andré demarchi - armadilhas quimeras e caminhos três abordagens da arte na antropologia...

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 Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 177-199, jul./dez. 2009. ARMAD ILHA S QUIMERAS E CAMIN HOS: TRÊS ABORDAGENS DA ARTE NA ANTROPOLOGIA CONTEMPORÂNEA ANDRÉ DEMARCHI 1 UFRJ RESUMO: Partindo dos conceitos de armadilhas, quimeras e caminhos propostos respectivamente por Alfred Gell, Carlo Severi e Els Lagrou, o presente ensaio bibliográfico apresenta as características, semelhanças e especificidades de três abordagens da arte na antropologia contemporânea. Um dos focos do trabalho recai sobre as rupturas que essas abordagens rea lizam em relação a análise simból ica que por muito tempo dominou os estudos antropológicos sobre arte. Rompendo com o entendimento da arte enquanto linguagem simbólica, os estudos analisados enfatizam, cada um a sua maneira, a ação cognitiva da arte em contextos nativos, privilegiando categorias como agência, eficácia, contra-intuitividade e  presentificaçã o. Na última parte, mostro como essa s categorias são aplicada s à arte ameríndia através do trabalho de Els Lagrou sobre a arte kaxinawa. PALAVRAS-CHAVE : arte; agência; presença; ação cognitiva. ABSTRACT:  Based upon the concepts of traps, chimera and pathway s proposed by Alfred Gell, Carlo Severi and Els Lagrou respectively, this bibliographic essay presents the characteristics, similarities and specificities of three approaches on art in contemporary anthropology. The work focuses on the ruptures created by these approaches, concerning the symbolic analysis that has long dominated the anthropological art studies. Breaking away from the conception of art as a symbolic language, the studies we analyzed emphasized, in different ways, the cognitive action of art in native contexts, privileging categories such as agency, efficacy, counter-intuitiveness, and presentification. In the conclusion, we demonstrate how these categories are applied to Amerindian Art through the work of Els Lagrou on Cashinahua  Art. KEYWORDS: art; agen cy; prese nce ; cogn itiv e a ctio n. Introdução ou a calmaria  1 Doutorando em Antropologia pelo PPGSA/IFCS/UFRJ. Suas áreas de inter esse são etnologia ameríndia, arte e antropologia urbana. Atualmente realiza pesquisa sobre a arte dos grupos indígenas Mebêngôkre (Kayap ó). E-mai l: andredemarc hi@gmail.com .

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  • Espao Amerndio, Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 177-199, jul./dez. 2009.

    ARMADILHAS, QUIMERAS E CAMINHOS: TRS ABORDAGENS DA ARTE NA ANTROPOLOGIA CONTEMPORNEA

    ANDR DEMARCHI1

    UFRJ

    RESUMO: Partindo dos conceitos de armadilhas, quimeras e caminhos propostos respectivamente por Alfred Gell, Carlo Severi e Els Lagrou, o presente ensaio bibliogrfico apresenta as caractersticas, semelhanas e especificidades de trs abordagens da arte na antropologia contempornea. Um dos focos do trabalho recai sobre as rupturas que essas abordagens realizam em relao a anlise simblica que por muito tempo dominou os estudos antropolgicos sobre arte. Rompendo com o entendimento da arte enquanto linguagem simblica, os estudos analisados enfatizam, cada um a sua maneira, a ao cognitiva da arte em contextos nativos, privilegiando categorias como agncia, eficcia, contra-intuitividade e presentificao. Na ltima parte, mostro como essas categorias so aplicadas arte amerndia atravs do trabalho de Els Lagrou sobre a arte kaxinawa.

    PALAVRAS-CHAVE: arte; agncia; presena; ao cognitiva.

    ABSTRACT: Based upon the concepts of traps, chimera and pathways proposed by Alfred Gell, Carlo Severi and Els Lagrou respectively, this bibliographic essay presents the characteristics, similarities and specificities of three approaches on art in contemporary anthropology. The work focuses on the ruptures created by these approaches, concerning the symbolic analysis that has long dominated the anthropological art studies. Breaking away from the conception of art as a symbolic language, the studies we analyzed emphasized, in different ways, the cognitive action of art in native contexts, privileging categories such as agency, efficacy, counter-intuitiveness, and presentification. In the conclusion, we demonstrate how these categories are applied to Amerindian Art through the work of Els Lagrou on Cashinahua Art.

    KEYWORDS: art; agency; presence; cognitive action.

    Introduo ou a calmaria

    1 Doutorando em Antropologia pelo PPGSA/IFCS/UFRJ. Suas reas de interesse so etnologia amerndia, arte e antropologia urbana. Atualmente realiza pesquisa sobre a arte dos grupos indgenas Mebngkre (Kayap). E-mail: [email protected] .

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    O presente trabalho tem um sabor especial para o autor que agora o escreve, pois se trata do primeiro texto escrito por ele sobre o tema geral da etnologia dos povos das terras baixas da Amrica do Sul e, em especfico, das artes destes povos. Tal sabor transformou-se em alguns momentos num temor provocado pela insegurana tpica do marinheiro de primeira viagem ao se deparar com os mares nunca antes navegados, a no ser por uma curiosidade fugidia e despretensiosa que o acompanhava ao estudar antropologia urbana, tanto na graduao como no mestrado. Ao fim e ao cabo, sente-se agora, no incio do doutorado, capaz de dizer que, embora esteja embarcando numa primeira viagem, cr estar enfim no barco certo.

    Pois bem, o tema escolhido para essa primeira estadia no mar da etnologia, vem a ser justamente um tema que algumas dcadas atrs passava por um daqueles momentos de marasmo muito comum no conhecimento cientfico quando certo modelo terico predomina por tempo demais sobre dados distintos, ou quando certo campo do conhecimento ainda est por demais contaminado dos valores de um outro. O fato que a j se prenunciava uma grande tempestade que desestabilizaria certas bases tericas e metodolgicas e daria outro rumo correnteza.

