brazil, andré - modulação-montagem - ensaio sobre biopolítica e experiência estética
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Andr Guimares Brasil
MODULAO/MONTAGEMEnsaio sobre biopoltica e experincia esttica
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao emComunicao da Escola de Comunicao da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro como quesito parcial para a
obteno do ttulo de Doutor.Orientadora: Profa. Dra. Ivana Bentes Oliveira
Rio de JaneiroJulho 2008
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Andr Guimares BrasilMODULAO/MONTAGEM
Ensaio sobre biopoltica e experincia esttica
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduaoem Comunicao da Escola de Comunicao daUniversidade Federal do Rio de Janeiro comoquesito parcial para a obteno do ttulo de Doutor.Orientadora: Profa. Dra. Ivana Bentes Oliveira
Aprovada em _________________________________________
__________________________________________Profa. Dra. Ivana Bentes OliveiraDoutora em ComunicaoUFRJ
_______________________________________Prof. Dr. Csar Geraldo GuimaresDoutor em Estudos LiterriosUFMG
__________________________________________Profa. Dra. Fernanda Glria BrunoDoutora em Comunicao
UFRJ
__________________________________________Prof. Dr. Mauricio LissovskyDoutor em ComunicaoUFRJ
__________________________________________Prof. Dr. Peter Pl PelbartDoutor em FilosofiaPUC SP
Suplentes:
Profa. Dra. Andrea Frana Martins, Doutora em Comunicao, PUC-RJProf. Dr. Paulo Roberto Gibaldi Vaz, Doutor em Comunicao, UFRJ
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FICH C T LOGRFIC
Brasil, Andr.
MODULAO/MONTAGEM: ensaio sobre biopoltica e experinciaesttica./Andr Guimares Brasil.Rio de Janeiro: UFRJ/CFCH/ECO, 2004
206f.: il.
Orientadora: Profa. Dra. Ivana Bentes de Oliveira
Tese (Doutorado em Comunicao e Cultura Contempornea) Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, Escola de Comunicao,CFCH, 2004.Referncias Bibliogrficas: f. 199-206.
1. Comunicao. 2. Biopoltica. 3. Experincia Esttica. 4. Capitalismoesttico - Tese. I. Oliveira, Ivana Bentes (orient.). II. Universidade Federal doRio de Janeiro. Escola de Comunicao ECO/CFCH. III.Modulao/Montagem: ensaio sobre biopoltica e experincia esttica.
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para anaamor raro
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gradecimentos
A Ana, que eu fui buscar de bicicleta.Aos meus pais, que me apresentaram a palavra e continuam me expondo aos seus mistrios.
Primeiros e mais importantes leitores.Aos meus irmos, que esto por perto, mesmo quando estou longe.A Nanda, por me ensinar a beleza.Ao Czar Migliorin, meu irmo, que fez do doutorado algo maior do que seria.A Flvia pelas conversas em volta da mesa, no parque, nos cafs e pela admirao que s faz crescer.Ao Diego que me conta histrias e a Elisa que me faz dar risada.Ao Eduardo de Jesus, meu amigo, que, l no comeo, me disse para resistir sempre.E continua me lembrando disso.Ao Csar Guimares, por levar o pensamento para onde leva.A Ivana Bentes, minha orientadora, pela crena nas imagens e no mundo.Glria, que ouviu o que eu no precisei dizer.Ivone, que eu quero reencontrar depois da tese.Kika, pelo almoo que dura um dia e a vida inteira.Roberta Veiga, que, h muito, erra comigo pelos livros afora.Geane, que, vez ou outra, aparece em emails que me fazem escrever.Cac, pela cerveja no meio do dia que tomamos e que continuamos nos devendo.Aos amigos do peito, que no querem nem ouvir falar de tese: Julios, Bandeira, Guto, Toninho, Gui,Rudi, lvaro, Maurcio.Aos amigos que tive a sorte de encontrar, bons de papo e bons de garfo (e de vinho): Marlia, Fred,Bellini, Issa, Cia, Otvio. Vocs no perdem por esperar minha graduao em culinria!A Cac, com quem vou correr a prxima maratona.A T que me faz ver a vida que h no espao.A Consuelo Lins pela escuta atenta e pelos toques precisos.Aos funcionrios e professores da Ps, especialmente, a Fernanda Bruno e ao Paulo Vaz, pelas aulasinspiradas que esto na tese.
A Amaranta, que parece comigo e a M, que l cartas e que d certo.A Solange Farkas e aos amigos do Videobrasil, que, como eu, gostam da arte menor do vdeo.
Agradeo s instituies que possibilitaram a pesquisa: Programa de Ps-Graduao da Escola deComunicao da UFRJ; PUC Minas; CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico eTecnolgico); Capes (Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior)
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O rio se move.O melro deve estar voando.
Wallace Stevens
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Resumo
Qual a dimenso poltica da experincia esttica no contexto da biopoltica? Em via inversa, qual a dimensoesttica da poltica? Motivados por estas questes, elaboramos um ensaio, no qual se articulam dois domniostericos: o primeiro retoma o conceito de biopoltica, formulado originalmente por Michel Foucault, paradescrever seus desdobramentos contemporneos. O segundo domnio abriga um conjunto de teorias recentesque buscam definir o estatuto da experincia esttica, para alm da esfera especfica da arte.
Primeiramente, define-se a biopoltica como o poder que, em consonncia com o Estado liberal e o capitalismo,se interessa pela vida em suas dimenses individual e coletiva. Se, a partir de Gilbert Simondon, a vida oprocesso de defasagem, variao e modulao do ser, a biopoltica se caracteriza aqui como o conjunto deestratgias que modulam a modulao da vida.
A dificuldade em se responder a questo proposta pela pesquisa est no fato de que as estratgias biopolticas sevoltam, atualmente, para a dimenso esttica da experincia, ou seja, elas atuam justamente no interior dosprocessos que permitem vida se reinventar e que podem provocar, no cotidiano, a ampliao de seu horizontede possibilidades. Dito de outro modo, a biopoltica constitutiva de um capitalismo esttico, que transborda oslimites da empresa para investir na fora de inveno e de recriao da vida. Trata-se, nesse caso, principalmente,de um investimento no tempo: interessa menos a vida em sua atualidade do que suas potencialidades.
Nossa hiptese a de que h uma dimenso poltica naquela que se constitui como esttica do ordinrio. Paraalm do artstico, o potencial poltico da experincia esttica se encontra na esfera do uso: aqui, o uso se liga aoutros conceitos a montagem, a bricolagem, a profanao para que se mostre como, na experinciacotidiana, nos apropriamos dos objetos, dos dispositivos e das linguagens.
Se o tempo da biopoltica se define pelo clculo e pela antecipao, o uso nos faz encontrar uma outratemporalidade, um tempo potencial, tempo da memria, da origem e da infncia, segundo teoria de WalterBenjamin retomada por Giorgio Agamben. A cada uso dos objetos e dos dispositivos, a cada ato de linguagem, todo o passado que se torna novamente possvel, ou seja, todo o passado que se abre como possibilidade.
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Rsum
Quelle serait la dimension politique de lexprience esthtique dans le cadre de la biopolitique? Et, inversement,quelle serait la dimension esthtique de la politique? partir de ces questions, nous avons labor un essai osarticulent deux domaines thoriques: le premier reprend le concept de biopolitique, dont la formulationoriginel reporte Michel Foucault, pour aborder ses dploiements contemporains. Lautre domaine contient un
groupe de thories plus rcentes qui sengagent dans llargissement du statut de lexprience esthtique au-delde la sphre de lart.
La dfinition de biopolitique dans ce point de vue est envisage comme le pouvoir qui, en consonance avec ltatlibral et le capitalisme, sintresse la vie dans ses niveaux individuel et collective. Si lon accepte, en accordavec Gilbert Simondon, que la vie est le processus de dcalage, variation et modulation de ltre, la biopolitiquepeut tre dfinie comme lensemble des stratgies qui modulent la modulation de la vie.
Les difficults que lon trouve rpondre la question propose par la recherche sont lies au fait que lesstratgies de la biopolitique se tournent vers la dimension esthtique de lexprience, cest--dire, elles agissent lintrieur mme des procds qui permettent la rinvention de la vie et qui peuvent largir lhorizon de sespossibilits au quotidien. De ce point de vue, la biopolitique peut tre dfinie comme le noyau dun capitalismeesthtique, qui dpasse les limites des entreprises pour investir dans la force inventive et crative de la vie. Ilsagit, dans ce cas et surtout, dun investissement du temps: ce qui intresse est moins la vie dans son actualit
que dans ses potentialits.
Notre hypothse est quil y a une dimension politique dans lesthtique du quotidien. Au-del de lartistique, lepotentiel politique de lexprience esthtique se trouve dans le domaine de lusage, qui est li aussi aux conceptsde montage, bricolageet profanation, pour donner voir comment nous nous approprions des objets, dispositifse langages dans exprience quotidienne.
Si le temps de la biopolitique est dfini par le calculet la capacit danticipation, travers lusage lon dcouvreune autre temporalit: un temps potentiel, le temps de la mmoire, un temps dorigine et de lenfance, si lon estdaccord avec la thorie de Walter Benjamim reprise par Giorgio Agamben. chaque emploi des objets et desdispositifs, chaque acte de langage, tout le pass devient nouveau possible, cest--dire, le pass souvreentier comme possibilit.
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bstract
First and foremost the question to be answered could be so formulated : which is the potential of aestheticalexperience in the context of biopolitics ? Due to its importance, it motivates the elaboration of an essayconnecting two theoretical domains : the first one brings to light the concept of biopolitics, created originallyby Michel Foucault and enriched by other authors to cover certain contemporary social configurations; thesecond domain includes recent developments that try to enlarge the status of the aesthetical experience beyondits historical and specific links with art.
Biopolitics is defined as the power used by liberal State and by capitalism to manipulate human life in its socialand individual levels. If, according to Gilbert Simondon, life is a process of modulation, variation and time laggingof Being, biopolitics is characterized as the strategies which modulates the modulation of life.
The difficulties encountered to answer the proposed question in this research are mostly due to the fact that thestrategies used nowadays, are focused in the processes which allow the re-invention of life, as the way toenlarge its horizon of possibilities. That is equivalent to state that liberal capitalism highligts the estheticaldimention of experience. Biopolitics is, so, part of an aesthetical capitalism that overflow the borders of theenterprises to invest in the power of invention and re-creation inherent to life itself. As every investment,biopolitics is concerned mainly with time, and looks upon life much more from the point of view of itspotentiality and less in its actuality.
