angela almeida - estética do sertão - imagens e poieses do nordeste do brasil

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6º Congresso SOPCOM 3527 Estética do Sertão: imagens e poieses do nordeste do Brasil Angela Almeida Resumo Este paper propõe uma discussão sobre a estética do sertão brasileiro, pensada a partir das expressões plásticas e literárias produzidas pelo homem comum da região. Imagens fotográficas, vídeos e textos são alguns dos recursos adotados na análise dessa poiesis. Como método de apreensão dessa singular cultura visual, adota-se o religar entre lugares, arte e pensamento. A porta do sertão aberta aqui é mágica, festiva, poética, triste, árida, mítica; é construída com rimas, sonhos, cores, santos, demônios, pedras, morte e vida. Evoca a música que vem dos tambores, dos pífanos, das violas e das rabecas. Exibe trajes com bordados coloridos, a chita, o couro trabalhado dos gibões, os mantos dos reis e as composições bricoladas com retalhos e fitas coloridas. Esse sertão apresentado ressalta a riqueza excessiva de um imaginário repleto de animais bizarros, anjos, demônios e homens que sentam à mesma mesa, numa espécie de confraria mágica. Trata-se de um sertão de uma paisagem com vegetação quase rasteira, formando uma massa de cor ocre-terra, ocre-vegetação, que se estende e oprime os fios de espelhos d‘água que insistem em correr entre as terras secas. É do contraste entre essa natureza árida e o homem que a habita que nasce a estética do sertão, vista a partir das imagens plásticas e poéticas que ele ( o homem) cria como elementos que ora complementam ou rivalizam com sua geografia. Aqui assumo uma escrita como um fluxo ―esquizo‖ (termo usado por Deleuze falando da escrita de Guattari [Deleuze,1992-p.24]), onde vou misturando e dialogando com obras plásticas, obras literárias, imagens, narrativas, histórias de vida, sussurros, rimas, poéticas do sertanejo, num tempo às vezes não-linear, ou até mesmo num tempo mítico. Apesar desse texto ser expresso em linhas, há nele muito de referências no que Vilén Flusser (2007-p103/104) coloca como ―pensamento expresso em superfícies‖. Para ele, ler as palavras indica codificar uma estrutura imposta, o próprio domínio dos códigos

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  • 6 Congresso SOPCOM 3527

    Esttica do Serto: imagens e poieses do nordeste do Brasil

    Angela Almeida

    Resumo

    Este paper prope uma discusso sobre a esttica do serto brasileiro, pensada a partir das

    expresses plsticas e literrias produzidas pelo homem comum da regio. Imagens fotogrficas,

    vdeos e textos so alguns dos recursos adotados na anlise dessa poiesis. Como mtodo de

    apreenso dessa singular cultura visual, adota-se o religar entre lugares, arte e pensamento.

    A porta do serto aberta aqui mgica, festiva, potica, triste, rida, mtica;

    construda com rimas, sonhos, cores, santos, demnios, pedras, morte e vida. Evoca a

    msica que vem dos tambores, dos pfanos, das violas e das rabecas. Exibe trajes com

    bordados coloridos, a chita, o couro trabalhado dos gibes, os mantos dos reis e as

    composies bricoladas com retalhos e fitas coloridas. Esse serto apresentado ressalta a

    riqueza excessiva de um imaginrio repleto de animais bizarros, anjos, demnios e

    homens que sentam mesma mesa, numa espcie de confraria mgica.

    Trata-se de um serto de uma paisagem com vegetao quase rasteira, formando

    uma massa de cor ocre-terra, ocre-vegetao, que se estende e oprime os fios de espelhos

    dgua que insistem em correr entre as terras secas. do contraste entre essa natureza

    rida e o homem que a habita que nasce a esttica do serto, vista a partir das imagens

    plsticas e poticas que ele ( o homem) cria como elementos que ora complementam ou

    rivalizam com sua geografia.

    Aqui assumo uma escrita como um fluxo esquizo (termo usado por Deleuze

    falando da escrita de Guattari [Deleuze,1992-p.24]), onde vou misturando e dialogando

    com obras plsticas, obras literrias, imagens, narrativas, histrias de vida, sussurros,

    rimas, poticas do sertanejo, num tempo s vezes no-linear, ou at mesmo num tempo

    mtico.

    Apesar desse texto ser expresso em linhas, h nele muito de referncias no que

    Viln Flusser (2007-p103/104) coloca como pensamento expresso em superfcies. Para

    ele, ler as palavras indica codificar uma estrutura imposta, o prprio domnio dos cdigos

  • 6 Congresso SOPCOM 3528

    de alfabetizao e que as imagens se colocam num campo de certo modo mais livre, no

    campo do olhar. Flusser diz que: A epistemologia ocidental baseada na premissa

    cartesiana de que pensar significa seguir a linha escrita, e isso no d crdito fotografia

    ( a imagem [crivo meu]) como uma maneira de pensar(2007-p.111).

    Tento assim ir estabelecendo laos entre a cincia e a arte, entre o pensamento

    racional e o intuitivo, porque como argumenta Merleau Ponty (2004-p.13): A cincia

    manipula as coisas e renuncia habit-las.[...] Ela , sempre foi, esse pensamento

    admiravelmente ativo, engenhoso, desenvolto, esse parti pris de tratar todo ser como

    objeto em geral, isto , ao mesmo tempo como se ele nada fosse para ns e estivesse no

    entanto predestinado aos nossos artifcios. Como diz Conceio Almeida (1997-p.25):

    Manda quem pode, obedece quem tem juzo. Esse aforismo, cujo sentido

    marcadamente autoritrio, pode ser metamorfoseado nos limites de um pensamento mais

    libertrio.

