anÁlise e planejamento ambiental

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  • 8/7/2019 ANLISE E PLANEJAMENTO AMBIENTAL

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA

    INSTITUTO DE GEOGRAFIAPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA

    REA DE CONCENTRAO: ANLISE E PLANEJAMENTO AMBIENTAL

    GEOPOLTICA DAS GUASO BRASIL E O DIREITO INTERNACIONAL FLUVIAL

    AGUINALDO ALEMAR

    UBERLNDIA/MG

    2006

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    AGUINALDO ALEMAR

    GEOPOLTICA DAS GUAS

    O BRASIL E O DIREITO INTERNACIONAL FLUVIAL

    Tese de Doutorado apresentada ao Programa dePs-Graduao em Geografia da UniversidadeFederal de Uberlndia, como requisito parcial obteno do ttulo de Doutor em Geografia.

    rea de Concentrao: Anlise e PlanejamentoAmbiental

    Orientador: Prof. Dr. Samuel do Carmo Lima

    Uberlndia/MGINSTITUTO DE GEOGRAFIA2006

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    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    A367g Alemar, Aguinaldo, 1962-Geopoltica das guas : o Brasil e o direito internacional fluvial /Aguinaldo Alemar. - 2006.

    253 f. : il.

    Orientador: Samuel do Carmo Lima.Tese (doutorado) Universidade Federal de Uberlndia, Programa

    de Ps-Graduao em Geografia.Inclui bibliografia.

    1. Geografia fsica - Teses. 2. Poltica ambiental - Teses. 3. guasterritoriais - Teses. 4. Direito internacional pblico - Aspectos ambien-tais - Teses. I. Lima, Samuel do Carmo. II. Universidade Federal deUberlndia. Programa de Ps-Graduao em Geografia. III. Ttulo.

    CDU: 911.2

    Elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UFU / Setor de Catalogao e Classificao

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA

    Aguinaldo Alemar

    Geopoltica das guas: o Brasil e o Direito Internacional Fluvial

    _______________________________________________________

    Prof. Dr. Samuel do Carmo Lima (Orientador)

    ________________________________________________________Prof. Dr. Luiz Otvio Pimentel

    ________________________________________________________Prof Dr Terezinha Cssia de Brito Galvo

    ________________________________________________________Prof Dr Marlene Terezinha Muno Colesanti

    _______________________________________________________Prof. Dr. Washington Luiz Assuno

    Data: _____/______/_______.

    Resultado: ___________________

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    Eu dedico,

    minha esposa Jusclia,

    aos meus filhos Isa e Rafael

    Aos meus pais Leri e Maria Jos

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    vi

    Eu agradeo,

    A Deus,

    Ao prof. Dr. Samuel do Carmo Lima, orientador que tornou possvel esta conquista,

    Ao Instituto de Geografia da UFU, que me abriu as portas,

    Cinara, Dilza, Janete e Lcia pelo suporte acadmico

    Aos profs. Drs. Beatriz Soares, Joo Cleps Jr., Suely del Grossi e Vnia Vlach.

    E reconheo,

    Que algumas coisas, algumas vezes, se consegue sozinho,

    Mas muitas coisas, na maioria das vezes, no.

    E, normalmente, estas ltimas so as mais importantes.

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    Mas nada pode ser completamente explicado, analisado e prospectadose no se eleva a um outro nvel, o dos mecanismos de produo ou decomercializao que se graduam, desde a escala regional at a escalade um continente ou de uma frao do planeta; escala dos problemas de

    grupos dos interesses nacionais ou internacionais e de seu confronto.(Pierre George, 1975, p. 31)

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    RESUMO

    A gua tem sido chamada nos ltimos tempos de o ouro azul. Ocorre que grande

    parte dos recursos hdricos do planeta so compartilhados por dois ou mais Estados

    soberanos. Isto traz tona a necessidade de se pensar numa gesto conjunta, numa

    espcie de solidariedade internacional. Esta ao recproca, por sua vez, implica numa

    nova viso do conceito de soberania estatal sobre seus recursos naturais. Este estudo se

    debrua sobre a forma como os Estados se organizam, ou deveriam se organizar, para

    equacionar os enormes conflitos que surgem quando se trata de administrar um bem

    insubstituvel, inclusive quando se tem que equilibrar a abundncia natural de alguns

    Estados e o estresse hdrico de outros. Assim, este trabalho tem como objetivo geral

    propor novas formas de se tratar os recursos hdricos transfronteirios no Brasil,

    especificamente, e na sociedade mundial em geral. Para alcanar este objetivo, analisa-

    se a evoluo da proteo ambiental no planeta, estuda-se a proteo dos recursos

    hdricos transfronteirios no plano internacional, avalia-se a postura jurdica e poltica do

    Brasil frente a esses recursos e, ao final, prope-se uma nova forma de se lidar com os

    recursos de gua doce superficial transfronteiria, alm de se sugerir a criao de uma

    Organizao Mundial da gua como forum internacional para aglutinar interesses

    comuns dos pases com grandes reservas de gua doce.

    Palavras chave: gua; Direito Internacional; Meio Ambiente; Rios Transfronteirios.

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    ABSTRACT

    Water has been being called in the last times of the blue gold. However, a

    big part of the water resources of the planet are shared by two or more sovereignState. This brings afloat the need from thinking in a joint administration, in a species

    of international solidarity. This reciprocal action, then, implies in a new vision of the

    state sovereignty concept over their natural resources. This study is about the form

    witch the States organizes, or they would organize, to resolve the enormous conflicts

    that arise in the management of one very irreplaceable good, even when it has to

    equilibrate the natural abundance of any State and the water stress of another. This

    way, this work has as general goal to propose new forms to treat the transboundary

    water resources in Brazil, specifically, and in the world in general. To reach this

    objective, it analyzes the evolution of the environmental protection in the planet, it

    studies the transboundary water resources protection in the international plan, it

    evaluates the juridical posture and Brazil's Policy front to these resources and, at the

    end, it proposes a new form to work with the transboundary superficial fresh water

    resources, besides it suggest the creation of a World Organization of Water as

    international forumto agglutinate common interests of the countries with fresh water

    big reserves.

    Key words: Water; International Lawt; Environment; International rivers

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    LISTA DE FIGURAS

    Figura Pg.

    1 Preocupaes humanas segundo o Clube de Roma .............................. 5

    2 Faixa de fronteira do Brasil ............................................................... 106

    3 Usos possveis da gua .................................................................... 123

    4 Rio Solimes saindo do Peru e ingressando em territrio Brasileiro 124

    5 Rio Paran, na fronteira entre a Argentina e o Paraguai .................. 125

    6 Rio Danbio, que nasce na Floresta Negra (Alemanha) .................. 125

    7 Distribuio planetria das bacias internacionais ............................. 126

    8 Diagrama do ciclo hidrolgico .................................................................... 128

    9 O Encolhimento do mar de Aral ................................................................ 131

    10 Fluxo das guas nas bacias Amaznica e do Prata ......................... 182

    11 Cabeceira do Rio Paran, na trplice fronteira (MG, SP, MS) .......... 189

    12 Regio do conflito entre Argentina e Uruguai ................................... 215

    13 Regio da foz do rio Apa .................................................................. 21914 Regio do rio Madeira a ser influenciada pelas represas ................. 222

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    LISTA DE QUADROS

    Quadro Pg.

    1 Exemplos de atos multilaterais promulgados pelo Brasil no campo

    do Direito Internacional Pblico ........................................................ 152 Exemplos de atos multilaterais promulgados pelo Brasil no campo do

    Direito Internacional Privado ...................................................................... 15

    3 Bacias hidrogrficas internacionais na Amrica do Sul, ordenadas

    por bacias ......................................................................................... 179

    4 Bacias hidrogrficas internacionais na Amrica do Sul, ordenadas

    por pas ............................................................................................. 180

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    LISTA DE TABELAS

    Tabela Pg.

    1 gua virtual contida em alguns produtos ............................... 121

    2 Fronteiras entre o Brasil e os pases da Amrica do Sul ....... 181

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    LISTA DE ABREVIATURAS

    ANA Agncia Nacional de guas

    BID Banco Interamericano de Desenvolvimento

    CARU Comisso Administradora do Rio Uruguai

    CEE Comisso Econmica Europia

    CEPAL Comisso Econmica para a Amrica Latina

    CIDEMA Consrcio Intermunicipal para o Desenvolvimento Integrado das Baciasdos rios Miranda e Apa

    CIJ Corte Internacional de Justia

    CIMI Movimento Indigenista Missionrio

    CITES Convention on International Trade in Endangered Species of Wild Faunaand Flora

    CNRH Conselho Nacional dos Recursos Hdricos

    COAGRET Coordinadora de Afectados por Grandes Embalses y Trasvases

    CTGRHT Cmara Tcnica de Gesto dos Recursos Hdricos Transfronteirios

    D.C. District of Columbia

    DA Diviso de Atos Internacionais

    DI Direito Internacional

    DIP Direito Internacional Pblico

    ECE Economic Council for Europe

    EIA/RIMA Estudo de Impacto Ambiental/Relatrio de Impacto Ambiental

    EUA Estados Unidos da Amrica

    FAO Organizao das Naes Unidas para a Alimentao e Agricultura

    UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, cincia e Cultura

    FMI Fundo Monetrio Internacional

    FOREN Frum de Debates de Energia de Rondnia

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    GATT General Agreement on tariffs and trade

    GEF Global Environment Facility

    GWP Global Water Partnership

    IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis

    IIHA Instituto Internacional da Hilia Amaznica

    IIRSA Integrao de Infraestrutura Regional da Amrica do Sul

    ILA International Law Association

    INPA Instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia

    IRN International Rivers Network

    ITLOS International Tribunal for the Law of the Sea

    IUPN Unio Internacional para a Proteo da Natureza

    MAB Movimento dos Atingidos por Barragens

    MAP Madre de Dios, Acre e Pando

    MDGs Millenium Development Goals

    MERCOSUL Mercado Comum do Sul

    MRE Ministrio das Relaes Exteriores

    MSIa Movimento de Solidariedade Ibero-Americana

    MST Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra

    OEA Organizao dos Estados AmericanosOIT Organizao Internacional do Trabalho

    OMC Organizao Mundial do Comrcio

    OMS Organizao Mundial da Sade

    ONG Organizao No-Governamental

    ONU Organizao das Naes Unidas

    OPEP Organizao dos Pases Exportadores de Petrleo

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    OSR Organizao dos Seringueiros de Rondnia

