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ANGOLA E FUTURO

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ANGOLAE FUTURO

ANGOLAE FUTUROIsabel dos Santos, SONANGOL e João Lourenço em risco

RUI VERDE

TítuloAngola e Futuro

Isabel dos Santos, SONANGOL e João Lourenço em risco

AutorRui Verde

Capa, Coordenação e EdiçãoRCP Edições

Foto de CapaAna Baião

Design e PaginaçãoAlice Simões

RevisãoRCP Edições

1.ª ediçãoAbril 2018

Impressão e acabamentoTipografia Lousanense, Lda

ISBN 978-989-8325-60-0

Depósito Legal xxxxxx/18

Todos os Direitos de Publicação ReservadosRCP Edições

Edições Rui Costa Pinto, Ldawww.rcpedicoes.com

[email protected]

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Índice

Prólogo ............................................................................................. 7

Apresentação ............................................................................... 11

1. Introdução histórica ........................................................ 15Falsificação histórica de 1992 ..................................................... 18Vitória militar como acto fundador da nova Angola ............. 20

2. Situação actual de Angola ........................................... 23Obstáculos políticos à diversificação ........................................ 25Problema cambial ........................................................................ 27Guerra e o atraso económico ..................................................... 32Inexistência da lei e a instrumentalização do Estado ............. 34Não aplicação plena da Constituição de 2010 ......................... 35Presidência “imperial” ................................................................. 37Servilidade do poder judicial ...................................................... 39Maus exemplos europeus: absolutismo e nepotismo ............. 41Breves Conclusões sobre a situação actual de Angola ........... 42

3. Corrupção ................................................................................ 45Inação do PGR de Angola face à corrupção ........................... 48Primeiro grupo de crimes -BESA .............................................. 49Segundo grupo de crimes: Portmill........................................... 49Recurso ao Tribunal Penal Internacional ................................. 51Caso de Isabel dos Santos .......................................................... 53Origem da fortuna de Isabel dos Santos .................................. 53

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ANGOLA E FUTURO

Compra do BPI ............................................................................ 58Bizarro negócio da GALP .......................................................... 63Isabel dos Santos, SONANGOL, Vicente e Sócrates ........... 67Desmoronamento do “império” de Isabel dos Santos .......... 68Ramificações de Isabel dos Santos em Portugal ..................... 77Privatização da soberania pela oligarquia corrupta: o caso de Manuel Vicente ............................................................................ 80Processo contra Manuel Vicente ............................................... 81“Privatização” da soberania ........................................................ 82Portugal e o combate Isabel versus Vicente .............................. 89

4. Em busca do Estado de Direito ................................ 95Caso Sugrue versus Andrade ....................................................... 97Universidade Independente de Angola .................................... 102Angola pode ser um Estado de Direito.................................... 105Adesão aos tribunais internacionais africanos ......................... 107Acordo com a ONU para combate à impunidade ................. 110

5. Mistério João Lourenço ................................................. 113Razões da saída de José Eduardo dos Santos .......................... 113Estratégia de José Eduardo dos Santos e João Lourenço ...... 115Negócios de João Lourenço........... ............................................ 118

6. Futuro de Angola ................................................................ 123“Novo” Marcelo Caetano? ......................................................... 123João Lourenço como Xi Jinping ................................................ 125SONANGOL em risco .............................................................. 127

7. Curta nota para finalizar .............................................. 133Limitação de responsabilidade ................................................... 134

Bibliografia .................................................................................... 135

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Prólogo

Estrelas de cinema a desfilar em passadeiras vermelhas com os seus vestidos esvoaçantes e decotados, actores de smoking e sorriso aberto, modelos semi -despidas ou semi -vestidas, consoante a pers-pectiva, iates balanceando no mar azul, fogo ‑de ‑artifício iluminando a baía, jóias e alguns filmes, a maior parte sonolentos. Assim costuma ser Cannes, o maior símbolo da joie ‑de ‑vivre (alegria de viver) francesa.