    A chamada antropologia da arte padecia, por volta da dcada de 80, do sculo passado, deste estado de marasmo terico. Tal calmaria era provocada por duas razes principais: 1) O fato das artes ou produes materiais nativas ainda permanecerem vinculadas ao domnio de competncia de uma outra disciplina, a esttica2, cujos critrios de anlise eram ou deveriam ser opostos aos da antropologia3 (LAGROU, 2007); 2) O fato de que, naquela altura, grande parte da produo antropolgica sobre arte, baseava-se em interpretaes, no sentido estrito do termo, pois a arte era entendida como um sistema simblico ou lingstico, que caberia ao antroplogo desvendar, interpretando os

    2 Para um debate sobre a validade transcultural do conceito de esttica, ver Overing (1996).3 Alm disso, segundo Lagrou, uma abordagem da chamada cultura material, considerada como excessivamente classificatria, tcnica e formal, tinha desviado, por muito tempo, a ateno da antropologia social para os sistemas de pensamento e organizao social negligenciando o fato de sistemas de pensamento poderem ser sintetizados e expressos, de maneira exemplar, nos objetos (LAGROU, 2007, p. 37).

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    signos, segundo o contexto especfico de cada sociedade (VIDAL e SILVA, 1992).

    Vidal e Silva (1992), em seu balano terico e metodolgico da antropologia esttica, mostram como essa abordagem lingstica ou simblica da arte parece se confundir com a prpria especificidade da antropologia ao lidar com a arte de outros povos:

    Os antroplogos possuem uma maneira especfica de abordar as manifestaes artsticas e estticas. Desde os trabalhos de Boas, Mauss, Levi-Strauss e, mais recentemente, Victor Tuner e Geertz, sabemos que, se queremos entender o simbolismo da arte, precisamos entender a sociedade. Segundo esses autores, nas sociedades pr-industriais, a ambio da arte significar e no apenas representar. Por isso a arte envolve todo um sistema de signos compartilhados pelo grupo e que possibilita a comunicao (VIDAL e SILVA, 1992, p. 281).

    Toda uma tradio antropolgica se funda ento na abordagem da arte como um sistema simblico, uma linguagem visual, que deve ser apreendida atravs do entendimento da sociedade. Os signos s seriam compreensveis a partir do entendimento da prpria sociedade, por que a representam ou significam-na. Institui-se uma idia que est presente, de modo geral, nas abordagens provenientes deste modelo: a relao primordial entre a arte e seu contexto especfico de produo: a correlao direta ou indireta existente entre um grafismo ou uma imagem, por exemplo, e a representao ou significao da ordem scio-cultural de que faz parte4.

    De todo modo e salvando as devidas propores da profundidade ou no das abordagens da arte como sistema simblico ou lingstico, o que parece ter provocado todo o marasmo terico mencionado acima foi a paradoxal dificuldade enfrentada por esta antropologia em elaborar uma teoria propriamente antropolgica para a abordagem da arte. A calmaria se dava ento por uma srie de apropriaes de conceitos de outras disciplinas, sobretudo, quelas relativas ao estudo da linguagem

    4 Esta idia aparece claramente tanto na abordagem sistmica e cultural apresentada por Geertz (1983), onde ele afirma que de nada vale falar sobre arte se ela no est relacionada ao saber local, quanto na abordagem estruturalista de Levi-Strauss (1973) na qual a arte Kadivu s pode ser entendida atravs de seu sentido e sua funo.

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    e do signo, como a lingstica e a semitica. Berta Ribeiro, na introduo publicao da Suma Etnolgica Brasileira (1986), expe claramente esta questo:

    Preliminarmente torna-se necessrio elucidar os conceitos utilizados nos estudos modernos de arte primitiva. Eles so encontrados geralmente nos dicionrios de lingstica e, mais freqentemente, nas obras especializadas dessa disciplina e da semiologia. Tais so, entre outros: Fonema, morfema, significante, significado, cone, ndice, smbolo, sinal, metfora, metonmia, gramtica, semntica, linguagem simblica, comunicao visual (RIBEIRO, 1986, p. 16).

    O que parece ter causado toda a calmaria a que me refiro parece ter sido mais a forma como tais conceitos foram utilizados ou a que perguntas eles se propunham a responder do que a utilizao destes conceitos listados por Berta Ribeiro (1986) na construo de uma teoria antropolgica da arte. Digo isso, porque as teorias que vieram (desculpem-me o clich) como tempestade depois da calmaria fazem claramente uso de conceitos da semitica, mas, no entanto, buscam responder a outras perguntas diferentes daquelas propostas pela antropologia simblica ou lingstica. Estou me referindo aqui aos trabalhos de Alfred Gell (1998 e 2001), Carlos Severi (1993, 2002, 2004 e 2007) e Els Lagrou (1993, 2006, 2007) que, como ser exposto, fazem outras perguntas e respondem a outras questes sobre a arte e a antropologia.

    Alfred Gell (1998 e 2001) diz explicitamente que est interessado em responder questes como: para aonde determinado ndice ou objeto de arte aponta? Que elementos esto envolvidos nesta capacidade do objeto em mediar e produzir relaes sociais? Como a forma do objeto age cognitivamente sobre as pessoas? E porque isso ocorre? J Carlos Severi (1993, 2002, 2004 e 2007), ir se perguntar como e porque certas imagens permanecem como memria de um povo e outras caem no esquecimento? Porque algumas delas so contra-intuitivas e outras no? Enfim, Lagrou (1993, 2006, 2007) se questionar a respeito da relao entre desenho e superfcie: Quais os efeitos causados pelo desenho quando aplicados superfcie imperfeita dos corpos? O que

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    eles causam nos corpos? Quais formas fixam, como fixam e porque fixam? E quais formas fluem, como fluem e porque fluem?