    OTCA Organizao do Tratado de Cooperao Amaznica

    OVMs Organismos Vivos Geneticamente Modificados

    PACD Plano de Ao de Combate Desertificao

    PIEA Programa Internacional de Educao Ambiental

    PNUMA Programa das Naes Unidas para o Meio Ambiente

    POPs Persistent Organic Pollutants

    UN United Nations

    UNCTAD United Nations Conference on Trade and Development

    UNEP United Nations Environment programan

    UNESCO United Nations

    UNSCCUR Conferncia Cientfica das Naes Unidas sobre a Conservao eUtilizao de Recursos

    URSS Unio das Repblicas Socialistas Soviticas

    WCED Comisso Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento

    WEHAB Water, Energy, Health, Agriculture and Biodiversity

    WWC Conselho Mundial da gua (World Water Council)

    WWF Fundo Mundial para a Natureza)

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    SUMRIO

    INTRODUO................................................................................................ 1

    Captulo I

    Direito Internacional e Meio Ambiente........................................................ 9

    1.1 A sociedade internacional .............................................................. 9

    1.2 Direito Internacional Pblico e Direito Internacional Privado ......... 13

    1.3 A Personalidade jurdica de Direito Internacional .......................... 16

    1.4 Os atos internacionais dos Estados .............................................. 17

    1.4.1 A estrutura do tratado internacional ............................................... 181.5 A responsabilidade internacional dos Estados .............................. 19

    1.6 Direito Internacional Ambiental ...................................................... 24

    1.6.1 A questo semntica .................................................................... 24

    1.6.2 Direito Ambiental Internacional e a vida no planeta ...................... 26

    1.7 Evoluo histrica da proteo do ambiente no planointernacional .................................................................................. 32

    1.8 Marcos internacionais relacionados ao ambiente ......................... 411.8.1 Princpios do Direito Internacional Ambiental ............................... 84

    1.9 Meio ambiente, Direito Internacional e Direitos Humanos ............ 92

    CAPTULO II

    A soberania estatal....................................................................................... 98

    2.1 O territrio em questo .................................................................. 98

    2.2 A soberania como elemento do Estado ......................................... 107

    CAPTULO III

    A proteo dos recursos hdricos internacionais..................................... 116

    3.1 Planeta gua? ................................................................................ 116

    3.1.1 A gua virtual ................................................................................. 120

    3.2 Muitos rios, pouca gua disponvel ............................................... 122

    3.2.1 O ciclo hidrolgico.......................................................................... 127

    3.3 A proteo jurdica da gua no plano internacional ....................... 134

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    3.3.1 Evoluo histrica .......................................................................... 134

    3.3.2 Principais acordos e tratados relacionados aos rios e lagosinternacionais .................................................................................

    141

    3.4 Fruns Mundiais pela gua 167

    3.4.1 Primeiro Frum Marrakesh, 1997 ............................................... 167

    3.4.2 Segundo Frum Haya, 2000 ....................................................... 168

    3.4.3 Terceiro Frum Tkio, 2003 ....................................................... 169

    3.4.4 Quarto Frum Mxico, 2006 ....................................................... 171

    CAPTULO IV

    O Brasil e os recursos hdricos internacionais.......................................... 175

    4.1 Prolegmenos geogrficos ............................................................ 178

    4.1.1 Bacias hidrogrficas internacionais na Amrica do Sul ................. 178

    4.2 Prolegmenos histricos ............................................................... 183

    4.3 A Gesto integrada das guas transfronteirias ............................ 185

    4.3.1 As Bacias da Lagoa Mirim e do rio Quara .................................... 185

    4.3.1.1 Tratado da Bacia da Lagoa Mirim .................................................. 186

    4.3.2 A Bacia do Prata ............................................................................ 188

    4.3.2.1 Tratado da Bacia do Prata ............................................................. 190

    4.3.3 A Bacia Amaznica ........................................................................ 192

    4.3.3.1 O Tratado de Cooperao Amaznica .......................................... 197

    4.4 Acordo-Quadro sobre Ambiente do Mercosul ............................... 202

    4.5 A Declarao de Buenos Aires ...................................................... 204

    CAPTULO V

    Conflitos pela gua ..................................................................................... 2055.1 A realidade dos conflitos internacionais pela gua ........................ 205

    5.2 Alguns casos contemporneos ...................................................... 210

    5.2.1 As fbricas de papel no Uruguai .................................................... 215

    5.2.2 O caso do rio Apa .......................................................................... 218

    5.2.3 As hidreltricas no rio Madeira ...................................................... 222

    CAPTULO VIA Organizao Mundial das Hidropotncias .................................................. 229

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    Concluso ..................................................................................................... 237

    REFERNCIAS.............................................................................................. 244

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    INTRODUO

    Atualmente, o progresso cientfico e tecnolgico, aliado a uma crescente

    capacidade comercial permitiram ao homem interferir cada vez mais no ambiente,

    dele retirando no s o seu sustento, mas tambm o lucro. Este lucro, em princpio

    no errado. O que , ou pelo menos deveria ser inaceitvel, o lucro a qualquer

    preo, custa de prejuzos ambientais para toda uma comunidade.

    Dentre os recursos naturais renovveis, desponta a gua, cuja renovabilidade

    parece inexorvel, mas com a potabilidade constantemente ameaada pelas aes

    antrpicas, especialmente a ausncia de saneamento. Neste sentido, os recursos

    hdricos dispersos pelo planeta revelam, ao mesmo tempo, possibilidades de

    progresso econmico e de atraso nas condies de vida. Isto porque, do manejo

    correto das guas vai depender uma srie de variveis ambientais que se inter-

    relacionam, como por exemplo, as condies climticas, a flora e a fauna.

    Estima-se que o volume total de gua no planeta seja de aproximadamente

    1,38 bilho de km, dos quais 97.5% corresponde s guas salgadas. Logo, restam

    apenas 2,5% de gua doce. Entretanto, aproximadamente 68,7% da gua doce est

    sob a forma de gelo e neve permanente na Antrtica, no rtico, e nas regies

    montanhosas. Cerca de 29,9% da gua doce disponvel no planeta, so guas

    subterrneas. Em nmeros aproximados, apenas 0,26% do total de gua doce est

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    concentrado nos lagos, rios e outros reservatrios de fcil acesso para a

    humanidade (Shiklomanov, 1998, p.4)

    No ritmo atual de crescimento econmico e populacional, prev-se que, antes

    de 2025, dois teros da populao global estaro vivendo em pases com estresse

    hdrico. Para 2020, prev-se que o uso da gua aumentar em 40% e que ser

    necessrio um adicional de 17% de gua para a produo de alimentos, a fim de

    satisfazer as necessidades da populao em crescimento. (PNUMA, 2004, p. 163).

    A gua pode ser elemento de unio entre os povos, mas tambm pode os

    conduzir s armas. Um rio pode levar alimentos e vida para um pas faminto, como

    tambm pode levar destruio e morte. Tudo depende do modo como os Estados se

    organizam interna e externamente para a gesto dos seus recursos hdricos, que

    muitas vezes, so compartilhados por mais de dois pases.

    Numa perspectiva na qual se leva em conta a imprescindibilidade da gua e,

    mais que isso, o fato da mesma ser insubstituvel, levou alguns estudiosos a

    proclamarem-na como patrimnio comum da humanidade. Esta noo de patrimnio

    comum inspira cuidados especiais, sobretudo quando se trata daqueles cursosdgua, ou lagos que integram ecossistemas de mais de um Estado soberano. Esses

    cuidados especiais vo desde o uso responsvel e solidrio dos recursos hdricos,

    de modo a no causar danos a um outro Estado, at a gesto conjunta dos

    mananciais compartilhados.

    A interdependncia entre os Estados, quando se fala em recursos hdricos,

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    faz com que conceitos clssicos para o Direito e para a Geografia, como territrioe

    soberania, hoje se debatam, agonizantes, frente a uma realidade que os confronta

    sem possibilidade de retrocesso. o florescimento de uma nova gerao de idias que

    tratam o ambiente como um todo unitrio constantemente interligado e necessariamente

    mutvel. Talvez um organismo vivo, como quer Lovelock (1991, p. 7 -10).

    Embora, como visto antes, somente uma parte muito pequena do volume total

    de gua do planeta esteja disponvel para uso imediato pelo homem, em tempos

    remotos a preocupao com o uso deste recurso se limitava apenas aos aspectos

    navegacionais e de segurana territorial. No entanto, com o aumento exponencial da

    populao e com o crescimento avassalador das atividades agro-pastoril, industrial e

    comercial, quantidade de gua per capitadisponvel tende a ser cada vez menor,

    considerando-se constante o seu volume absoluto.

    O fato que desperta maior ateno a m distribuio da gua pelo planeta, pois

    pesquisas recentes do conta de que um tero da populao mundial vive em pases

    que sofrem de estresse hdrico entre moderado e alto. E mais: aproximadamente 40%

    da populao mundial, distribuda por cerca de 80 pases, sofriam de grave escassez

    de gua em meados da dcada de 1990 (PNUMA, 2004, P. 22).

    Esses dados, associados ao fato de que existem hoje mais de 260 bacias

    hidrogrficas compartilhadas por dois ou mais pases (WOLF, 2002, p. 2), faz

    crescer a necessidade de que estudos sistmicos e interdisciplinares devam ser

    levados a cabo, sempre na expectativa de que uma guerra pela gua, hoje bem

    provvel, no ultrapasse o campo das possibilidades.

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    4

    Fatos recentssimos apontam na direo da necessidade de uma viso

    integradora dos recursos hdricos. Veja-se o exemplo do Brasil, pas

    nomeadamente pacfico, no qual uma disputa interna, entre irmos, sobre a

    transposio de um rio leva vrias comunidades a uma situao de conflito

    incluindo, por exemplo, o religioso Dom Luiz Cappio, bispo de Barra (BA) que

    deflagrou uma greve de fome em Cabrob (BA), por ocasio das discusses

    sobre a transposio das guas do Rio So Francisco, em setembro de 2005, ou

    ainda o projeto de construo de usinas de lcool na regio da bacia do rio

    Paraguai que conduziu o ambientalista Francisco Anselmo de Barros a atear fogo

    ao prprio corpo em novembro do mesmo ano.