Há alguns tempos a esta parte, a decoração de Cannes tem sido acrescentada com mais umas peças: os filhos do antigo presidente de Angola José Eduardo dos Santos, intitulados como das pessoas mais ricas de África, mas pertencendo a um dos povos mais pobres de África.

Estes fazem chover diamantes. Não do céu, mas das páginas das notícias e das revistas de jet ‑set. A origem dos diamantes é só uma: o casal Isabel dos Santos & Sindika Dokolo.

Sindika, casado com a filha do ex ‑presidente, comprou o maior diamante de Angola. Kim Kardashian admira o diamante em Cannes. Jovens e esbeltas modelos passeiam -se com os diamantes da “De Gri-sogono” (joalharia chique suíça pertença do casal por intermédio das habituais off shore). A “princesa” Isabel passeia -se por Cannes e vai à festa no “Eden Roc” para ver os seus diamantes em acção. Só glamour e diamantes. Cannes, cinema, jóias, modelos, beleza, estrelas interna-cionais e menos estrelas. Tudo está banhado em diamantes da família Dos Santos. Parece tudo muito bonito, muito brilhante, muito legal. A Europa chic abençoa os diamantes Dos Santos apresentados pela marca suíça.

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ANGOLA E FUTURO

Mesmo assim, Isabel foi superada no deslumbramento decaden-te por Danilo, seu jovem meio -irmão, que irrompeu por Cannes à boa maneira do seu compadre Teodorin Obiang, filho do presidente da aliada Guiné -Equatorial, agora condenado por um Tribunal de Paris por desvio de fundos e corrupção a três anos de prisão.

Danilo comprou num leilão de beneficência um relógio por 500 mil dólares norte ‑americanos (USD)1. Aparentemente, destina -se a uma Fundação chamada “amfAR”. Esta Fundação é uma organi-zação não ‑governamental dedicada ao combate à SIDA, fundada en-tre outros, pela actriz norte ‑americana Elizabeth Taylor. E presidida, mundialmente, pela famosa Sharon Stone, a actriz bem conhecida dos portuenses por ter sido escolhida, em 2013, pela “Douro Azul”, lide-rada pelo empresário Mário Ferreira, para inaugurar dois barcos de cruzeiro que navegam no rio Douro. Este empresário do Norte tem um diferendo judicial com a Eurodeputada Ana Gomes, conhecida pela sua oposição ferrenha aos negócios da família Dos Santos. Neste caso concreto, Ana Gomes terá afirmado que Mário Ferreira estaria envolvido em possíveis actos de “corrupção e criminalidade económi-ca organizada contra interesses do Estado Português”.

O Porto, aliás, tornou ‑se uma das plataformas giratórias dos ne-gócios angolanos em Portugal. Desde a compra da casa de Manuel de Oliveira por Sindika Dokolo, marido de Isabel dos Santos, até às quintas do Douro pertencentes ao general “Kopelipa”, são vários os activos e as conexões angolanas no Norte de Portugal.

Os exemplos de Isabel dos Santos e de Danilo são uma demons-tração que a falta de virtude mata qualquer pretensão de seriedade que o regime de José Eduardo dos Santos tenha tido. As chuvas de diamantes ou as compras de objectos por vaidade colocam, em ques-tão o próprio regime: não consegue tratar das crianças do Hospital

1 Danilo dos Santos desmentiu que o relógio tivesse sido comprado, mas sim umas fotos de George Hurrell, um fotógrafo de Hollywood que teve fama, sobretudo nos anos 30 e 40 do século passado, pelas fotos glamourosas das actrizes e pin ‑ups da época. Talvez seja caso para dizer “pior a emenda, que o soneto”.

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PRÓLOGO

Pediátrico de Luanda, mas consegue fornecer milhões às crianças do então presidente.

Já vimos este filme. É o filme que teve como actores os filhos de Kadhafi, o filho de Obiang, os filhos do Mubarak, e muitos outros que construíram as suas fortunas na base da sombra autocrática e rapace do pai.

