analise o homem e sua hora

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O homem e sua hora, de Mário Faustino Prof. Carlos Evandro M. Eulálio NOTA PRÉVIA. Este texto é um roteiro de leitura da obra “O Homem e sua Hora,” de Mário Faustino. Com ele desenvolvemos uma palestra no Curso Lettera – Anglo Vestibulares e Colégio Integral, Sistema Anglo de Ensino, no dia 20 de agosto de 2000. Ainda nesse ano, ministramos a mesma aula nos seguintes estabelecimentos de ensino desta capital: Instituto Dom Barreto (onde lecionamos), Colégio Sinopse (sob a coordenação do Prof. Reginaldo Brandão), Educandário Santa Maria Goretti e Colégio Projúris (auditório da OAB de Teresina, em 17-09-2001) Ultimamente, este trabalho, no todo ou em parte, equivocadamente veicula na Internet e em outros meios de comunicação escrita, como sendo de autoria de outro(s) autor(es), quando na verdade o seu conteúdo tem como fonte bibliográfica principal a nossa Seleta comentada, sob o título “Literatura Piauiense em Curso: Mário Faustino”, publicada pela Editora Corisco / APL, em segunda edição no ano de 2000 e mais recentemente neste portal sob o título “O poeta Mário Faustino”. Nesta versão, procedemos pequenas alterações, com a pretensão de atualizá-lo. I – BIOGRAFIA DO POETA Mário Faustino dos Santos e Silva nasceu em Teresina, no dia 22 de outubro de 1930. Deixou o Piauí aos 10 ano de idade, passando a residir em Belém do Pará. Ali, com Benedito Nunes e Haroldo Maranhão fundou a revista literária Encontro (1948). Ainda em Belém, foi chefe de redação do Jornal “A Folha do Norte”. Residindo posteriormente no Rio de Janeiro, a partir de 1956, desenvolve intensa atividade jornalística, como editorialista do Jornal A Tribuna da Imprensa e do Jornal do Brasil. No Suplemento Literário do Jornal do Brasil (SDJB), criou a página Poesia-Experiência, dedicada exclusivamente à Poesia. Para Benedito Nunes, o lema de Poesia-Experiência, “repetir para aprender, criar para renovar traduzia o sadio empirismo que orienta as investigações de longo alcance. Ao propósito teórico da página concernente ao conhecimento do fenômeno poético, estética e historicamente considerado, juntava-se à finalidade de ensinar poesia.” (NUNES, 1966, p. 4) Essa página circulou de 23 de setembro de 1956 a 1º de novembro de 1958 e era dividida em seções, assim denominadas: Poeta Novo (destinada a divulgar poemas de autores jovens) O Melhor em português (dedicada à publicação de clássicos portugueses) É preciso conhecer (divulgava poetas modernos estrangeiros, através de traduções) Clássicos vivos (apresentava textos de poetas antigos de épocas e nacionalidades diversas) Subsídios de crítica , ou Textos Pretextos para discussão (teoria

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O homem e sua hora, de Mrio Faustino Prof. Carlos Evandro M. EullioNOTA PRVIA.Este texto um roteiro de leitura da obra O Homem e sua Hora, de Mrio Faustino. Com ele desenvolvemos uma palestra no Curso Lettera Anglo Vestibulares e Colgio Integral, Sistema Anglo de Ensino, no dia 20 de agosto de 2000. Ainda nesse ano, ministramos a mesma aula nos seguintes estabelecimentos de ensino desta capital: Instituto Dom Barreto (onde lecionamos), Colgio Sinopse (sob a coordenao do Prof. Reginaldo Brando), Educandrio Santa Maria Goretti e Colgio Projris (auditrio da OAB de Teresina, em 17-09-2001) Ultimamente, este trabalho, no todo ou em parte, equivocadamente veicula na Internet e em outros meios de comunicao escrita, como sendo de autoria de outro(s) autor(es), quando na verdade o seu contedo tem como fonte bibliogrfica principal a nossa Seleta comentada, sob o ttulo Literatura Piauiense em Curso: Mrio Faustino, publicada pela Editora Corisco / APL, em segunda edio no ano de 2000 e