    Neste sentido, se para a antropologia simblica a arte no s representa, mas significa, para quelas abordagens que proponho apresentar neste trabalho, a arte e suas imagens presentificam, ou seja, no representam uma realidade, uma natureza ou determinado aspecto da sociedade5. Assim, tanto para Gell, quanto para Severi e tambm para Lagrou, o que interessar no estudo da arte a sua capacidade deao cognitiva pela condensao de relaes, intencionalidades e identidades complexas, contraditrias e paradoxais.

    Esta caracterstica peculiar destas novas abordagens da arte o primeiro passo na direo dos conceitos de Quimera, Armadilha e Caminho, expressos respectivamente por Severi, Gell e Lagrou. A conseqncia fundamental presente na elaborao destes conceitos o deslocamento de uma anlise voltada para o smbolo (e conseqentemente para o significado), para aquela centrada no carter icnico das imagens, no caso de Severi; para o estatuto das obras de arte enquanto ndices, no caso de Gell; e, no caso de Lagrou, para a possibilidade de juno de uma abordagem indexical e icnica.

    Quimeras

    O caminho trilhado por Severi at a noo de imagens quimricasinicia-se nos seus estudos sobre os cantos xamnicos Cuna (1993). Na passagem do seu estudo de gabinete ao trabalho de campo uma questo sobre a eficcia teraputica dos cantos se coloca: os pacientes aos quais so dirigidos no compreendem seu significado. Surge assim um descontentamento evidente sobre as anlises baseadas no aspecto narrativo do discurso simblico, que se abre como uma possibilidade de discernir outras formas de memria social que no aquelas que operam atravs da narrao. Essa necessidade, posta pela prpria pesquisa de campo, ser elaborada teoricamente atravs da juno de uma antropologia da memria com princpios do cognitivismo, que 5 Outras verses da noo de presena no estudo das artes, do xamanismo e do ritual entre os amerndios podem ser encontradas em Viveiros de Castro (2007) e Aristteles Barcelos (2005).

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    proporcionam uma abordagem dos aspectos performativos, ou pragmticos de contextos de comunicao ritual.

    Dessas inquietaes surge certa preocupao no modo como algumas imagens permanecem na memria de um povo e outras caem no esquecimento, ou como certas idias se espalham rapidamente, como o caso, por exemplo, dos contextos de movimentos messinicos. Essas preocupaes estabelecem a possibilidade de re-elaborar o problema da transmisso de representaes sociais em termos de uma antropologia cognitiva fundada nas noes de complexidade, contradio e paradoxo.

    Na concluso de um de seus artigos Severi expe os passos seguidos na direo das imagens quimricas.

    Existem pelo menos dois modos de construir memrias sociais: um opera atravs da narrao (e renovao contnua) de uma srie de histrias; o outro, sempre vinculado elaborao da memria ritual, tende a criar um nmero relativamente estvel de imagens cada vez mais complexas, cada vez mais carregadas de significados e cada vez mais persistentes ao longo do tempo. (...) Antes de mais nada, essas imagens so sempre construdas em um contexto ritual (SEVERI, 2000, p. 148).

    As imagens do branco, certas estatuetas que servem como espritos auxiliares do xam, so complexas porque apresentam significados contraditrios e ambivalentes na cosmologia Cuna. Complexa tambm a prpria identidade do xam, composta pelo que o autor denomina de condensao de conotaes contraditrias acumuladas no contexto dos rituais (SEVERI, 2002). Da surge a idia de que em contextos de comunicao ritual o xam torna-se um enunciador complexo capaz de emprestar sua voz a diferentes seres invisveis, espritos do bem e do mal, seres vegetais e animais. essa complexidade que define o uso ritual da linguagem e, por conseguinte a eficcia do rito de cura, pois os contextos de comunicao ritual no so definidos somente pelo uso de qualquer forma lingstica especifica, mas pela elaborao reflexiva da imagem do enunciador e por seu efeito persuasivo (SEVERI, 2002, p. 39).

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    Em outro artigo, Severi (2004) elabora com mais clareza sua abordagem cognitiva para a complexidade cultural atravs da anlise do peculiar movimento messinico dos ndios Apaches. Neste texto, eleretoma e complexifica o conceito de contra-intuitividade proposto por Sperber e Boyer, segundo a sua abordagem da pragmtica do ritual. Para estes autores a contra-intuitividade o que define o sucesso e a permanncia de uma representao em uma determinada cultura, devido a salincia psicolgica provocada por ela. Nas palavras de Severi:

    Boyer tem argumentado que o optimum cognitivo resulta da combinao de suposies intuitivas e contra-intuitivas que geram um tipo especfico de salincia cultural. Este tipo de salincia supostamente responsvel pela persistncia no tempo e/ou pela rpida propagao em uma comunidade, de uma dada representao (SEVERI, 2004, p. 816).

    Embora chame a ateno para a contribuio das idias de Boyer no campo da antropologia cognitiva, Severi (2004) afirma que as representaes mentais contra-intuitivas so muito frgeis e por issopodem no causar salincia alguma. Neste ponto, o autor retoma a anlise de categorias complexas e contraditrias como alma, sombra e duplo, cujo contedo semntico indefinido e nunca totalmente compreendido. O entendimento meramente semntico destas noes no suficiente para explicar a posio que elas ocupam nas tradies xamnicas dos ndios americanos. Para entend-las, preciso atentar para as condies pragmticas que definem seu uso no contexto ritual. A contra-intuitividade destas noes esto localizadas em seu uso no contexto ritual e no no seu contedo semntico:

    a persistncia no tempo e o sucesso, de noes deste tipo, no so explicadas por seu contedo contra-intuitivo, mas por sua insero em contextos de comunicao ritual precisamente definidos e contra intuitivos. Em muitas situaes importantes, uma representao culturalmente bem sucedida uma representao contra-intuitiva formulada dentro de condies contra-intuitivas de comunicao (SEVERI, 2004, p. 817).

