andré lepecki no metaplano, o encontro

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112 RUMOS TEATRO | ENCONTRO ANDRÉ LEPECKI ENCONTRO NO METAPLANO, O ENCONTRO ANDRÉ LEPECKI É Michel Serres quem, contemplando o plano do mundo e atentando a uma dura- ção histórica multimilenar, faz o diagnóstico: “estamos soterrados em nós mesmos; emitimos sinais, gestos e sons indefinida e inutilmente. Ninguém escuta ninguém. Todo mundo fala; ninguém ouve; a comunicação direta ou recíproca está bloque- ada”. O seu relato é cruel. Mas não é pessimista. Em vez disso, a crueldade do filósofo descrevendo a cacofonia ruidosa do humano deve ser entendida no sen- tido que Artaud deu ao termo, ou seja, como afeto, simultaneamente denotando lucidez e vida. Pois não é assim que a vida é? “Este aqui fala com instrução; ele é tão chato quanto o último curso que lecionou. Aqueloutro, mais jovial, representa um papel ao qual se agarra com unhas e dentes: ele espalha seu bom humor com seu discurso. O terceiro, um pentelho irritante e sempre arvorando um ar superior, terroriza os que o rodeiam. Todos tocam seu instrumento favorito, cujo nome é: eles mesmos.” Cacofonia egoica do mundo, fazendo um mundo de paupérrimas afetações, cujo nome é humanidade. “No entanto”, diz-nos Serres, pois teria que o dizer, uma vez que a vida também nos demonstra isso mesmo, “por vezes, há concordância”. E essa concordância só pode ser entendida como pertencendo dupla, simultânea e paradoxalmente à ordem do incrível e à ordem do mundano. Aliás, é a improvável mundanidade da concordância que transporta o mundo para além do seu plano corriqueiro e assim fabrica, entre- tece ou faz um metaplano para a existência. Poderíamos chamar-lhe o metaplano do miraculoso, do acontecimento, ou do encontro: “A coisa mais incrível no mundo é que por vezes concordância, compreensão, harmonia, existem. Leibniz supôs Deus por via desta Lei-Milagre”, conclui Serres, não sem certo espanto. 1 1. Michel Serres, The Parasite (Minneapolis: Uni- versity of Minnesota Press, 2007), p. 121, tradu- ção minha do inglês.

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ENCONTRO

NO METAPLANO, O ENCONTROANDRÉ LEPECKI

É Michel Serres quem, contemplando o plano do mundo e atentando a uma dura-ção histórica multimilenar, faz o diagnóstico: “estamos soterrados em nós mesmos; emitimos sinais, gestos e sons indefinida e inutilmente. Ninguém escuta ninguém. Todo mundo fala; ninguém ouve; a comunicação direta ou recíproca está bloque-ada”. O seu relato é cruel. Mas não é pessimista. Em vez disso, a crueldade do filósofo descrevendo a cacofonia ruidosa do humano deve ser entendida no sen-tido que Artaud deu ao termo, ou seja, como afeto, simultaneamente denotando lucidez e vida. Pois não é assim que a vida é? “Este aqui fala com instrução; ele é tão chato quanto o último curso que lecionou. Aqueloutro, mais jovial, representa um papel ao qual se agarra com unhas e dentes: ele espalha seu bom humor com seu discurso. O terceiro, um pentelho irritante e sempre arvorando um ar superior, terroriza os que o rodeiam. Todos tocam seu instrumento favorito, cujo nome é: eles mesmos.” Cacofonia egoica do mundo, fazendo um mundo de paupérrimas afetações, cujo nome é humanidade.

“No entanto”, diz-nos Serres, pois teria que o dizer, uma vez que a vida também nos demonstra isso mesmo, “por vezes, há concordância”. E essa concordância só pode ser entendida como pertencendo dupla, simultânea e paradoxalmente à ordem do incrível e à ordem do mundano. Aliás, é a improvável mundanidade da concordância que transporta o mundo para além do seu plano corriqueiro e assim fabrica, entre-tece ou faz um metaplano para a existência. Poderíamos chamar-lhe o metaplano do miraculoso, do acontecimento, ou do encontro: “A coisa mais incrível no mundo é que por vezes concordância, compreensão, harmonia, existem. Leibniz supôs Deus por via desta Lei-Milagre”, conclui Serres, não sem certo espanto.1

1. Michel Serres, The Parasite (Minneapolis: Uni-

versity of Minnesota Press, 2007), p. 121, tradu-

ção minha do inglês.