Our hypothesis stresses the political dimension that pervades the aestheticsof dayly life. The political power ofthe aesthetical experience extrapolates art and is located in the sphere of common usage. This common usage islinked to other concepts, such as, assemblage, bricolage and profanation, which bring to life the fact that byliving, we take possession of objects, devices, and languages. Time in biopolitics is defined by calculation andanticipation. Usage makes us discover another kind of temporality time of memory, of origin and of childhood,if we follow the ideas of Walter Benjamin and of Giorgio Agamben. Each act of usage which includes themanipulation of objects, devices and languages, brings to life the past as a new horizon of possibilities.
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Sumrio
INTRODUO 01
MODULAAO
A mesa onde escrevemos 22O que a poltica 24Um sequestro 31Da poltica do rosto 37O horizonte como ponto de fuga e o espao como perspectiva 41Espao e tempo da disciplina 44O passo 48Da biopoltica 50Olhar panptico, olhar cintico, olhar algortmico 55Excesso 63Biopoltica no capitalismo avanado 70Do risco 72A justia infinita 75O consenso 77
A espera, o evento, o descompasso 80Configurao sensvel paradoxal 89Paradoxo do espao: a rede 90Paradoxo do tempo: a simulao 98Paradoxo da subjetividade: a performance 102O que a vida 107Capitalismo esttico 111Entre a guerra e o jogo 117
MONTAGEM
Ferrugem 124Pobreza e precariedade 127Infncia 130
O que a linguagem 135Da experincia 139Do esttico ao poltico 143Corpo harmonioso 147Corpo sem rgos 152Corpo-montagem 159O espao da experincia esttica 165O tempo da experincia esttica 168O sujeito da experincia esttica 172
Virar a cmera 179Da irredutibilidade da experincia esttica 183
CONCLUSO
Concluso I: Por uma comunidade esttica 189Concluso II: Esttica do ordinrio 193
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS199
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Projeto grfico: Fernanda GoulartImagens das capas: Yuken Teruya
Imagens das divisrias: Charwey Tsai
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Introduo
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INTRODUO 1
Recm-lanada pela Sony, a cmera Cybershot Tse assemelha aos diversos modelos que se
substituem, um aps o outro, no mercado de gadgets digitais. Mas, ela guarda uma
diferena ou, em termos mercadolgicos, um diferencial: a cmera s dispara diante do
sorriso daqueles que fotografa.1 Por meio de tcnicas da biometria, a cmera detecta
variaes faciais, codificando-as em um repertrio que vai do riso tmido gargalhada.
Ao avisoj habitual que acompanha as cmeras de vigilncia dos shoppings centers
sorria! Voc est sendo filmado acrescenta-se esta exigncia, intrnseca ao dispositivo:
sorria, seja feliz! Assim voc aparecer na imagem.
Essa felicidade tecnologicamente assistida2 reveladora da relao que mantemos com
o tempo: em uma espcie de curto-circuito temporal, o sorriso, antes efeito de um
momento feliz, prazeroso, passa a ser sua causa. Somos felizes porque, na imagem,
sorrimos. Como se o evento o sorriso j estivesse inscrito no futuro, na forma de uma
expectativa, no caso, uma exigncia. A inverso temporal faz da cmera fotogrfica, antes
uma mquina de viso, uma mquina de pr-viso: o evento que ela captura est, desde
j, inscrito em sua memria. De um sorriso possvel, eventual, ele se torna um sorriso
esperado, calculado.
O gesto, a expresso do rosto, contudo, no so redutveis expectativa e ao clculo.
Primeiramente, h a variao do rosto que, em sua singularidade, no pode ser totalmente
prevista pela modelizao numrica. Mas, h ainda a dimenso de uso do dispositivo, que
1Devo o exemplo a Fernanda Bruno, em seu blog Dispositivos de visibilidade e subjetividade contempornea.
BRUNO, Fernanda. Sorria! Disponvel em http://dispositivodevisibilidade.blogspot.com. Acesso em 21 abr.2008.2Ibidem.
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INTRODUO 2
se configura sempre como uma prtica de desdobramentos, em certa medida,
imprevisveis.
O plustecnolgico funciona aqui como metonmia: a relao entre a cmera fotogrfica
e o sorriso reveladora de um conjunto de estratgias que visam adequar a singularidade,
a eventualidade, a imprevisibilidade em uma palavra, a potncia da vida ao clculo de
uma expectativa. Esse conjunto de estratgias fazem parte do que denominamos
biopoltica.
Desde a formulao pioneira por Michel Foucault, em 1974, o conceito de biopoltica
passa por uma srie de apropriaes e derivaes tericas, sem, com isso, se distanciar
totalmente da definio original: trata-se da rede de estratgias difusas e imanentes
atravs das quais o poder investe a vida humana, em suas dimenses biolgica, subjetiva e
social. Hoje, para alm do Estado, a biopoltica convergente ao processo de expanso do
capitalismo avanado, confundindo-se com as tcnicas de gesto, marketing e consumo.
Como veremos, a poltica contempornea se exerce nesse embate entre a dimenso de
clculo prpria biopoltica e o carter excessivo da vida cotidiana. O que motiva,
inicialmente, nossa pesquisa pensar o lugar da esttica nesse embate, o que significa
perguntar: para alm da esfera da arte, qual o potencial poltico da experincia esttica?
Responder pergunta, nos exige construir uma trama conceitual que nos leve
formulao de uma esttica do ordinrio, para, em seguida, sublinhar ali uma dimenso
poltica.
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INTRODUO 3
Para Gilbert Simondon, a vida se define como uma espcie de errncia do ser, o processo
por meio do qual o ser se torna extico, se defasa de si mesmo. Em permanente processo
de individuao, o ser sempre devir, ele quando j deixou de ser. Essa defasagem o
que compreendemos como modulao, ou seja, a vida em variao contnua. Se, por meio
da modulao, a vida defasagem e variao, em suas estratgias de regulatrias, a
biopoltica busca intervir justamente nessa dinmica. Ela regula a errncia da vida para
tornar seu futuro adequado, suficiente. Uma outra definio ainda mais concisa de
biopoltica poderia ser: o conjunto de tcnicas, procedimentos e estratgias, atravs do
qual se modula a modulao da vida.
Se esse principalmente um investimento no tempo, porque interessa menos a vida, em
sua atualidade, do que as possibilidades de variao, de transformao e inveno que ela
abriga. Da engenharia gentica ao marketing, interessa mapear, antecipar e modular seu
campo de possibilidades.
A biopoltica, tal como hoje a pensamos, guarda continuidades e descontinuidades em
relao formulao inicial. De l para c, percebe-se uma intensificao de suas
estratgias, em razo de alguns fatores que sero desenvolvidos ao longo do texto: em
primeiro lugar, h, como dissemos, uma convergncia entre biopoltica e capitalismo
avanado. Por meio do marketing, o capitalismo se interessa pela vida, no apenas como
lugar da produo e do consumo, mas, principalmente, como uma inesgotvel reserva de
inveno. Como veremos, o capitalismo ps-industrial tambm chamado cognitivo,
afetivo, esttico transborda os limites da empresa para se expandir a outros domnios da
vida cotidiana. O que se produz e se reproduz agora no so apenas mercadorias, mas
modos de vida.
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INTRODUO 4
Um segundo ponto, diz respeito ao avano cada vez mais acelerado da tecnocincia, em
aliana com as tecnologias da imagem e da informao. Menos pticas do que
algortmicas, essas tecnologias nos permitem o mapeamento e a modulao do espao, do
tempo, do corpo e das subjetividades, intervindo no apenas em suas visibilidades no
presente, mas, principalmente, naquilo que, no futuro, seria invisvel. Reside a seu
principal investimento: tornar visvel o invisvel, reconfigurando os limites entre um e
outro universo. Mais uma vez, este um investimento no tempo: a acelerao tecnolgica
provoca uma espcie de colapso temporal, no qual o futuro, antecipado pelas tcnicas de
previso e simulao, se volta sobre a vida, no presente, regulando suas aleatoriedades.
O contexto que legitima as estratgias biopolticas aquele de uma sociedade do risco e
da insegurana. No mbito do Estado liberal, a insegurana menos o que deve ser
combatido do que o que deve ser regulado. Como escreve Rancire, a insegurana ,
atualmente, um modo de gesto da vida coletiva. Diante de seu aumento, cresce na
mesma proporo a demanda pelo controle. Tornados retrica e modo de gesto, risco e
insegurana nos fariam reduzir a poltica a aes de polcia. Exemplar aqui o sloganda
justia infinita, utilizado por George Bush em sua cruzada contra o terror, logo aps o
atentado de 11 de setembro nos Estados Unidos. Diante do risco do terror, a justia se
torna infinita, ou seja, o Estado passa a exercer um direito acima de qualquer norma de
direito.
Aqui, nos aproximamos da questo central de nossa pesquisa. Como veremos, com
Rancire, a poltica justamente o que se contrape ordem policial, na medida em que
exige um novo ordenamento, uma nova cenaa partir dos dissensos que ela instaura. Se a
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INTRODUO 5
polcia a ordem que determina a funo e o posicionamento dos sujeitos em
determinado espao sensvel, a poltica o que exige a reconfigurao do espao para
que ali novos posicionamentos, novas funes e outros sujeitos polticos possam existir. A
poltica diz respeito, portanto, a um deslocamento de natureza sensvel, fazendo ver
aquilo que no se via e ouvir o que no era percebido seno como rudo. H uma gnese
esttica da poltica: trata-se de reconfigurar o espao e o tempo da experincia, de forma
a ampliar nosso horizonte de possveis. Nesse sentido, poltica e esttica se opem
polcia, ao controle e, antes de tudo, ordem do consenso.
Advm da a dificuldade da poltica no contexto do capitalismo avanado, que, como
vimos, se expande e se sustenta por meio das estratgias biopolticas. O capitalismo
intervm justamente na zona de intercesso entre a poltica e a esttica, para modular e
regular aqueles processos que, no cotidiano, nos permitiriam projetar mundos possveis.