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    E aqui chegamos enfim as imagens quimricas. Toda essa preocupao de Severi com a complexidade e com o paradoxo ir desembocar no estudo de certas imagens que capturam a imaginao, e tal como os xams amerndios, concentram em si uma srie de conotaes contraditrias. A noo de imagens quimricas , na verdade, a traduo da idia da condensao ritual para o entendimento de certas imagens complexas.

    A abordagem de Severi (2007) para as imagens, ir se desenvolver seguindo a tradio Walburgueriana

    de considerar uma pintura ou um objeto esculpido como um mero elemento em uma srie de representaes que devem envolver necessariamente aes rituais, textos, tradies orais ou at simples imagens mentais (SEVERI, 2007, p. 88).

    Da, Severi (2007) conjugar em suas anlises uma abordagem icnica com a exegese nativa, tal como o faz no estudo dos pictogramas amerndios, na interpretao do movimento messinico dos ndios Apaches, ou quando se refere s artes da memria.

    Embora essa preocupao com a imagem e as palavras seja importante para Severi, desejo reter a idia de uma abordagem da imagem que une a iconicidade com a exegese nativa, com o intuito de demarcar a especificidade de sua abordagem da arte. Veremos agora, atravs das armadilhas propostas por Alfred Gell, uma outra leitura das obras de arte, mais ligada ao ndice do que ao cone, mais preocupada com a capacidade de ao dos objetos artsticos numa cadeia de relaes sociais, mas, no entanto, fundada tambm em certos preceitos cognitivos.

    Armadilhas

    O percurso percorrido por Gell at a noo de armadilha como um modo de compreender as obras de arte constitui o incio de um caminho mais longo no sentido de estabelecer uma teoria verdadeiramente antropolgica da arte, fundada no entendimento do objeto de arte (e de sua produo e circulao) enquanto funo de seu contexto relacional,

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    da matriz de relaes sociais na qual est inserido (GELL, 1998). Oimportante para Gell compreender os objetos enquanto ndices numa cadeia de relaes e interaes sociais onde ocupam o lugar de agentesou pacientes dependendo de sua posio nessa cadeia. O conceito de ndice, retirado da semitica peirceana, torna-se importante porque permite a Gell fugir da anlise do significado de uma obra de arte ou do que ela quer comunicar, e se preocupar em compreender para onde determinado objeto aponta, qual a sua capacidade de agir sobre o mundo e transform-lo. Neste ponto, outros conceitos importantes so o de agncia e o de sua abduo. Um ndice, segundo Gell gera necessariamente a abduo de agncia, uma operao cognitiva particular que permite uma inferncia causal de algum tipo a respeito de intenes e capacidades de objetos e pessoas (GELL, 1998, p. 13).

    No entanto, o tipo de ndice valorizado por Gell o que permite a abduo de agncia social, na medida em que so portadores de intencionalidades complexas. O papel do antroplogo nessa nova antropologia da arte seria descobrir para onde essas intencionalidades apontam; como agem sobre sua vizinhana; quais as lgicas de aes, reaes e relaes sociais desencadeadas por, ou localizadas em, um determinado objeto. Aqui podemos retomar a idia da armadilha como obra de arte, ou da obra de arte como armadilha.

    Ela foi proposta por Gell no contexto de um debate a respeito da exposio Art / Artifact (realizada em Nova York no ano de 1988), em que a artista plstica, curadora e antroploga Susan Vogel, exps na entrada da exposio uma rede de caa do povo Zande (frica), provocando a reao do pblico que no sabia ao certo se se tratava de uma instalao ou de um mero artefato. Gell aproveita-se da discusso em torno desse fato e polemiza com o filsofo da arte Arthur Danto, defensor da idia de que a rede Zande no uma obra de arte devido ao seu carter utilitrio, ou seja, ela no uma obra de arte porque no permite uma interpretao historicamente fundamentada que, para o filsofo, diferenciaria a obra de arte do artefato. Gell (2001) contra-argumenta no sentido de aproximar instrumentalidade e arte, definindo a armadilha pela sua capacidade de condensar idias, significados e conceitos tal como as obras de arte conceitual:

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    Esses dispositivos incorporam idias, veiculam significados, porque uma armadilha, por sua prpria natureza, uma representao transformada de seu fabricante, o caador, da presa animal, sua vtima e de sua relao mtua que, nos povos caadores, fundamentalmente social e complexa. Isso significaque essas armadilhas comunicam a noo de um nexo de intencionalidades entre os caadores e as presas animais, mediante formas e mecanismos materiais. Creio que essa evocao de intencionalidades complexas o que serve para definir as obras de arte, e que, adequadamente emolduradas, as armadilhas para animais poderiam evocar intuies complexas a respeito do ser, da alteridade, do relacionamento (GELL, 2001, p. 184-5; grifo meu).

    Gell questiona com esse argumento toda uma viso moderna, ou modernista, baseada em princpios estticos enraizados na concepo de arte ocidental (e tambm na antropologia da arte), que, segundo ele, j foram questionados pela prpria arte contempornea. Uma nova antropologia da arte deveria ser construda contra os princpios estticos enraizados na arte moderna ocidental, se aproximando assim da arte contempornea que no se define mais pela lgica do belo, e sim pela lgica do trocadilho ou da armadilha conceitual, pelo complexo entrelaamento de intencionalidades sociais (LAGROU, 2006, p. 05).

