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Parte Geral – Doutrina Análise Crítica do Projeto de Novo Código de Processo Civil com Relação à Desconsideração da Personalidade Jurídica HANDEL MARTINS DIAS *1 Advogado, Mestre em Direito pela UFRGS, Doutorando em Direito na USP, Professor de Direito Processual Civil do Centro Universitário Metodista/RS. RESUMO: Este trabalho realiza uma análise crítica do incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no Projeto de novo Código de Processo Civil, destinado a preencher a lacuna exis- tente na lei quanto ao procedimento cabível para os casos em que o direito material admite a res- ponsabilização de sócio ou de administrador por obrigação da pessoa jurídica. A proposta tem como principal mérito propiciar previamente o contraditório e o direito de defesa, mas contém deficiências, destacando-se a possibilidade de se instaurar o incidente já durante o processo de conhecimento, bem como a ausência de especificação sobre a extensão da defesa e da decisão que acolhe o inci- dente. Considerando que o objetivo da desconsideração da personalidade jurídica é estender os efei- tos subjetivos do título executivo, o incidente deveria ser cabível apenas durante o cumprimento de sentença (ou do processo de execução) e a decisão que acolhe o pedido poderia somente declarar a responsabilidade patrimonial do sócio ou administrador requerido, sem condená-lo conjuntamen- te com a pessoa jurídica que teve a sua personalidade desconsiderada. Ademais, deveria ter sido previsto o direito do requerido de se defender não só do pedido de desconsideração, mas do próprio crédito ao qual se pretende seja satisfeito por seu patrimônio. PALAVRAS-CHAVE: Pessoa jurídica; personalidade jurídica; desconsideração; procedimento; projeto; Código de Processo Civil; devido processo legal. ABSTRACT: This paper presents a critical analysis of the procedural incident for disregarding the corporate entity as provided for in the Bill of the New Code of Civil Procedure, aimed at filling the legislative gap as to the suitable procedure for those cases in which the substantial law accepts holding a member or manager responsible for an obligation of the legal entity. Although having the main advantage of previously providing the adversary proceeding and the opportunity to be heard, the proposal has some disadvantages, notably the possibility of instituting the incident when the cognizance stage of the suit is already established, as well as its lacking in specifying the extent of the defense and of the decision which accepts the incident. Considering that the purpose of the disregarding of the corporate entity is to increase the subjective effects of the enforceable instrument, the procedural incident should be applicable only during the enforcement of the judgment (or the execution procedure) and the decision which accepts the claim should only state the proprietary liability of the responding member or manager, without adversely judging such member or manager jointly with the company having its entity disregarded. Furthermore, it should be provided the right of the defendant to contend not only the claim for the disregarding, but also the very credit which is intended to be paid with his property. * E-mail: [email protected]. Twitter: @Handel_Dias.

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Parte Geral – Doutrina

Análise Crítica do Projeto de Novo Código de Processo Civil com Relação à Desconsideração da Personalidade Jurídica

HANDEL MARTINS DIAS*1

Advogado, Mestre em Direito pela UFRGS, Doutorando em Direito na USP, Professor de Direito Processual Civil do Centro Universitário Metodista/RS.

RESUMO: Este trabalho realiza uma análise crítica do incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no Projeto de novo Código de Processo Civil, destinado a preencher a lacuna exis-tente na lei quanto ao procedimento cabível para os casos em que o direito material admite a res-ponsabilização de sócio ou de administrador por obrigação da pessoa jurídica. A proposta tem como principal mérito propiciar previamente o contraditório e o direito de defesa, mas contém deficiências, destacando-se a possibilidade de se instaurar o incidente já durante o processo de conhecimento, bem como a ausência de especificação sobre a extensão da defesa e da decisão que acolhe o inci-dente. Considerando que o objetivo da desconsideração da personalidade jurídica é estender os efei-tos subjetivos do título executivo, o incidente deveria ser cabível apenas durante o cumprimento de sentença (ou do processo de execução) e a decisão que acolhe o pedido poderia somente declarar a responsabilidade patrimonial do sócio ou administrador requerido, sem condená-lo conjuntamen-te com a pessoa jurídica que teve a sua personalidade desconsiderada. Ademais, deveria ter sido previsto o direito do requerido de se defender não só do pedido de desconsideração, mas do próprio crédito ao qual se pretende seja satisfeito por seu patrimônio.