Nesse contexto, a experincia poltica e a esttica se tornam to difceis quanto urgentes,
o que nos leva a retomar nossa pergunta inicial: qual , hoje, o potencial poltico da
experincia esttica?
Para tentar responder a questo, mobilizamos um repertrio terico-conceitual bastante
heterogneo, em um percurso talvez exageradamente disperso e segmentado. Nossa
expectativa a de que heterogeneidade e disperso prprias deste texto ensastico no
impeam o leitor de perceber uma linha argumentativa, ainda que tnue, que o leve a
compartilhar conosco algumas hipteses. Ao final, percebemos que a lgica do texto
cumulativa e elptica: os conceitos vo sendo apresentados e retomados, em uma sucesso
de repeties diferidas.
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INTRODUO 6
A primeira parte do ensaio, que chamamos Modulao, apresenta duas definies de
poltica, que nos ajudam a pensar sua gnese esttica. Para Jacques Rancire, a poltica diz
respeito a uma partilha do sensvel, ou seja, uma reconfigurao do espao e do tempo, a
partir da qual se transformam os limites entre o que ou no visvel, o que ou no
enuncivel, o que, em uma comunidade poltica, se considera parte de dada racionalidade
ou dela est excludo. Assim, para Rancire, trata-se sempre de um deslocamento sensvel
em relao a determinada ordem policial. J para Maurizio Lazzarato, a poltica esttica
na medida em que se refere criao de mundos. Em sua defesa de uma poltica do
evento, o autor se alia ao conjunto de tericos contemporneos que pensam a poltica, no
interior do capitalismo global, como imanncia: ela a forma como se produzem mundos
e subjetividades, a partir do trabalho difuso, auto-potico e, muitas vezes, conflituoso de
uma multitude.
Se ambas as teorias compartilham essa dimenso esttica da poltica, elas se distanciam
em, ao menos, um aspecto. Para Rancire, h uma negatividade em relao qual a
poltica se define: ela se ope a uma ordem policial, que o autor denomina consenso. Em
sua negatividade, a poltica dissensual, se contrapondo quilo que, no consenso
democrtico, torna o todo igual soma das partes. Na democracia, em seu sentido poltico
forte, h sempre uma parcela daqueles que no se contam e que, diante de uma nova
partilha do sensvel passam a fazer parte dessa contagem. nesse sentido que, para
Rancire, a democracia no deve nunca nos levar ao consenso, mas est em permanente
toroem relao a si mesma.
Para Lazzarato, o capitalismo atual o imprio, nos termos de Antnio Negri e
Michael Hardt no nos permite identificar uma negatividade a ser combatida. A nica
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INTRODUO 7
resistncia possvel ser, assim, a que nos impe o desafio de inventar uma multiplicidade
de mundos, que podem existir como incompossveis. O termo, retomado por Lazzarato a
partir da leitura deleuziana da obra de Leibniz, diz respeito possibilidade de existncia
simultnea de mundos singulares, divergentes e contraditrios. A poltica vista assim em
sua positividade, como processo de criao e de proliferao de mundos incompossveis.
Ela no concebida em seu carter negativo mas, antes, produtivo.
Em seguida, no texto, voltamos biopoltica, para defini-la a partir de Michel Foucault,
em dilogo com outros autores que retomam a atualidade do conceito. Da disciplina
biopoltica, trata-se de um poder produtivo, imanente dinmica social, que
historicamente coincide com o desenvolvimento do Estado liberal e do capitalismo, ou
seja, que se exerce em meio liberdade e autonomia. Se a disciplina ainda se volta sobre
o indivduo, a biopoltica, em complemento, se estende s populaes, regulando seus
deslocamentos pelo territrio, sua circulao. A passagem da disciplina biopoltica
tambm aquela da norma ao risco: trata-se agora no apenas de moldar o corpo e a
subjetividade tendo em vistas uma norma, mas tambm de regular as indeterminaes
que ameaam a espcie humana, a partir de tcnicas e tecnologias de modulao.
So conhecidas as reticncias foucaultianas ao conceito de espetculo, formulado
inicialmente por Guy Debord. A ele incomoda, especialmente, a imediata banalizao do
conceito, que, a partir dos anos 60, foi transformado em palavra de ordem. Neste ensaio,
no entanto, tentamos nos reaproximar da teoria de Debord (e sua retomada por Giogio
Agamben), para mostrar como a verso contempornea da biopoltica se produz na
intercesso com o espetculo. Para tanto, esboamos um breve percurso que, da
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INTRODUO 8
fotografia s imagens eletrnicas e digitais, passando pelo cinema, identifica pontos de
convergncia entre estratgias biopolticas e aquelas do espetculo.
Como veremos com Agamben, na esteira de Debord, o espetculo tende a separar os
domnios da linguagem e da experincia, em um processo crescente de abstrao. Mais
do que isso, ele torna a linguagem (no s a linguagem verbal, mas tambm as
audiovisuais) um domnio de especialistas, domnio da tcnica, que se volta sobre a
experincia na forma de uma roteirizao generalizada. Como resume Comolli, os roteiros
no atuam mais apenas no campo das imagens e das representaes, mas, por meio delas,
passam a modular, controlar, regular a prpria experincia. Sabemos como a histria
conceitual do roteiro no recente. Aqui, em contrapartida, veremos como ele incide
principalmente sobre o tempo, na articulao entre duas temporalidades: o tempo da
previso e da simulao prprio biopoltica e o tempo do instantneo uma
hipertrofia do direto, diria Comolli prprio ao espetculo.
Nesse percurso somos defrontados a um paradoxo que est na base da poltica
contempornea: por um lado, como nunca na histria estamos diante de um horizonte
aberto de possibilidades (e de incertezas). O avano tecnocientfico e o contexto de
liberdade alcanados pela sociedade moderna ampliam as possibilidades da vida de se
criar e se reinventar, mergulham a vida em um campo de virtualidades sem igual. Por
outro lado, legitimam-se formas de controle sobre a vida jamais vistas. Amplia-se nosso
campo de possveis para que, no mesmo processo, ele se submeta s expectativas que
criamos no presente. Eis o paradoxo: no mbito da biopoltica, o poder davida tende a
coincidir e reforar o poder sobrea vida.
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INTRODUO 9
Esse paradoxo de fundo se desdobra na forma como experienciamos o espao, o tempo e
na maneira como se produz, hoje, a subjetividade. Do ponto de vista espacial, as redes
scio-tcnicas tornam o nosso um espao potencial, que encurta as distncias e faz com
que cada ponto esteja potencialmente ligado a todos os outros. Por outro lado, a rede
permite tambm o controle do trnsito dos indivduos pelos territrios geogrficos e
simblicos: quanto mais me desloco, quanto menos me fixo, mais passvel ao controle me
torno. Mais importante do que isso, em sua lgica a-centrada e em sua dinmica de auto-
organizao, a rede permite no apenas a autonomia dos indivduos e dos coletivos, mas
tambm a criao de estratgias sutis, quase imperceptveis, baseadas no auto-controle,
na auto-regulao.
Do ponto de vista do tempo, os avanos tecnocientficos nos fazem experienciar, na
expresso de Paulo Vaz, um tempo profundo, em que a vida confrontada a um futuro
aberto, indeterminado. Diante da demasia do tempo, nos valemos da tecnologia para
antecipar e simular cenrios, buscando adequar a indeterminao do futuro s
determinaes de nossas expectativas presentes. O futuro deixa assim de ser o lugar da
diferena para se tornar o lugar de uma adequao, em outros termos, a reiterao do
mesmo.
Por fim, a subjetividade: se por um lado, ampliam-se os modos de subjetivao possveis,
por outro, aderimos espontnea e voluntariamente s formas de controle. Para participar
dos circuitos de consumo, de informao e de entretenimento, precisamos exteriorizar
nossa subjetividade, em um deslimite entre os domnios pblico e privado. Ou seja, a
nossa uma subjetividade que se forma em uma constante performance, tendo como
campo de visibilidade as mdias eletrnicas e digitais. Muitas vezes, isso significa nos
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INTRODUO 10
submeter a estratgias de exposio da intimidade que se traduzem em formas de
controle ligadas, principalmente, ao universo do marketing.
Este o contexto que motiva nossa pesquisa e que ser desenvolvido na primeira parte do
ensaio: pouco a pouco, as estratgias biopolticas participam da expanso do capitalismo
contemporneo. Ele possui a particularidade de transbordar os limites da fbrica e da
empresa, para se disseminar por todos os domnios da vida cotidiana. Mais do que vender
produtos, trata-se de criar mundos, nos quais se inventam e se experimentam modos de
vida. Nesse sentido, o capitalismo dito ps-industrial e cognitivo pode ser caracterizado
tambm como capitalismo esttico. Como mostram Luc Boltanski e ve Chiapello, o novo
esprito do capitalismoincorporou tudo aquilo que, antes, fazia parte do universo da arte
e que compunha um discurso crtico, baseado na diferena, na liberdade, na autenticidade
e na autonomia.
Diante desse contexto, resta-nos perguntar novamente: o que reivindicar experincia
esttica? Qual o seu potencial poltico quando a inveno e a criao passam a ser o que
move o capitalismo em seu estgio avanado? Para responder a essa pergunta, na segunda
parte do texto, denominada Montagem, deslocamos nossa discusso para outro campo de
investigao, ligado Teoria Esttica. Para avaliar o potencial poltico da experincia
esttica seria preciso, em um primeiro movimento, mostrar sua irredutibilidade ao campo
da arte, como uma dimenso transversal experincia cotidiana. Mas, em um segundo
movimento, ressaltamos, em contrapartida, sua irredutibilidade ao cotidiano, como
excepcionalidade que . Para Hans Ulrich Gumbrecht, a experincia esttica se daria na
forma de pequenas crises, que, em meio nossa rotina, confrontam o estranho ao familiar
e que, por isso, so capazes de deslocar, alargar, nosso horizonte de possveis.
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INTRODUO 11
Nesse ponto do percurso nos perguntamos: como se passa do esttico ao poltico?
Ressaltar uma gnese esttica da poltica no significa dizer que esttica e poltica sejam
universos equivalentes, que o esttico seja imediatamente poltico. A passagem da
sensao comunicao (no sentido amplo, como aquilo que permite a formao de um
comum), do espao sensvel polis, da pura multiplicidade comunidade, no est nunca
garantida. Essa no uma discusso nova. Pelo contrrio, ela est na base da formao do
que Rancire denomina um regime esttico, tendo como uma de suas formulaes
originais as Cartas sobre a educao esttica do homem, publicadas em 1795, por Schiller.