    Para os objetivos deste trabalho preciso reter a idia da evocao de intencionalidades complexas propiciada pelas armadilhas como o ingrediente central de sua agncia; que est prximo o bastante para no ser percebido da noo de condensao ritual (ou condensao de conotaes contraditrias, por isso complexas) expressas por Severi e depois reelaboradas para o estudo das imagens quimricas. Aqui, nota-se uma primeira aproximao entre as duas abordagens e ela parece ser proveniente de duas outras idias centrais para os autores que so a presentificao (ou o carter no representativo das imagens e obras de arte e sua ao cognitiva). Esses trs elementos tornam-se os pressupostos fundamentais destas duas formas de abordar a imagem, no caso de Severi, e os objetos no caso de Gell.

    Para ambos, a presena fundamental para que ocorra a salincia cognitiva. Na abordagem de Severi, o contexto de comunicao ritual e as imagens geradas nele no representam certo aspecto da sociedade: o

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    que importa em sua anlise a pragmtica, o conjunto de aes que permite a uma imagem ser contra-intuitiva. Severi localiza na pragmtica ritual a explicao de como ocorre cognitivamente esse processo de presentificao. Ele acontece porque as imagens, textos, cantos, enfim todo o conjunto de intencionalidades e ordens que compe um ritual alm de estarem prenhes de conotaes paradoxais e complexas, so formulados em contextos contra-intuitivos de comunicao e por isso, tornam-se eficazes cognitivamente.

    Para Gell, a presentificao concentra-se no prprio estatuto de pessoa concedido a objetos e obras de arte. Se os objetos so tambm pessoas, ento eles agem e no representam. Ou no caso da armadilha,

    uma armadilha feita especialmente para capturarenguias, por exemplo, poderia muito melhor representar o ancestral, dono das enguias, do que sua mscara, visto que no representa somente sua imagem, apesar da forma da armadilha ter a forma de uma enguia, mas presentifica, antes de mais nada, a ao do ancestral; sua eficcia tanto instrumental quanto sobrenatural e a relao complexa entre intencionalidades diversas postas em relao como aquelas da enguia, do pescador e do ancestral (LAGROU, 2007, p. 44).

    Embora fique evidente o efeito cognitivo que as armadilhas proporcionam presa ou ao espectador, parece haver aqui um ponto essencial que diferencia a abordagem de Gell e a de Severi. Lagrou (2007) afirma que a anlise de Severi estaria voltada para a compreenso do

    poder das imagens de afetar as pessoas emocionalmente. A teoria de Gell sobre agncia, por outro lado, no exclui absolutamente a emoo como um dos efeitos possveis da agncia dos ndices de arte, mas ele est mais interessado em entender cognitivamente o poder da forma e dos objetos de agirem em relaes sociais do que em explorar a imaginao humana (LAGROU, 2007, p. 58; grifo da autora).

    Nota-se ento que, embora as duas abordagens contenham princpios cognitivos, elas apontam para caminhos diferentes. A

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    preocupao que move Severi na direo de uma antropologia cognitiva a compreenso de formas distintas de memria social ou como colocado acima, o porqu de certas imagens tornarem-se parte da memria de um povo e outras no. Uma preocupao muito mais voltada para o entendimento das artes da memria, atravs da articulao de imagens e narrativas num contexto de comunicao ritual, do que para a compreenso cognitiva do poder da forma dos objetos, ou mesmo para a compreenso do poder das imagens em afetar emocionalmente as pessoas.

    Para Gell (1998), diferentemente, os princpios cognitivos parecem se colocar como condio do funcionamento de seu sistema de ao:

    For the anthropologist, the problem of agency is not a matter of prescribing the most rational or defensible notion of agency, in that the anthropologists task is to describe forms of thougt which could not stand up to much philosophical scrutiny but which are none the less, socially and cognitively praticable (GELL, 1998, p.17).

    Essa preocupao com a descrio de formas de pensamento social e cognitivamente praticveis parece ter sido, para Gell, um aspecto importante de um ambicioso projeto de entendimento antropolgico da mente humana.

    Ele se unia na London School of Economics a Maurice Bloch na ambio de transformar a antropologia numa cincia cognitiva com capacidade de fazer afirmaes universais sobre o funcionamento da mente humana, nas suas manifestaes externas. E no de se estranhar que entre os autores que mais influenciaram o pensamento de Gell destacam-se Lvi-Strauss e (...) Edmund Leach. Estes autores gostavam, como Gell, de modelos e diagramas e, pelo menos Lvi-Strauss pensava, como Gell, que existia uma isomorfia entre a estrutura do mundo cognitivo, mental e sua objetificao no mundo. Ou seja, era possvel estudar a mente humana atravs de suas manifestaes sociais, culturais, materiais (LAGROU, 2006, p. 02).

    Deve-se considerar que a nfase na forma e em sua capacidade de ao cognitiva est ligada a importncia atribuda ao ndice na trilogia peirceana do signo. Abandonando o cone e o smbolo, e

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    concedendo total importncia ao ndice enquanto elemento de agncia, Gell queria impor uma viso formal dos grafismos ou da arte, que embora fosse entendida dentro de seu contexto de relao, possuacerta independncia do seu significado, j que sua ao ocorreria atravs da abduo de agncia. Este conceito, tambm retirado da semitica torna-se importante por designar uma classe de inferncias semiticas que so por definio, totalmente distintas das inferncias semiticas que usamos no entendimento da linguagem (GELL, 1998, p. 14). A abduo de agncia livraria Gell do significado, da interpretao e da representao. Mas sua lgica no invocaria tambm certos sentidos inferidos pelo receptor?

    Tratarei desta questo adiante. Neste ponto preciso reter a idia de que a abordagem de Gell, centrada na capacidade agentiva da obra de arte, em sua capacidade de capturar o receptor por meio de processos cognitivos, trouxe grande tempestade para os mares calmos da antropologia da arte provocando apropriaes e criticas de suas idias no entendimento das artes dos amerndios6.