A questão presente é se o filme está a mudar e o futuro de An-gola surge mais sorridente, acabando com as “princesas” e os “infan-tezinhos” perdulários…

João Lourenço, o novo presidente de Angola, parecia anunciar uma nova época, mas a verdade é que ainda no Ano Novo, Isabel dos Santos brindou todos os que quiseram ver com novas fotos estilo jet ‑set tiradas nas Bahamas, em mais uma ostentação generalizada de riqueza. Todavia, José Filomeno dos Santos, filho de José Eduardo dos San-tos, já foi constituído arguido num caso rocambolesco que envolve o próprio pai. Este é um tempo de expectativa para Angola, mas pode acabar por ser um tempo de desespero que, finalmente, leve à revolu-ção necessária.

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Apresentação

Nos acontecimentos históricos não há ciência determinista que imponha que um país seja pobre ou infeliz para sempre. Os pobres de hoje poderão ser os ricos de amanhã, os infelizes de hoje os felizes de amanhã.

Acresce que o sentido último de um país e do seu Estado é o ser-viço aos seus cidadãos, a criação de condições e enquadramento para que estes tenham a melhor vida possível, de acordo com as suas escolhas.

São estas duas linhas de pensamento que sustentam este texto e a análise que é feita a propósito de Angola.

Não é um destino traçado que Angola, aliás como qualquer país de África, tenha de ser pobre, corrupto, e condenar os seus cidadãos à miséria. A Angola actual pode gerar uma Angola muito diferente, desde que ultrapasse os bloqueios a que está sujeita. E existe o dever de ultrapassar esses bloqueios para finalmente conceder ao povo ango-lano uma terra onde viva feliz.

A tentativa deste livro é identificar e analisar os principais blo-queios com que se depara a comunidade angolana e propor algumas formas de os ultrapassar com sucesso.

Não é um livro com o conhecimento profundo da realidade como “Diamantes de Sangue – Corrupção e Tortura em Angola”2 e também não é um livro académico da craveira dos produzidos por Ri-cardo Soares de Oliveira, professor de Oxford3. Trata -se de algo mais

2 RAFAEL MARQUES, Diamantes de Sangue, Lisboa, Tinta ‑da ‑China, 2011. 3 RICARDO SOARES DE OLIVEIRA, Magnífica e Miserável: Angola Desde a Guerra Civil, Lisboa, Tinta ‑da ‑China, 2015.

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modesto, situado numa esfera à qual se pode chamar de reflexão práti-ca. Identifica problemas e sugere acções, procurando analisar causas e consequências. Talvez seja um ensaio. E também, uma sistematização contextualizada de algumas ideias escritas em artigos publicados no “MakaAngola” (www.MakaAngol.org), a publicação de promoção da democracia e combate à corrupção dirigida pelo carismático jornalista angolano Rafael Marques, sendo certo que as opiniões expressas ape-nas a mim responsabilizam e não a entidade.

Procura -se, neste livro, também desvendar o enigma João Lou-renço, e perceber se desta vez existe um líder à altura dos desafios ou temos mais um cuidador da “captura do Estado” angolano pelos inte-resses privados de uma reduzida oligarquia.

*

Apresentado o tema, passe -se a explicitar o meu interesse e co-nhecimento de Angola.

Em 2000, aterrei em Luanda com o propósito de instituir uma instituição de ensino. Fi -lo, dando origem à Universidade Independen-te de Angola, em parceria com os então ministro e vice -ministro da Educação, António Burity da Silva e Pinda Simão.

Por isso, numa primeira fase, fiz parte e privei com o regime e os seus próceres. A história que se seguiu foi triste. Em 2007, fiquei sem qualquer participação na Universidade e debaixo de injusta suspeitas lançadas pelos ministros angolanos. Na prática, fui roubado. Só agora, em Julho de 2017, vi um Tribunal, em Portugal, reconhecer a minha razão e participação legítima na Universidade de Angola4.

