25 O exemplar de Cantigas ao Luar no apresenta data de sua publicao e no apresenta numerao nas pginas. 26 O exemplar de Cantigas ao Luar pertence ao acervo da Fundao Lamartine Augusto. Trata-se de um texto datilografado por Walter Ferreira em 1985, conforme bilhete escr