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A primeira vez que se viram, a improbabilidade do que se desenrolava ali mesmo, no entre-eles, criou, antes de mais, uma não-visão.

Suponhamos, como agentes desse incrível, improvável, porém muito real acon-tecimento de uma provisória harmonia emergindo por entre o bafafá do mundo (acontecimento cujo outro nome, para Serres, é “milagre,” e para nós “encontro”), não Deus, como queria Leibniz, mas dois seres humanos. Mas de-ontologizemos logo esses seres. Retiremos mesmo deles a categoria de “ser” e o gênero “humano”. O que nos sobra? Dois modos de individuação. Ou melhor: duas vidas. No plano cacofônico do mundo, suponhamos essas duas vidas circulando por entre a orques-tra de “eus” alardeando suas identidades. E não sejamos ingênuos: essas duas vidas também participam da proliferação do mundo-ruído, também elas, volta e meia, têm de martelar convictamente no instrumento chamado “elas mesmas” – sob pena de ser soterradas pela falação dos outros.

Assim, vislumbravam apenas o que o clarão que tudo encobria, ou melhor dizendo, que todo o entre-eles preenchia, deixava entrever: uma mão esquerda, forte; uma linha de braço, decidido; um modo geral de inclinação do tronco; tecelares cabelos; uma orelha; lábios movendo-se em autonomia; uma perna de um, uma perna de ou-tro; um olho talvez míope outro talvez não. E pouco mais. Mais tarde, na memória de ambos, essa entrevisão era já só amálgama de brilho puro, áureo azul, como em algumas obras de Yves Klein.

O mundo mundano então como plano composto principalmente, majoritariamen-te, de uma cacofonia infinita e uma circulação sem-fim. Falação que nada diz, nem deixa dizer; circulação que nunca faz passar nada; e movimento que nunca chega a lado nenhum senão à sua própria inquietação e agito. Todo mundo falando sem pa-rar; todo mundo circulando sem parar: dois modos perfeitamente complementares de criar o mais puro bloqueio. Encontramos esses dois modos de bloqueio (o ruído falante e a circulação compulsiva) representados no belo filme de Agnes Varda, Cléo de 5 a 7, de 1962. A linha dramática é tão simples como comovente. Agitada pelo medo objetivo de um possível diagnóstico de câncer, que será confirmado ou não no fim do dia, o filme segue Cléo entre as 17 e as 19 horas, quando ela final-mente receberá os resultados do exame médico. Cléo circula por Paris, incapaz de permanecer num só lugar (apesar de ir de lugar em lugar) ou de entrar em diálogo (mesmo rodeada por conversas). Ela é linda, jovem, popular, famosa. A voz dela entra no mundo via rádios, discos, jukeboxes e se multiplica nas vozes de outros que cantam as suas canções. Mas apesar da imagem de juventude no agito urbano, da sua plurivocalidade multilocal, a morte interiorizada faz dela uma tristeza em movi-mento. Cléo ou fala ininterruptamente ou é rodeada de palreares incessantes; segue de lugar a lugar, porque toda ela é pura angústia. Dentro dela, rege a morte anteci-pada, a morte interiorizada, a morte ainda em vida – mesmo se o diagnóstico médi-co ainda está por ser entregue. Refrão implícito do filme, cuja narrativa se desenrola em tempo real, é a pergunta que angustia Cléo: “Quanto tempo tenho para viver?”.

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Foto Rubens ChiriGrupo Bagaceira de Teatro e Coletivo Angu de Teatro

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Coup de foudre, diz-se em francês ao brilho súbito e estonteante-cegante que recobre e define o metaplano do encontro enamorado. A enciclopédia esclarece que o relâm-pago é um fenômeno eletromagnético que deriva da diferença de potencial que se estabelece entre dois corpos em relação. Uma singularidade se define aí. Porém, para dois seres humanos (sem ontologia e sem gênero) que se encontram verdadeiramente, na mais raríssima improbabilidade, a questão não é mais a de uma física do relâmpago, mas de uma metafísica diferencial do encontro – como compor para o encontro um metaplano que receba e prolongue o desejo em seu desdobrar singular-relacional.