    E como no serto nada est totalmente organizado em estruturas de compndios

    ou com etiquetas que decodificam, partida, o que o esttico, a narrativa aqui no se

    estabelece como linear, racional, fora do ser humano. Ela incorpora as incertezas,

    certezas, o delirante, o imaginrio. Assim o caminho se torna spero, bifurcado, diverso

    e afinado com a complexidade do mundo, como a travessia descrita por Euclides da

    Cunha sobre a caatinga: ...todas as variedades cristalinas, e os quartzitos speros, e os

    filades e calcreos, revezando-se ou entrelaando-se, rejuntando duramente a cada passo,

    mal cobertos por uma flora tolhia dispondo-se em cenrios em que ressalta,

    predominante, o aspecto atormentado das paisagens (s/d-p.26).

    O argumento central dessa narrativa se posiciona na relao de oposio e

    complementaridade entre falta e excesso, padro e variao, contingncia e criao que

    so elementos tambm da esttica do serto.

    Assumir o desejo como elemento norteador desta narrativa ensastica de

    compreenso do serto optar por um solo frgil/forte, caracterizado por certezas e

    incertezas, ordens e desordens, determinismos e acasos, fixao e vertigem, serto e

    mundo, vida e morte. Porque o serto paradoxal, antagnico. terra de ningum,

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    glauberianamente deus e o diabo na terra do sol, contraindo a fatalidade e o acaso.

    Terra de Lampio e Antnio Conselheiro, Padre Ccero e Corisco, de caatinga e estepe,

    de pedras e cristais. Terra que bebe o sangue de santos, mrtires, beatos, profetas e do

    homem comum que nela pisa.

    Esse o Serto que emerge do meu olhar flneur e da relao de conhecimento

    que tenho sobre ele. A pesquisa (como pensamento construdo), como ato intencional e

    sistemtico de construo da realidade, vem aqui se acoplar as imagens de um serto

    potico, lrico, imaginante.

    certo que, na cincia, explicamos esse mundo, sobretudo por meio de palavras,

    mas as palavras nunca podero desfazer o fato de estarmos imbricados pela expresso do

    olhar. Por outro lado, a maneira como vemos as coisas afetada pelo que sabemos ou

    pelo que acreditamos. O olhar antes de tudo um ato de padecimento do ser ou um ato

    de escolha condicionado pela expresso, como quer Dietmar Kamper (apud.

    Almeida.1997-p.131).

    Toda escrita incorpora uma forma de ver. O modo pelo qual as pessoas olham

    uma obra de arte afetado por uma srie de premissas apreendidas anteriormente sobre

    arte, suposies a respeito de beleza, verdade, civilizao, forma, perspectiva,

    conhecimento da historia da arte, gosto, etc. Da mesma forma, quando vemos uma

    paisagem, situamo-nos nela e, ao descrev-la, resgatamos um capital cognitivo cheio de

    imagens e experincias vividas ou projetadas imaginariamente.

    Assim, o conjunto de fragmentos que compe meu dizer/sentir sobre a esttica do

    serto se assemelha a um objeto fractal de mltiplas faces simtricas, ainda que

    descontnuas. Cada uma dessas faces existentes nela seja a vegetao, a estamparia, os

    castelos, a escultura, a arquitetura primitiva, os mitos, os sonhos, a memria contm a

    mesma e outra imagem do recndito do homo-sapiens-demens do serto. Cada um desses

    recortes desse mundo sertanejo diz uma s e mesma coisa: a condio humana expressa

    pelo homem do serto responde com exuberncia aridez, falta e ao infortnio da vida.

  • 6 Congresso SOPCOM 3530

    Cho do Serto

    Cada vivente tem o seu serto.

    Para uns so as terras alm do

    horizonte e, para outros,

    o quintal perdido da infncia.

    Oswaldo Lamartine

    Pelo ngulo de um primeiro vo nas asas de um pssaro podemos observar a vasta

    terra ocre que se confronta com a linha do horizonte, como num corte de navalha. Um

    horizonte de um cu azul lmpido, claro, quase sem nuvens que contrasta com os tons

    secos das terras esturricadas.

    No entardecer, o sol que durante o dia foi claro, passa a derramar um vermelho fogo

    claro sobre as pedras quentes, transformando o serto num mundo-ouro com cheiro de

    enxofre envenenado. Diante de olhos desatentos pode surgir a ona Caetana, que

    espreita e se mostra entre os espinhos. uma fera bela, hostil e feroz que despedaa os

    homens com suas garras. um dos smbolos/mito da morte no serto.

    Nesse serto de um cu azul lmpido e translcido podem tambm surgir os anjos

    mensageiros invisveis, s vezes, visveis. Os anjos das tradies monotestas judaica,

    crist e mulumana que aparecem e desaparecem, passam no silncio ou levantam vo

    nessas terras estranhas banhadas de sol escaldante. Dois anjos um vestido de prpura e

    o outro de jacinto sopram a beleza dos contrastes nessa terra do sem-fim, os desejos de

    gua, os sonhos das guas dormentes, melanclicas, lentas ou calmas. Podem tambm

    deslizar e passar nos sopros de ar ou de gua, trazendo as noites amenas para o serto.

    Entretanto, sempre nesses contrastes que no serto os mitos se mostram.

    O serto essa terra quente que arde no corao, que tem cheiros, cores e rudos

    singulares. Expira e derrama imagens saturadas de repulsa e seduo, medo e paixo,

    espinhos e flores silvestres. Tem gosto de riso e solido, gosto do acaso da vida, dos

    enganos, do inesperado, da dor da terra esturricada e de toda morte desassossegada.

    Nessa paisagem bela e desoladora do serto, h elementos formadores da visualidade

    que passam a impresso que o homem habitante dessa natureza rida, numa nsia de

  • 6 Congresso SOPCOM 3531

    modific-la, sente a necessidade de enxert-la de cores e formas excessivas nos espaos

    vazios; isto , passa a reelaborar a sua natureza sob o prisma de multicores. Surge,

    assim, uma esttica festiva e austera, risvel e pica, dramtica e lrica, espalhafatosa e

    religiosa, monocromtica e colorida, cheia e vazia.

    A Linha Exuberante

    Quem me dera a dureza da aroeira,

    a florao do pau-darco, a sombra da oiticica, o cheiro do cumaru isso

    para no falar nos espinhentos.