mais recentemente neste portal sob o ttulo O poetaMrio Faustino. Nesta verso, procedemos pequenas alteraes,com a pretensode atualiz-lo. I BIOGRAFIA DO POETA Mrio Faustino dos Santos e Silva nasceu em Teresina, no dia 22 de outubro de 1930. Deixou o Piau aos 10 ano de idade, passando a residir em Belm do Par. Ali, com Benedito Nunes e Haroldo Maranho fundou a revista literria Encontro (1948). Ainda em Belm, foi chefe de redao do Jornal A Folha do Norte. Residindo posteriormente no Rio de Janeiro, a partir de 1956, desenvolve intensa atividade jornalstica, como editorialista do Jornal A Tribuna da Imprensa e do Jornal do Brasil. No Suplemento Literrio do Jornal do Brasil (SDJB), criou a pgina Poesia-Experincia, dedicada exclusivamente Poesia. Para Benedito Nunes, o lema de Poesia-Experincia, repetir para aprender, criar para renovar traduzia o sadio empirismo que orienta as investigaes de longo alcance. Ao propsito terico da pgina concernente ao conhecimento do fenmeno potico, esttica e historicamente considerado, juntava-se finalidade de ensinar poesia. (NUNES, 1966, p. 4) Essa pgina circulou de 23 de setembro de 1956 a 1 de novembro de 1958 e era dividida em sees, assim denominadas: Poeta Novo (destinada a divulgar poemas de autores jovens) O Melhor em portugus (dedicada publicao de clssicos portugueses) preciso conhecer (divulgava poetas modernos estrangeiros, atravs de tradues) Clssicos vivos (apresentava textos de poetas antigos de pocas e nacionalidades diversas) Subsdios de crtica , ou Textos Pretextos para discusso (teoria potica de poetas crticos, como Eliot, Pound e outros) Pedras de toque (fragmentos selecionados pelo poeta, os quais considerava exemplificadores da linguagem de alto nvel) Dilogos de oficina, Fontes e correntes da poesia contempornea e Evoluo da Poesia Brasileira (as trs sries de artigos ensasticos). (1)II PRODUO LITERRIA DO AUTOR Mrio Faustino foi um polgrafo. Escreveu sobre vrios assuntos. Produziu poesias, contos, crnicas, ensaios de potica, crticas literrias e cinematogrficas, tendo ainda traduzido poetas de vrias nacionalidades: franceses, espanhis, ingleses e norte-americanos. O Homem e sua Hora o nico livro publicado em vida do poeta, pela Editora Livros de Portugal, Rio de Janeiro, 1955. No Balano sobre a pgina que dirigia no Jornal do Brasil, Mrio Faustino referiu-se a O Homem e sua hora como uma espcie de relatrio de meia dzia de anos de aprendizado potico (Poesia-Experincia, p. 278).PUBLICAES PSTUMAS:- Poesia de Mrio Faustino (Rio de Janeiro: Editora Civilizao Brasileira, 1966, org. por Benedito Nunes) Constam alm do livro O Homem e sua Hora alguns fragmentos que constituem parte do chamado poema longo, preconizado pelo poeta;- Cinco ensaios sobre poesia de Mrio Faustino (Ensaios sobre potica, org. por Assis Brasil, Rio de Janeiro Edies GRD, 1964);- Poesia-Experincia (Ensaios de potica e estudos sobre poesia. Org. por Benedito Nunes, So Paulo, Editora Perspectiva, coleo Debates, 1977)- Poesia Completa Poesia Traduzida. So Paulo, Editora Max Limonad, 1985. Nessa edio encontramos um longo poema que o poeta deixou incompleto: A Reconstruo. Esse poema teria 8 poartes. Apenas a primeira foi feita.- Os melhores poemas de Mrio Faustino (Seleo de Benedito Nunes, publicada pela Global Editora, So Paulo, 1985);- Evoluo da Poesia Brasileira (Estudo crtico de nossa poesia colonial, de Anchieta a Santa Rita Duro obra incompleta, com apresentao de Benedito Nunes, publicada pela Fundao Casa de Jorge Amado, Salvador - BA, 1993);- O Homem e sua Hora e outros poemas, Mrio Faustino.