O brilho indicia a textura subtil do metaplano do milagre, do acontecimento, ou do encontro (os planos de dourados e ouros na Anunciação, de Fra Angelico, recobrin-do e reluzindo o mais mundano dos objetos, tornando-os nuvem, ou melhor, mani-festando, ou catalisando, o seu já-ser nuvem; a lâmina dourada em forma de coração que emoldura os rostos enamorados naquele “beijo extraordinário”2 que retrata a Saudação de São Joaquim e Sant’Ana de Giotto...). Não há evento sem encontro; e não há encontro que não seja o advento de um milagre. Mas será mesmo? Nem todo encontro é bom, adverte-nos Espinosa. Há os encontros péssimos, mortíferos, ressentidos. Encontros que são puro veneno, que fazem relação por via de decom-posições, remorsos, traições, vampirismos – mesmo que “amorosos”. Se Serres vê no encontro o milagre, a expressão raríssima de uma harmonia “altamente improvável”3 no meio do ruído egoísta, Espinosa, por seu lado, vê encontros em toda parte. Para Espinosa, o pleno do mundo não é mais do que um campo de encontros sem fim. Trata-se, então, e antes de mais, de uma questão de tipologia: “Quando um corpo ‘encontra’ outro corpo, uma ideia, outra ideia, tanto acontece que as duas relações se compõem para formar um todo mais potente, quanto que um decompõe o outro e destrói a coesão das suas partes”, esclarece Deleuze, escrevendo sobre a filosofia de Espinosa.4 Ou seja, o mundo é o plano composto por encontros infinitos que se distribuem alegre ou tristemente de acordo com a natureza relativa de cada parte e o modo relacional de cada encontro. Mas reparemos nas aspas que Deleuze utiliza quando escreve a palavra encontro, na frase citada. Essas aspas, curiosas, discretas, mas, sem dúvida, operantes, já tornam a palavra que delimitam numa representação dela mesma.5 Curiosa operação diacrítica que Deleuze opera: um esvaziamento de potência significante e intrigante da palavra “encontro”. Será que, com essas aspas, Deleuze pretende indicar a possibilidade de que há outra ordem do encontro, uma ordem outra em que o encontro possa ser escrito, ou expresso, plenamente, sem as-pas, ou seja: sem recorte, resguardo ou esvaziamento da sua conotação mais direta e expressiva? Uma ordem do encontro que exista plenamente para além da coin-cidência de afetações num determinado espaço-tempo e num modo de relação entre individuações? Essas questões talvez se resolvam da seguinte maneira: retire-mos de “encontro” as aspas e reescrevamos então a frase de Deleuze começando agora assim: “Quando um corpo encontra outro corpo...” Sugiro que esse encontro, reescrito e expresso agora em grafia enfática, sem aspas (ou seja, sem resguardos, sem representação), é o ponto de contato entre o plano do mundano e o plano de

2. Peter Sloterdijk. Bulles. Sphères I. (Paris: Pau-

vert, 2002), p. 162, tradução minha do francês.

3. Serres, ibidem.

4. Gilles Deleuze. Espinosa. Filosofia Prática. São

Paulo: Editora Escuta, 2002, p. 25.

5. Jacques Derrida, a propósito de Heidegger,

nos fala de uma “Lei das aspas: duas as duas

elas montam guarda”. A sua suspensão causaria

uma “liberação do espírito” da letra, uma pre-

sentificação desguardada e não representacio-

nal da palavra. Ver Derrida, Of Spirit (Chicago:

University of Chicago Press, 1991), p. 31, tradu-

ção minha do inglês.

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transcendência. Ou seja, é o ponto de diferenciação de um tipo muito específico de encontro, num mundo feito deles. Esse ponto de contato e de diferenciação não se reduz ao espaço infinitesimal de sua geometria, mas é antes um ponto proliferante que se espraia como metaplano singular, em que o encontro pode expressar os seus mais puros devires, a sua consistência singular. Encontro de matéria com matéria (todos os atuais, todos os virtuais se entrelaçando no encontro) ressoando numa cocomposição mútua o que ainda não existia, nem se imaginava existível.