    Quando a disputa pela gua envolver Estados, naes, culturas diferentes,

    imagina-se que a soluo seja ainda mais difcil. guisa de exemplo, registre-se o

    caso envolvendo a Argentina e o Uruguai a respeito da construo de duas fbricas

    de celulose no rio Uruguai (que os une ou separa), cuja soluo est sendo

    encaminhada para a Corte Internacional de Justia, em Haia, na Holanda.

    Esta pesquisa procura demonstrar que s uma atitude coordenada, calcada

    nos princpios de solidariedade internacional e intergeracional, com uma viso interou multidisciplinar, corporificada em acordos internacionais passveis de serem

    exigveis luz do Direito, pode contribuir de forma eficaz para o manejo correto dos

    recursos hdricos e, por extenso, no planejamento ambiental, num mundo em que,

    por exemplo, enquanto mais de 70% da gua doce utilizada pela agricultura, cerca

    de 1,1 bilho de pessoas no tm nenhuma fonte de gua potvel segura e 2,4

    bilhes carecem de melhor saneamento (PNUMA, 2004, p.164).

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    Imbudo da preocupao com o que se est fazendo com os recursos hdricos

    transfronteirios no planeta, o presente estudo se inclui no canto superior direito do

    conhecido quadro proposto pelo Clube de Roma, relacionando a populao e suas

    preocupaes (fig. 1). Neste quadro, procura-se mensurar durante quanto tempo,

    em mdia, um determinado grupo de pessoas se preocupa com determinada causa.

    Por exemplo, no canto inferior esquerdo se encontra a maior concentrao de

    pessoas. Isto significa que muita gente se preocupa com a famlia num perodo de

    uma semana. Por outro lado, poucas pessoas se preocupam com as questes

    planetrias num perodo relativamente longo (canto superior direito da figura 1).

    Fig. 1: Preocupaes humanas segundo o Clube de RomaFonte: Meadows (1978, p. 16)

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    Prximasemana

    Prximosanos

    Durao davida

    Durao da vidadas crianas

    Famlia

    Raa,nao

    Mundo

    ESPAO

    TEMPO

    Negcios,cidade,

    vizinhana

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    6

    Nesse empenho de provar que na utilizao dos seus recursos naturais,

    no caso a gua, um Estado no senhor absoluto do seu territrio, mesmo

    contrariando princpio expresso na Carta da ONU, demonstrar-se- que o

    planeta requer medidas urgentes e multilaterais, num enfoque globalizador das

    questes ambientais, ainda que internas, posto que a imbricao dos

    fenmenos naturais, que faz com que, por exemplo, a poeira do Saara provoque

    doenas respiratrias no Caribe (por conta das oscilaes do Atlntico norte),

    ou a utilizao do mercrio ou pesticidas nas proximidades do rio Paranaba (na

    divisa de Minas Gerais com Gois) possam afetar a agricultura na Argentina ou

    ainda a construo de uma usina hidreltrica na Turquia provoque escassez de

    gua no Iraque e na Sria, no permite mais a apropriao exclusiva, e imune de

    conseqncias, dos recursos hdricos transfronteirios.

    O gerenciamento integrado dos recursos hdricos requer no apenas o

    uso sustentvel das guas de superfcie - e tambm das subterrneas - para

    satisfazer as necessidades scio-econmicas, mas tambm o desenvolvimento

    de novas tcnicas de apropriao e reaproveitamento das guas imprprias

    para o consumo humano ou animal, como por exemplo, as guas poludas, ou

    processos economicamente viveis de dessalinizao das guas marinhas. Ouso sustentvel (ou ambientalmente correto), implica em que o desenvolvimento

    econmico da sociedade esteja ajustado numa correlao de valores onde o

    mximo econmico reflita igualmente um mximo ecolgico (DERANI, 2001, p. 198)

    Com o objetivo de abordar as formas pelas quais os recursos hdricos tm

    sido utilizados pelo homem, e os modos pelos quais esses usos foram e so

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    geridos, procedeu-se a uma anlise histrica da atuao humana no trato da

    gua. Isto implicou no estudo de acordos internacionais celebrados desde o

    sculo XVIII, passando por conferncias e convenes internacionais que se

    agigantavam medida que o avano tecnolgico propiciava ao homem meios

    para uma apropriao cada vez maior dos recursos naturais. Esta pesquisa

    histrica no teve outro motivo seno demonstrar que a evoluo jurdico-

    poltica dos conceitos de territrio e propriedade, no tocante aos recursos

    naturais, num plano internacional, resultado de uma seqncia de decises

    multilaterais, expressas em tratados internacionais, como, por exemplo, a

    Conveno das Naes Unidas sobre o uso dos rios internacionais para fins

    diversos da navegao, de 1997.

    A avaliao histrica e geogrfica, numa viso sistmica da realidade do

    elemento gua no planeta, aliada aos avanos jurdicos na interpretao de direitos

    e obrigaes, permitir uma viso de como se organiza, nos dias que correm, a

    geopoltica das guas internacionais, baseada em princpios de solidariedade e

    responsabilidade compartilhada, quando se tem em mente o planejamento ambiental

    de uma cidade, de um estado ou de um pas.

    A noo de geopoltica, neste trabalho, ser aquela que considera o estudo

    do Estado em funo do territrio, e no do territrio em funo do Estado, o que se

    aproximaria da geografia poltica, na lio de Moraes (1990, p. 175).

    Ao final do trabalho, prope-se a unio, sob a forma de uma Organizao

    Internacional, dos pases detentores dos maiores mananciais de gua doce, cujas

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    reservas hdricas possam fazer deles potncias mundiais num futuro prximo, tanto

    no que tange gerao de alimento e energia, quanto no que se refere maior das

    necessidades: a dessedentao humana.

    Ressaltando a atualidade e relevncia do tema, basta lembrar que a ONU

    escolheu a dcada de 2005-2015 para ser a segunda Dcada Internacional da gua,

    perodo no qual se pretende reduzir metade a proporo de pessoas sem acesso a

    gua potvel, como prescreve, alis, a Declarao do Milnio, assinada por 191

    pases ao final da Cpula do Milnio, realizada em Nova York em 2000.

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    CAPTULO I

    DIREITO INTERNACIONAL E MEIO AMBIENTE

    1.1 A Sociedade internacional

    Sabe-se que desde os tempos primitivos, quando surgiram os primeiros

    grupamentos humanos, de forma organizada, um aqui outro acol, comearam os

    mesmos a se inter-relacionarem, o que, de certa forma, pode ser considerado como

    o grmen do que hoje se conhece como relaes internacionais.

    Depois de constituda a sociedade interna, vale dizer, o Estado Nacional, nos

    moldes como se conhecesse atualmente, com fronteiras perfeitamente definidas, um

    governo soberano e um povo sob esta soberania, comearam a florescer em seu

    seio vrias relaes (jurdicas e no-jurdicas), que direta ou indiretamente

    repercutem no plano exterior, isto , atingem outros Estados ou deles dependem.

    Do mesmo modo que a sociedade interna, ou seja, aquele contingente

    humano que forma a dimenso pessoal dos Estados, tambm estes, em suas

    mltiplas relaes, erigiram regras de comportamento que foram variando de acordo

    com as circunstncias temporais e espaciais.

    O desenvolvimento das relaes entre os Estados, nos mais diversos campos

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    de atuao (econmico, social, militar, etc.), fez com que, paulatinamente, fossem

    surgindo outros entes na comunidade internacional, que basicamente se resumem

    na unio de alguns Estados que tenham um interesse comum em determinada rea.

    Essas unies receberam o nome de Organizaes Internacionais inter-

    governamentais1.

    So as inter-relaes entre Estados que formam o arcabouo da sociedade

    internacional. a partir destas relaes que os Estados se mostram ao mundo,

    celebram acordos entre si, desenvolvem laos de amizade (ou de animosidade),

    formam os grupos de Estados e as Organizaes Internacionais (Cf. LITRENTO,

    2001, p. 36-40).

    O que diferencia as relaes entre os Estados, das relaes entre os

    indivduos dentro de um ordenamento jurdico nacional (ou interno), que naquelas

    no existe um governo superior, ou nico, um poder central, posto que na sociedade

    internacional, os Estados s atuam segundo a mescla resultante de suas vontades

    (ALLEMAR, 2006, p. 16).

    Desse modo, no plano internacional, os Estados procuram, ao mesmo tempo,preservar a sua soberania e estabelecer relaes com os demais membros que

    compem a sociedade planetria.

    A sociedade internacional possui caractersticas que a diferenciam,

    substancialmente, da sociedade interna (isto , o Estado isoladamente considerado).

    1 Estas organizaes no se confundem com as conhecidas ONGs, as quais so organizaes no-governamentais.

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    Tais diferenas vo desde a forma de organizao at o modo como se exerce o

    poder coercitivo do Direito. O que caracteriza as relaes entre os Estados o fato

    de que sua estrutura horizontal, diferentemente das relaes de Direito interno,

    que so marcadas pela idia de verticalidade. Isto significa que no plano

    internacional no h, pelo menos em tese, uma hierarquia entre seus membros.

    No plano interno as normas compem, como se sabe, uma estrutura

    piramidal, na qual a Constituio Nacional ocupa o topo da pirmide, e da defluem

    as normas das constituies estaduais e das leis orgnicas municipais, assim como

    as demais leis e atos normativos exarados pelos poderes competentes, que sempre

    devero estar em consonncia com a lei maior. Nas relaes internacionais no

    existe esta estrutura, sendo certo, entretanto, que o tratamento que cada Estado

    confere a uma norma internacional variar de acordo com o disposto em sua lei

    domstica, que determinar o modo pelo qual aquela norma ser recepcionada pelo

    seu Direito interno.

    Em decorrncia da estrutura horizontal e descentralizada da sociedade

    internacional, que os Estados s obedecem quelas normas com as quais haja

    previamente concordado, prevalecendo o princpio da isonomia entre os Estados,donde se conclui pela ausncia, em tese, de um poder mundial, capaz de sobrepor

    um pas a outro, obrigando este ltimo a determinado comportamento em funo da

    vontade do primeiro.