Para o filsofo, no h outro caminho para transformar o homem das sensaes
homem do povo em homem poltico que no o da educao esttica. A noo de jogo
fundamental aqui: no livre jogo das aparncias se desfaz a distino entre o sensvel e o
inteligvel, entre a atividade e a passividade. Em termos polticos, a educao esttica
contribuiria para desfazer a dominao da formasobre a matria, da intelignciasobre a
sensibilidade, que estaria na base do poder das classes intelectuais sobre as classes da
sensao. Se uma comunidade se pode fundar por meio do esttico, ela suprimiria a
diferena entre as duas humanidades.
Nos limites desta pesquisa, no podemos retomar essa tradio terica. Optamos pela
tentativa de pensar a passagem do esttico ao poltico em sua atualidade. Antes de propor
nossa prpria hiptese, abordamos dois caminhos conceituais que, ao propor um
paradigma esttico transversal aos vrios domnios da experincia cotidiana, nos
permitem pensar a passagem do esttico ao poltico em direes distintas, quase opostas.
Cada qual ao seu modo, elas propem uma resposta questo: que corpo derivar da
experincia sensvel, que corpo polticopoderia resultar do esttico?
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INTRODUO 12
Para a perspectiva pragmatista, que vai de John Dewey a Richard Shusterman, a
experincia esttica no se ope aos outros domnios da experincia o domnio da
prtica, da cognio mas os atravessa, enriquecendo-os: o esttico se define pelo
conjunto de qualidades sensveis que nos permite integrar a disperso da realidade em
umaexperincia. A dimenso esttica do cotidiano nos possibilita dizer que tivemos uma
experincia e nos faz ainda desejar que essa experincia nica caminhe rumo perfeio,
a um termo harmonioso. Tanto na formulao original de Dewey quanto na posterior
apropriao crtica feita por Shusterman, a experincia esttica estaria ligada a um
processo de aperfeioamento. Seja em dimenso individual ou coletiva, a passagem do
esttico ao poltico, nessa perspectiva, nos levaria formao de um corpo integrado,
consensual, harmnico. Restaria avaliar em que medida esse um consenso j
previamente determinado, ou seja, em que medida a harmonia que a se almeja seria
adequada a uma ordem estabelecida. Nesse caso, o corpo harmonioso, nos restaria menos
cri-lo do que meramente alcan-lo, em uma performance de progresso contnuo.
A segunda perspectiva rene as proposies tericas que, a partir da filosofia de Gilles
Deleuze e Flix Guattari, desenvolvem uma poltica da diferena e da multiplicidade.
Nesse caso, para alm do artstico, haveria uma dimenso esttica, ou proto-esttica,
virtual, que tensionaria as estruturas e os sistemas fechados, fazendo-os entrar em
variao contnua. A defesa de um paradigma esttico transversal experincia cotidiana,
visa, aqui, opor a variao constncia, a multiplicidade unidade, a diferenciao
repetio. Da esttica poltica, teramos a defesa de um corpo mltiplo, varivel, corpo
sem rgos, sempre em processo de formao. Ele se compe de afetos, sensaes e
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INTRODUO 13
intensidades e atua como potncia ao fundo das estruturas, sejam elas lingusticas,
psquicas ou sociais.
Por um lado, ento, o corpo harmonioso se constituiria, por meio da esttica, como o
resultado de uma expectativa: o consenso. Por outro lado, seria preciso pensar como
derivar da pura intensidade e da pura variao do corpo sem rgos algo como uma
poltica. Nossa hiptese a de que resta esttica, em sua relao com a poltica, um
limite estreito entre um e outro, o corpo harmonioso e o corpo sem rgos. Nesse
intervalo, se produz um corpo-escritura, corpo-montagem, nascido de um descompasso:
entre o mundo tal qual ele e esse mesmo mundo, agora, reconfigurado. A experincia
esttica o que se produz nesse descompasso.
Nesse ponto da discusso, precisamos nos dedicar ao conceito de montagem. Aqui, ele se
concebe em sua amplitude, para alm da discusso restrita ao campo do cinema, apesar
de no se desconectar totalmente dela. A partir de Jacques Rancire, uma definio
sucinta seria: a montagem a medida do que no tem medida comum.
Tomemos um exemplo corriqueiro, de nossa predileo, como se perceber ao longo
deste ensaio. Duas crianas brincam. Uma delas abre o ba de brinquedos e dispe as
peas pelo cho. O ba abriga uma quantidade de materiais, cada qual com sua prpria
temporalidade: brinquedos antigos, outros mais recentes, jogos completos, incompletos,
peas que se encaixam, peas soltas, outras que se perderam...a brincadeira, no se sabe
ainda o que ser. Diante das peas um mundo desmontado, pronto a ser experimentado
, as crianas vo testando as possibilidades, os jogos, as narrativas possveis. Em sua
heterogeneidade, as peas no foram concebidas para estar juntas, no h entre elas,
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INTRODUO 14
necessariamente, uma medida comum. H, nesse espao de brinquedos dispersos, algo de
incomensurvel. Trata-se de um corpo sem rgos: no cho quarto, abre-se um espao
residual de pura possibilidade. A brincadeira ser ento a montagem, a desmontagem e a
remontagem desse espao. Atravs dela, vai-se construindo um mundo prprio,
circunstancial, a partir do contato entre peas dspares. A brincadeira no almeja um fim,
uma meta, mas a construo de um comum: um jogo, uma narrativa, que no se sabe, a
princpio, qual ser.
Para Rancire, a montagem uma frase-imagem, uma sintaxe parattica. Nela a parataxe
um repertrio heterogneo e disperso de objetos e imagens no impede a
configurao de uma sintaxe uma composio discursiva circunstancial a partir desse
repertrio. Por outro lado, provocada pela parataxe, a sintaxe no precisa deixar de ser
aberta, potencial, ela no se reduz, necessariamente, a um discurso consensual, facilmente
assimilvel. Em uma frase-imagem, nos diz o autor, a frase (a sintaxe) acolhe a potncia
parattica da imagem sem deixar que ela caia na falta de sentido. Por sua vez, a imagem
(a parataxe), em sua potncia, recusa o reconhecimento fcil, a imediata comunho de
sentido.
Voltemos brincadeira: o conjunto de peas soltas pelo cho, sua disperso, no
impedem a criao de um mundo comum entre as duas crianas, nem as narrativas
possveis ali. O que se cria, no entanto, no deve seguir um roteiro ou uma expectativa
fechada. Simultaneamente, se inventam o mundo e as narrativas, no havendo uma
determinao prvia de seu futuro.
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INTRODUO 15
Diante do exemplo da brincadeira, podem nos repreender o tom quase nostlgico. Entre
jogos de guerra, programas televisivos e brinquedos com controle remoto, h muito no
se brinca dessa forma, diriam alguns. Cada vez mais, as brincadeiras devem seguir um
roteiro prvio, possuem manual de instruo e meta bem definida. Concordamos. Mas, a
despeito de toda roteirizao, h uma infncia que permanece, uma origem sempre por
vir, que retorna por meio da memria. Esse retorno, uma repetio, se difere, se reinventa
a cada rememorao. A matria da montagem ser, assim, a memria. Para Walter
Benjamin, a rememorao justamente o processo atravs do qual se monta um
repertrio o passado para torn-lo novamente possvel, para permitir que ele retorne
como potncia.
A montagem o lugar da experincia esttica: uma situao problemtica, uma crise em
relao aos nossos parmetros de (re)conhecimento, nos exige a criao de uma nova cena
e de um novo discurso capaz de abrigar o que nos surge em sua excessiva alteridade. Ela
o que nos permite produzir um pensamento esttico uma potica do saber, na
expresso de Rancire: esse pensamento precrio nasce de um corpo a corpo com a
experincia, em um processo de afeco mtua. Trata-se, em outros termos, de um jogo,
que funde uma passividade (um pathos), uma atividade e a criao de um mundo
circunstancial (um ethos), no pr-existente ao prprio jogo da montagem. Como
procuramos mostrar nesse ensaio, a montagem torna indissociveis os domnios da
linguagem e da experincia: criamos os discursos acerca do mundo no mesmo momento
em que o experienciamos, desmontamos e remontamos continuamente.
Esse um procedimento que faz parte do domnio do uso. Para lembrar o conceito de
Giorgio Agamben, a montagem um tipo especial de uso, uma profanao. Profanar,
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INTRODUO 16
escreve o autor, o movimento aposto ao de consagrar (sacrare): se a sacralizao uma
retirada do mundo, que se torna alheio, distante da interveno dos homens, a profanao
, em via inversa, sua restituio, por meio do uso. Para Agamben, o uso deve ser, nesse
caso, negligente, livre, distrado. A negligncia o que nos religa aos objetos que nos
foram abstrados por meio de um sacrifcio. Em uma leitura equivalente e complementar,
De Certeau defende a astcia do uso, uma reutilizao desabusada e desautorizada dos
objetos, dos saberes, dos espaos, das tecnologias e linguagens. Essas astcias prprias do
cotidiano formam a rede de uma de anti-disciplina, que se contrape s normas e s
estratgias. Na esteira desse autor, diramos que a montagem ganha aqui o sentido de
uma bricolagem. De Certeau recorre a Lvi-Strauss, para definir a bricolagem como uma
reutilizao contingencial dos objetos do mundo, de forma a se recriar o prprio mundo.
O bricoleur filho de Kairs, ele que se move pelas situaes, atento s ocasies, no se
submete a um projeto rgido e compe conjuntos abertos. Como reapropriao astuta e
negligente daquilo que nos constantemente expropriado, a bricolagem nos religa a uma
infncia sempre presente.
Essa rede conceitual em torno da noo de uso a montagem, a profanao, a bricolagem
nos permite reivindicar uma esttica do ordinrio, na qual um pensamento que no se
pensa, prprio das tticas e astcias da vida cotidiana, atravessado por um
pensamento que ainda no pensa, pensamento esttico. Para alm do domnio das artes,
essa esttica do ordinrio possui uma potncia poltica, na medida em que possibilita uma
reaproximao, um vnculo entre experincia e linguagem.