Seguem pela cidade, mal se conhecem, mas sob o fulgor do brilho amoroso entram em concórdia e em movimentação. O perambular agora, apesar de se dar em cami-nhos, veredas e carris, não é mais um agito, mas antes condensação e distensão de tempos insuspeitados no pleno do mundano. Coisas do coração, sístole e diástole. Concórdia. Tudo se ralenta. Param em frente à água; ou quem sabe é um jardim. Pou-co importa. A água adensa o tempo e o jardim liquefaz as durezas dos egos. Interessa a criação de um vácuo pleno de existência no plano do mundo buliçoso. Metaplano. No encontro, acha-se um entrelugar que apesar de flutuante é totalmente localizável e feito de elementos bem enraizados e corpóreos. No jardim ou praia descobrem em silêncio a ressonância harmônica improvável.

Estamos agora no final do filme. Faltam poucos minutos para as 7 horas da noi-te. A angústia de Cléo chega ao paroxismo. E então, o encontro. Nele, tudo no mundo permanece o mesmo. As árvores, os jardins e, durante bastante tempo, mesmo o modo de ser de Cléo, sua singularidade, seu modo de individuação, suas angústias. Mas, o encontro sendo encontro, é a própria substância corporal que se rearranja, num realinhamento energético. Tudo é igual, menos o modo de distribuição de forças, que rearranja molecularmente a carne, fazendo-a brilhar e vibrar de modo mais alegre. O encontro tendo acontecido, trata-se agora de outra questão. A de “não ser indigno com relação àquilo que nos acontece”, na fórmula que Deleuze usa parafraseando os estoicos.6 Ou seja, trata-se, antes de tudo, de saber como não ser indigno perante o acontecimento, trata-se de saber fazer o acontecimento acontecer e desdobrar-se em mais acontecimento. Pouco importa que não saibamos de antemão como fazê-lo. O que importa é o desejo de querer fazê-lo pleno, mesmo que nunca se saiba de antemão o que virá a ser. Não se trata mesmo de construir algo sob espécie de alguma imagem do desejo que o preexistiria e o amarraria. Trata-se de ousar fazer com o outro o fazer-se do encontro. Agarrar o evento e com ele entretecer o metaplano.

Entrelaçam-se. Enamoram-se. Não há um beijo, nem qualquer imagem reconhe-cível que signifique ou represente “paixão”. Há, ao invés, algo mais importante: o olhar no olhar fissionando no entre-eles o infra-fino azul-aúreo. O médico passa finalmente, de carro, apressado, finalizando seu dia de trabalho certamente árduo, com mortes, dores, erros, radiações, remédios e venenos. Numa quase indiferença polida, solta a frase, já acelerando: “Segunda-feira começamos, dois ou três meses de radiação e deve ficar tudo bem”.

6. Gilles Deleuze, Logic of Sense. New York:

Columbia University Press, 1990, p. 149, tra-

dução minha do inglês.

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Por que privilegiar o encontro amoroso? Porque ele não tem de ser, antes de mais nada, um encontro de paixão. A paixão é descabelada, agitada, egoica. O encontro amoroso é o encontro cordial, ou seja, etimologicamente, o que é relativo ao cora-ção. O encontro de coração a coração, ressoa e reecoa as fibrilações singulares do cada qual numa disritmia plena, porém concordante na diferença: “A diferença na intensidade é ao mesmo tempo o objeto do encontro e o objeto para o qual o en-contro aumenta a sensibilidade. Não são os deuses que são encontrados; estes não são mais do formas para o reconhecimento. O que é encontrado são os demônios, potências de salto, do intervalo, do intensivo ou do instante, que preenchem a dife-rença com o diferente”.7 O que Serres chama de “harmonia”, Deleuze de “intensivo”, eu chamo de concórdia: fazeres do entre-corações. Tem de ser assim o encontro miraculoso e raro: nasce de si mesmo por via da ousadia de desejar fora de quais-quer planos preconcebidos de desejo; por via da ousadia de escapar às coreografias sociais que alinhavam desde sempre as possibilidades de diálogos entre as partes. Ao contrário, trata-se de uma coreografia incalculável8 de gêneros, afetos, toques, trocas já fazendo o impossível.