    Entretanto, foroso reconhecer que essa afirmao de ausncia de um

    poder mundial , antes de tudo, um axioma jurdico, posto que o poderio econmico

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    de determinados pases faz com que eles, em qualquer mesa de negociao

    internacional, tenham, no mnimo, maior poder de barganha, sendo de se salientar

    que essa supremacia econmica a matriz de onde se originam os demais poderes,

    como o militar e o poltico (ALLEMAR, 2006, p. 17).

    Uma outra caracterstica da sociedade internacional, que faz inclusive com

    que se discuta a existncia de um Direito Internacional, a suposta ausncia de

    sanes. Tal caracterstica peculiar , no entanto, enganosa, posto que existem sim,

    sanes no plano internacional. O que ocorre que no existem sanes nos

    moldes do Direito interno. Temas cada vez mais em evidncia, como o da

    responsabilidade internacional do Estado por danos ambientais transfronteirios,

    corroboram com esta afirmao. A maior parte das sanes aplicadas aos Estados

    no mundo moderno so de ndole econmica, no necessariamente punitivas, mas

    tambm compensatrias.

    Nesse sentido so, por exemplo, algumas decises tomadas no mbito de

    Organizaes Internacionais, como a ONU, o Mercosul e a Unio Europia, ou

    mesmo por um Estado isoladamente, que determinam, entre outras medidas, o

    embargo a determinados produtos, baseado em pressupostos ambientais, ou comomedida retaliativa contra algum outro ato perpetrado pelo Estado discriminado, como

    o caso de um pas suspender a importao de produtos de outro at que se

    elimine a utilizao de mo de obra infantil, escrava ou em condies degradantes.

    De toda forma, as medidas de retaliao, represlia e retorso sempre tero a

    finalidade principal de compelir um Estado, violador de determinada regra, a adotar

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    um comportamento adequado aos propsitos de determinado sistema.

    No plano interno, os indivduos esto submetidos ao ordenamento jurdico

    independentemente de sua vontade. Excetuados os casos de plebiscito e

    referendum, as normas so editadas e devem ser cumpridas sem a oitiva direta dos

    seus destinatrios. claro que se pode conjecturar que, pelo menos nos pases

    democrticos, as leis so prolatadas por pessoas s quais o povo concedeu poderes

    para edit-las. Mas pensar desta forma seria raciocinar com base na regresso ao

    infinito. O fato que ao cidado que comete um determinado ato tipificado como

    crime pelo ordenamento jurdico, no questionado se ele deseja ou no responder

    juridicamente pelo mesmo: esta sujeio coercitiva.

    No plano internacional, os Estados s esto juridicamente obrigados a

    determinado ato (comissivo ou omissivo) se com isto previamente concordaram, seja

    num acordo bilateral, seja numa negociao coletiva.

    desta forma, em breves linhas, que se organiza a sociedade internacional,

    cabendo agora um estudo sobre como o Direito passou a regular as diversas

    manifestaes que ocorrem em seu seio.

    1.2 Direito Internacional Pblico e Direito Internacional Privado

    Tanto o Direito Internacional Pblico (D.I.P.) quanto o Direito Internacional

    Privado (D.I. Privado) possuem a caracterstica comum de envolver relaes que

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    possuem pelo menos um componente internacional, mas enquanto o primeiro cuida

    das relaes entre os Estados no tocante ao Direito Pblico, o segundo trata

    daquelas relaes entre particulares que possuem reflexos internacionais. Assim,

    pertence ao campo do D. I. Privado, por exemplo, questes como a dos efeitos do

    casamento entre pessoas de diferentes nacionalidades, de herana e mesmo de

    atividades empresariais nas quais as partes sejam pessoas privadas (fsicas ou

    jurdicas). Por outro lado, pertencero ao D.I. Pblico aquelas questes que

    envolvem os Estados entre si, e os Estados e outras pessoas jurdicas de Direito

    Internacional como, por exemplo, as Organizaes Internacionais. Estes campos

    estaro a concesso de asilo poltico, a expulso de estrangeiro, a guerra, as

    questes ambientais e comerciais, etc.

    Em vrios aspectos, o DIP e o DI privado se interpenetram, como por

    exemplo nos casos de nacionalidade, porm, ambos se distinguem quanto ao

    objeto. Enquanto o DIP se ocupa das relaes entre pessoas de direito

    internacional, o DI privado se ocupa da condio das pessoas, coisas e atos, de

    Direito interno, levando-se em conta a determinao de qual a legislao nacional

    aplicvel a uma determinada relao jurdica, podendo esta (lei aplicvel) depender

    da nacionalidade do indivduo, de seu domiclio ou ainda da norma que rege a formae os efeitos dos atos jurdicos.

    O que se verifica nos dias que correm, com a crescente aproximao dos

    povos, tanto nos aspectos polticos quanto econmicos e jurdicos, uma interao

    cada vez maior entre o DIP e o DI Privado, sem no entanto se confundirem.

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    Na verdade, o DI Privado tem muito pouco de "internacional" posto que ele se

    resume a disciplinar, no mbito interno de um Estado, qual lei dever ser aplicada a

    um determinado caso concreto, que tenha conexo internacional. Veja-se, por

    exemplo, que no caso do Brasil, a norma que regula a maior parte dos casos com

    um ou mais componentes internacionais a Lei de Introduo ao Cdigo Civil, que

    uma lei eminentemente interna.

    Para incio de estudo, e apenas como uma viso geral dos assuntos

    pertinentes ao campo do Direito Internacional Pblico e ao Direito Internacional

    Privado, cita-se como exemplos de acordos firmados pelo Brasil nestas reas

    (Quadros 1 e 2):

    Quadro 1

    Exemplos de atos multilaterais promulgados pelo Brasilno campo do direito internacional pblico

    ATO Assinado emConveno sobre Tratados 20/02/1928Conveno sobre Deveres e Direitos dos Estados nos Casos de Lutas Civis 20/02/1928Conveno sobre Asilo 20/02/1928Conveno sobre Direitos e Deveres dos Estados 26/12/1933Conveno sobre Asilo Poltico. 23/03/1937Conveno sobre Asilo Diplomtico 28/03/1954Conveno de Viena sobre Relaes Diplomticas 18/04/1961Tratado de Institucionalizao do Parlamento Latino-Americano 16/11/1987

    Quadro 2

    Exemplos de atos multilaterais promulgados pelo Brasilno campo do direito internacional privado

    ATO Assinado emConveno de Direito Internacional Privado (Cdigo Bustamante) 20/02/1928Conveno Interamericana sobre Arbitragem Comercial Internacional 30/01/1975Conveno Interamericana sobre Prova e Informao Acerca do Direito Estrangeiro 08/05/1979Conveno Interamericana sobre Conflitos de Leis em Matria de Adoo de Menores 24/05/1979

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    1.3 A personalidade jurdica de Direito Internacional

    Assim como no plano interno existem aquelas pessoas (particulares ou

    empresas, isto , fsicas ou jurdicas) que possuem a capacidade de se vincular

    juridicamente, contraindo entre si direitos e obrigaes recprocas, tambm no plano

    internacional encontramos os chamados sujeitos de DIP. So estes sujeitos,

    possuidores de personalidade internacional, que corresponde capacidade que

    possuem determinados entes de se mostrar no cenrio internacional como unidade,

    com capacidade prpria para celebrar acordos, vinculando-se, sendo por

    conseguinte, possuidores de direitos e obrigaes na comunidade de Estados.

    Dos entes que so tidos como possuidores de personalidade internacional, o

    mais antigo o Estado. De fato, a sociedade internacional s existe porque existe

    uma pluralidade de Estados.

    O outro ente, de origem bem mais recente, a Organizao Internacional,

    que pode ser definida, por ora, como uma sociedade de Estados que visam a um

    objetivo comum, seja ele econmico, poltico ou militar, por exemplo.

    Estas duas pessoas de Direito, Estado e Organizao Internacional, possuem

    unanimidade na doutrina ptria e aliengena, quanto sua personalidade

    internacional.

    Tal unanimidade, entretanto, no si ocorrer quanto ao indivduo, pessoa

    fsica. Alguns autores entendem que o mesmo possui personalidade internacional,

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    posto que existem normas internacionais que se dirigem, ou melhor, afetam

    diretamente a ele, enquanto pessoa individualmente considerada (Cf. ACCIOLY,

    1956, v. I, p. 101-105; ACCIOLY, 1956, v. II, p. 107-122; SOARES, 2002, p. 155 -

    158). De outra parte, encontra-se estudiosos da matria que, entretanto, negam

    esta personalidade ao indivduo, pois consideram que para que qualquer norma

    internacional possa afet-lo diretamente, antes se faz necessria a anuncia do

    Estado ao qual o mesmo se acha juridicamente vinculado (ver por todos: REZEK,

    2005, p. 152-153).

    Houve poca, inclusive, que se considerava unicamente o Estado como

    possuidor de personalidade internacional. Nessa poca, evidentemente, ainda no

    se haviam desenvolvido as Organizaes Internacionais, o que s veio a ocorrer

    aps o sculo XX.

    1.4 Os atos internacionais dos Estados

    Na sociedade interna, a maioria das relaes jurdicas regulada por um

    contrato, verbal ou escrito, que lhes define o mbito, a finalidade, o modo deexecuo e as conseqncias. No plano internacional, tambm as relaes, na sua

    maioria, so regidas por uma espcie de contrato entre as pessoas de DIP. O que

    ocorre que aqui o ajuste de vontades recebe, geralmente, o nome de tratado

    internacional. este instrumento que definir as partes envolvidas, o mbito de

    aplicao de suas normas, a finalidade das partes, enfim, tudo que seja necessrio

    para o bom e fiel cumprimento da vontade das partes.

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    1.4.1 A estrutura do Tratado internacional

    Via de regra, um tratado internacional composto de trs partes, distintas e

    nesta ordem: Prembulo, dispositivo e anexos (REZEK, 2005, p. 44-46; SILVA,

    2002, p. 57).

    No prembulo do tratado encontram-se as partes pactuantes, as causas que

    levaram sua concluso e suas finalidades. Normalmente se identificam no

    prembulo expresses do tipo: "Considerando...", "Tendo em vista...",

    "Reconhecendo...", "Esperando...", "Desejando...", etc.

    O dispositivo constitui o cerne do tratado. a parte jurdica propriamente dita.

    aqui que as partes estabelecem os direitos e obrigaes juridicamente exigveis,

    as formas de execuo e concluso do pactuado, os modos de soluo de

    divergncias e as conseqncias para os casos de inadimplemento.