PALAVRAS-CHAVE: Pessoa jurídica; personalidade jurídica; desconsideração; procedimento; projeto; Código de Processo Civil; devido processo legal.

ABSTRACT: This paper presents a critical analysis of the procedural incident for disregarding the corporate entity as provided for in the Bill of the New Code of Civil Procedure, aimed at filling the legislative gap as to the suitable procedure for those cases in which the substantial law accepts holding a member or manager responsible for an obligation of the legal entity. Although having the main advantage of previously providing the adversary proceeding and the opportunity to be heard, the proposal has some disadvantages, notably the possibility of instituting the incident when the cognizance stage of the suit is already established, as well as its lacking in specifying the extent of the defense and of the decision which accepts the incident. Considering that the purpose of the disregarding of the corporate entity is to increase the subjective effects of the enforceable instrument, the procedural incident should be applicable only during the enforcement of the judgment (or the execution procedure) and the decision which accepts the claim should only state the proprietary liability of the responding member or manager, without adversely judging such member or manager jointly with the company having its entity disregarded. Furthermore, it should be provided the right of the defendant to contend not only the claim for the disregarding, but also the very credit which is intended to be paid with his property.

* E-mail: [email protected]. Twitter: @Handel_Dias.

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KEyWORDS: Legal entity; legal personality; disregarding; procedure; bill; Code of Civil Procedure; due process of law.

SUMÁRIO: Introdução; 1 Noções gerais sobre a pessoa jurídica; 2 A desconsideração da personalida-de jurídica; 3 O Projeto de novo Código de Processo Civil; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

Conforme assentou J. Lamartine Corrêa de Oliveira (1979, p. 262), em sua clássica obra A dupla crise da pessoa jurídica, é problema comum a todo e qualquer sistema jurídico em que vigore o princípio básico da sepa-ração entre pessoa jurídica e a pessoa-membro o fenômeno da utilização da pessoa jurídica para a busca de finalidades distintas daquelas que inspiram o conjunto do sistema jurídico. Com efeito, aproveitando-se do escudo da limitação de responsabilidade e da autonomia patrimonial, muitas vezes se usa a pessoa jurídica para fins imorais ou antijurídicos, sobretudo para a realização de atos abusivos ou fraudulentos. Com o escopo de evitar le-são a credores, passou-se, em hipóteses como essas, a se desconsiderar a personalidade jurídica2, responsabilizando-se pessoalmente aquele a utili-zou de forma desvirtuada. Essa solução não foi, entretanto, encontrada com facilidade, senão desenvolvida gradual e paulatinamente pela doutrina e pela jurisprudência3. A primeira vez que se traspassou a pessoa jurídica em juízo e se depreenderam as características individuais dos sócios, posto que apenas a fim de definir a competência para o julgamento da causa, foi em 1809, no common law norte-americano, no caso Bank of United States v. Deveaux (Freitas, 2002, p. 52-53).

O primeiro e próprio leading case de desconsideração da persona-lidade jurídica é originário da Grã-Bretanha. Em 1897, no caso Salomon v. Salomon & Co., o juiz desconsiderou a personalidade jurídica da insol-

2 Adota-se a corrente realista no que diz respeito à natureza da pessoa jurídica, motivo por que se emprega, no presente artigo, somente a locução “desconsideração da personalidade jurídica”, e não “despersonalização da personalidade jurídica”, como o faz parte da doutrina. Sobre essa questão terminológica, veja-se PANTOJA, Teresa Cristina G. Anotações sobre as pessoas jurídicas. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A parte geral do novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 85-124.