    Me bastava ser talvez uma umburana.

    Oswaldo Lamartine

    Enquanto os poetas fazem poemas com as palavras, as bordadeiras do serto

    traam poemas com as linhas. So linhas multicoloridas que vo preenchendo superfcies

    monocromticas como se fossem a terra seca do serto. As mulheres do serto bordam

    sem alvoroo, com simplicidade. Repetem uma das tarefas mais arcaicas do universo

    feminino, isto , a de cuidar da famlia, da vida domstica, do amor idealizado, do

    casamento e da rotina materna. O ato de bordar um modo silencioso delas falarem

    com a natureza.

    Nos bordados predominam as imagens de flores, todas de um colorido intenso,

    quase excessivo, exuberante como a paixo esse sentimento que dilacera almas. As

    bordadeiras enterram as linhas ponto a ponto na trama do tecido, como cacos que cortam,

    como sangue que preenche, ato prximo loucura das miudezas, da rotina das cozinhas.

    A linha aqui o grande personagem, capaz de acessar, simular, reter e desafiar. Num

    certo sentido, o bordado transgresso, resistncia e obedincia ao mesmo tempo. a

    resposta da mulher terra que a maltrata, fere seus olhos, nega e a faz sofrer. Mas

    tambm resistncia. Resistncia contaminada pelos mesmos ingredientes da obedincia,

    da rotina, do inevitvel, da repetio.

    As linhas atravessam a superfcie, vo e voltam, se contorcem, se espremem entre

    os pontos fechados da trama dos tecidos, at que fazem emergir as imagens fortes,

  • 6 Congresso SOPCOM 3532

    coloridas. Imagens de flores que contrastam com a natureza rida, ocre, seca. So

    imagens que as bordadeiras constroem com suas linhas coloridas, imagens com flores de

    vermelho-sangue, que fingem banhar a terra seca.

    Elas (as sertanejas) tambm bordam a solido. A solido das vivas, das moas

    que esperam um marido, que desejam amores, que vm ou choram paixes que vo. A

    solido da terra seca que no gera vida. A solido da espera de guas correntes. A solido

    das cinzas de um passado. A solido de um corpo com fome. Alimentando assim essas

    solides de alegria, cores, paixes, atravs de imagens multicoloridas. Como a cultura da

    frica ou da ndia, onde os humanos se mostram envoltos com tecidos coloridos,

    exuberantes, contrastando com seus olhares de fome.

    Mas elas (as bordadeiras do serto) tambm brincam de bordar numa espcie de

    textura dura, como as pedras, pois os bastidores so usados para esticar o tecido e deix-

    lo rgido. As agulhas, esses delicados instrumentos de perfurao, extirpam imagens que

    complementam esse serto desolador. Perfuram o tecido como verdades partidas em mil

    pedaos, como repeties necessrias.

    As bordadeiras percorrem com o olhar fixo e amoroso as flores que vo surgindo.

    Prisioneiras das pedras brutas e do sol escaldante, essas flores se libertam das rochas para

    proporcionar nas mulheres a vertigem do vo. Elas permitem que essas imagens

    carreguem os pssaros, as flores ou abelhas para pernoitarem na doura do sereno. O

    mistrio da luz aquece no sol a pino as imagens bordadas que sobrevivem na repetio

    dos gestos, estilhaam-se no brilho do meio-dia e fogem. Porm, retornam, no cair da

    noite, porque, no serto, a noite fria e as flores so possveis.

    Possveis como o silncio que acompanha o ato de bordar. O silncio que permite

    as lembranas que persistem. Lembranas dos amigos que partiram para sempre, dos

    filhos que j no so crianas, do amor que j envelheceu, das paixes abortadas, dos

    desejos que ficaram abandonados nas paredes dos quartos. Ao bordar, as mulheres

    mergulham nesse tempo mtico-lrico que preenche a beleza interior das coisas e

    constroem um mundo multicolorido repleto de flores, bem longe da realidade.

  • 6 Congresso SOPCOM 3533

    Os traos e cores dos bordados so como a apoteose do artifcio e, enquanto

    exagero, complementao e resposta natureza rida. As flores no so de uma s cor,

    so sempre multicoloridas, antecipando o espao dos bordados carnavalizantes. Bordados

    esses que vo ocupando espaos e trilhando trajetrias entre corpos e objetos,

    permanecendo um estilo singular.

    Merleau-Ponty (2002-p.85) argumenta que, quando o estilo est operando, o

    artista nada sabe da anttese entre o homem e o mundo, entre a significao e o absurdo,

    j que o homem e a significao se desenharo sobre o fundo do mundo justamente pela

    operao do estilo. O estilo, portanto, no pode ser tomado como objeto, j que ainda no

    nada e s ser visvel na obra. Assim, podemos dizer que o estilo exuberante, excessivo

    e barroco dos bordados do serto a sntese da esttica e opera como

    complementaridade entre o homem e a sua natureza.

    Esses objetos (os bordados) revelam um caminho de conotaes estticas, na

    medida em que o homem necessita inferir na paisagem. A beleza dos bordados traduz

    uma percepo de algo que ultrapassa o real. Algo como uma segunda realidade, nos

    elementos da natureza circundante. Por isso possvel sonhar em estender todos os

    bordados pela terra de cascalho, plana e seca, atravessar a caatinga, errar pelos caminhos

    entre pedras, tatear na claridade ofuscante da estrela solar, colorir os vestgios e os sinais

    perdidos entre cactos, espalhar pelos galhos secos e oferecer natureza todas as cores,

    todas as formas, todas as flores, como um corpo que se entrega ao amor.

    O serto de ontem e o serto de hoje so povoados de artistas primitivos,

    singulares, de uma obra abissal, encanada pelo pr-do-sol da caatinga, lavrada pela pele

    da Caetana ou eternizada pelas pedras-lispes despencadas do cu. Um corpo em festa,

    animado pelo riso, cores e paixes que habitam no homem e, no entanto, se singularizam

    no serto.