(Pesquisa e organizao de Maria Eugnia Boaventura. Edio Companhia das Letras, 2002. Inclui alm dos textos de O Homem e sua hora, poemas esparsos de Faustino, publicados na imprensa, a partir de 1948, e inditos cedidos por Benedito Nunes). Inserem-se nessa obra o ensaio de Maria Eugnia Boaventura, Um militante da poesia e o depoimento crtico-literrio de Benedito Nunes: A poesia de meu amigo Mrio.- De Anchieta aos Concretos, Mrio Faustino (Organizao de Maria Eugnia Boaventura, o livro rene textos sobre a poesia brasileira de quatro sculos So Paulo, Companhia das Letras, 2003);- Artesanatos de Poesia: Fontes e correntes da poesia ocidental (Rene textos de Mrio sobre poetas da modernidade, como Edgar Allan Poe, Baudelaire, Pound e outros; organizao de Maria Eugnia Boaventura, So Paulo, Companhia das Letras, 2004).III ESTILO DE POCA (SITUAO HISTRICO-LITERRIA) No quadro literrio brasileiro, Mrio Faustino pertence ao grupo de poetas que se situam entre a gerao neomodernista de 1945 e as experincias vanguardistas da dcada de 1950. Manuel Bandeira e Walmir Ayala denominam esse momento de Poesia at agora & Vanguardas. Para Assis Brasil, esses poetas, conformados entre a gerao ps-modernista (1945) e as experincias de vanguarda, pagaram um tributo demasiado longo ao que denomina Tradio da imagem. Mesmo durante o perodo de vigncia das vanguardas brasileiras (Concretismo, 1956; Tendncia, 1957; Neoconcretismo, 1959;Prxis, 1962; Violo de Rua, 1962; Poema Processo, 1967 e Tropicalismo, 1968 sendo estes dois ltimos movimentos deflagrados aps a morte de Faustino), os poetas dessa gerao, embora receptivos aos avanos da arte potica, absorvendo tranquilamente os experimentos dessas vanguardas, mantm-se irredutveis quanto ao modo de produo, isto , absolutamente autnomos na resoluo de uma experincia pessoal marcada por um lirismo metafsico e acima de tudo metafrico, dentro de uma evoluo nitidamente linear e inteiramente independentes da gerao de 1945. So poetas desse movimento: Mrio Faustino, Homero Homem, Walmir Ayala, Alberto Costa e Silva, Marly de Oliveira, Affonso vila, Affonso Romano de SantAnna, dentre outros. (BRASIL, 1973, p.25 e BANDEIRA; AYALA, 1996, p.129).IV FASES LITERRIAS DO POETA. Convm mencionar que o estudo das fases literrias de Faustino, embora tenham como ponto de partida o trabalho de Augusto de Campos, Mrio Faustino, o ltimo Verse Maker, de 1978, na Seleta que organizamos e que foi publicada pela Editora Corisco e Academia Piauiense de Letras, (EULALIO, 2000, p. 43), por circunstncias didticas, propomos: 1 FASE: Inicial ou pr-moderna. Anterior ao Concretismo. Poemas publicados entre 1948 e 1955. Augusto de Campos denomina essa fase A daintegrao da tradio no moderno. Nela o autor inclui o livro O Homem e sua Hora e mais 14 outros poemas que constituem a primeira parte dos Esparsos e Inditos (divulgados por Benedito Nunes aps a morte do poeta).CARACTERSTIAS da 1 Fase: Formas poemticas tradicionais: cano, ode, balada, soneto; os poemas em geral so expressos em sonetos; predominam os versos decasslabos, refletindo a preocupao com o metro tradicional; linguagem metafrica, com repeties anafricas, elipses e paronomsias; exerccio reiterado da funo emotiva da linguagem. 2 FASE: Moderna ou experimental. Posterior ao Concretismo. Poemas escritos entre 1956 e 1958. Essa fase consta de apenas oito poemas ou fragmentos (2 parte dos Esparsos e Inditos), sendo o primeiro poema intitulado 22.10.1956 (data de aniversrio do poeta).CARACTERSTICAS da 2 Fase: Formas livres, poesia espacial; objetividade; ruptura com a fase anterior; emprego da fragmentao; associao sem conexes sintticas (livre combinao de vocbulos); preferncia pela coordenao (parataxe); poesia sob a influncia do Concretismo, cujas formas livres substituem o soneto. 