    A prxima seo demarca um esforo no sentido de compreender uma dessas apropriaes atravs do trabalho de Els Lagrou (2007), sobre a arte Kaxinawa. Vejamos ento, entre quimeras e armadilhas, quais os caminhos propostos pela autora.

    Caminhos

    As anlises de Lagrou (2007) sobre a arte Kaxinawa tm como um dos temas centrais o poder das imagens (grficas, poticas, materiais,corporais) em criar e destruir formas. Neste sentido, assume grande importncia o desenho como possibilidade de fixao de formas em superfcies imperfeitas, dentre as quais se destaca o corpo humano, pois na luta pelo controle da forma que se baseia a scio-cosmo-poltica Kaxinawa (LAGROU, 2007, p. 28). O trabalho de Lagrou tem como pressuposto a idia j difundida de que para os amerndios, o corpo uma matriz de smbolos e um objeto de pensamento (SEEGER, Damatta e VIVEIROS DE CASTRO, 1979). 6 O trabalho de Barcelos (2005) um bom exemplo das apropriaes das idias de Gell.

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    Dito isso, posso iniciar a argumentao expondo os pontos centrais de uma das anlises pioneiras a respeito dos grafismos amerndios: o estudo de Peter Gow (1989) sobre os desenhosabstratos Piro, que serviu como ponto de partida de Lagrou, em sua insero no debate sobre a arte. Neste trabalho, Gow faz a afirmao, bombstica para a poca, de que os Piro esto interessados nos desenhos por eles mesmos e no no que eles poderiam significar. Aimportncia do desenho estaria relacionada transformao operada por sua aplicao em determinada superfcie de coisas ou corpos (GOW, 1989, p. 25). Interessado pela relao entre desenho e corpo humano, por um lado, e desenho e imagem, por outro, Gow chama a ateno para a funo mediadora do desenho entre os mundos dos corpos e das imagens, do visvel e do invisvel.

    A agncia do desenho seria dada pelo modo satisfatrio ou no que suas formas so aplicadas aos corpos. Essa abordagem intra-esttica, em que os desenhos so importantes por eles mesmos, ser questionada por Lagrou. Segundo ela, no intuito de escapar a abordagem semntica, Gow acaba por levar sua crtica longe demaisenfatizando a independncia da forma com relao ao contedo extravisual dos desenhos e concedendo importncia demasiada tcnica. Lagrou enfatiza que preciso no abandonar totalmente a abordagem semntica, pois ela no meramente contextual, nem pode ser reduzida ao modelo lingstico, mas tambm no meramente intra-esttica (LAGROU, 1993, p. 08)7.

    Fugindo destas e de outras armadilhas, Lagrou (2007) encontrou na teoria da agncia de Gell a traduo de algumas das questes centrais postas pelos dados etnogrficos reunidos junto aos Kaxinawa. No entanto, j era possvel ver os caminhos da agncia, por um lado, e de sua abordagem conciliadora de ndice e cone8, forma e exegese, por outro, na sua resenha crtica do trabalho de Gow.

    7 Para uma reconsiderao destas questes e uma nova leitura dos desenhos Piro, ver Gow (1999).8 Essa importncia dada tanto ao ndice quanto ao cone ser desenvolvida por Lagrou quando aborda a especificidade da relao do dami, categoria que para os Kaxinawa est relacionada figura, com seu yuxin, traduzido como imagem: a relao de dami (em seus diferentes usos, desde o fazer de conta ao tornar-se como) com seu yuxin (a forma perfeita e terminada a que refere) simultaneamente indexical e icnica. A relao indexical porque dami fisicamente (ou metonimicamente) ligado ao seu objeto (como pegadas na areia), e icnica porque a relao de dami com seu yuxin no somente baseada na contigidade e na metonmia, mas tambm numa similaridade formal (LAGROU, 2007, p. 131-132).

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    A crtica inicial realizada por Lagrou sobre a teoria antropolgica da arte proposta por Gell, j foi esboada acima, tanto nas consideraes feitas ao excesso de formalismo da anlise de Gow, quanto na questo sobre os sentidos inferidos ou no pelo receptor no processo de abduo de agncia. A questo aqui para Lagrou (2007) que ela divide a obra de Gell em duas partes. Na primeira, quase que totalmente absorvida pela autora em seu prprio trabalho, o objeto de arte aparece como um ndice de agncia situado numa rede de relaes causais onde se encontram

    tipos muito diferentes de sujeitos, todos ligados, uns aos outros, numa relao unidirecional de causa e efeito, isto , de agentes cujas aes produzem pacientes que, por sua vez, podem se tornar agentes, quando reagem ao que sofreram (LAGROU, 2007, p. 55).

    Na segunda, e a se insere a crtica de Lagrou, Gell se preocupa com o estilo, com as relaes formais entre as formas, pois parte do princpio de que um ndice parte de um conjunto de objetos ou formas relacionados e que, por isso, seria possvel traar as correlaes formais entre as formas. Tais correlaes so realizadas do exterior e no do interior:

    as conexes entre padres de desenhos e sua lgica gerativa com a lifeword (o mundo vivido) da sociedade que as produz no foram encontradas atravs de uma conversa com as pessoas para as quais significam, mas atravs de correspondncias formais entre as estruturas sociais da sociedade e as estruturas formais guiando a produo dos desenhos. Desta forma, Gell, um dos mais virulentos crticos da tradicional antropologia da arte, faz concesses forma estudada por conta prpria, isto , anlise formal, (...) mas no ao contedo (LAGROU, 2007, p. 56).

    A questo que parece girar em torno deste debate aquela relativa s limitaes de uma anlise puramente formal, de um lado, e as limitaes de uma anlise puramente semntica, do outro. A crtica de Lagrou, tanto a Gell, quanto a Gow, refere-se ao fato destes autores se preocuparem em demasia com a forma dos grafismos, deixando de lado, ou dando menos importncia ao discurso nativo sobre eles.