Nossa hiptese ser a de que a crtica ao capitalismo avanado esttico e biopoltico
passa por esse vnculo que se estabelece por meio do uso. Vale lembrar aqui a
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INTRODUO 17
provocao de Walter Benjamin, retomada posteriormente por Agamben: uma crtica ao
capitalismo deve ser, essencialmente, uma crtica temporalidade que ele nos impe. Se o
tempo moderno o vazio da cronologia, sobre o qual se ampara a noo de progresso, o
tempo do capitalismo contemporneo ser aquele que se produz como antecipao, por
meio da simulao. Por meio da simulao, disseminada pelas tecnologias da imagem e
da informao, antecipamos o futuro no presente, no sem, antes, purific-lo de sua
excessiva indeterminao.
A poltica, em seu sentido forte, ope a esse movimento tautolgico outra concepo do
tempo. Ela surge das diferenas temporais que existem dentro e fora da polis. Segundo
Rancire, ao situar o mesmo e o outro em um espao comum, a poltica nos exige
compreender as diferentes temporalidades que compem nosso presente. O tempo da
poltica, diramos, aquele que se constitui, paradoxalmente como anacronismo e
virtualidade. Como pode ser?
O tempo benjaminiano aquele da memria, da infncia e da origem. Mas aqui no do
passado que se trata. A memria o que retorna como rememorao, ela , portanto, uma
escritura, atravs da qual o passado se restitui como recriao. No tecido da memria,
nos diz Benjamin, a recordao a trama e o esquecimento, a urdidura. Assim, a memria
o que torna o tempo suspenso entre algo que sempre j passou (ou seja, nada
totalmente novo) e que sempre est por vir (nada totalmente igual). Como
rememorao, o passado se repete na forma de uma diferena.
Dentro dessa concepo do tempo, a origem a infncia no um paraso perdido,
algo que s pode alimentar nossa nostalgia. Na expresso clebre de Benjamim, a origem
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INTRODUO 18
um turbilho, que, ao girar o tempo, faz convergir o que passou e o que est em vias de
se formar. Esse o paradoxo do tempo original: o que permanece, o que resta, o que
torna novamente possvel.
Agamben retoma a formulao benjaminiana acerca do tempo, para estabelecer uma
relao entre infncia e linguagem. Se pudesse ser totalmente dissociada da experincia,
nos diz ele, a linguagem seria um cdigo vazio, uma estrutura sem vida. Atravs da
experincia entramos na linguagem, nos apropriamos de seu cdigo, desmontamos e
remontamos suas peas. Mas, em sua desmedida, a linguagem no pode ser objeto de
domnio absoluto por parte dos homens. O que equivale a dizer que, a cada vez que
usamos a linguagem, temos que novamente reaprend-la. Somos, assim, in-fantes: a cada
enunciao, toda a linguagem que nos apresenta em estado de potncia e solicita, por
isso, ser reaprendida, reapropriada. A infncia o que possibilita o mergulho da
linguagem na experincia e, portanto, o que a limita, impedindo que ela seja um cdigo
matemtico vazio e abstrato, fechado em sua prpria abstrao. Do ponto de vista do
tempo, a infncia o que permite que, a cada enunciao, a cada uso, todo o passado da
linguagem se torne novamente presente, possvel.
Esse um tempo em potncia. Ele no uma abstrao, no est alheio experincia, mas,
ao contrrio, o seu fundamento: atualiza-se no cotidiano na forma do uso. Usar os
objetos, dispositivos e linguagens retir-los seu estado inercial aquele prprio dos
roteiros e das simulaes para restitu-los a seu estado potencial. Nesse sentido, a
dimenso poltica da experincia esttica est em nos permitir, por meio do uso
cotidiano, nos expor potncia dos objetos, dos dispositivos, das linguagens.
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INTRODUO 19
Digamos que o uso o que nos permite fazer da vida uma escritura. Para Jean-Luc Nancy,
ela se define como o que no se submete a um modelo. A escritura abre uma relao, um
comum, ela o em jogo do em comum da vida. Se, no domnio do capitalismo
biopoltico e esttico, a vida objeto de modulao e controle, diramos que ela no
absolutamente redutvel a esse investimento.
Nesse jogo contnuo cujo terreno o cotidiano, qual seria, ento, a potncia poltica da
experincia esttica? A busca por uma resposta a essa questo o fio tnue que nos
permite acompanhar o ensaio a despeito de sua disperso. O propsito de respond-la
no deve nos fazer exigir do esttico mais do que ele pode nos oferecer. No chegamos a
uma resposta que possa se traduzir em aes, em estratgias de resistnciaao capitalismo.
No era esse o intuito. Digamos apenas que, na vida, o que se cria e se recria , com cada
vez mais intensidade, objeto de expropriao. O que permanece irredutvel a essa
expropriao a possibilidade de se criar: o tempo em estado de potncia o
Inaproprivel. A cada uso dos objetos, dos dispositivos, das linguagens essa
possibilidade se renova. Ao contrrio do que nos faz crer a lgica do consumo, o uso no
o que desgasta, mas o que nos expe, de novo e novamente, uma possibilidade. Antes
de sua dimenso prtica, utilitria, o uso nos coloca diante da medialidade dos
dispositivos e da comunicabilidadeda linguagem, conforme formulao de Agamben.
O resultado dessa pesquisa um ensaio, como explicitamos no ttulo. Mais do que uma
certeza acerca do mundo, o pensamento ensastico nos leva a errar sobre o estado do
mundo. O ensaio se move segundo um impulso de aventura, no sistemtico: no apenas
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INTRODUO 20
o conceito mas tambm a imagem,no apenas as diferenas mas as diferenciaes.3Esse
movimento de derivao e errncia faz do pensamento ensastico algo arriscado:
pensamento que se ensaia, segundo Silvina Rodrigues. Ele se pensa no momento mesmo
em que o texto vai-se fazendo. Relativiza-se enquanto se afirma, o que nos faz ir ainda
mais longe, para dizer, com Adorno, que o ensaio ocupa um lugar entre os despropsitos.
Imerso na desproporo da experincia, ele se articula como se estivesse para ser, a todo
momento, interrompido.4 Como discurso, o ensaio s pode ser dis-cursus, curso
interrompido, sugerindo a idia de fragmento como coerncia.5
Ao final desse percurso, percebemos o ensaio ele prprio como uma montagem, uma
bricolagem. Ele se arrisca a aproximar autores, teorias e experincias bastante distintos.
Condizente com nossa prpria argumentao, trata-se de um uso, em certo sentido,
negligente desse material. Esperamos, contudo, que ele no seja pouco rigoroso.
Misto de opo consciente e incapacidade, nesta pesquisa no analisamos um corpus
emprico bem definido. Artsticas ou no, as experincias que aparecem ao longo do
trabalho no podem ser classificadas nem como exemplo, nem como objeto de anlise.
Elas fazem uma espcie de intercesso6com o texto, atravessam uma ou outra discusso,
mas compem segmentos relativamente autnomos. Por isso, as anlises so curtas e
quase se reduzem a descrever as experincias, colocando-as em contato com a teoria. Se a
lgica do texto a da montagem, o modo de se operar menos a anlise do que o
contato.
3RODRIGUES, Silvina. Literatura, defesa do atrito. Lisboa: Vendaval, 2003, p. 165-166.4Ibidem, p. 35.5
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita: a palavra plural. So Paulo: Escuta, 2001, p. 30.6Indiretamente, fazemos referncia aqui ao conceito de intercessores, como formulado em DELEUZE, Gilles.Les intercesseurs. In: Deleuze, G. Pourparlers(1972-1990). Paris: Les ditions de Minuit, 2003, p. 165-184.
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INTRODUO 21
Tambm, preciso sublinhar, o critrio de escolha dessas experincias algo subjetivo.
Primeiramente, elegemos experincias residuais (o termo est longe de ser pejorativo)
um vdeo-sequestro no Youtube, uma cena de um filme, uma frase escrita sobre a mo,
alguns vdeos exibidos em festivais de arte eletrnica, documentos de um banco de dados
na internet todas elas relacionadas de forma direta ou indireta ao contexto de nossa
discusso. Se, muitas vezes, o contato com essas experincias se deu no universo das artes,
elas nos interessam principalmente naquilo que podem nos ligar experincia cotidiana,
ou naquilo que podem sugerir em termos de uma esttica do ordinrio: o sequestro de
um jornalista, cartazes publicitrios rasgados, pisoteados, o gesto de um operador de
cmera annimo. Nada coincidentemente, as experincias que aparecem ao longo do
ensaio surgem em contextos ditos perifricos em relao ordem mundial atual,
contextos, muitas vezes, conflituosos: elas vm da sia, do Oriente Mdio, da Amrica
Latina. Nesses contextos, difcil desconsiderar os anacronismos, as materialidades e as
muitas contradies polticas e sociais.
Mais do que fortuito, o contato com esses objetos nos permite vislumbrar uma imagem
para a poltica hoje: ela difcil e se compe de resduos, restos, destroos. Assim como o
cotidiano, a poltica contempornea nos solicita constantemente nos transformar em
bricoleurs, nos demanda, antes de tudo, a crena em torn-la possvel.
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Parte 1. Modulao
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MODULAO 22
A mesa onde escrevemos
Em Ide de la prose7, h um belo texto de Agamben, no qual ele conta a histria de
Damascius, ltimo pensador da filosofia pag, antes do fechamento da escola de Atenas,
pelo imperador Justininano, no ano de 529. Exilado em Ctsiphon, Damascius comea a
escrever um livro que se chamaria Aporias e solues a propsito dos princpios primeiros.
Ali, ele persegue a seguinte questo: o comeo do Todo est alm ou em alguma das
partes desse Todo? Depois de trabalhar na obra durante trezentos dias, ele no consegue
mais do que se deparar com sua incapacidade de responder pergunta. O que o leva a
uma outra, to insuportvel quanto a primeira: como o pensamento pode pensar o
comeo do pensamento? Em outros termos, como compreender o incompreensvel?8
Como pensar o impensvel do pensamento?