    Os anexos so formados por peas apensas parte dispositiva, compostas

    por grficos, mapas, estatsticas, relatrios, etc. A colocao como anexo se justifica

    apenas para no se misturar a linguagem eminentemente jurdica da partedispositiva com a linguagem prpria destes ltimos.

    Vale ressaltar, ainda, as chamadas clusulas finaisou processualstica, que

    dizem respeito forma de entrada em vigor, durao, reservas, emendas e trmino

    dos atos internacionais.

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    1.5 A Responsabilidade Internacional dos Estados

    Em 2003 a Comisso de Direito Internacional das Naes Unidas, em seu 55

    perodo de sesses2, chamou a ateno para a responsabilidade internacional dos

    Estados por danos causados ao meio ambiente, ressaltando, por exemplo, o

    Convnio de Lugano, de 1993, sobre a responsabilidade civil por danos resultantes

    de atividades perigosas para o meio ambiente, que ainda no entrou em vigor e o

    Protocolo Conveno da Basilia sobre a responsabilidade e indenizao por

    danos resultantes dos movimentos transfronteirios de dejetos perigosos e sua

    eliminao3, no qual as diferentes partes so individual ou solidariamente

    responsveis nas vrias etapas do movimento de dejetos perigosos

    (PNUMA/CHW/5/29). Alm dessas, a Comisso menciona tambm a Conveno

    sobre a responsabilidade civil por danos causados durante o transporte de

    mercadorias perigosas por rodovias, ferrovias e meios fluviais, de 1989, (ONU-

    ECE/TRANS/79).4

    Alm dos acordos internacionais (bi ou multilaterais) visando a proteo

    ambiental, os Estados individualmente tm tomado atitudes no mesmo sentido, seja

    proibindo a exportao e/ou importao de determinados produtos, seja restringindoo comrcio dos mesmos.

    2 Informe da Comisso de Direito Internacional - 55 perodo de sesses, 2003, p. 85.3 Esta Conveno tem como objetivo estabelecer obrigaes com vistas a reduzir os movimentos

    transfronteirios de resduos perigosos ao mnimo e com manejo eficiente e ambientalmenteseguro, alm de minimizar a quantidade e toxicidade dos resduos gerados e seu tratamento(depsito e recuperao) de forma ambientalmente correta e prxima da fonte geradora. Foiconcluda em Basilia (Sua) em 22 de maro de 1989 e entrou em vigor em 5 de maio de 1992,contando, em novembro de 2006, com 168 Estados-partes. Fonte: (United Nations, Treaty Series,

    vol. 1673, p. 57). O Brasil a ela aderiu em 1992, tendo sido promulgada no plano interno, peloDecreto n 875 de 19/07/93, publicado no D.O.U. em 20/07/93. O Protocolo citado ainda no estem vigor. Fonte: Doc. UNEP/CHW.1/WG/1/9/2.

    4 Ainda no est em vigor (Fevereiro/2007)

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    guisa de exemplo, destaca-se neste passo, lio apresentada por Corra

    (1998, p. 25) quando, ao relacionar comrcio e meio ambiente, enumera algumas

    medidas restritivas ao comrcio com o objetivo de proteo ambiental que, "alm

    dos evidentes efeitos comerciais, tendem a bloquear sinais de preo e mascaram

    mudanas na competitividade internacional". So elas:5

    a) proibies, sanes, ou restries a importaes;

    b) proibies ou restries a exportaes [principalmente no caso de

    recursos naturais no-renovveis];

    c) proibio ou restries a venda, compra, circulao ou consumo

    domstico [...] podem ser implementadas por restries a importaes,

    verificaes de fronteira e outros controles autorizados pela legislao

    interna para assegurar a integridade das regulaes do mercado

    domstico);

    d) quotas para uso de recursos [exemplo: quotas para pesca, colheita ou

    extraes vegetal];

    e) procedimentos de informao para consentimento prvio, que visam o

    aumento da transparncia no comrcio dos produtos envolvidos.

    A essas medidas Corra (1988, p. 26) acrescenta: "(i) tarifas de importao

    relacionadas ao mtodo e processo de produo; (ii) ajustes fiscais de fronteira

    (border tax adjustements); (iii) direitos compensatrios e (iv) selos ambientaismandatrios".

    Para o Direito, a configurao da responsabilidade internacional do Estado,

    exige a presena simultnea das seguintes condies:

    5 Segundo informa Corra (1988, p. 26), essas medidas foram relacionadas pelo Secretariado doGATT em 1992, para os trabalhos do Grupo sobre Medidas Ambientais Internacionais.

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    a) o ato ilcito, que pode ser caracterizado pela prtica de algum ato proibido

    ou no tolerado pela comunidade nacional, por exemplo o descumprimento

    imotivado de um tratado;

    b) a existncia deum dano. Isto significa que atos que no causem nenhum

    prejuzo (material ou imaterial) no ensejam a responsabilidade

    internacional do Estado; e

    c) a imputabilidade, que significa a possibilidade de se atribuir a autoria do

    fato a uma pessoa de DIP. Em outras palavras, o fato que originou o dano

    deve ter sido praticado por um Estado ou uma Organizao Internacional

    ou por algum particular vinculado juridicamente ao Estado ou O. I. e cujo

    comportamento poderia (e deveria) ter sido evitado pelos mesmos.

    Apesar da existncia de um ato ilcito constar como pressuposto para a

    responsabilidade internacional do Estado, pode acontecer, entretanto, de um Estado

    se ver obrigado a reparar um dano provocado por ato seu que, na origem,

    perfeitamente lcito.

    Tome-se como exemplo a construo de uma usina hidreltrica num rio

    nacional, isto , aquele cujo curso completo (da nascente foz) se encontre no

    territrio de um nico Estado. Esta construo perfeitamente lcita. Entretanto,

    dependendo do tamanho da usina, pode haver um comprometimento do

    ecossistema regional, que poder incluir rea de um outro Estado. Neste caso,

    havendo dano ambiental6 neste outro Estado, o causador ser chamado a

    6 Vale lembrar que, s vezes, um dano ambiental pode levar dcadas para ser percebido.

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    responder pelos prejuzos. Se ele prontamente ressarcir o Estado prejudicado,

    nada mais haver para ser feito ou discutido. Por outro lado, se o Estado

    causador do dano, ao ser interpelado sobre os prejuzos causados ao outro ou

    mesmo outros Estados, se furtar a responder por sua conduta, esquivando-se

    de tomar medidas que atenuem os danos provocados, ou at interrompendo

    determinada atividade por ser nociva aos legtimos interesses de outros Estados

    em proteger seu meio ambiente, a sim, estar configurado o ato ilcito.

    de se reparar que a ilicitude do ato no est na construo da usina,

    perfeitamente lcita dentro dos cnones da soberania absoluta dos Estados

    sobre seu territrio e seus recursos naturais. A ilicitude surgir no momento em

    que o Estado se recusar a tomar medidas relacionadas aos prejuzos causados

    a terceiros.

    Verificada a responsabilidade do Estado, surge a necessidade de reparar

    o dano causado pelo mesmo. A extenso da reparao de um dano provocado

    ir variar de acordo com a espcie e o tamanho do prejuzo sofrido. Destarte, as

    formas de se reparar o prejuzo sofrido por um Estado podem ficar restritas a

    um simples pedido de desculpas (tambm conhecido como retratao) quando,por exemplo, um representante de determinado Estado agride de forma verbal a

    gesto ambiental de outro Estado, mas pode tambm assumir a forma de

    reparao financeira, quando se tem a hiptese em que um pas provoque

    danos materiais irreversveis a um outro Estado, momento em que a nica

    reparao possvel ser aquela sob a forma de indenizao em dinheiro.

    Quando os danos causados forem do tipo reversvel, poder o Estado, causador

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    do dano, promover a volta ao estado original das coisas, conhecida como volta

    ao status quo ante.

    Na hiptese de configurao de responsabilidade internacional por danos

    provocados a terceiros, se no houver a composio amistosa do conflito

    surgido pela recusa do Estado causador do dano ambiental, os Estados tm a

    disposio tribunais internacionais especializados em razo da matria, por

    exemplo o Tribunal Internacional do Mar7 e a Organizao Mundial do

    Comrcio8 (OMC), alm de foros mais amplos como a Corte Internacional de

    Justia.9

    Imperioso ressaltar, ainda, que o Estado pode vir a ser responsabilizado por

    ato de um particular, pessoa fsica ou jurdica, sempre que couber ao Estado a

    obrigao de evitar que tal conduta ocorra, ou que ocorra de determinada maneira.

    Nestas circunstncias, entende-se que o Estado deve ser responsabilizado porque

    falhou no seu dever de vigilncia, de prudncia, quando, na verdade, deveria ter

    atuado de forma preventiva ou repressiva.

    7 Este Tribunal mais conhecido pela sigla ITLOS (do ingls International Tribunal for the Law of theSea). Foi criado por determinao da Conveno das Naes Unidas sobre o Direito do Mar,realizada na Jamaica, em 1982, mas entrou em vigor apenas em 1994, a qual conta em novembrode 2006 com 151 Estados membros. Fonte: UN Treaty Series, vol. 1833, p. 3. Compete a esteTribunal Julgar disputas envolvendo direitos martimos que vo desde a navegao at, porexemplo, a conservao e explorao sustentvel do peixe-espada (demanda que envolve o Chileversusa Unio Europia). Foi instalado oficialmente em 18 de outubro de1996 e no um rgo daONU, mas um Tribunal independente com fortes ligaes com aquela. Sua sede em Hamburgo eo Brasil membro dede 22 de dezembro de 1988.

    8Uma das mais novas organizaes internacionais. Estabelecida em 1995, a sucessora do GATT(General Agreement on Tariffs and Trade). Apenas guisa de registro, em maio de 2006 o Brasilaparece com 35 casos perante o rgo de Resoluo de Disputas da OMC, sendo 22 comodemandante e 13 como demandado. Sua sede em Genebra, na Suia.

    9 Esta Corte o principal rgo judicirio da ONU. Tem sua sede em Haia, na Holanda e foiestabelecida em 1945 (a primeira sesso ocorreu em 1946), substituindo a Corte Permanente deJustia Internacional, que funcionava desde 1922 no mesmo local, tendo sido esta ltimaformalmente dissolvida em abril de 1946.