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    Contudo, a prpria autora afirma que (e assim respondemos a questo das inferncias do receptor no processo de abduo de agncia) Gell s foi capaz de tornar seus ndices de arte em agentes, porque admitiu algum tipo de sentido e contexto de interpretao que possibilitaram seus artefatos ou imagens de agir (LAGROU, 2007, p. 56).

    Assim temos, por um lado a viso de que Gell no cumpriu at as ltimas conseqncias o seu programa de total abandono do significado de seu modelo terico; e por outro, a idia de que isso era impossvel porque o modelo de Gell pressupe, no carter abdutivo da agncia, um sentido que propiciaria certas inferncias interpretativas do receptor. Ao invs de excluir o smbolo e o cone de sua abordagem, o que Gell fezfoi mostrar

    que na relao pragmtica e interacionista do seu modelo, no preciso distinguir ndice de cone. Pois todo cone j na verdade um ndice: pois a imagem age sobre a pessoa, partilha nas qualidades daquilo que imagem (LAGROU, 2006, p. 14-15).

    Ou ento, que o smbolo, por sua vez tambm englobado pelo ndice: tendo em vista que a abduo de agncia qual o ndice induz, supe operaes cognitivas (LAGROU, 2006, p. 14-15).

    Ao invs de excluir os outros dois elementos da trade do signo proposta por Peirce, Gell parece hierarquiz-los transformando tanto o smbolo (ou a interpretao), quanto o cone (ou a semelhana) em pressupostos para a abduo de agncia causada pelo ndice. Neste sentido, conclui Lagrou,

    o fato de o autor recusar de maneira to forte a abordagem simblica, lingstica ou semitica no significa que ele consiga e queira operar fora destes esquemas de pensamento e sem seus instrumentos; o que ele quer fazer colocar outras nfases (LAGROU, 2006, p. 14-15).

    Neste ponto reencontramos o fio que ir tecer a prpria abordagem de Lagrou sobre a eficcia dos grafismos Kaxinawa quando aplicados superfcie imperfeita dos corpos. A autora prope um mtodo de anlise para os grafismos em que forma e exegese so complementares:

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    Quando uma leitura iconogrfica de unidades isoladas [dos grafismos] parece confusa e contraditria, necessrio introduzir uma leitura mais gestaltica ou estrutural dos padres como um todo, o que proporciona, no caso Kaxinawa, uma melhor compreenso dos seus usos e significados. Analogias entre esse cdigo visual e outros cdigos verbais e no verbais, que juntos formam o pano de fundo para a significao cognitiva e emocional do estilo artstico e, conseqentemente do seu poder agentivo, so essenciais (LAGROU, 2007, p. 150).

    Mas quando aborda a especificidade do kene, desenho grfico estilizado presente em todos os produtos e artefatos kaxinawa, que a autora apresenta, atravs de algumas idias de Bateson, sua concepo de como a arte comunica ou age cognitivamente ou de como o desenho pode funcionar como um caminho de acesso simultneo e sinttico para os diversos nveis da vida Kaxinawa. Em comparao com os outros dois elementos (yuxin e dami) da trilogia da percepo Kaxinawa, kene se destaca por ser essencialmente um padro ou padres grficos, enquanto yuxin e dami esto relacionados imagem e a figura(LAGROU, 2007).

    O caminho percorrido por Lagrou para chegar a uma concepo mais geral sobre o que e como a arte comunica, inicia-se com a busca pela explicao da nica informao explcita obtida com uma de suas informantes sobre o significado prprio do desenho. Dona Mariana, uma velha ndia, disse antroploga que o desenho era a linguagem dos yuxin (LAGROU, 2007, p. 119). Esta relao entre grafismo, escrita e linguagem, conduz a reflexo de Lagrou no sentido de compreender a arte como uma forma de comunicao no verbal, marcada, como afirma Bateson, por uma relao de alteridade, que se encaixa muito bem prpria noo Kaxinawa do desenho como caminho para o estar relacionado.

    (...) O desenho alude a relaes, ligando mundos diferentes, e aponta para a interdependncia de diferentes tipos de pessoas. Nesta sua qualidade de veculo apontando para o estar relacionado reside sua capacidade de agir sobre o mundo: sobre os corpos onde o desenho adere como uma segunda pele e sobre as mentes dos que viajam a mundos imaginrios em

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    sonhos e vises, onde a visualizao do desenho funciona como mapa (LAGROU, 2007, p. 66).

    Como abordar ento um desenho prximo linguagem, mas com tamanha capacidade de agncia, com essa capacidade de fazer relacionar pessoas, dimenses e seres da cosmologia Kaxinawa, sem cair nas armadilhas da abordagem lingstica e simblica? Lagrou escapa a essa leitura recorrendo s idias seminais de Bateson (1977), sobre estilo, graa e informao na arte primitiva. Bateson foge ao modelo lingstico porque, para ele, a principal modalidade de comunicao no a verbal, mas aquela propiciada pelo corpo, pela expresso e pelo gesto. Nesta rede imbricada de relaes importam como elementos de significao no apenas

    o componente narrativo (o nome ou o referente) (...), mas tambm (e de maneira mais importante) o estilo, o cdigo icnico que transformou o referente em novo artefato, e o meio ou material usado, a composio, o ritmo, e a habilidade demonstrada na performance ou na realizao do produto (LAGROU, 2007, p. 123).