3 Walfrido Jorge Warde Júnior (2004, p. 114-167) defende, em sua brilhante tese de doutorado, que as funções atribuídas à limitação da responsabilidade entrariam, no século XX, em choque com as novas tendências do pensamento econômico e com os resultados da análise econômica do direito. Esses acontecimentos determinariam a crise da limitação da responsabilidade, a qual teria contribuído para o aparecimento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica como técnica de imputação de responsabilidade aos sócios. Piero Verrucoli (1964, p. 2) destaca que a teoria da soberania, elaborada por Haussmann na Alemanha e desenvolvida na Itália por Mossa, constitui um antecedente da disregard doctrine. A referida teoria visava a imputar ao controlador de uma sociedade de capitais as obrigações assumidas e não satisfeitas pela sociedade controlada, revelando, assim, a substância das relações em detrimento da sua estrutura formal.

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vente Salomon & Co. para responsabilizar o sócio Aaron Salomon, que, amealhando o seu fundo de comércio com familiares, havia utilizado a em-presa como fachada para a sua proteção patrimonial. Embora tenha sido reformada pela Casa dos Lordes, sob o argumento de que a sociedade havia sido constituída legalmente e que, portanto, era defeso se determinar a res-ponsabilidade pessoal de Aaron Salomon, a decisão originária auferiu gran-de repercussão, fomentando a ideia da desconsideração da personalidade jurídica. Assim, encetada a ideia, a pouco e pouco ela se disseminou em di-versos sistemas jurídicos, auferindo denominações distintas, como piercing the corporate veil, lifting the corporate veil, cracking open the corporate shell, nos direitos inglês e norte-americano; superamento della personalità giuridica, no direito italiano; durchgriff der juristichen person, no direito ale-mão; mise-à l’cart de la personnalité morale, no direito francês; e teoría de la penetración de la personalidad, no direito espanhol (Koury, 2011, p. 69).

No Brasil, a primeira desconsideração da personalidade jurídica de que se tem notícia foi realizada em 1955, de forma intuitiva, pelo Tribunal de Alçada Civil de São Paulo. No acórdão do qual foi relator o Desembar-gador Edgard de Moura Bittencourt, a 2ª Câmara reconheceu a existência da confusão patrimonial e determinou a responsabilidade pessoal do sócio que usava a sociedade, um hospital, para comprar móveis domésticos para si4. Com grande repercussão, o precedente despertou os demais tribunais para a solução aventada. No plano doutrinário, o primeiro a defender essa possibi-lidade no Brasil foi Rubens Requião, ao expor as teorias estrangeiras sobre a disregard doctrine em uma conferência em 1969 na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná5. Também foram fundamentais para a for-mação do pensamento brasileiro sobre a desconsideração da personalidade jurídica as obras de Fábio Konder Comparato (1976) e J. Lamartine Corrêa de Oliveira (1979). Assim, de maneira paulatina, mediante integração, foi

4 Assim consta na fundamentação do aresto: “Há, no caso, completa confusão do patrimônio da pessoa física do executado com o do embargante, o que resultou evidente prejuízo para quem contratou com aquele. Trata-se de bens encontrados no apartamento do executado, que não representa justificativa aceitável; são bens que não podiam ter sido adquiridos para um hospital, como a embargante (televisão, vitrola e geladeira doméstica). A embargante se organizou em sociedade anônima, cujo patrimônio se confunde com o do executado, que não quis provar nem dizer quantas ações tem e quem é o maior acionista. Hoje em dia, a atividade comercial gira quase sempre em firmas coletivas. Há pessoas físicas que têm todo o seu patrimônio envolvido em diversas firmas. Individualmente nada possuem. em obrigações assumidas em nome individual, estariam os credores em inferioridade patente se se isolassem da garantia das obrigações assumidas, quer os bens quer as atividades do devedor associado a firmas. [...] A assertiva de que a pessoa da sociedade não se confunde com a pessoa dos sócios – é um princípio jurídico, mas não pode ser um tabu, a entravar a própria ação do Estado na realização de perfeita e boa justiça, que outra não é a atitude do juiz procurando esclarecer os fatos para ajustá-los ao direito” (SÃO PAULO. Tribunal de Alçada Civil, Apelação Civil nº 9247, Rel. Des. Edgard de Moura Bittencourt, J. 11.1955. Revista dos Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 238, p. 393-395, ago. 1955).

5 Veja-se REQUIÃO, Rubens. Abuso e fraude através da personalidade jurídica (disregard doctrine). Revista dos Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 410, p. 12-24, dez. 1969.