    Vale a pena lembrar o que disse Mikel Dufrenne (2004-p.23) em relao s

    primeiras imagens: Antes de construir conceitos ou mquinas, enquanto fabricava as

    primeiras ferramentas, o homem criou mitos e pintou imagens. necessrio

    compreender que a arte espontnea desde sempre exprime o liame do homem com a

  • 6 Congresso SOPCOM 3534

    natureza. Indo mais alm, Lvi-Strauss argumenta ( se referindo ao homem neoltico)

    que ele elaborou tcnicas como transformar gros ou razes txicas ( entre tantas outras

    tcnicas) em alimentos ou at mesmo utilizou essa toxicidade para a caa, a guerra ou o

    ritual, ... no duvidemos de que foi necessrio uma atitude de esprito verdadeiramente

    cientfico, uma curiosidade assdua e sempre alerta (1989-p.30). Lvi-Strauss nos mostra

    que esse homem foi, sim, herdeiro de uma longa tradio cientfica, o que justifica e

    explica que temos dois modos diferentes de pensamento cientfico, ...dois nveis

    estratgicos em que a natureza se deixa abordar pelo conhecimento cientfico um

    aproximadamente ajustado ao da percepo e ao da imaginao, e outro deslocado; como

    se as relaes necessrias, objeto de toda cincia, neoltica ou moderna, pudessem ser

    atingidas por dois caminhos diferentes: um muito prximo da intuio sensvel e outro

    mais distanciado (1989 p.30).

    Podemos argumentar que em princpio toda classificao uma etapa em direo

    a uma ordem racional. E que historicamente fomos classificando, (no caso dos saberes

    intuitivos), desclassificando-os e dando a eles adjetivos como ingnuos, populares,

    ilustrativos, primitivos, ou at mesmo exticos. Assim, esses conhecimentos mais

    intuitivos (tambm longamente observveis), como interpretaes da fauna e flora,

    observaes dos fenmenos naturais, as expresses estticas (plsticas, orais, literrias...)

    foram ao longo do tempo construindo seus nichos de sobrevivncia em oposio aos

    conhecimentos cientficos e racionalmente comprovados.

    Casas do Serto

    das casas-de-fazenda

    clareadas a querosene. Serto onde

    se cozinha em panelas de barro,

    fogo a lenha e se bebia de jarras

    de Cantareira.

    Oswaldo Lamartine

    As casas dos arruados no serto incorporam imagens to ldicas quanto as

    melodias de Luiz Gonzaga e lembram a geometria das imagens (bandeirinhas) do artista

  • 6 Congresso SOPCOM 3535

    plstico Alfredo Volpi. So imagens poticas e genuinamente intuitivas. As linhas so

    retas. Porm, como se sente uma linha reta? Talvez como um pensamento montono que

    se estende infinitamente. Mas essas casas no so feitas apenas de uma linha reta, h

    muitas linhas retas e curvas, que se tornam atraentes ao olhar. Elas so s vezes

    profundas, ora rasas, quebradas ou alongadas. H repentinos recomeos e pausas a partir

    do fronto. Suas cores so primrias e no misturadas.

    As casas dos arruados so achatadas, estreitas e baixas, meio mouras, coladas

    umas nas outras, desafiando a esttica formal da arquitetura. A beleza singela, diferindo

    da esttica urbana.

    Como diz Bachelard (1993-p.24), a casa o nosso canto no mundo1. E como o

    serto por natureza contraditrio, ele nos oferece imagens reais e ldicas; secas ou

    repletas de cores; fragmentadas ou unidas. Narram histrias tristes ou alegres, se expem

    pelos ngulos das ruas, das esquinas, becos ou meias portas. Por janelas estreitas onde

    pode surgir um rosto arredio. Por paredes com sombras impalpveis ou grossos muros

    por onde a luz no ultrapassa ou por flores artificiais ou flores-de-monturo. Esse ser se

    estabelece no campo da liberdade de imaginar, como tambm argumenta Bachelard:

    Livre da preocupao de significar, ele descobre todas as possibilidades de imaginar. O

    ser que vivencia suas imagens em sua fora primordial sente bem que nenhuma imagem

    ocasional... (2001-p.57).

    O aspecto belo das casas do serto est no fato delas se harmonizarem com a

    paisagem, sendo mesmo uma continuao da paisagem. No h na base da arquitetura a

    pretenso de se destacar do conjunto, nem pela escala. A beleza uma necessidade

    natural. E elas so belas por esse dilogo com a sua paisagem.

    Cada casa tem sua prpria voz, seu cheiro, suas cores e formas. Mas os cheiros

    comuns so mais fortes. A casa no serto, concordando com Oswaldo Lamartine (Apud.

    Campos -2001-p.10), ...tem o cheiro da terra seca, da lenha queimada, da flor do

    mandacaru, do curral, da gua de chuva. Tem o rudo do vento solto na vegetao

    rasteira, nos estalos dos galhos secos e no ranger dos armadores velhos. Tem as

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    estampas dos bordados. Tem as formas geomtricas e curvas dos frontes. Tem a dor e

    alegria, a chegada e a partida, tem Deus e o diabo, tem vida e a morte Caetana.

    As casas so construdas numa espacialidade particular. Numa harmonia entre

    elas e a natureza ao redor, formando uma paisagem singular. Elas so construdas juntas

    uma das outras, formando a rua, e lembram as bandeirinhas de Volpi, e as bandeirinhas

    de Volpi lembram elas. Tanto as bandeirinhas (pinturas) quanto as casas parecem no se

    sustentarem na superfcie, elas parecem flutuar num espao imaginrio de quem as v. E

    justamente essa flutuao que determina uma caracterstica da esttica singular qual

    estamos nos referindo, isto , a esttica do serto.

    Esttica do Cangao

    Os rudos dos ventos, das goteiras,

    do armador das redes, o balido das ovelhas, o canto

    do galo, o estalo do chicote dos matutos, o ganido

    dos cachorros em noite de lua,

    os tetus, o dueto das casacas de couro, os gritos

    do soc a martelar silncios, os aboios, o bater

    dos chocalhos, o mugido do gado e

    tantos outros que ferem nas ouas da saudade...