3 FASE: Ps-Moderna a da integrao do moderno na tradio conforme Augusto de Campos. Compreende os poemas escritos entre 1959 e 1962. Essa fase podemos tambm denomin-la Fase dos fragmentos.CARACTERSTICAS da 3 Fase: Produo de fragmentos; fase de definio esttica do autor; predominam poemas de circunstncia; fragmentos sem ttulos; presentes ainda temas das fases anteriores: amor, morte, tempo e eternidade; esboo do projeto literrio e existencial do poeta: o poema longo. Os textos refletem uma obra em progresso, qual deveria acompanhar a vida do poeta at a morte, da o sentido do termo poema longo, atribudo pelo autor. Pretendia reunir um bom nmero de fragmentos e public-los de cinco em cinco anos.V ESTILO INDIVIDUAL A linguagem potica de Mrio Faustino altamente elaborada, com senso de disciplina e ritmo preciso. Por essa razo tida por alguns como hermtica. Ao construir poemas, em formas tradicionais, a exemplo dos bons poetas da lngua, entendia a forma como possibilidades de novas estruturas. Da a capacidade que possua de transitar da forma tradicional para variantes poemticas prprias. Exemplo do que afirmamos so suas experincias com o soneto. Manejou o enjambement com muita fluncia. Mrio Faustino foi um poeta cuja experincia criadora alternou-a com a experincia reflexiva de crtico, produzindo por conseguinte inmeros poemas metalingusticos que questionam o fenmeno da criao literria. Tinha predileo pela metfora e por construes anafricas. Valoriza o emprego de substantivos e verbos. Por conteno verbal, restringe o emprego de adjetivos.VI A OBRA O HOMEM E SUA HORA O livro constitui-se de 22 poemas, incluindo o soneto Prefcio que antecede aos demais textos. A obra dividida em trs partes: 1 parte DISJECTA MEMBRA (ttulo inspirado nas palavras de Horcio, clebre poeta latino, que viveu no ano 65 a.C., autor do famoso tratado de poesia Arte Potica. A frase original, retirada da obra Stiras : Disjecti membra poetae: Os membros do poeta esquartejado, completveis assim: no seriam reconhecveis se lhes desfizssemos o ritmo e a disposio da frase. Compe-se de 13 poemas: Mensagem, Braso, Noturno, Viglia, Legenda, Romance, Vida toda linguagem, Estrela Rocha, Alma que foste minha, Solilquio, Mito, Sinto que o ms presente me assassina e Haceldama. 2 parte SETE SONETOS DE AMOR E MORTE (todos em decasslabos e escritos maneira inglesa: os quatorze versos so compactados numa s estrofe): O mundo que venci deu-me um amor, Nam sibyllam (do latim, certo Sibila), Inferno, eterno inverno, quero dar, Agonistes (do grego, lutador, atleta), Onde paira a cano recomeada, Ego de Mona Kateudo (do grego pelo latim: e eu jazo sozinha), Estava l Aquiles que abraava. 3 parte Constituda por um nico texto que a que deu o ttulo obra. Trata-se do poema O homem e sua hora. Contm 235 versos, decasslabos na quase totalidade. a sntese do projeto potico de Mrio Faustino. Determinados trechos so difceis de compreend-los, pois exigem do leitorconhecimentos sobre mitologia, literatura bblica e greco-latina. Trata-se de um longo dilogo do poeta com o mundo, sugerindo mais do que afirmando. A intertextualidade se faz presente atravs de referncias aos livros do Antigo e do Novo Testamento, passando por Homero, Safo, Confcio, Virglio, Homero, Dante, Pound, Mallarm, Eliot, Jorge de Lima etc. Os versos surgem numa cadeia sinttica descontnua e reticente, instaurando no texto o pensamento fragmentrio e analgico, tornando o tom ambguo cada vez mais saliente no poema. tambm propsito do autor enunciar, ao longo do poema, princpios da linguagem potica que devem nortear os seus versos, privilegiando os pressupostos de Ezra Pound: fanopeia (atribuio de imagens imaginao visual), logopeia (a dana do intelecto entre palavras) e melopia (musicalidade).VII PRINCIPAIS TEMAS DO LIVRO O HOMEM E SUA HORA O autor desenvolve os seus temas de modo antagnico. Para Benedito Nunes, Amor e morte, tempo de eternidade, sexo, carne e esprito, vida agnica, salvao