O câncer existe, mas Cléo já não tem a morte interiorizada. Em poucos minutos, no me-taplano do encontro, ela entra num movimento de devir enamorado onde sua boca ganha uma outra voz e onde encontra por fim a resposta certa à pergunta angustiante. E a res-posta é sem esperança − e por isso mesmo plena de alegria: é a única que faz o meta-plano brilhar no coup de foudre diferencial do encontro pleno. À questão, “quanto tempo tenho para viver?” o metaplano do encontro responde, sem angústia: “Toda a nossa vida”.

IINo entanto...No entanto, o encontro comporta também choques, colisões, esbarros. Esses en-contrões nos revelam a dureza no mundo, dureza que não deve deixar de ser con-siderada, mesmo em teorias e práticas que associam a potência do devir ao puro fluxo.9 Por mais que consideremos a fluidez dos sólidos e suas modulações físicas e semânticas, as suas capacidades “acontecimentais”, não se pode negar que um dos acontecimentos inescapáveis da matéria é a sua capacidade de se opor, de resistir, de comprimir, de bloquear, de ir-contra. É por isso que, quando o iniciado se encon-tra no mais profundo transe meditativo, já em pleno devir-molecular, entrando na duração e se fundindo com a matéria do mundo, o Mestre Zen deve chegar por de-trás dele, silenciosa e sorrateiramente, e fustigar brutalmente suas costas com varas de bambu. A vergastada no lombo é a necessária lição de dureza no meio do fluxo da matéria, a lição do enrijecimento que o corpo-em-devir deve receber de modo a saber agenciar o fluxo da matéria na direção do metaplano (que, lembremo-nos, é sempre mundano e supraordinário).

Tal como o movimento e a circulação podem ser (contraintuitivamente) forças de bloqueio, é a capacidade de dureza da matéria, seu ir-contra, que paradoxalmente possibilita a construção de fluências verdadeiras, circulações energéticas potentes.

7. Gilles Deleuze, Difference et Répétition. Paris:

PUF, 1993, pp. 188-9, tradução minha do francês.

8. Jacques Derrida, “Incalculable Choreogra-

phies”, Bodies of the Text. Eds. Ellen W. Goell-

ner e Jacqueline Shea Murphy. New Bruns-

wick: Rutgers University Press, 1995, tradução

minha do inglês.

9. Encontramos tal associação (com nuances es-

pecíficas, obviamente) em todo Gilles Deleuze

e em Henri Bergson, mas também em Alfred

N. Whitehead e William James. Para sua ver-

são mais recente e potente, veja o livro de Brian

Massumi Semblance and Event (Cambridge,

Mass: MIT Press, 2011).

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Lembremo-nos de que o corpo-sem-órgãos de Deleuze e Guattari comporta mes-mo a necessidade de criar sistemas de fluxo por via de agenciamentos de nódulos duros, de modo que se façam circular as intensidades. Uma coisa é a dissolução da matéria. Outra coisa é desejar o acontecimento do devir por via de todos os atribu-tos da matéria – incluindo sua capacidade de diferir, de ir contra, de se opor.

O desejável instrumento de fluxo – que não é mais do que o conglomerado fei-to por miraculosas combinações improváveis derivadas do encontro-milagre entre virtualidades infrafinas (isto é, fulgurante relampejar do entre-eles) e matéria dura (condensação da carne-duração) – faz o metaplano do encontro. Pouco importa se as matérias de fluxo sejam sutis ou densíssimas, fluxo do rarefeito ou refluxo no duro. Importa desejar suas inesperadas concórdias (mesmo se arrítmicas), importa ousar a improbabilidade do encontro, importa no encontro saber fazer o desdobrar do miraculoso. Pode se chamar esse desdobrar e essa ousadia de amor. Porém, pode--se chamar também de política, arte, ou vida: sem esperança porque plenamente enamorada, densa porque fluida, azul porque áurea, concordante porque alegre.

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A N D R É L E P EC K IFoto Ivson Miranda Erro Grupo

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