    Oswaldo Lamartine

    O corpo entra rasgando a vegetao espinhosa da caatinga. Tudo muito rpido.

    necessrio matar e sobreviver na corrida mato adentro. As folhas urticantes vo

    rasgando as roupas mais finas. O sangue vai manchando a camisa. No h tempo para

    pensar. preciso atravessar lguas e lguas entre os gravetos estalados em lanas. So

    dois corpos agonizando, o da natureza e o do homem, a um s tempo. Destinos

    amalgamados. O homem precisa provar que "macho" e sobreviver morte; a natureza,

  • 6 Congresso SOPCOM 3537

    sobreviver falta de gua. O homem se joga banalidade de seu destino, que nunca

    banal. Em sua alma sobressai o arqutipo do irredentismo, da rebeldia. Sua luta um

    combate com a verdade e a justia, com a vida e a morte. Suas mos se sujam com o

    sangue do outro (que ele assassina).

    No cho da caatinga, esse homem carrega no corpo, alm da valentia e da

    coragem, a sua prpria arte. A arte que est nos bornais com bordados em padro floral;

    nas cartucheiras com ilhs; nos chapus de abas enormes de couro cru e aplicaes de

    medalhas e estrelas (como o signo de Salomo); nos anis que cobrem todos os dedos, no

    uso de vrios cordes de ouro; nos lenos de seda coloridos no pescoo e nos vestidos de

    chita das mulheres, que contrastam com o uso de jias de origem europia (fruto de

    saques feitos pelo bando); nos punhais e faces fabricados por cutileiros, com

    incrustaes de peas de marfim e at rubis.

    Esse homem vestido assim um dia viveu no serto, e andou em bando e causou

    com certeza um grande impacto esttico.

    Seus passos largos (dos cangaceiros) no mato adentro, fugindo ou escapando de balas,

    tm ritmos ao compasso de voluptuosos passos de dana. Uma viagem em abismo, sob o

    signo do corpo e do desejo de viver. Movimentos fulvos, velados, escorrendo entre o ocre

    da vegetao e a luz vermelha do pr-do-sol. A qualquer momento, a ona Caetana pode

    espreitar e a morte se apoderar do seu corpo. necessrio um esprito sagaz para enganar

    a ona. Os traos rpidos das aes no podem ser interrompidos, preciso a vida, a

    busca de um mgico elo de um lao com uma totalidade estilhaada. E, se for preciso

    matar, deve ser cruel, sanguinrio. Deve empurrar o faco at espirrar sangue e esperar o

    ltimo suspiro. Deve ser uma morte que se adapte terra quente, esturricada, e banhe de

    sangue a paisagem.

    No serto, esses homens foram conhecidos, por quase cinco sculos, como cangaceiros.

    Diz Cmara Cascudo que (1975-p.42): "O cangaceiro no um elemento do

    serto. No vem da seca, da justia local, da mestiagem, da educao, do uso das armas.

    Existe em todos os pases e regies mais diversas. Na inspita Mauritnia e na alagada

    China, nas montanhas da Crsega e nos plainos de Frana, onde viveu e reinou Mandrim,

  • 6 Congresso SOPCOM 3538

    em So Paulo, com Dioguinho, e em Portugal, com Jos do Telhado, nas cidades

    tentaculares e nas povoaes minsculas, repontam esses tipos de inadaptaes, soma de

    todos os fatores, vrtices para onde convergem as grandezas das taras, tendncias,

    ineducaes e impulsos.

    Se concordarmos com Cascudo, pode-se dizer que o esprito do cangao aflora em vrias

    culturas; porm, foi no serto, especificamente no bando de Lampio, que o cangao

    mostrou/exibiu sua esttica prpria, singular.

    O cangaceiro viveu sob o risco da morte, matou sem piedade, alastrou crimes,

    vinganas, estupros, infortnios nessa natureza (serto) bravia, mas obsessivamente crua

    e bela; mas tambm exibiu e criou uma esttica singular, genuna e extica. Ele cravou

    no seu corpo o texto de sua prpria cultura.

    A cultura que o empurrou entre a caatinga como voam os pssaros; a soltar a

    imaginao, como o vento; a arder nos ferimentos, como o fogo; a ser nmade, como os

    rios; a ter ciclos no corpo, como a natureza; a resistir, como as pedras; a vestir roupas

    coloridas e enfeites, como a diversidade da natureza; a fechar o corpo aos males

    humanos; a sonhar e criar uma esttica prpria de identificao como bando; enfim, ser

    capaz de se sobressair no seu meio cultural com o lema de vida de seus antepassados, os

    ndios, que diziam: sem rei e sem lei, mas feliz (Apud. Frederico Pernambuco- vdeo).

    Tolstoi (2002-p.32), citando o professor russo Kralik, argumenta que as artes do

    vesturio, do gosto e do tato so reconhecidas como arte2. Para Clement Greenberg

    (2002-p.87) ...toda experincia esttica deveria ser considerada arte. H uma

    multiplicidade de experincias pelas quais as pessoas passam e que so estticas, embora

    no saibam not-las como uma experincia esttica. Provavelmente, no caso do bando de

    Lampio, no havia conscincia dessa experincia como esttica.

    Encantaria da Pedra

    Serto onde noitinha, depois da

  • 6 Congresso SOPCOM 3539

    ceia de coalhada, se armava redes

    nos alpendres para ouvir dos mais

    velhos a crnica do passado.

    Oswaldo Lamartine

    Os castelos podem nos levar s pedras e essas nos lembram o conceito circular,

    segundo o qual as coisas no tm princpio nem fim. Os castelos so como as sociedades

    nas quais prevalecem as narrativas mticas, lugar onde o tempo pode no ser linear, no

    h a idia de progresso, tudo pode voltar; a cada vez, o tempo retornar ao zero, e os

    caminhos recomearem. Os astros e a terra fazem seu percurso e retornam. Retornamos

    assim aqui pedra, encantaria da pedra, s primeiras marcas do homem na histria.