e perdio, pureza e impureza, Deus e o homem, passam e repassam, sob diferentes nomes e em diferentes situaes, nos versos do livro O Homem e sua Hora. (NUNES, 1966, p. 5). O tempo: misto de efmero e de eterno, de iluso e realidade. H tambm o tempo que destri e consome nossa existncia, em momentos de solido e angstia. Sua poesia sempre espelha a conscincia de um estado em crise. Seja no mbito literrio (ex.: o soneto Prefcio), seja na esfera pessoal (ex.: o soneto O mundo que venci deu-me um amor). A poesia, o poeta e o poema so temas presentes em todo o livro. Poesia com fins didticos. O poeta ora visto como artista e arteso, ora como cantor inspirado e fecundador. O poema concebido como produto da inspirao e do intelecto.H tambm momentos em que o autor, a exemplo de Joo Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, teoriza sobre a poesia dentro do prprio poema, estabelecendo a fuso entre as funes potica e metalingustica. oportuno ressaltar que todos o temas assumem diferentes matizes ou subtemas.NOTAS1. Sobre esses textos, vide estudo detalhado do Prof. Benedito Nunes, na introduo obra Poesia Experincia, de Mrio Faustino,publicada pela Editora Perspectiva, So Paulo, 1977, p. 7 a 24. VIII POEMAS DO LIVRO O HOMEM E SUA HORA (SELETA)PREFCIO Quem fez esta manh, quem penetrou noite os labirintos do tesouro, Quem fez esta manh predestinou .Seus temas a parfrases do touro,A tradues do cisne: f-la paraAbandonar-se a mitos essenciais, Desflorada por mpetos de raraMetamorfose alada, onde jamaisSe exaure o deus que muda, que transvive.Quem fez esta manh f-la por serUm raio a fecund-la, no por lvidaAusncia sem pecado e f-la terEm si princpio e fim: ter entre auroraE meio-dia um homem e sua hora.BRASO Nasce do solo sono uma armadilhaDas feras do irreal para as do ser- Unicrnios investem contra o Rei.Nasce do solo sono um facho fulvoTransfigurando a rosa e as armas lcidasDo campo de harmonia que plantei.Nasce do solo sono um sobressalto.Nasce o guerreiro. A torre. Os amarelosCorcis da fuga de ouro que implorei.E nasce nu do sono um desafio.Nasce um verso rampante, um brado, um soloDe lira santa e brava minha leiAt que nasa a luz e tombe o sonho,O monstro de aventura que eu amei.MENSAGEMEm marcha, heroico, alado p de verso,busca-me o gral onde sangrei meus deuses:conta s suas relquias, ontem de ouro,hoje de obscura cinza, p de tempo,que ele os venera ainda, o jogral verdeque outrora celebrou seus milagres fecundos.Dize a eles que vinhamtecer silentes minha eternidadeque a lava antiga pura cal agorae queima-lhes incenso, e rouba-me farraposde seus mantos desertos de oferendasonde possa chorar meu disfarce ferido.Dize a eles que tombemComo chuvas de smen sobre campos de salsem mancha, mas terrveisque desam sobre a urna deste olvidoe engendrem rosas rubrasdo estrume em que tornei seus dons de trigo e vinho.Segue, elegia, busca-me nos portose nas praias de Antanho, e nas rochas de Alguresos deuses que afoguei no mar absurdode um casto sacrifcio.Apanha estas palavras do cho tmidoonde as deixo cair, findo o dilvio:forma delas um palco, um absolutoonde possa danar de novo, nucontra o peso do mundo e a pureza dos anjos,at que a lucidez venha construirum templo justo, exato, onde cantemos.SETE SONETOS DE AMOR E MORTEI O MUNDO QUE VENCI DEU-ME UM AMORO mundo que venci deu-me um amor,Um trofu perigoso, este cavaloCarregado de infantes couraados.O mundo que venci deu-me um amorAlado galopandoem cus irados,Por cima de qualquer muro de credo,Por cima de qualquer fosso de sexo.O mundo que venci deu-me um amorAmor feito de insulto e pranto e riso,Amor que galga o cume ao paraso.Amor que dorme e treme. Que despertaE torna contra mim, e me devoraE me rumina em cantos de vitria...II NAM SIBYLLAML onde um velho corpo