Face aos eventos fiquei chocado e revoltado com os detentores do poder em Angola, percebi que não eram mais que bandidos disfar-çados de fatos italianos e gravatas francesas, adornados com pulseiras

4 Processo número 140/06. Acórdão do Juízo Central Criminal de Lisboa de 19 de Julho de 2017 pelos Juízes Ana Peres, Judite Fonseca e Olinda Amaral. Ver em especial página 2740 e seguintes.

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APRESENTAÇÃO

e relógios de ouro. Bandidos que se apoderam de um país para o sa-quearem e viverem à sua custa. Paulatinamente, aproximei -me de Ra-fael Marques e do “MakaAngola”, de quem me tornei consultor legal e colunista, a partir de 2014. Depois, fruto dessa colaboração, acabei por levar à academia o que fui aprendendo sobre Angola, o bom e o mau. Embora, a verdade é que a academia, quer portuguesa, quer inglesa, a primeira, por medo, a segunda por constrangimentos históricos, não tem muito interesse em temas angolanos e não os aprofunda.

O que conheço de Angola, sobretudo o que aprendi, resulta da experiência de 17 anos, alguns no terreno, outros com as pessoas -para a escrita deste livro falei com mais de 50 pessoas ligadas ao poder e contra -poder de Angola – e ainda algum estudo sobre os temas ango-lanos e africanos. Tenho assim uma experiência angolana, que vale o que vale, mas é simultaneamente, teórica e prática, por dentro e por fora.

Acima de tudo fiquei a gostar muito de Angola e das suas gentes e quero que este país ande para a frente. Por isso, escrevo mais este livro.

Vale of White Horse, Oxfordshire

22 de Janeiro de 2018

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1. Introdução histórica

Existem muitas histórias de Angola escritas por autores de di-versas nacionalidades5, pelo que neste texto não vai ser repetido o que outros fizeram de forma detalhada. O importante é tentar perceber as linhas de força estruturantes da história em Angola.

A expressão história em Angola é mais adequada do que história de Angola, pois Angola é uma entidade de formação recente e não óbvia. Apenas no século XIX surge esta Angola que conhecemos, com as fronteiras estabelecidas e a envolvente geográfica contemporânea. E essa Angola é fruto de uma série de factores, em que se destaca a vontade de criar uma colónia portuguesa na África Ocidental que se estendesse o mais longe possível para todos os lados, inclusivamente para leste.

Se Portugal não tivesse saído derrotado na famosa Conferência de Berlim em 1884 ‑1885, em que ficou consagrado o princípio da ocu-pação efectiva como base do reconhecimento das possessões africanas e não o direito histórico, e o famoso mapa cor ‑de ‑rosa português tives-se vingado, os contornos do país chamado Angola seriam diferentes. O estabelecimento das fronteiras de Angola foi um longo e moroso processo que só bem dentro do século XX ficou concluído.

É bem ‑sabido que a colonização portuguesa começada no sé-culo XVI foi esparsa, costeira e se deparou com vários reinos nativos

5 ALBERTO OLIVEIRA PINTO, História de Angola: da Pré ‑História ao Início do Sé-culo XXI. Mercado de Letras Editores. Lisboa, 2015; DOUGLAS WHEELER & RENÉ PÉLISSIER, História de Angola, Ed. Tinta da China. Lisboa, 2013; DAVID BIRMIN-GHAM, Breve História de Angola Moderna [Séc.XIX ‑XXI], Lisboa, Guerra e Paz, 2017.

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diferentes daquilo que hoje é Angola. Não havia um reino de Angola que Portugal conquistou. Consequentemente, o processo de formação política de Angola foi lento, produto de uma evolução secular, e como qualquer processo histórico cheio de contradições, guerras, alianças e traições. Mas tal como no Brasil, a vontade nacional conseguiu criar um Estado diverso, mas único. Contudo, a permanência desse Estado, histórica e dialecticamente, montado por portugueses e angolanos, só seria [e será] possível com o actual empenho dos próprios angolanos, que se reviram6 na estrutura, entretanto, criada, em que a língua comum se tornou o principal património. Nessa medida, Angola assemelha ‑se ao Brasil, terra de diferenças e de convergências, una e diversa.