    Para os arquelogos, os lugares no serto que foram habitados pelos primeiros

    homens foram os brejos, porque esses tm solos mais frteis, com filetes dgua, sendo

    possvel a sobrevivncia face aridez das terras vizinhas. exatamente nos brejos onde

    hoje se encontram os stios arqueolgicos com pinturas as rupestres mais significativas.

    Os homens que chegaram ao Nordeste brasileiro pertenciam a grupos

    mongolides como todos os habitantes das Amricas, anteriores colonizao europia.

    Arquelogos admitem que os ndios brasileiros habitantes da regio Nordeste so os

    descendentes de levas arcaicas que atravessaram, h milhares de anos, o estreito de

    Bering. Para Gabriela Martin, foi precisamente nos sertes nordestinos do Brasil, onde

    a natureza particularmente hostil ocupao humana, onde se desenvolveu uma arte

    rupestre pr-histrica das mais ricas e expressivas do mundo (1999-p.251).

    Essa riqueza da arte rupestre foi registrada no comeo do sculo XX tambm de

    forma expressiva por Jos de Azevedo Dantas (1994-s/n), arquelogo intuitivo e artista

    que transcendeu seu tempo realizando uma pesquisa singular das pinturas rupestres do

    Rio Grande do Norte. Ele desenhou fielmente cada pintura achada nos vrios rochedos

    da regio do serto por ele visitado: ... visitei o citado rochedo que se achava encravado

    na encosta da serra, e depois de umas tantas observaes consegui copiar a lpis em

    tamanho minsculo alguns desenhos que ali se achavam gravados.

    Dantas comeou, assim, escavando a memria pr-histrica do serto e a cultura

    dos nossos ancestrais. A deusa Mnemosyne, a musa da memria e das artes da Histria,

  • 6 Congresso SOPCOM 3540

    provavelmente, garantiu a ele o poder de retorno, de volta ao passado para fazer

    perpetuar a lembrana dos mortais: ... vi-me forado a procurar o isolamento nas selvas,

    nesse mesmo isolamento devo continuar com o resultado do meu trabalho (1994-s/n).

    Isolamento e solido que lembram tambm a vida de Z dos Montes, preso em seus

    castelos.

    H outro detalhe importante como referncia esttica do serto que a

    policromia das pinturas rupestres. Esse elemento tem ressonncia na vida do sertanejo e

    serve para repor em sua obra as cores, como resposta sua natureza quase

    monocromtica.

    No Mirador, em Parelhas/RN, encontra-se registrada uma revoada de tucanos de

    bicos vermelhos e penas amarelas, descrita por Gabriela Martin (1999-p.251) assim: ...

    emas correndo, que apresentam trs tonalidades de ocre nas asas. Um veado de cor

    branca destaca-se no meio de figuras humanas pintadas com tinta vermelha; grafismos

    puros de cuidadosos desenhos formam linhas paralelas de duas outras trs cores.

    Desenhos

    Estas reprodues foram desenhadas por Dantas em 1924, e esto reproduzidas

    em seu livro Indcios de uma Civilizao Antiqssima, editado pela Unio

    Editora/Paraba em 1994.

  • 6 Congresso SOPCOM 3541

    Nesse desenho, as figuras/animais aparecem em fila como que voando, e h um

    homem a tang-las. Depois, elas j esto no cho e, num terceiro momento, h a

    expressividade de um movimento.

    Aqui se v uma mulher (cabelos longos) agachada. Prximas, h duas figuras

    sentadas conversando, uma tem como enfeite dois rabos e estende o brao ao

    companheiro. Mais embaixo, figuras com instrumentos nas mos, prontas para um

    ataque.

  • 6 Congresso SOPCOM 3542

    As pinturas rupestres do homem pr-histrico que

    viveu um dia no serto fazem parte de uma matriz

    esttica singular, tanto em relao s pinturas rupestres

    do mundo, quanto pela influncia at hoje na produo

    esttica do homem do serto.

    A pedra, os signos, as formas esto na matriz das regras estticas que se

    transformam numa verdadeira arte potica desde o homem pr-histrico at hoje,

    passando por diversas civilizaes e culturas. A sensao que se tem a de que existe um

    fio, simultaneamente tnue e forte, que resiste e persiste atravessando tempos e culturas

    como uma travessia que se transforma/desdobra e se abre numa passagem

    fantstica/mtica e utpica. Assim, a Abissnia, o imprio inca, a China, a Grcia ou o

    serto so tambm espaos metafsicos capazes de superar e ultrapassar a mera realidade,

    e espalhar os fios agregadores de universalidade e permanncia da imaginao humana.

    Esttica da Morte

    Os ventos do boqueiro da Serra do Bico sopravam

    pelas suas folhas e, daquele alto,

    ele assistiu mudana de mandos da monarquia repblica. Agitaes e marasmos. Muitas secas

    e alguns invernos. Casais que se aninhavam.

    Risos e lgrimas. Berros de dor e gritos

    de alegria dos que chegavam para

    a vida. Enterros que saam.

    Oswaldo Lamartine

  • 6 Congresso SOPCOM 3543

    Abro uma porta de gua to vasta quanto a morte. Abro uma porta de luz to

    intensa quanto a vida. Sou demens e sapiens. Sou antagnico e complementar. Perteno

    ao campo da loucura, dos pecadores e dos provedores de barbrie. Sou vida, sou morte.

    Sou o corpo (mulher) em inmeras linhas de desencontro que diluem os sonhos; sou o

    corpo (homem) encharcado de desejo que fatalmente se entrega. Sou a pulso que

    desenha a morte, como ato de eternizar a dor. Sou o rosto (da me) que eu no quero

    esquecer. Sou vida antes que a morte erga a parede intransponvel. Sou linha dos desejos

    ou lmina que separa e corta o corpo contaminado de dor. Sou corpo num arco de pedra,

    sou um corpo Caetana, sou um corpo de morte de Anta fmea. Sou um sapiens-demens

    em sua verso sertaneja.