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    1.6 Direito Internacional Ambiental

    Quando [eu] somente estudo o particular no estou sendo holstico, no

    estou percebendo o movimento geral. Mas tambm no posso pensar emser holstico sem trabalhar com o particular.[] No posso falar daTOTALIDADE sem falar na cisco, porque estaria esvaziando o movimento,trabalhando com um mundo sem movimento, com um pas sem movimento,com uma cidade sem movimento. Estaria subtraindo a histria. E ela queme diz que o uno mltiplo, no momento seguinte, para voltar a ser uno nomovimento vindouro. No s o TODO que explica o mltiplo, o mltiploexplica o TODO. Essa a lei que explica a insero de cada lugar noespao total e o critrio de anlise que leva em conta o acontecer concretoem cada ponto da terra.

    (SANTOS, 1998, p. 168)

    1.6.1 A questo semntica

    Primeiramente, urge por em destaque o conceito pelo qual entender-se-,

    neste trabalho, a expresso meio ambiente.

    Utilizar-se- o conceito fornecido pela Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981,

    que dispe no seu artigo 3, inciso I, que meio ambiente , o conjunto de condies,

    leis, influncias e interaes de ordem fsica, qumica e biolgica, que permite,

    abriga e rege a vida em todas as suas formas.

    Esta conceituao no difere muito da que foi utilizada pela Conveno

    Europia sobre a Responsabilidade Civil pelos Danos Resultantes de Atividades

    Perigosas para o Meio, assinada em Lugano, a 21 de Junho de 1993, a qual em seu

    artigo 2, alnea 10, considera que o ambiente compreende: os recursos naturais

    abiticos e biticos, tais como o ar, a gua, o solo, a fauna e a flora, e a interao

    entre estes mesmos fatores; os bens que compem a herana cultural; e os

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    aspectos caractersticos da paisagem.10

    Vale mencionar, tambm, que o meio ambiente pode ser considerado sob quatro

    enfoques diferentes: meio ambiente natural, meio ambiente artificial, meio ambiente

    cultural e meio ambiente do trabalho (SIRVINSKAS, 2005, p. 29-30; FIORILLO, 2004, p.

    20-23; e sobre o patrimnio cultural, ver MACHADO, 2005, p. 898-957).

    Por recursos ambientais, nos termos do art. 3, inciso V, da Lei n 6.938/81,

    entender-se- a atmosfera, as guas interiores, superficiais e subterrneas, os esturios,

    o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora.

    Por "Administrao ambientalmente saudvel de resduos perigosos ou outros

    resduos" se entender a tomada de todas as medidas prticas para garantir que os

    resduos perigosos e outros resduos sejam administrados de maneira a proteger a

    sade humana e o meio ambiente de efeitos nocivos que possam ser provocados por

    esses resduos, conforme estabelecido pelo art. 2 da Conveno da Basilia sobre o

    Controle de Movimentos Transfronteirios de Resduos Perigosos e seus Depsitos.11

    Ainda na esteira do art. 2 da Conveno da Basilia, se entender por "reasob a jurisdio nacional de um Estado" qualquer rea terrestre, martima ou area

    dentro da qual um Estado exera responsabilidade administrativa e regulamentadora

    de acordo com o Direito internacional em relao proteo da sade humana ou

    do meio ambiente.

    10 Ainda no entrou em vigor (Fevereiro/2007).11 Vide nota de rodap n 3.

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    Provavelmente em virtude de sua incipincia, este ramo do conhecimento

    cientfico, que se dedica ao estudo das questes ambientais num cenrio

    transfronteirio, ainda no goza de uma unanimidade na doutrina e nos atos estatais

    quanto ao seu nome. Assim, por exemplo, alguns o denominam Direito Ambiental

    Internacional (SILVA, 1995), outros como Direito Internacional do Meio Ambiente

    (SOARES, 2001) e ainda Direito Internacional da Solidariedade ou Direito

    Internacional do Ambiente (PUREZA, 1998).

    1.6.2 Direito Internacional Ambiental e a vida no planeta

    As relaes sociais necessitam, para sua efetiva realizao, de condies

    favorveis s novas possibilidades decorrentes de novos modos de pensar. Partindo

    desta premissa, o Direito Ambiental Internacional objetiva regular as constantes

    alteraes provocadas no meio ambiente pelo atuar humano que possam, de algum

    modo, produzir efeitos transfronteirios. Isto significa que mesmo um ato praticado

    exclusivamente dentro dos limites territoriais de um Estado pode estar submetido a

    regras internacionais de conduta, posto que pode provocar danos ambientais em

    outro pas. So exemplos disso a construo de uma fbrica prxima o suficiente dafronteira para que a poluio do clima ou da gua por ela gerada provoque

    alteraes na qualidade do clima, ou na qualidade/quantidade da gua no pas

    vizinho.

    Durante muito tempo, a estrutura econmica de determinado pas ditava o

    ritmo do seu crescimento ou, se se preferir, do seu desenvolvimento. Embora esta

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    afirmao contenha em si mesma uma verdade, os Estados perceberam que apenas

    o crescimento/desenvolvimento econmico no seria suficiente para a manuteno

    da vida do planeta, sobressaindo-se evidncia, a necessidade de impor limites a

    esse crescimento.

    Ocorre que esta concluso chegou num momento em que os pases se

    encontravam em patamares diferentes de desenvolvimento econmico. Isto fez com

    que as reaes a estas novas idias tivessem diferentes matizes. Os pases em

    desenvolvimento, que recm adquiriram modelos econmicos capazes de propiciar

    uma maior apropriao dos recursos naturais, se viram, de repente, numa situao

    de ter que limitar seus empreendimentos em nome da chamada preservao

    ambiental, que ento vinha ganhando contornos de poltica de salvao da

    humanidade.

    E no era totalmente descabida a resistncia dos pases em desenvolvimento,

    pois tinha-se, de um lado, aqueles pases que em decorrncia de uma evoluo

    precoce dos meios de produo, exploraram o ambiente durante sculos de forma

    predatria e sem medir conseqncias, e de outro lado aqueles que estavam ainda

    na pr-adolescncia da industrializao. Estes ltimos, no totalmente sem razo,questionavam se seria justo impedir-lhes o desenvolvimento econmico e mant-los

    numa espcie de neo-colonialismo, por conta de danos ambientais provocados por

    outros pases que, por conta mesmo destes danos, se encontravam numa posio

    industrial e comercial de superioridade. Afinal, no tinham os pases em

    desenvolvimento o direito de industrializarem-se? No tinham eles a prerrogativa de

    se auto-gerirem, evocando direitos soberanos de explorao de seus prprios

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    recursos naturais? E, por outro lado, seria justo que os Estados j desenvolvidos

    impedissem que os outros Estados alcanassem um melhor nvel scio-econmico

    por conta de restries de ordem ambiental, quando eles prprios, os primeiros,

    pouco se importavam com isso em sua busca frentica por riquezas?12 Se os pases

    ricos pouco se preocupavam com as condies ambientais vigentes para a

    sociedade de ento, que preocupaes teriam para com as futuras geraes?

    As ento consideradas futuras geraes, que pareciam distantes e

    inatingveis pela explorao ambiental, entretanto, chegaram e encontraram um

    planeta com srios problemas ambientais, como os relacionados devastao de

    florestas e a poluio dos mananciais hdricos. Problemas no presente, num futuro

    prximo e num futuro distante. Pois bem, coube a essa nova gerao, cuja

    adolescncia intelectual floresceu no incio do sculo XX, mas que ganhou

    maturidade apenas por volta de 1970, a difcil tarefa de limitar o crescimento

    econmico como forma de garantir a perenidade dos recursos naturais e, por

    conseqncia, da prpria vida no planeta.

    nesse embate que aflora o Direito Ambiental Internacional (D.A.I.). Ele

    surge como a nica alternativa pacfica de solucionar conflitos originados por danosambientais sofridos por um ou mais Estados em decorrncia da atividade de outro

    ou outros. E mais: cabe ao D.A.I., tambm, a rdua tarefa de compelir os Estados a

    uma atuao preventiva, no sentido de promover a satisfao das necessidades

    atuais dos mesmos, porm sem comprometer a segurana ambiental dos demais e

    12 Barbara Ward e Ren Dubos (1973, p. 21), j advertiam que a experincia mostra que associedades tm se preocupado com as conseqncias ecolgicas a longo prazo somente depoisque a industrializao lhes havia dado um nvel elevado de riqueza econmica.

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    sem colocar em risco as geraes futuras.13

    Corra (1998, p. 26) lembra que somente no final dos anos 60 do sculo XX,

    foi que instrumentos ambientais com implicaes comerciais e polticas comerciais

    com objetivos ambientais comearam a ser esboados num tratamento inter-

    relacionado.

    Para alcanar seus objetivos de regular a utilizao do ambiente num plano

    transfronteirio, o D.A.I. contou com a preciosa colaborao daqueles poucos

    estudiosos que ento pensavam o ambiente. Surgiu, nesse momento da histria, em

    meados do sculo XX, uma nova forma de se ver o mundo. Ganhou vigor a

    interpretao sistmica dos fenmenos ambientais em contraposio interpretao

    analtica, isolada, que se fazia ento. Com isto as ocorrncias ambientais passaram a

    ser observadas no seu conjunto planetrio, nas suas interconectividades e, por

    conseqncia, nas redes formadas por suas inter-relaes.

    Capra (2000, p.33) ensina que este pensamento sistmico ganhou vigor no

    sculo XX, momento em que a interpretao analtica, tambm chamada de

    mecanicista, atomstica, ou reducionista, cedeu lugar para o paradigma ecolgico,tambm conhecido como holstico ou organicista.14

    Como visto antes, o Direito Internacional, seja ele Ambiental ou no, pode se

    manifestar por atos costumeiros, ou seja, por condutas que embora no estejam

    13 MORAES (2004, p. 13), ensina que o Direito Ambiental ganhou independncia cientfica em relao

    ao Direito Administrativo quando se percebeu que este procura verificar a legalidade da atividade doadministrado, enquanto aquele se preocupa mais com a conseqncia dessa atividade.

    14 Capra (2000, p. 33) informa que a perspectiva holstica tornou-se conhecida como sistmica e amaneira de pensar que ela implica passou a ser conhecida como pensamento sistmico.