Também, nas forças estruturantes da sua nacionalidade se vis-lumbra esta dialética quase hegeliana: a relação com Portugal foi sem-pre dual, de abraço e de confronto, tal como a posição portuguesa oscilou entre o idealismo missionário e imperial, e a pura exploração esclavagista e dos recursos. Assim, as análises das relações entre Portu-gal e Angola não se devem ficar pelos simplismos maniqueístas. Por-tugal não foi sempre um explorador impenitente de Angola, mas foi ‑o muitas vezes − e continua a sê ‑lo −, e Angola não foi sempre um terri-tório submetido a Portugal; em 500 anos serão mais os anos de guerra, guerrilha ou confronto contra Portugal, nalguma parte do território que hoje é Angola, do que os de paz absoluta.

Acresce que tal diversidade diminui o papel que Portugal jul-ga ter em Angola. Talvez maior influência tenha tido o Brasil pré‑‑independente. Foram os brasileiros os grandes beneficiários do tráfico de escravos angolanos, pelo que por outro lado, são os angolanos, uns dos grandes colonizadores do Brasil. A relação Angola -Brasil é mais íntima, mais intensa. Talvez seja mais fácil perceber Angola, olhando ‑a do Brasil, do que de Portugal.

A mesma diversidade, e as peripécias históricas da definição das fronteiras, designadamente com o Congo, no século XIX, escondem

6 Cabinda é a grande excepção.

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1. INTRODUÇÃO HISTÓRICA

outro eixo natural entre o norte de Angola e o Congo. Na realidade, a divisão fronteiriça, como outras, entre estes dois países, é mero resul-tado de barganhas coloniais que extinguiram o antigo reino do Congo, que se estendia do noroeste de Angola, à República do Congo, ao oci-dente da República Democrática do Congo e ao centro -sul do Gabão. Isto explica a forte influência que a Angola moderna independente tem nos Congos e a procura de dominância.

Por muito que custe aos saudosistas do Império português e aos vilipendiadores do mesmo (que agora estão mais na moda), os eixos essenciais de Angola estão com o Brasil e os Congos, antes de tudo. Portugal será o que sempre foi, a placa giratória, de entrada e de saída, de tráfego e tráfico, de porta para a Europa, ou saída da Europa para África. Referência cultural e intelectual. Um eixo fundamental, mas não o único.

Quanto a Angola, não é apenas um país africano. A cultura an-golana assenta num tripé: é África, é América Latina, é Europa. Angola é um país de três continentes, formado por três continentes e que hoje vive com eles.

*

Obtida a independência em 1975, Angola mergulhou numa guerra civil trágica; aliás já estava imersa anteriormente, tendo Portu-gal, habilmente, como fez ao longo da história, usado as divisões entre angolanos para seu benefício.

Em 1975, Portugal abandonou Angola à sua sorte, e a Guerra Fria entrou em força no país. Na primeira década, a Guerra Civil an-golana foi acima de tudo mais um episódio sangrento da Guerra Fria. Isso, aliás, explica a sua internacionalização com as intervenções cuba-nas, sul ‑africanas, e do então Zaire (hoje RDC ‑República Democrática do Congo).

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ANGOLA E FUTURO

Falsificação histórica de 1992

O fim da Guerra Fria levou à primeira tentativa de paz em An-gola, entre 1991 e 1992. As potências internacionais pensaram que uma vez que haviam perdido o interesse na guerra em Angola, essa guerra devia cessar. O problema é que todo o processo de paz foi feito de forma muito negligente, e os Estados Unidos da América repetiram um erro em que têm sido pródigos na sua história de relações externas: retiraram o apoio aos seus fiéis, neste caso a UNITA.