Eis que, uma noite, ele vislumbra a idia que pode ajud-lo a dar termo a suas
inquietaes: o incio de tudo um lugar perfeitamente vazio, sequer um lugar, mas o
lugar dos lugares, onde eventualmente emerge um sopro, uma imagem, uma palavra. Ele
uma superfcie lisa e sem qualidade, na qual nenhum ponto se distingue do outro: uma
espcie de espao-limite do pensamento. O limite do pensamento no , contudo, nem
um espao, nem uma coisa. Ele sua prpria potncia, a linguagem em estado de
potncia. Duas belas imagens aparecem a Damascius. A primeira, uma cena de infncia:
na fazenda onde nasceu, havia uma superfcie de pedra branca sobre a qual, tarde, os
camponeses batiam o trigo para separar a palha do gro. O que ele procurava, nos
7AGAMBEN, Giorgio. Seuil. In: Agamben, G. Ide de la prose. Paris: Christian Bourgois Ed., 1998.8Ibidem, p. 13.
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MODULAO 23
pergunta Agamben no texto, no seria essa superfcie, ela mesma impensvel, indizvel,
sobre a qual o crivo da linguagem separaria a palha e o gro de cada ser?9
A segunda a imagem da mesinha na qual Damascius escreve. A obra no era nada mais
do que a tentativa de representar essa pequena mesa lisa, sobre a qual nada foi ainda
escrito. por isso que ele no podia levar a termo seu livro: o que no podia cessar de se
escrever era a imagem do que no tinha cessado de no se escrever.10 ai, nessa origem
sempre por recomear, que o pensamento encontra a poltica. Porque, em sua forma
limtrofe, a poltica o impensvel, ou o que se mantm impensado no pensamento. A
linguagem em sua potncia sempre por vir, sua infncia.11O limite da linguagem sua
origem e a a poltica se torna possvel: no momento em que, tudo visto e dito, algo
permanece por ser dito e por ser visto. A poltica surge porque o que no pode cessar de
ser pensado a imagem do que no cessa de no ser pensado. Ela nasce da demanda de se
pensar impensvel, pois desse impensvel, se inventa um mundo. Nesse sentido, a poltica
se produz no momento de limiar em que o vazio da linguagem se torna trao sensvel, a
partir de uma ciso, um corte. Esse corte permite ver o que antes no se via e permite
escutar, como palavra, o que antes no se escutava seno como rumor. Esse rumor deve
continuar sempre ao fundo da linguagem, dos cortes que ela opera. 12
9Ibidem, p. 14.10 No original: ce qui ne pouvait cesser de scrire tait limage de ce qui navait pas cess de ne passcrire. AGAMBEN, Giorgio. Seuil. In: Agamben, G. Ide de la prose, p. 16.11O conceito ser abordado mais frente. AGAMBEN, Giorgio. Infncia e histria: destruio da experinciae origem da histria.12 Esse impensvel ao fundo da linguagem, que a um s tempo sua potncia e seu limite, no transcendente: em uma rede conceitual marcada por correspondncias e diferenas, ele pode ser o fora(conforme leitura da obra de Maurice Blanchot por Michel Foucault) ou a imanncia (Gilles Deleuze). Cf.FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos III. Esttica: Literatura e Pintura, Msica e Cinema. So Paulo: Forense
Universitria, 2001. O pensamento do exterior, p. 219-242; BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. Apalavra plural. So Paulo: Escuta, 2001; DELEUZE, Gilles. A imanncia: uma vida...In: Educao e realidade. n.27, v. 2, p. 10-18, jul/dez. 2002.
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MODULAO 24
O que a polt ica
A polt ica surge no momento em que a voz, que apenas indica dor e sofrimento, se faz
linguagem palavra manifesta nos permitindo distinguir entre o til e o nocivo, o
justo e o injusto, o bem e o mal. Ser Aristteles (lembrado por Rancire e Agamben)
quem primeiro identifica este fundamento esttico da plis:
nico entre todos os animais, o homem possui a palavra. Sem dvida, a voz o meiopelo qual se indica a dor e o prazer. Por isso pertence aos outros animais. A naturezadeles vai s at a: possuem o sentimento da dor e do prazer e podem indic-lo entre si.Mas a palavra est a para manifestar o til e o nocivo e, por conseqncia, o justo e oinjusto. isso que prprio dos homens, em comparao com os outros animais: o
homem o nico que possui o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto. Ora, a comunidade dessas coisas que faz a famlia e a polis. 13
Trata-se, portanto, de um deslocamento sensvel que estaria na gnese da poltica:
passagem da voz linguagem.14Porque a voz apenas indica, a palavra manifesta.15Essa
passagem se apresenta na forma da percepo, do reconhecimento de uma existncia, de
uma voz que pode, agora, ter nome e razo: aqueles que passam a existir pela palavra,aqueles cujo murmrio torna-se reconhecvel como linguagem, distino de um logos.
A poltica no se reduz, contudo, a dar voz aos que no a tm, ou seja, permitir que os
vrios sujeitos, agora, interlocutores, se expressem. Mais profundamente, a passagem da
voz linguagem uma ciso que cria o mundo. Por meio de um deslocamento sensvel,
em um mesmo processo, instaura-se o mundo e os sujeitos que o constituem.
13 Aristteles citado por RANCIERE, Jacques. O desentendimento: Poltica e Filosofia. Trad. ngela LeiteLopes. So Paulo: Ed. 34, 1996, p. 17.14AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2004, p. 15.15 RANCIRE, Jacques. O desentendimento: Poltica e Filosofia. Trad. ngela Leite Lopes. So Paulo: Ed. 34,1996, p. 17.
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Partamos, assim, de uma definio simples e interessada: a poltica a maneira como, pela
linguagem, se cria e se partilha um mundo. Como provoca Jacques Rancire, ela feita
no de relaes de poder, mas de relaes de mundos.16A poltica se constitui, portanto,
no momento de uma ciso, uma ciso cuja lmina a linguagem.
H, hoje, ao menos duas perspectivas para se compreender essa ciso, cada qual
apreendendo de maneira diferente suas derivaes. Em uma primeira via, teramos os
tericos da multitude, defensores da poltica como evento e multiplicidade.17Essa teoria
se articula em torno da noo de produo de subjetividade e das formas de resistncia
emergentes no interior do imprio, a verso contempornea do capitalismo global.18Por
ser invisvel e nmade, o imprio um poder que no pode ser identificado como
negatividade e que deve ser enfrentado num embate imanente ao seu modo de produo
mesmo.
Herdeiros da filosofia da diferena e do conceito de micropoltica,19conforme formulado
por Gilles Deleuze e Flix Guattari, os tericos da multiplicidade defendem que, para alm
da esfera institucional, a poltica produz mundos, por meio de agenciamentos locais. Essa
concepo da poltica parte da multiplic idade e a ela retorna como multitude, a forma do
comum nascida da radicalizao da democracia: uma espcie de corpo sem rgos da
poltica, carne viva, que no se deixa totalizar em uma identidade estvel, seja ela a massa,
a classe, ou o povo.
16 RANCIRE, Jacques. O desentendimento: Poltica e Filosofia. Trad. ngela Leite Lopes. So Paulo: Ed. 34,1996.17 Cf. HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Multitude: guerre et dmocracie lge de lempire. Paris: LaDcouverte, 2004.18
HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Empire. London/Cambridge: Harvard University Press, 2001.19DELEUZE, GILLES. e GUATARRI, FLIX. Mille plateaux: capitalisme et schizophrnie 2. Paris: Les ditions deMinuit, 2006.
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MODULAO 26
Como ressalta Lazzarato, essa perspectiva poltica define um processo de constituio do
mundo e da subjetividade que no est centrado na noo de sujeito, mas de evento. O
evento o que surge como emergncia problemtica, uma soluo parcial, imprevisvel
de um campo de possibilidades. Essa soluo, uma atualizao, no pode ser prevista por
um conjunto fechado. A subjetividade seria, assim, criada, inventada, em agenciamentos
parciais, diagramticos, que articulam elementos semiticos, polticos, tecnolgicos,
artsticos. A multitude o conjunto no totalizvel destas subjetividades singulares,
eventuais. Como escreve Deleuze, sim, existem sujeitos: eles so gros danantes na
poeira do visvel, lugares mveis em um murmrio annimo. O sujeito sempre uma
derivada. Ele nasce e se esvai na espessura do que se diz, do que se v. 20
Mais do que desenvolver os vrios desdobramentos desta poltica das multiplicidades, vale
marcar dois aspectos que sero os principais pontos de diferenciao em relao outra
perspectiva, formulada por Rancire. Em primeiro lugar, trata-se sempre de se afirmar a
multiplicidade dos processos e de suas efetuaes, ou seja, de se recusar qualquer
totalidade. A subjetividade constante devir e os mundos se criam e se desfazem a partir
de agenciamentos e atualizaes locais, eventuais. A poltica o lugar, portanto, da
criao e da resistncia, ou melhor, da resistncia pela criao: de subjetividades, de
modos de vida, de mundos.
Um segundo ponto deriva da: como resume Maurizio Lazzarato, esta uma poltica ps-
socialista que no se desdobra segundo a lgica da contradio, mas segundo a lgica da
20No original: Oui, il y a des sujets: ce sont des grains dansants dans la poussire du visible, et des places
mobiles dans un murmure anonyme. Le sujet, cest toujours une derive. Il nat et svanouit dans lpaisseurde ce quon dit, de ce quon voit. DELEUZE, Gilles. Un portrait de Foucault. In: Deleuze, G. Pourparlers(1972-1990). Paris: Les ditions de Minuit, 2003, p. 146.
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diferena. A poltica , aqui, colocao prova, experimentao: as singularidades
individuais e coletivas (...) desdobram uma dinmica de subjetivao que , ao mesmo
tempo, afirmao da diferena e composio de um comum no totalizvel.21 Se o
primeiro ponto exprime a recusa a todo tipo de totalizao, esse segundo aspecto mostra
a recusa a qualquer negatividade. Se no h inimigo identificvel e se os sujeitos so
sempre eventuais, a poltica afirmao da diferena, pela criao e pela experimentao,
e o povo sempre falta, pois ele no pode coincidir jamais consigo mesmo.22
A outra perspectiva se constitui na defesa de uma poltica do dissenso, cuja negatividade
a polcia, uma ordem consensual, que estabelece os limites do que pode ser visto, dito,
ou seja, o horizonte de nossos possveis. Aqui, tambm a poltica significa constituio de
mundos, a partir do que Jacques Rancire chama uma partilha do sensvel. Essa partilha
possui dois sentidos, aparentemente, contraditrios: o que divide (cinde) e o que torna
comum.