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    prescritas em documento algum, so praticadas e respeitadas por todos os Estados

    de uma determinada regio ou mesmo por toda a comunidade internacional, mas

    tambm pode se expressar de maneira solene, escrita, via de regra expressa sob a

    forma de um tratado internacional.

    Embora ambas as formas, costume e tratado, sejam juridicamente vlidas,

    no havendo entre ambos sequer hierarquia normativa, isto , nem o tratado vale

    mais que o costume nem este vale mais que o primeiro, o certo que o documento

    escrito fornece maior segurana jurdica no campo das relaes internacionais,

    posto que permite ao intrprete da norma (o julgador, talvez) maior certeza quanto

    sua existncia, validade e eficcia.

    A questo ambiental num contexto transfronteirio assume a cada dia novas e

    enormes possibilidades, mas sempre ficando a depender da boa vontade dos lderes

    mundiais, principalmente dos pases desenvolvidos. Isto porque o DA s pode

    subsistir por meio de acordos internacionais que reflitam o desejo geral de se

    construir um planeta melhor para todos.

    Em maio de 2006, o Diretor-Presidente da Organizao Mundial do Comrcio,Pascal Lamy, no lanamento da Semana Verde 2006 da Comunidade Europia,

    conclamou todos os Estados membros a envidarem esforos sincronizados para a

    celebrao, cada vez mais amide, de tratados internacionais relativos ao ambiente.

    Em sua fala, Lamy assinalou que a Rodada de Doha foi mais uma oportunidade para

    se afirmar a necessidade de apoio mtuo entre a OMC e os acordos multilaterais

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    relacionados ao meio ambiente.15

    Apesar de parecer uma posio financeiramente despretenciosa, isto ,

    visando apenas a melhoria da qualidade de vida do ser humano, no se deve deixar

    iludir pelo lobo em pele de cordeiro. A OMC uma organizao comercial e,

    exatamente por isso, tem sempre que, no final das contas, conquistar melhorias para

    o cenrio econmico mundial. A idia de disseminar acordos internacionais relativos

    ao meio ambiente traz, em seu bojo, ainda que se tente esconder, uma vontade

    enorme de manter o consumidor mundial em condies de movimentar a mquina

    financeira. Se para isto acontecer, for preciso se engajar em polticas de

    conservao/preservao ambiental, certo que os donos do capital o faro. Mas

    no por amor ao ser humano, mas por devoo ao dinheiro.

    Essa preocupao com o ambiente terrestre, por parte dos senhores do

    capital , apesar de tudo, necessria. Seria por demais ingnuo pensar que somente

    com as foras de organizaes internacionais, governamentais e no-

    governamentais, bem como de alguns Estados, se possa gerenciar o uso de forma

    sustentvel dos recursos naturais. Mostrou-se extremamente necessria a

    conjugao de foras Estatais e no Estatais. A unio dos Estados em prol doplaneta se manifesta, sobretudo, via tratados internacionais.

    Neste sentido, nas prximas pginas analisar-se- como se deu o surgimento

    de uma enorme quantidade de acordos internacionais relacionados condio

    ambiental do planeta, ressaltando que num primeiro momento tal anlise ficar

    15 Fonte: . Acesso em: 30 maio 2006.

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    restrita aos tratados que cuidam do ambiente de maneira geral, ficando para mais

    frente o estudo daqueles acordos relacionados exclusivamente gua doce

    transfronteiria, posto que no faria sentido a abordagem destes ltimos sem o

    estudo prvio dos primeiros.

    1.7 Evoluo histrica da proteo do ambiente no plano internacional

    Ainda que seja bvio que os aspectos biolgicos e fsicos constituema base natural do meio humano, as dimenses socioculturais eeconmicas, e os valores ticos definem, por sua parte, asorientaes e os instrumentos com os quais o homem podercompreender e utilizar melhor os recursos da natureza com o objetivode satisfazer as suas necessidades. (Conferncia Intergovernamentalsobre Educao Ambiental, 1977)

    A preocupao com o meio ambiente, no mbito da regulao de seu

    aproveitamento, fenmeno relativamente recente na histria da humanidade. Tem-

    se notcia de seu nascedouro somente a partir do final do sculo XIX (cf. CORREA,

    1998, p. 11; SOARES, 2001, p. 27; Tunkin, 1986, p. 466)

    Considerando-se o sculo XIX como o pice do liberalismo econmico e poltico,

    no seria exagero imaginar que o tratamento concedido questo ambiental naquela

    poca fosse condicionado ao mximo aproveitamento dos recursos naturais em nome

    do desenvolvimento industrial que ento se expandia. Essa viso economicista do

    ambiente se refletia, inclusive, nas leis das cidades que j emergiam como grande foco

    de concentrao humana, como conseqncia do xodo de parte da populao

    campesina que, recm sada do feudalismo, via nas metrpoles industrializadas e

    comerciais, oportunidades de melhores condies de vida.

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    Pureza (1998, p. 267) lembra a incapacidade do Direito do sculo XIX de

    incorporar categorias como ecossistema, processo biolgico, stio ou

    paisagem. Para o ordenamento jurdico de ento, existiam apenas bens de valor

    material transacionvel, o que significa serem suscetveis de compra e venda. Mesmo

    naquelas hipteses de exceo a essa regra, ou seja, bens que no poderiam ser

    objeto de comrcio, como por exemplo, a gua e o ar, a verdade que a no

    regulamentao da sua utilizao comum favorece uma apropriao de fato. Para o

    acadmico portugus, a natureza-matria seria simplesmente um objeto de

    apropriao, sobre o qual o proprietrio exerce direitos absolutos.

    Entretanto, a proteo do meio ambiente j na dcada de oitenta, ostentava

    um nmero considervel de acordos internacionais, os quais possuam como objeto,

    em sua maior parte: 1) a preservao do meio marinho, incluindo a a proteo e

    utilizao racional dos recursos vivos do mar; 2) a proteo das guas e dos

    recursos dos rios internacionais; 3) a defesa contra a poluio e outros tipos de

    aes perniciosas atmosfera terrestre e ao espao atmosfrico; 4) a proteo e

    utilizao racional da flora e da fauna da terra; 5) a proteo dos objetos e

    complexos naturais nicos, de determinados sistemas ecolgicos; e 6) a defesa do

    meio terrestre contra a contaminao radioativa (cf. TUNKIN, 1986, p. 467).

    A impressionante evoluo das tcnicas, verificada especialmente a partir da

    segunda metade do sculo XX, que ampliaram consideravelmente o poder do

    homem interferir no meio ambiente, trouxe consigo a inevitvel preocupao com o

    que se estava fazendo com a "nossa casa" em nome do progresso econmico16.

    16 Engels (1979, p. 134) j sinalizava que na medida em que o homem aprendeu a transformar anatureza que a sua inteligncia foi crescendo. A concepo naturalista da histria [...] encara o

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    Para Tunkin (1986, p. 466), a ateno dedicada aos problemas do meio

    ambiente no casual. Na viso do internacionalista russo, a atividade antrpica

    sobre a natureza, incrementada enormemente pela evoluo das tcnicas de

    pesquisa e de produo, culminaram com a utilizao intensiva dos recursos

    naturais, lanando toda a populao mundial numa srie crise ecolgica.

    Esse novo posicionamento, em mbito global, fez com que os Estados

    percebessem que a tradicional noo de territrio soberano estava colocada em

    xeque. Da surgiram as idias de que o ambiente, na verdade, deveria ser tratado

    como uma questo mundialmente interligada, e interdependente, embora

    requisitasse aes pontuais, mas coordenadas. Eis a gnese da cooperao

    internacional para a preservao do meio ambiente.

    No sculo XX, principalmente, a comunidade internacional comeou a

    perceber que determinadas atividades antrpicas, possibilitadas em grande parte

    pelo imenso desenvolvimento tecnolgico verificado no perodo, podem provocar

    conseqncias que ultrapassam as fronteiras nacionais.

    A idia de cooperao internacional est na essncia de qualquer proposta deequacionamento dos desafios ambientais, como poluio e escassez de alimentos.

    Principalmente a partir do sculo XX, como lembra Soares (2001, p. 27), essa

    tendncia de mundializar as vivncias internas como caminho necessrio

    proteo ambiental do planeta se mostra irreversvel e se transmuda num imperativo

    problema como se exclusivamente a natureza atuasse sobre os homens e como se as condiesnaturais determinassem, como um todo, o seu desenvolvimento histrico. Essa concepounilateral esquece que o homem tambm reage sobre a natureza, transformando-a e criando parasi novas condies de existncia.

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    de condutas no mais sujeitas unicamente ao arbtrio ditado pela soberania estatal.

    Disso exemplo o constante monitoramento internacional promovido por pases que

    podem ser afetados por obras nacionais de grande vulto, como a construo de uma

    usina hidreltrica, ou utilizao predatria da irrigao, num curso dgua de

    interesse supranacional.

    No plano interno, isto , na vida domstica dos Estados, a regulao e

    monitoramento das atividades empreendidas pelos particulares (e pelos rgos

    pblicos), com o objetivo de explorao das riquezas naturais competncia

    exclusiva do poder local, sendo que para isso concorrem as determinaes (jurdicas

    e administrativas) a em vigor, e s quais todos os jurisdicionados se encontram

    compulsoriamente obrigados.

    No plano internacional, entretanto, como ser visto a seguir, as normas so

    frutos da vontade dos Estados, o que pressupe o pleno e prvio consentimento do

    mesmo para se ver obrigado a alguma atitude - comissiva (fazer) ou omissiva (no

    fazer). Da ser possvel concluir que somente uma comunho de interesses, com um

    forte sentido de cooperao, pode propiciar humanidade uma sadia qualidade de

    vida sem colocar em risco o seu prprio desenvolvimento e os direitos das geraes

    futuras. Alcanar essa comunho de interesses uma tarefa herclea, posto que at

    bem pouco tempo o mercado da sociedade de massas pouco se importava com as

    conseqncias do aproveitamento desmedido dos recursos naturais.

    Com efeito, Soares (2001, p. 39), leciona que somente no sculo XX, o meio

    ambiente passou a integrar o mundo jurdico como um valor autnomo.