    Ao analisar uma pintura balinesa, Bateson (1977) demonstra sua capacidade de concentrar noes contrastantes e sintticas e comunic-las ao receptor:

    Em ltima anlise, este quadro pode ser lido como uma afirmao de que seria um grande erro achar que preciso escolher entre turbulncia e serenidade enquanto projeto humano. A concepo e execuo do quadro fornecem a experincia que expe este erro. A unidade e a integrao do quadro afirmam que nenhum destes dois plos contrastantes pode ser escolhido ao custo da excluso do outro, porque so mutuamente dependentes. Esta verdade profunda e geral dita ao mesmo tempo com relao sexualidade, organizao e morte (BATESON, 1977, p. 194).

    essa idia central de sntese simultnea de um conjunto de elementos comunicados que vai interessar Lagrou (2007) em sua abordagem do desenho Kaxinawa como um caminho em constante transformao. O desenho a escrita dos yuxins, porque atravs dele

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    ocorre uma comunicao sinttica que se refere a todos os nveis sociais e cosmolgicos simultaneamente.

    A expresso esttica Kaxinawa no fala especificamente ou exclusivamente sobre as relaes sociais (...) ou sobre a complementaridade constitutiva das metades e do gnero. (...) A esttica Kaxinawa tambm no uma referncia exclusiva interdependncia dos lados visveis e invisveis do mundo ou unio sexual. (...) A expresso esttica , entretanto, uma comunicao sinttica que se refere a todos estes nveis simultaneamente (LAGROU, 2007, p. 127).

    Seguindo este modelo poderamos dizer que, em termos gerais, a arte, Kaxinawa ou Balinesa, comunica porque, indo alm da mera representao de um conhecimento sobre o mundo, consegue expressar, atravs de um cdigo visual, a simultaneidade e as interconexes de diferentes nveis existenciais ou sociais, capacidade esta impossvel de ser realizada pelo cdigo verbal, pela simples razo de ser impossvel verbalizar tudo de uma s vez (LAGROU, 2007, p. 126).

    Notamos, assim, que tambm para Lagrou, atravs de Bateson, a arte comunica porque expressa de modo sinttico uma simultaneidade de elementos impossveis de serem expressos por palavras. Encontramos aqui uma vez mais a capacidade da arte de concentrar plos contrastantes, de interligar nveis simultneos, e porque no, como afirmariam Severi e Gell, de condensar conotaes contraditrias e de entrelaar intencionalidades complexas.

    Unindo em sua anlise uma abordagem icnica e indexical do grafismo e compreendendo a agncia do desenho segundo uma concepo da comunicao esttica como sinttica e simultnea, Lagrou parece fornecer uma outra leitura, diferente das de Severi e Gell e singular por utilizar elementos presentes nas abordagens dos dois autores. No entanto, como marca comum s trs abordagens fica clara a preocupao de compreender a obra de arte (os desenhos, objetos e imagens) como um referente complexo, que sintetiza, entrelaa e condensa elementos paradoxais e contraditrios e, por isso, age cognitivamente. Nas trs abordagens a eficcia da arte eminentemente

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    cognitiva. A arte ou as imagens, nem apenas representam nem somente significam, mas pelo contrrio presentificam.

    Concluso

    As abordagens antropolgicas da arte discutidas neste trabalho tm em comum o fato de estarem fundadas, todas elas, em pressupostos cognitivos. Fugindo das abordagens simblicas e representacionalistas os autores aqui apresentados centram suas anlises na idia de que a arte ou certas imagens so eficazes por fazer presente um conjunto de relaes sociais, por condens-las e sintetiz-las, tornando assim salientes cognitivamente. Neste sentido, estas anlises parecem se iniciar no justo ponto onde se esgota a antropologia simblica. Um dos cnones desta antropologia afirmava em fins dos anos 1960:

    Quando passamos a considerar os elementos normativos da vida social e o indivduo, nossa anlise tem, necessariamente, de ficar incompleta. Pois essa relao faz parte tambm dos significados dos smbolos rituais. Com ela, no entanto, chegamos aos confins de nossa atual competncia antropolgica, pois, a, estamos lidando com as estruturas e as propriedades das psiques, um campo especfico tradicionalmente estudado por disciplinas distintas da nossa. Em uma das extremidades do espectro de significados do smbolo, vamos encontrar o psiclogo individual e o psiclogo social, e at mesmo, para alm deles (se me permitem o chiste amistoso dirigido a um amigo invejado), brandindo a cabea de sua Medusa, o psicanalista, pronto para transformar em pedra o temerrio intruso das cavernas de sua terminologia. Trmulos e agradecidos regressamos luz do dia social. Aqui os elementos significativos do sentido de um smbolo so relacionados com o que ele faz e com o que se faz com ele, por intermdio de quem e para qu (TURNER, 2005, p. 80).

    As antropologias da arte apresentadas aqui parecem se dispor a ir alm dos confins da competncia da antropologia simblica, no evidentemente atravs da busca por esse significado oculto acessvel

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    apenas pelos psiclogos, individuais e sociais, e pelos psicanalistas, mas atravs de um outro caminho. Aquele que aponta para os aspectos cognitivos presentes nas relaes complexas impostas pela arte. Regressam, neste sentido, a luz do dia social no para se restringirem ao que determinado objeto ou imagem representam ou significam, mas para compreenderem como eles agem nestes confins at h pouco tempo atrs no acessveis para os antroplogos.

    Assim, a preocupao com os elementos que produzem salincia cognitiva, com os contextos e imagens contra-intuitivas, com as armadilhas, as quimeras e os caminhos, conduz a antropologia, atravs da anlise da arte, a um outro lado em que eficcia e presena, so mais importantes do que significao e representao. E isto ocorre seja pelo caminho da anlise indexical, seja pela conjugao de uma anlise icnica com a exegese nativa, seja pela juno destas duas abordagens especficas.

    Os caminhos que se abrem aps a tempestade que remexeu os mares da antropologia da arte, parecem apontar agora para outra calmaria. Nesta passagem do mar revolto para a mar baixa fica uma questo mais que atual: possvel uma abordagem contempornea e antropolgica da arte que no esteja baseada em princpios cognitivos universais?

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