    Essa morte no serto a morte repentina, quando se morre de bala ou doena. a

    morte ldica, sensual, quando se entrega a Caetana. A morte entra no corpo, que levado

    numa rede, sua ltima viagem. A morte esfria repentinamente o corao do sertanejo e

    nada mais. Mas ele sonha (seu ltimo sonho) com o paraso, um campo com borboletas

    brancas, um rio discreto, o canto do sabi... Um repouso claro e ali seus velhos beijos,

    lunares, ribeiros, sonoros do eco se abriro muito longe. Um adeus ao amor carcomido,

    tranquilo e maternal de qualquer Maria.

    O homem do serto prepara-se para fechar os olhos e deixar escorrer a convulso

    oleosa das lgrimas (j ralas) e das coisas tristes esquecidas. Nesse instante, ele v todos

    que partiram antes dele: o pai, a me e o tio que aparecem para lev-lo. Cobrem seu

    corpo com um pano ardido do tempo e ocre do sangue derramado. Caetana cega seus

    olhos com a luz do alm. Seu corao esfria e nada mais. Agora s silncio profundo

    da vida na terra. Caetana chegou.

    Assim, esses corpos que se entregam a Caetana se transformam em pedras, que

    iluminam o cu e levam marcas inconfundveis de vida. Corpos que levam desejos

    recolhidos, beijos sonhados, noites de estrelas cadentes, dias de sol escaldante, terras

    esturricadas, fome, sede, sonhos de gua, silncio de morte, fala de vida.

    E, ao som da rabeca, ou dos cantos das incelenas, o corpo se deixa levar pelo

    carrossel do destino, isto , para a morte, j que existiu vida.

  • 6 Congresso SOPCOM 3544

    Segundo Morin (1970-p.13): ...a espcie humana a nica para a qual a morte

    est presente durante a vida, a nica que faz acompanhar a morte de ritos fnebres, a

    nica que cr na sobrevivncia ou no renascimento dos mortos. A morte, em qualquer

    cultura, , primeira vista, uma espcie de vida, que prolonga, de uma forma ou de

    outra, a vida individual. Assim, no uma idia, mas sim, uma imagem, como Caetana,

    ou como diz Bachelard, uma metfora da vida.

    A esttica que preside o ltimo encontro do sertanejo com seus familiares e

    amigos comporta um script polifnico que agrega, ao som do canto, o barulho discreto

    dos copos de cachaa, a tagarelice das crianas, o acerto do trabalho no roado no dia

    seguinte, o tero tirado pela beata e respondido por todos ao redor do defunto. Morin

    (1970-p.25) declara que no existe praticamente qualquer grupo arcaico, por muito

    primitivo que seja, que abandone os seus mortos ou que os abandone sem ritos.

    Essa esttica do mltiplo, expressa no ritual da morte, ritualiza a vida como ela :

    mltipla, canto e trabalho, criana e velho, fim e comeo, repetio do trgico, recomeo

    do novo. A esttica da morte est nas paredes das casas simples: sempre que pode, a

    famlia fotografa o defunto. L est ele no retrato da parede, com o padrinho Ccero, frei

    Damio, o Corao de Jesus. Est tambm na cruz da beira da estrada, fixada no cume de

    uma casa em miniatura, ou mesmo apenas fixada entre pedras: as mesmas pedras que

    racharam os calcanhares do velho sertanejo. Est tambm na regra das cores escolhidas

    para os caixes: anjo (criana inocente) e moa virgem se enterram em caixo azul claro,

    celeste, da cor do cu; os tons terra para os mais velhos.

    A esttica da morte no serto tem, alm da figura de Caetana, todas essas imagens

    e sonoridades impregnadas de vida. Passa-nos a impresso que ela carrega a vida em sua

    plenitude, que parte natural da natureza, apenas uma transcendncia da vida.

    Contraria o sentido irremedivel de que morte separao.

    Essa experincia esttica do sertanejo com a morte a experincia em estado

    mais bruto (primeiro/original) e abrangente. prximo do conceito da potica clssica

    o thaumastn aristotlico, que significa o arrebatamento que provoca o choque de

    surpresa, que cliva a percepo, num momento de estagnao e assombro. Wittgenstein

  • 6 Congresso SOPCOM 3545

    tambm reflete sobre o enigma do impacto simultaneamente sensvel e cognitivo de

    certas percepes. O sertanejo transforma esse estado de espanto numa imagem lrica,

    paradoxalmente bela e cruel. Pode ser comparada tambm com a surpresa maravilhada e

    inquietante que os gregos chamavam de deins (levar o pensamento a se surpreender).

    Nesse estado, as imagens criadas miticamente se revelam, o mito exprime virtualidades

    humanas que chegam a realizaes fantsticas. Por isso a Caetana pode ser animal e ser

    humano, mulher e homem.

    Norval Baitello nos diz que: Smbolos so grandes snteses sociais, resultantes

    da elaborao de grandes complexos de imagens e vivncias de todos os tipos. Por isso

    as imagens evocam os smbolos, e ao evoc-los, os ritualizam e os atualizam (2005-

    p.17). Assim, os smbolos e rituais da morte prolongam a nossa prpria vida

    simbolicamente. E essas imagens resgatam representaes do subconsciente, das

    profundezas arqueolgicas que se manifestam pelas riquezas e significados das imagens.

    Os mitos/as imagens mitolgicas implicam o antropomorfismo, nos quais

    animais, plantas e coisas podem ter sentimentos humanos, se comportam como humanos

    e exprimem desejos humanos, como o inverso tambm verdadeiro. O homem tambm

    toma corpo animal e instinto animal. Por intermdio do mito, h um movimento de

    apropriao do mundo, de reduo do universo a dados inteligveis pelo homem. O

    desejo da apropriao cria o desejo da imitao dos heris ou dos deuses.