A poltica constri (e, ao mesmo tempo, seconstri sobre) uma configurao do sensvel.
Ela ocupa-se do que se v e do que se pode dizer sobre o que visto, de quem tem
competncia para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espao e dos possveis
do tempo.23Para Rancire, h sempre, ao fundo da poltica, um desentendimentoacerca
do que existe e do que no existe, do que dito e do que ser ouvido como palavra, do
21 No original: les singularits individuelles et collectives (...) dploient une dynamique de subjectivation,qui est la fois affirmation de la diffrence et composition dun commun non totalisable. LAZZARATO,Maurizio. Les rvolutions du capitalisme. Paris: Le Seuil, 2004, p. 199.22
LAZZARATO, Maurizio. Les rvolutions du capitalisme. Paris: Le Seuil, 2004, p. 199.23 RANCIRE, Jacques. A partilha do sensvel: esttica e poltica. Trad. Mnica Costa Netto. So Paulo: EXOExperimental e Ed. 34, 2005, p. 17.
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que percebido ou no, do que faz parte da cena ou dela est excludo. Ela um recorte
dos tempos e dos espaos, do visvel e do invisvel, do rudo e do enuncivel. 24
Seria preciso, contudo, levar o conceito de poltica para alm de uma dimenso
meramente normativa, que, para Rancire, caracteriza, antes, uma ordem policial.
Segundo o autor, a polcia diz de uma ordem que define a distribuio dos poderes, dos
lugares e dos fazeres, assim como os processos de legitimao desta distribuio. A ordem
policial aquela que dispe o visvel e o dizvel, que faz com que uma atividade ganhe
visibilidade e existncia e que uma palavra seja compreendida como discurso. A polcia
uma ordem sensvel que regula a distribuio dos corpos, as ocupaes e as propriedades
dos espaos.25 a, neste ordenamento do que deve ou no ser visto, ouvido, includo em
uma dada cena, que a poltica emerge.
Deste ponto de vista, a poltica o processo antagnico, litigioso, desestabilizador da
polcia: o momento em que se rompe com dada ordem sensvel impondo uma partilha
ainda inaudita e incluindo nessa partilha algo que no cabia ali: a parcela dos sem-
parcela. A poltica se exerce no encontro entre dois processos heterogneos: de um lado,
o processo policial que , em certa medida, o enrijecimento de determinada cena e do
posicionamento dos corpos nessa cena. Trata-se de um processo de diviso, na medida
em que se cria um mundo no qual alguns contam e outros no. De outro lado, o processo
de igualdade, que pressuporia um mundo no qual qualquer ser falante est em p de
igualdade com qualquer outro ser falante. Este o desentendimento da poltica: ela surge
do encontro de uma partilha que divide (a ordem policial) e uma partilha que se
24
Ibidem, p. 16.25 RANCIRE, Jacques. O desentendimento: Poltica e Filosofia. Trad. ngela Leite Lopes. So Paulo: Ed. 34,1996, p. 42.
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compartilha (o pressuposto da igualdade).26 Essa definio vai contra a boa vontade
militante, segundo a qual, tudo seria poltico. Nada , por si, poltico. Mas tudo pode vir
a s-lo se atualizar o encontro das duas lgicas,a lgica policial e a lgica da igualdade.27
Para Rancire, a partilha do sensvel prpria poltica sempre dissensual na medida em
que ela contrape, pelo menos, dois mundos: aquele da polis, a cena democrtica no
interior da qual uns contam e outros no, e aquele mundo em vias de se constituir a
partir da subjetivao dos sem-parcela, sujeitos polticos com os quais ainda no se
contava. Por esse motivo, a poltica no nunca o lugar da pura afirmao, mas da
negatividade. Ao consenso da ordem policial se ope o dissenso nascido do pressuposto
da igualdade.
No se trata, contudo, de reduzir a poltica busca do consenso em torno de uma
reivindicao tornada pblica. A poltica , antes, o que exige a criao da cena e dos
sujeitos que dela participam. um encontro dissensual, no porque os atores no chegam
ao acordo sobre este ou aquele tema, mas porque aqueles que surgem, em seu excesso,
exigem uma nova contagem na polis, esto ao mesmo tempo dentro e fora da cena, no
so ainda reconhecidos como participantes da comunidade poltica, mas j criaram o
dano, a ciso a partir da qual outra cena ter que ser inventada. As partes no preexistem
ao conflito da poltica, elas se nomeiam e nomeiam o mundo ao qual querem fazer parte.
Ser em um e mesmo gesto que se expe o dano da poltica, que se criam seus atores e a
cena da qual participam (mas no totalmente). por isso que a ruptura poltica de
natureza esttica, antes de ser comunicacional. O dialogismo da poltica tem muito da
26Ibidem.27Ibidem, p. 45.
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heterologia literria, de seus enunciados subtrados de seus autores e devolvidos a eles, de
seus jogos da primeira e da terceira pessoa tem muito mais disso do que da situao
supostamente ideal, do dilogo entre uma primeira e uma segunda pessoa.28
A subjetivao poltica ser assim um processo que resulta na constituio, sempre
parcial, polmica, polifnica, de um sujeito. A subjetivao entendida aqui como a
produo de uma instncia de enunciao que no era antes identificvel por um campo
de experincia dado. Ou seja, a possibilidade do sujeito de enunciao caminha a par com
a reconfigurao do campo de experincia. Toda subjetivao uma desidentificao, o
arrancar naturalidade de um lugar, a abertura de um espao de sujeito onde qualquer
um pode contar-se porque o espao de uma contagem dos incontados, do
relacionamento entre uma parcela e uma ausncia de parcela.29Ou seja, para Rancire, o
sujeito existe, mas ele uma identidade que se constitui por uma desidentificao. Os
processos de subjetivao no resultam na pura multiplicidade da multitude um povo
que falta mas na defesa de um povo que existe em toro consigo mesmo.
Poderamos resumir assim as diferenas entre as duas perspectivas tericas a poltica da
multiplicidade e a poltica do dissenso: para ambas, a poltica possui uma dimenso
esttica, na medida em que se trata da criao de mundos sensveis, mundos habitveis,
cenas de visibilidade e de enunciao. Para a primeira perspectiva, trata-se de criar
mundos a partir da experimentao e da contnua produo de subjetividade. Ela uma
poltica afirmativa, imanente, que recusa a identidade ou qualquer forma estvel de
representao. Para a segunda perspectiva, trata-se de criar mundos a partir de uma
28 RANCIRE, Jacques. O desentendimento: Poltica e Filosofia. Trad. ngela Leite Lopes. So Paulo: Ed. 34,
1996, p. 70.29 RANCIERE, Jacques.O desentendimento: Poltica e Filosofia. Trad. ngela Leite Lopes. So Paulo: Ed. 34,1996, p. 48.
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partilha do sensvel, que opera em torno de um dano: a parcela dos sem-parcela. H
sempre uma negatividade a ser deslocada, transformada por meio da poltica: a ordem
policial, que define uma partilha anterior ao dano. O sujeito poltico o que surge no
interior desse processo, como identidade em processo de desidentificao.
Estabelecidas as diferenas entre as teorias, resta-nos repetir que ambas nos permitem
atentar para a dimenso esttica da poltica. Passar do rudo palavra, do invisvel ao
visvel, do sensvel ao inteligvel, esse um deslocamento de carter esttico: ele nos faz
entrar, simultaneamente, na linguagem e na polis, possibilitando a vida em comum. A
tarefa poltica est sempre por se fazer e nos coloca diante da potncia da linguagem.
por isso que, para Agamben, a poltica no deve ser vista nem como a esfera dos meios
para se atingir certos fins, nem como a esfera dos fins em si mesmos, mas como o lugar
onde a linguagem se expe enquanto tal, enquanto medialidade pura.30 Ela nos coloca
diante da potncia da linguagem e essa sua prpria potncia. Trata-se de uma tarefa
interminvel que visa, finalmente, a dimenso de uso do comum da linguagem, uma
prxis. Para Jean-Luc Nancy, a poltica o lugar do em-comum enquanto tal.31 A
concordar com ele, uma pergunta to simples quanto fundamental poderia ser: como se
usa um comum?32 A pergunta, como se ver, atravessa este ensaio: por meio dela, se
constri uma esttica do ordinrio, que v no usosua dimenso tambm poltica.
Um sequestro
Vejamos uma experincia difcil: o sequestro pelo PCC (Primeiro Comando da Capital) do
30 AGAMBEN, Giorgio. Notes on politics. In: Agamben, G. Means Without End: Notes on Politics. Trad.Vincenzo Binetti e Cesare Casarino. Minneapolis: Univ. of Minnesota Press, 2000, p. 116.31
NANCY, Jean-Luc. El sentido del mundo. Buenos Aires: La Marca Editora, 2003. p. 137.32AGAMBEN, Giorgio. Notes on politics. In: Agamben, G. Means Without End: Notes on Politics.Trad.Vincenzo Binetti e Cesare Casarino. Minneapolis: Univ. of Minnesota Press, 2000, p.117.
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jornalista da Rede Globo Guilherme Portanova e do auxiliar tcnico Alexandre Calado. Na
madrugada de domingo, 13 de agosto de 2006, o Planto de Jornalismo da emissora
exibe imagens precrias e instveis, pouco comuns para o padro de qualidade da Globo:
elas mostram um jovem encapuzado que l um comunicado. Entre desafiante e hesitante,
o jovem enuncia a mensagem, misto de discurso jurdico e reivindicao poltica. A
exibio do vdeo pela Rede Globo era a contrapartida exigida pelo PCC para a libertao
da equipe, seqestrada na manh de sbado. Imediatamente aps apario das imagens
em rede nacional, o vdeo j estava disponvel no YouTube33, este que funcionou como
espcie de caixa de ressonncia do fato.