desfraldavaAs trmulas imagens de seus anos;Onde imaturo corpo condenavaAo canibal solar seus tenros anos;L onde em cada corpo vi gravadasLpides eloquentes de um passadoOu de um futuro arguido pelos anos;L cndidos lees alvijubadosAs brisas temporais se espedaavamContra as salsas areias sibilantes;L vi o p do espao me enrolandoEm turbilhes de peixes e pressgiosPois na orla do mundo as delatantesSombras marinhas, vagas, me apontavam.III INFERNO, ETERNO INVERNO, QUERO DARInferno, eterno inverno, quero darTeu nome dor sem nome deste diaSem sol, cu sem furor, praia sem mar,Escuma de alma beira da agonia.Inferno, eterno inverno, quero olharDe frente a gorja em fogo da elegia,Outono e purgatrio, clima e larDe silente quimera, quieta e fria.Inverno, teu inferno a mim no trazMais do que a dura imagem do juzoFinal com que me aturde essa falazBeleza de teus verbos de granizo;Cartula celeste, onde o fugazEstio de teu riso - paraso? IV - AGONISTESDormia um redentor no sol que ardiaO louro e a cera, dons hipotecadosDa carne postulada pelo dia;Dormia um redentor nos incensadosLenis que a lua pstuma cobriaDe mirra e de aafres embalsamados;Dormia um redentor no naveganteDas mortalhas de escuma que roaO verme de seus sonhos abafados;E at no atol do sexo triunfanteDo mar e da salsugem da agoniaDormia um redentor: e era bastantePara acord-lo o verso que bramiaNo crebro do atleta e l morria.V ONDE PAIRA A CANO RECOMEADAOnde paira a cano recomeadaNo capitel de acanto de teu lar?Onde prossegue a dana terminadaNas lajes de meu tempo de chorar?Rapaz, em minhas mos cheias de areiaConto os astros que faltam no horizonteDa praia soluante onde passeiaA espuma de teu fim, pranto sem fonte.Oh juventude, um plio de inocnciaJamais se estender sobre outra auroraMais clara que esta clara adolescnciaOnde o lupanar da noite hoje devora:Que vale o leno impuro da elegiaSobre teu rosto, lcida alegria?VI EGO DE MONA KATEUDODor, dor de minha alma, madrugadaE aportam-me lembranas de quem amo.E dobram sonhos na mal-estreladaMemria arfante donde algum que chamoPara outros braos cardiais me negaRestos de rosa entre lenis de olvido.Ao longe ladra um corao na ceganoite ambulante. E escuto-te o mugido,Oh vento que meu crebro aleitaste,Tempo que meu destino ruminasse.Amor, amor, enquanto luzes, puro,Dormindo claro, eu velo em vasto escuro,Ouvindo as asas roucas de outro diaCantar sem despertar minha alegriaVII ESTAVA L AQUILES, QUE ABRAAVAEstava l Aquiles, que abraavaEnfim Heitor, secreto personagemDo sonho que na tenda o torturava;Estava l Saul, tendo por pajemDavi, que ao som da ctara cantava;E estavam l seteiros que pensavamSebastio e as chagas que o mataram.Nesse jardim, quantos as mos deixavamLevar aos lbios que o atraioaram!Era a cidade exata, aberta, clara:Estava l o arcanjo incendiadoSentado aos ps de quem desafiara;E estava l um deus crucificadoLEGENDANo princpio Houve treva bastante para o esprito Mover-se livremente flor do sol Oculto em pleno dia. No princpio Houve silncio at para escutar-se O germinar atroz de uma desgraa Maquinada no horror do meio-dia. E havia, no princpio, To vegetal quietude, to severa Que se estendia a queda de uma lgrimaDas frondes dos heris de cada dia.Havia ento mais sombra em nossa via. Menos fragor na farsa da agonia, Mais xtase no mito da alegria.Agora o bandoleiro brada e atira Jorros de luz na fuga de meu dia