    Para Lvi-Strauss, a misso da cultura desembaraar-se dos mitos, realizando-

    os, porque a cultura que vem no corpo no morre. Na cultura no existe a morte, existe

    cumulatividade. A criao do mito uma vitria sobre a morte, vitria simblica

    claro! de natureza cultural, que est presente desde que o homem homem. A cultura

    no nasce quando o homem comea a fabricar, produzir arte ou as primeiras ferramentas,

    mas com o prprio homem.

    Esse homem classificado por Morin no somente Homo sapiens, como afirmou

    a cincia racionalista durante muito tempo, mas tambm Homo demens. Seu lado sapiens

    o lado da sociedade, o seu lado demens o lado da cultura.

  • 6 Congresso SOPCOM 3546

    O sertanejo em seu mito da morte se deixa dominar pelo Homo demens, e a morte

    no morre, cria imagens vivas, ldicas, coloridas, imaginrias. Como as imagens criadas

    por Michel Serres: Voc acredita em Anjos? Anjos de ao levam Anjos de carne

    que lanam Anjos de sinais sobre Anjos de ondas (SERRES, 1995, p. 7-8).

    No serto, esses anjos serrianos podem se transformar em corpos de mulheres,

    metade mulher, metade animal, bela e cruel. Anjos/ona que levam corpos vivo-mortos

    aos campos de energia. O corpo vivo-morto descrito por Serres tambm cria uma

    imagem de vislumbre no momento da morte: A menos que, pelo contrrio, na morte

    natural acontea um vislumbre repentino, um instante de suprema intuio, da beleza

    sobrenatural do outro mundo, prometido (SERRES, 1995, p.21). Imagens como essas

    nascem e renascem do esprito humano em todos os tempos e em qualquer cultura.

    Serres fecha esse argumento quando diz:

    Amanh os amores viro queles que nunca amaram, amanh os que amaram voltaro a

    amores renascentes, amanh os que sofreram de amor ainda sofrero por ele ou por ela,

    amanh os que acreditaram morrer de amor morrero outra vez de um outro ou do

    mesmo, amanh voc acha que o amor desaparecer? (SERRES, 1955, p. 245)

    Perguntas que a literatura, a cincia, a arte fazem constantemente. Talvez, para

    responder, em parte, escrevemos como ato de no morrer, pintamos, como ato de no

    morrer, compomos, como ato de no morrer. Toda arte no apenas arte. Toda arte traz

    em si o fugaz desejo de no morrer. Toda arte uma tatuagem cognitiva ou no, com

    traos definitivos ou no, com significados ou no, trazendo em si o lacunar, o

    inacabado, a incompletude, o sapiens e demens, o homem, a mulher, o feminino e o

    macho, o poder de gerar vida ou prover morte.

    A Caetana, essa imagem lrica da morte, por outro lado, tambm magia, se tal

    entendida como crena na onipotncia das idias. Uma magia que se apropria de um

    comportamento em que as coisas acontecem tal como so pensadas ou desejadas. Uma

    espcie de poder fascinador. Nesse campo de bipolaridade, o homem sente o seu prprio

    ciclo de vida e morte e, para Morin, ele vai conhecer-se como realidade corporal e

  • 6 Congresso SOPCOM 3547

    mental (objetiva e subjetiva) irredutvel, autnoma e absoluta, por meio do seu duplo.

    (MORIN, 1970, p.94).

    O homem atribui ao seu duplo toda a fora potencial da sua afirmao individual.

    o duplo que detm o poder mgico e que imortal. Assim que o homem se reconhece

    como duplo, logo se conhece obedecendo a um ciclo de nascimento e morte. O duplo,

    segundo Morin,

    [] efetivamente, essa imagem fundamental do homem, anterior a intima conscincia de si prprio, imagem reconhecida no reflexo ou na sombra, projetada no sonho, na

    alucinao,assim como na representao pintada ou esculpida, imagem fetichizada e

    magnificada nas crenas duma outra vida, nos cultos e nas religies. (MORIN, 1997, p.

    44)

    A esttica da morte no serto impregnada de imagens e sonoridades repletas de

    vida. parte natural da natureza, apenas uma transcendncia da vida. Contraria o

    sentido irremedivel de que morte separao. Como o prprio sentido mtico do amor,

    um no existe sem o outro. Excluir essa unio anul-los. A vida a morte, a morte a

    vida.

    Para Norval Baitello, a morte :

    [] como complexo de fim e comeo, portanto, como smbolo e como texto cultural desempenha um papel extremamente importante na conservao dos sistemas sociais e

    culturais, pois ela comprova a sobrevivncia simblica que confere ao sistema a

    credibilidade de que ele no pode prescindir. (BAITELLO, 1999, p. 106)

    As imagens da morte no serto arcaico so lricas, fortes, como a prpria ona

    Caetana. A morte tambm ronda as histrias infantis no serto. Eu mesma cresci ouvindo

    do meu pai histrias de morte. Ele mesmo vinha de uma famlia com disputas de morte.

    No fui criada com histrias de fadas, e sim de morte. Talvez, por isso, at hoje, elas so

    para mim, simultaneamente, comuns, ntimas, estranhas, como o prprio serto, lugar

    onde nunca vivi.

    Entretanto, perceber e pesquisar a esttica do serto embrenhar-se nesses

    mltiplos campos abordados aqui, alm de outros. Gosto tambm de pensar essa esttica

    pelo veio que Aby Warburg (sites/Google) pensou a histria da arte, isto , pelas

  • 6 Congresso SOPCOM 3548

    imagens e suas aproximaes num tempo; ou mtodo que ele chamou de Denkraum, isto

    , espao de reflexo ou de pensamento, numa distncia entre o eu e o mundo. Para ele

    h uma espcie de energia de memria coletiva/cultural expressa pelas imagens (no caso,

    ele estudou as imagens da arte) que anula o abismo entre passado e presente ou o

    pensamento lgico da sucesso do tempo. Como se, para observarmos a histria das

    imagens, precisssemos de um outro tempo; talvez o tempo dos mitos levistraussianos.

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