Antes de tudo, o vdeo-sequestro deve ser analisado no mbito das estratgias
contemporneas que vem no espao audiovisual, miditico, uma possibilidade de
interveno poltica, em uma espcie de guerrilha eletrnica. Hoje, boa parte da
populao, principalmente no contexto da Amrica Latina, formada pelo que Ivana
Bentes denominou oralistas: pessoas cuja formao escolar clssica, baseada na escrita,
vem sendo substituda pela cultura audiovisual. Essa informao oral/audiovisual est
puglando uma massa de semi-analfabetos ou oralistas a um sistema de informao
fragmentado e complexo, vivo, que pode ser, ao mesmo tempo, muito sofisticado ou
limitado.34
Se, em sua brutalidade, o vdeo-sequestro se impe como desafio analtico, porque ele
se situa numa zona ambgua, fazendo conviver mtodos arcaicos de violncia e
dispositivos avanados de comunicao mvel; o discurso desautorizado e o discurso
33O vdeo est disponvel em http://www.youtube.com/watch?v=enHhZ9F42Z8. Acesso em 12 dez. 2007.34BENTES, Ivana. Globalizao eletrnica na Amrica Latina. In: Menezes, P. (Org.). Signos Plurais: mdia, arte,cotidiano na globalizao. So Paulo: Editora Experimento, 1997, p. 11-23.
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especialista; a visibilidade e o encapuzamento; o espao fechado da priso e o espao
aberto da telepresena. O vdeo, sabemos, se articula com uma srie de outros
procedimentos do grupo, que se vale das tecnologias eletrnicas e digitais para tornar
permeveis o espao pblico e o espao de confinamento. assim que, por meio dos
celulares, de seu uso ttico, os lderes do PCC comandam distncia, ganham mobilidade,
mesmo estando presos.
Este um vdeo-acontecimento. Analis-lo s possvel por meio de uma pragmtica,
atenta ao que est representado na imagem, mas tambm, a tudo aquilo que a provocou e
que continua para alm dela. Video-acontecimento porque, nele, o evento e a imagem
tornam-se intercambiveis, quase indistintos: a virtualidade da imagem est colada sua
atualidade, uma dimenso intervindo na outra, em uma espcie de curto-circuito entre o
fato e sua imediata circulao miditica. Sim, o mundo passa a fazer cinema e o sequestro
o que faz reverberar um mundo no outro, nos faz atravessar de um a outro, o mesmo
mundo. Atravs do sequestro, a realidade pede como resgate aquilo que a fico havia lhe
roubado.
Defender a dimenso poltica deste vdeo no tarefa fcil, algo que se d de maneira
direta. Ela no est no carter reivindicativo do comunicado. Tampouco, no embate entre
poderes: a mdia, o Estado, a justia, a organizao criminosa. Para alm de todos estes
aspectos, mas estreitamente ligado a eles, o vdeo-sequestro poltico, principalmente,
porque opera no mago de um regime de sensibilidade, de visibilidade e de crena. O que
ali se pede como resgate a prpria linguagem. Sua fora poltica est no fato de que o
vdeo intervm, de forma problemtica e conflituosa, em nossa percepo do que seja
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rudo e do que seja palavra, do que seja visvel ou invisvel, do que seja ou no possvel na
cena pblica.
Para percebermos essa poltica antes da poltica, esse desentendimento ao fundo de
toda atividade poltica (em seu sentido forte), talvez, seja necessrio nos atentar para uma
figura limtrofe: o mediador. Trata-se do jovem encapuzado que, entre ameaador e
acuado, l o comunicado no vdeo, porta um discurso que lhe escapa, que lhe parece
imprprio. Esse discurso, no limite do inteligvel, nos leva gnese da poltica, a sua
origem esttica.
Logo primeira vista, o que chama ateno no vdeo do PCC, veiculado pela Globo, a
mensagem lida pelo jovem: composta por fragmentos de leis e por palavras de ordem, o
discurso soa estranho ao universo televisivo. A estranheza reforada pela leitura
truncada e por uma cmera instvel, amadora. A discrepncia entre a precariedade da
leitura e a especialidade do texto gera um alheamento por parte de quem l e uma
dificuldade de entendimento por parte de quem acompanha o discurso.
Mas, para alm do prprio sentido do texto, h esse desentendimento anterior, a que o
vdeo nos remete: ele diz respeito prpria linguagem, linguagem vista aqui como
lugar da poltica. O discurso do jovem encapuzado, no limiar de ser ouvido como palavra,
como linguagem, nos leva a essa origem na qual a esttica se encontra com a poltica.
Afinal de contas, o que o jovem comunica a prpria linguagem, sua medialidade pura35,
diria Agamben. Mais do que a reivindicao enviesada que ele expressa, seu discurso quer
principalmente ser percebido como discurso. Por isso, o sequestro, cujo resgate algo
35AGAMBEN, Giorgio. Means Without End: Notes on Politics.Minneapolis: Univ. of Minnesota Press, 2000.
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que fora anteriormente sequestrado: a linguagem. O que interessa no vdeo-sequestro do
PCC a comunicabilidade anterior comunicao, que ele escancara e veicula. Ou melhor,
o que o vdeo comunica, por meio de seu mediador encapuzado, sua prpria
comunicabilidade.36
H, antes de tudo, a percepo por parte do PCC do espao privilegiado de visibilidade
espao de produo de um comum que a mdia. O vdeo ser ento uma tentativa de
incluso nesse espao miditico, espetacular. Ele um esforo de reconhecimento,
demonstrao de fora que se existe na medida em que se demonstra, se expe como
imagem e como narrativa.
Vejamos como se opera essa exposio, retomando a mediao do jovem encapuzado. Ela
uma mediao paradoxal, que opera por meio da excluso. Ou melhor, ela se inclui, se
torna visvel, atravs de uma excluso. O encapuzamento a forma emblemtica dessa
mediao. Aqui, o rosto se torna o lugar da poltica: para aparecer no espao pblico
miditico, o jovem precisa desaparecer por trs do capuz. Para se incluir na polis,ele deve,
concretamente, se excluir, escondendo o rosto.
Guardadas as diferenas, a estratgia do encapuzamento nos permite conectar esse vdeo
a uma srie de outras intervenes no espao pblico eletrnico, dentre as quais, a mais
emblemtica em vrios sentidos, inaugural a do Exrcito Zapatista de Liberao
Nacional, no Mxico. Como sabemos, esse movimento de guerrilha, surgido em Chiapas,
em 1994, e liderado pelo subcomandante Marcos, se vale da internet como forma de
globalizar o conjunto de suas reivindicaes, em uma rede que liga intelectuais, artistas e
36Ibidem.
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ativistas de todo o mundo. Como analisa Ivana Bentes, o tom potico dos seus
comunicados, assim como sua origem misteriosa, contribuem para fazer do
subcomandante Marcos o primeiro pop-star revolucionrio da globalizao
eletrnica.37 O capuz funciona nesse caso como estratgia poltico-miditica em dois
sentidos: primeiro, porque ajuda a alimentar o mistrio por trs da figura do
subcomandante, criando um efeito de mdia de alta eficcia. Em segundo lugar, porque
esse rosto sem rosto, permite universalizar as causas particulares dos zapatistas: ele
uma espcie de rosto em branco, virtual, passvel de ser apropriado por outros. Nesse
sentido, bastante sofisticada a frmula encontrada por Marcos para definir sua
comunidade: zapatista no Mxico, gay em So Francisco, negro na frica do Sul,
muulmano na Europa, chicano nos Estados Unidos, palestino em Israel, judeu na
Alemanha, pacifista na Bsnia, mulher desacompanhada em metr s dez da noite,
campons sem-terra em qualquer pas, trabalhador sem trabalho em qualquer cidade.38
O vdeo do PCC assim resultado de um duplo movimento, aparentemente, contraditrio.
De um lado, o desejo de reconhecimento, demonstrao de fora, exposio no espao
miditico: da o carter espetacular do sequestro. Por outro lado, a estratgia do
encapuzamento, que faz com que essa incluso na mdia se d por meio de uma excluso.
O rosto encapuzado afirma sua propriedade negando-a. Torna-se implicado, ligado a
uma experincia especfica o vdeo-sequestro e, simultaneamente, abstrado dessa
experincia: plstico, lacunar, esse rosto uma propriedade imprpria, capaz de abrigar
outros rostos possveis. Encapuzado, o rosto mantm-se ali, nessa zona indiscernvel, entre
o prprio e o imprprio, entre aparecer e desaparecer, quase visvel e quase invisvel.
37BENTES, Ivana. Globalizao eletrnica na Amrica Latina. In: Menezes, P. (Org.). Signos Plurais: mdia, arte,cotidiano na globalizao. So Paulo: Editora Experimento, 1997, p. 11-23.38 Cf. DI FELICE, Massimo e MUOZ, Cristobal. A revoluo invencvel: Subcomandante Marcos e ExrcitoZapatista de Libertao Nacional. So Paulo: Boitempo Editorial, 1998.
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Ao final de contas, a estratgia do PCC foi anulada. Como se colocado entre parnteses, o
vdeo no repercutiu muito alm de sua incmoda apario, tornou-se algo extico, alvo
de juzos morais, de discursos populistas e policialescos. Resta-nos apreender sua
ambiguidade. Na instantnea apario destas imagens, que tambm um plano-
sequncia, misturam-se tempos heterogneos, virtualidades e anacronismos.
Da poltica do rosto
Pelo menos, no se deve entender que, pelo rosto, outrem, que voc situa como que fora
do mundo, caia de repente no domnio das coisas visveis?39 De repente e
irremediavelmente: por isso, para Blanchot, ele um excesso, uma presena que no se
pode dominar, que transborda a representao, toda forma, toda imagem, toda viso e
toda idia que queira apreend-lo.40
O rosto, nos diz Agamben, a paixo da linguagem, o lugar em que a linguagem se
expe enquanto tal, onde ela expe sua abertura e sua comunicabilidade. Se o rosto pode
ser o lugar da poltica porque ele se expe, ele sofre e suporta essa exposio. 41O rosto
abriga uma guerra. De um lado, ele o lugar da tentativa de expropriao, da
transformao de uma impropriedade em propriedade, ali, onde o espetculo se encontra
com a biopoltica. Antes de tudo, preciso extrair da singularidade de um rosto, uma
identidade. Depois, preciso tornar essa identidade identificvel, trao identitrio de um
grupo (um tipo, um esteretipo).
39BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. A palavra plural. So Paulo: Escuta, 2001, p. 102.40Ibidem, p. 102.41AGAMBEN, Giorgio. The face. In: Agamben, G. Means Without End: Notes on Politics.Minneapolis: Univ. ofMinnesota Press, 2000, p. 91.
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MODULAO 38
Por outro lado, essa uma guerra difcil, uma guerra permanente. Porque o ro