O MPLA, mais intelectual, mais urbano, facilmente obteve o suporte dos opinion ‑makers e líderes ocidentais e portugueses, enquanto a UNITA foi esquecida pelos seus antigos aliados norte ‑americanos, que assim voltaram a mostrar ao mundo que não são aliados de con-fiança, repetindo os erros do Irão e do Afeganistão, entre outros. Aca-ba a Guerra Fria, acaba o apoio e deixam a “lei da selva” imperar. Neste caso, deixaram a UNITA na selva.

E a tentativa de paz, em 1992, falhou redondamente, prolongando‑‑se a guerra até 2002. É hoje claro que, em 1992, foi criada uma “lenda negra” acerca da UNITA e a sua actuação na época que faz lembrar um dito de Winston Churchill, o primeiro ‑ministro inglês que venceu a Segunda Guerra Mundial (1939 ‑1945) contra a Alemanha nazi. Chur-chill estava um dia a discutir com alguém como se tinha passado deter-minado episódio nessa guerra e a sua versão era diferente, e não che-gavam a acordo. No final, para acabar com o diferendo, Churchill disse que não interessava a opinião do interlocutor porque era ele, Churchill, quem ia escrever a história – a sua versão ficaria para a posteridade. E assim foi. Churchill escreveu uma monumental história da Segunda Guerra Mundial que lhe valeu o Prémio Nobel da Literatura. E a sua versão tornou -se a verdade.

Ora, o mesmo se passou em relação à atitude da UNITA de 1992. A versão “oficial” é que este movimento se recusou a aceitar os resultados das eleições e partiu para a guerra. Os documentos da época contam outra história, designadamente as publicações do Jornal

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1. INTRODUÇÃO HISTÓRICA

de Angola de 17 de Outubro de 1992 – “Vamos ter segunda volta” e “Savimbi diz que aceita resultados como estão”.

Depois da primeira volta eleitoral de 1992, a UNITA prontificou‑-se a continuar o processo eleitoral, passando à segunda volta das elei-ções presidenciais entre Dos Santos e Savimbi, e disso informou todas as autoridades nacionais e estrangeiras.

Figs. 1 e 2 - Jornal de Angola de 17 de Outubro de 1992.

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Na realidade, menos de duas semanas depois de Savimbi ter aceitado os resultados eleitorais “como estão” – na data prevista e tendo cumprido todos os protocolos, incluindo cartas às Nações Unidas –, os seus dirigentes e negociadores de paz foram massacra-dos em Luanda. Não houve qualquer tentativa de golpe de Estado por parte da UNITA, como se fez crer na altura. Mas, também nunca mais houve segunda volta, nem eleições presidenciais directas até hoje. Contudo, confundiu ‑se a propaganda e o romance com a verdade his-tórica, e criou ‑se a “lenda negra”: a UNITA é o partido da guerra e sempre quis guerra; não sabe viver em paz. Foi esta a ideia disseminada sem travões.

O que é certo é que a guerra foi retomada, e só terminou pas-sados dez anos quando as forças do MPLA conseguiram matar Jonas Savimbi, o líder da UNITA. Portanto, o que tivemos foi uma vitória militar do MPLA e a morte do comandante inimigo. É importante sa-lientar este ponto, porque esta vitória militar é fundamental para tentar entender os acontecimentos que daí, e até hoje, sucederam.

Vitória militar como acto fundador da nova Angola

O acto fundador da nova fase de Angola, que se inicia em 2002, não é um acto de paz, é um acto de vitória militar. Um exército ganhou ao outro. E esse acto fundador tem dois efeitos, que acompanham as vitórias militares desde a Antiguidade.

O poder fica legitimado pela força, e por isso, os vencedores não vão perder em eleições aquilo que conquistaram com sacrifício huma-no. Este raciocínio justifica a visão dos governantes segundo a qual existam as eleições que existirem, apenas o MPLA tem direito a gover-nar, porque ganhou a guerra e pagou o seu preço em vidas e sangue.

O segundo efeito da vitória militar é o direito ao saque. Os ge-nerais vencedores, como desde sempre na história, ficam com direito às riquezas do país que conquistaram. E este facto fundamenta o “as-