E mudo sou para contar-te, amigo, O reino, a lenda, a glria desse dia.ROMANCEPara as Festas da Agonia Vi-te chegar, como havia Sonhado j que chegasses: Vinha teu vulto to belo Em teu cavalo amarelo, Anjo meu, que, se me amasses: Em teu cavalo eu partira Sem saudade, pena ou ira; Teu cavalo, que amarraras Ao tronco de minha glria E pastava-me a memria, Feno de ouro, gramas raras. Era to clido o peito Anglico, onde meu leito Me deixaste ento fazer, Que pude esquecer a cor Dos olhos da Vida e a dor Que o Sono vinha trazer To celeste foi a Festa, To fino o Anjo, e a Besta Onde montei to serena Que posso, Damas, dizer-vos E a vs, Senhores, to servo De outra Festa mais Terrena No morri de mala sorte, Morri de amor pela MorteO HOMEM E SUA HORA*(Fragmentos)...Et in saecula saeculorum: masQue sculo, este sculo que anoMais-que-bissexto, este Ai, estaes Esta estao no das chuvas, quandoOs frutos se preparam, nem das secas,Quando os pomos preclaros se oferecem.(Nem podemos cham-la primavera.Vero, outono, inverno, coisas queProfundamente, Heri, desconhecemos...)Esta outra estao, quando um ms tomba,O dcimo-terceiro, o Mais-que-Agosto,Como este dia mais que sexta-feiraE a Hora mais que sexta e roxa.........................................................................Nox ruit, Aenea, tudo se acumulaContra ns, no horizonte. As velas que ontemAcendemos ou brancas enfunamosO vento apaga e empurra para o abismo.........................................................................Em cemitrios amorosos, eu,Pigmalion, talharei a nova esttua:Esttua de marfim, cndida esttua,Mulher primeira, fmea de ar, de terra,De gua, de fogo Hephaistos, sobe, ajuda-meA compor essa esttua; fcil corpo,Difcil Face, Santa Face faltaO sopro acendedor de tua espertaInspirao..............................................................................Pronta esta esttua, agora, os deuses e euMiramos o milagre:branca esttuaDe leite, gala, Galateia, lmpidaContrafao de canto e eternidade...(,,,) Tomba a noite,Mas pronta nossa esttua, armada e toPlcida, prestes, pura quanto PallasBordando seus bordados sem brandirgide aterradora. Parte, esttua,Na terra cor de carne as vias frememDuras de sangue e seixos vai aos homensEnsinar-lhes a mgica olvidada:Ensinar-lhes a ver a coisa, a coisa,No o que gira em torno dela, (...)Vai, esttua, levar ao dicionrioA paz entre palavras conflagradas.Ensina cada infante a discursarExata, ardente, claramente: nomesEm paz com suas coisas, verbos emPaz com o baile das coisas, oradoresEm paz com seus ouvintes, alvas pginasEm paz com os planos atros do universo .....................................................................(...) Retorna a mim, que passarei mil anosA contemplar-te, ouvir-te, cogitar-te.Vnus far de teu marfim fecundaCarne que tomarei por fmea, carneFeita de verbo, cara carne, meDe Paphos, filho nosso, que outra ilhaFundar, consagrada a tua msica.Teu pensamento, paisagem tua.Ilha sonora e redolente, cheiaDe pios templos, cujos sacerdotesRepetiro a cada aurora (hrodo,Hrododktulos Eos, brododktulos!) **Que Santo, Santo, Santo o Ser Humano-Flecha partindo atrs de flecha eternaAgora e sempre, sempre, nunc et semper...NOTAS1. Procuramos nessa montagem de fragmentos encontrar nos interstcios de suas metforas o propsito do autor: enunciar ao longo do texto princpios de linguagem artstica, inerentes ao poeta, ao seu tempo e obra literria em si. A esto metaforicamente noes de potica como: conceito e funo da poesia; o poema como fonte de sabedoria, o poeta e sua misso pedaggica perante os homens e o mundo. ** (hrodo,Hrododktulos Eos, brododktulos!) do grego, traduo corrente em portugus: rosa, aurora de dedos cor de rosa, de dedos cor de rosa. Segundo a mitologia grega, Eos a aurora personificada, adorada pelos povos indoeuropeus, pertence primeira gerao divina , a dos Tits, como filha de Hiperion e Teia, irm de Hlio (sol) e de Selene (lua). Com seus dedos cor de rosa (rododaktylos) , como a chama Homero, ela que abre todas as manhs as portas do cu para o carro do sol. Assim tambm ser o poema, iluminando com sabedoria a mente dos homens nunc et semper (agora e sempre). (EULALIO, 2000, p. 91)