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    Entretanto, vale lembrar que Moraes (1990, p. 7) informa que Ratzel, j no

    sculo XIX, traava as primeiras linhas do que viria a ser a principal via de

    indagao dos gegrafos, ou seja, a questo da relao entre a sociedade e as

    condies ambientais.17

    verdade que a preocupao com alguns elementos do meio ambiente

    so quase to antigas quanto o homem civilizado, como o caso da

    preocupao com a quantidade e a qualidade da gua, mas as normas que

    regulavam as condutas, por exemplo, na idade mdia, visando a proteo da

    gua, no expressavam outra coisa seno uma viso utilitarista e imediatista

    dos recursos da natureza. Na lio de Soares (2001, p. 39), tais normas

    estavam ligadas noo de Direito de vizinhana ou dos valores econmicos

    de desvalorizao da propriedade, e sempre de maneira isolada e tpica, sem

    qualquer relao com outros elementos do meio ambiente.18

    Por esse raciocnio, as leis relativas caa e pesca no podem ser

    tidas como precursoras da atual legislao de proteo ambiental, porque o

    objetivo se limitava mera proteo dos indivduos, sem qualquer preocupao

    com a espcie e, muito menos, com as relaes entre elas e o meio ambiente e,consequentemente, com a vida humana no conjunto da biosfera (SOARES,

    2001, p. 39)

    17 Essa preocupao se reveste de maior vulto na obra de Ratzel quando o mesmo se aproxima dateoria do espao vital, a qual ser abordada no captulo dedicado ao territrio.

    18 Dallari (2003, p. 39), ao abordar o surgimento da idia de servio de sade pblica, no Estado

    liberal burgus do final do sculo dezoito, fala em uma solidariedade de vizinhana, na qual oEstado deveria se envolver apenas se a ao das comunidades locais fosse insuficiente.

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    Por outro lado, Tunkin (1986, p. 466) afirma que os primeiros acordos

    internacionais de proteo da natureza apareceram no final do sculo XIX e

    princpios do sculo XX. Visavam, essencialmente, a defesa e

    regulamentao da caa de determinados tipos de animais (por exemplo, o

    acordo de 1897 sobre a proteo das otrias). O que ocorreu a partir do

    sculo XX, ainda sob a tica de Tunkin, foi uma mudana qualitativa na

    regulamentao jurdica internacional das questes de proteo da natureza

    do nosso planeta (1986, p. 466).

    No Brasil, ressalta-se, guisa de registro, notcia que traz Corra (1998,

    p.11), dando conta de que, j em 1799, Jos Gregrio de Moraes Navarro, alertava

    para o esgotamento dos solos em reas cultivadas e propunha a criao de

    pequenos bosques junto s cidades e vilas e outras medidas para reparar todos os

    erros da lavoura do Brazil (sic).

    Soares (2001, p. 41) acredita que a verdadeira origem do Direito Ambiental

    est no Direito Sanitrio,19 mais precisamente na considerao do Direito Sade

    como um dos direitos humanos fundamentais, os quais estariam ligados,

    inexoravelmente, a uma boa qualidade ambiental. Em reas como a medicina,psicologia e demais ofcios ligados sade pblica (seja individual ou coletivamente

    19 Dallari (2003, p. 39) informa que o Direito Sanitrio, ou Direito da Sade Pblica, um ramo doDireito pblico que se desmembrou do Direito Administrativo. Nas suas palavras O DireitoSanitrio se interessa tanto pelo direito sade, enquanto reivindicao de um direito humano,quanto pelo direito da sade pblica: um conjunto de normas jurdicas que tm por objeto apromoo, preveno e recuperao da sade de todos os indivduos que compem o povo dedeterminado Estado, compreendendo, portanto, ambos os ramos tradicionais em que seconvencionou dividir o direito: o pblico e o privado. Tem, tambm, abarcado a sistematizao da

    preocupao tica voltada para os temas que interessam sade e, especialmente, o DireitoInternacional Sanitrio, que sistematiza o estudo da atuao de organismos internacionais que sofonte de normas sanitrias e dos diversos rgos supra-nacionais destinados implementao dosdireitos humanos.

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    considerada), as relaes entre o ambiente e a sade so estudadas, pelo menos,

    desde o mdico, bilogo e alquimista suo que se auto-intitulou Paracelso20. Da

    terem-se hoje em dia reas do conhecimento como a Psicologia Ambiental, Direito

    Ambiental do Trabalho, etc.

    Relacionar a origem da preocupao ambiental com questes de

    saneamento urbano parece encontrar subsdios que a convalidam. Repare-se,

    por exemplo que foi no sculo XIX, sobretudo na sua primeira metade, quando

    violentas epidemias de clera e febre amarela assolavam vrias partes do

    planeta (CHALHOUB, 1996, p. 60), que se proliferaram as idias de higiene

    pblica. No Brasil, especificamente, crescia a preocupao com o crescimento

    desordenado dos cortios no Rio de Janeiro com as condies de higiene dos

    mesmos, sendo este assunto tratado como questo de sade pblica, num

    momento que Chalhoub (1996, p. 29), localizou o surgimento de uma ideologia

    da higiene.21

    No estado de So Paulo, em fins do sculo XIX e incio do sculo XX a

    situao era parecida, com grandes epidemias de febre amarela, alm da

    varola e da febre tifide, conforme relata Telarolli Jr. (1996, p. 47-51). Noperodo compreendido entre o fim da monarquia e o incio da repblica, as

    20 O nome de Paracelso era Philippus Theophrastus Bombast vom Hoheheim, tendo nascido nacidade de Einsiedeln, Sua, em 1493, e morrido em Salzburg, Austria, em 1541.

    21 Chalhoub (1996, p. 34) transcreve trecho de um projeto de posturas apresentado CmaraMunicipal da Corte pelo Dr. Jos Pereira Rego, em fevereiro de 1866. Na introduo doreferido projeto, Pereira Rego deixa claras algumas idias que se tornariam em breve osenso comum dos administradores da cidade: O aperfeioamento e progresso da higienepblica em qualquer pas simboliza o aperfeioamento moral e material do povo, que ohabita; o espelho, onde se refletem as conquistas, que tem ele alcanado no caminho da

    civilizao. To verdadeiro o princpio, que enunciamos, que em todos os pases maiscultos os homens, que esto frente da administrao pblica, procuram, na rbita de suasatribuies, melhorar o estado da higiene pblica debaixo de todas as relaes, como umelemento de grandeza e prosperidade desses pases....

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    aes empreendidas pelas autoridades pblicas em So Paulo limitaram-se

    s medidas necessrias ao controle das epidemias, baseadas na

    bacteriologia e em aes de polcia mdica e campanha sanitria (Telarolli,

    1996, p.67).

    Vale lembrar que a situao de miserabilidade das condies ambientais nas

    cidades, em grande parte provocada pela recm surgida revoluo industrial e o

    conseqente xodo rural que abarrotou os grandes centros, no foi privilgio do

    Brasil. Antes, e com maior intensidade, tal fenmeno ocorreu, no mesmo sculo XIX,

    na Europa.

    Ribeiro (1993, p. 28), chama a ateno para o fato de que o primeiro Cdigo

    Sanitrio do Estado de So Paulo, surgido em 1894 e que reunia normas de higiene

    e sade pblica, regulamentava o espao pblico e o privado. Estendia as normas

    de higiene para outras esferas da vida dos habitantes da cidade de forma mais

    rigorosa do que a das Posturas Municipais. Nada escapava do Cdigo.22

    Engels (1985, p. 54), em uma de suas visitas Inglaterra, assim se referiu

    cidade de Bolton, situada a dezoito km a noroeste de Manchester.:[...] Esta cidade s possui, tal como me foi dado verificardurante vrias estadas, uma rua principal, Deansgate, de restobastante suja, que ao mesmo tempo serve de mercado e que,mesmo com muito bom tempo, no passa de uma passagemsombria e miservel, embora s tenha, alm das fbricas,casas baixas de um ou dois andares. Como sempre, a parteantiga da cidade est particularmente vetusta e miservel.Atravessa-a uma gua negra crrego ou uma sucesso de

    22 Talvez no por acaso tantos nomes que ficaram famosos no Brasil, neste perodo, eram de

    sanitaristas. Por exemplo, tem-se: Adolfo Lutz (1855-1940), Emlio Ribas (1862-1925), Vital Brasil(1864-1950), Oswaldo Cruz (1872-1917) e Carlos Chagas (1879-1934), todos de certa formainfluenciados pelas pesquisas de Edward Jenner (1749-1823), na Inglaterra e Louis Pasteur (1822-1895), na Frana.

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    charcos pestilentos? que contribui para empestearcompletamente um ar j nada puro.23

    Entretanto, como lembra Chalhoub (1996, p. 45), as pretenses doshigienistas encontraram limites no pacto liberal de defesa da propriedade privada,o

    qual pelo menos durante a vigncia da monarquia, garantia determinados direitos

    de uso e gozo do patrimnio.

    Aps a II grande guerra, principalmente, o estudo do ambiente ganhou novos

    contornos, cedendo lugar a uma abordagem mais ampla, tomando-se por base uma

    dimenso ecossistmica, ou, como preferem os autores de lngua inglesa, uma

    ecosystem approach.

    O que parece claro para este mtodo de abordagem que os componentes

    ecolgicos e sociais dos problemas ambientais so inseparveis. E esta regra vale

    tanto para as pequenas cidades quanto para as metrpoles (NAES UNIDAS,

    2003, p. 9).24

    O conceito de ecossistema desenvolveu-se como uma disciplina e como uma

    abordagem. Seu enfoque primrio nas interaes entre os seres vivos e seus

    ambientes no-vivos forneceu um piv para a cooperao entre um leque de

    disciplinas das cincias humanas, naturais e sociais. Destarte, a abordagem

    23 De reparar que Engels escreveu estas palavras na mesma poca em que as idias de Jenner, emais tarde de Pasteur, sobre saneamento ambiental e vacinao em massa se difundiam. Engelspercebeu as mesmas condies de insalubridade em todas as cidades inglesas visitadas, entreelas Londres, Manchester, Oldham e Preston. Sobre a realidade londrina, escreveu que as ruasno so planas nem pavimentadas; so sujas, cheias de detritos vegetais e animais, sem esgotos

    nem canais de escoamento, mas em contrapartida semeadas de charcos estagnados e ftidos(1985, p. 38).

    24 Pdua (2006, s/p) escreveu que As desigualdades sociais so sempre desigualdades ecolgicas,definindo os modos e escalas de acesso aos recursos naturais.

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    ecossistmica forneceu a inspirao e o suporte de muitos esforos colaboradores

    que lidam com assuntos complexos e probl