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se consolidando a desconsideração da personalidade jurídica no Direito brasileiro, até ser consagrado em lei, no Código de Defesa do Consumidor (art. 28). Hoje, o instituto também se encontra previsto no Código Civil (art. 50), na Lei Antitruste (art. 34) e na Lei de Crimes Ambientais (art. 4º)6.

Apesar de se admitir, há anos, a desconsideração da personalidade jurídica no Brasil, encontrando-se, inclusive, positivada na legislação de di-reito material, ainda não está regulado no ordenamento jurídico um proce-dimento para se realizá-la. Fomentada pelo absoluto dissenso dos tribunais, a lacuna na lei processual tem gerado grande insegurança jurídica entre os operadores do direito, havendo, não raro, arbítrio judicial, com afronta a direitos processuais fundamentais como o contraditório, a ampla defesa e a fundamentação das decisões7-8. Cônscia da necessidade de suprir essa lacu-na, a Comissão de Juristas responsável pela elaboração do Anteprojeto de novo Código de Processo Civil propôs um procedimento para a desconside-ração da personalidade jurídica. Tombado no Senado Federal como Projeto de Lei do Senado nº 166, de 2010, essa proposta sofreu algumas alterações antes de ser encaminhada à Câmara dos Deputados, onde se encontra atual-mente como Projeto de Lei nº 8.046/2010. Nesta Casa Legislativa, o parecer apresentado pelo relator-geral em 19 de setembro de 2012, ainda pendente de análise pela Comissão Especial e de votação pelo Plenário da Câmara dos Deputados, está propondo novas modificações àquela redação que ha-via sido aprovada no Senado Federal.

As celeumas acerca dessas proposições legislativas são tão variadas quanto relevantes, o que tornam obrigatória a investigação científica. O ob-jetivo precípuo do presente ensaio é proceder a uma análise crítica des-se projeto de lei no tocante à desconsideração da personalidade jurídica, apontando os entendimentos reputados escorreitos e pesando, ao final, na conclusão, a conveniência do regime jurídico que está sendo proposto. Para isso, traçam-se, de início, a título propedêutico, algumas breves noções ge-

6 Sobre a origem e a evolução da desconsideração da personalidade jurídica no Direito brasileiro, veja-se GÓIS, Jean-Claude Bertrand de. Perfil evolutivo da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil. Revista da Esmese, Aracajú, n. 11, p. 87-101, dez. 2008.

7 Muitas vezes, acolhe-se in limine o pedido de desconsideração da personalidade jurídica formulado pelo credor, quando não ex officio, com constrição imediata do patrimônio do sócio ou do administrador. Pela representatividade, cita-se como exemplo o caso, originário da Justiça de São Paulo, em que o juiz determinou, sem qualquer fundamentação ou comunicação anterior, o arresto de mais de 800 (oitocentos) hectares de terra e de um caminhão de propriedade de um dos sócios da empresa executada, o qual não era parte na execução. Após a denegação do mandado de segurança pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a abusividade do ato judicial e deu provimento ao recurso ordinário interposto pelo sócio e desconstituiu a medida judicial arbitrária (STJ, ROMS 25251/SP, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, J. 20.04.2010, DJe 03.05.2010).

8 Sobre o devido processo legal como direito fundamental, veja-se a tese de doutoramento de Sérgio Luíz Wetzel de Mattos, defendida em 2008 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul: MATTOS, Sérgio Luís Wetzel de. Devido processo legal e proteção de direitos. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2009. p. 137 e ss.

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rais sobre a pessoa jurídica, mormente acerca dos consectários do reconhe-cimento de sua personalidade jurídica. À continuação, em virtude da reper-cussão na esfera processual, examina-se, ainda que de forma perfunctória, a desconsideração da personalidade jurídica sob a ótica do direito material. Verificam-se as teorias vigorantes no Brasil sobre a desconsideração da per-sonalidade jurídica, bem como o seu tratamento no ordenamento jurídico e a possibilidade da chamada desconsideração inversa. Em seguida, abarcam--se, em sequência, a proposta do Anteprojeto de novo Código de Processo Civil, as alterações aprovadas no Senado Federal (PLS 166/2010) e aquelas que estão sendo propostas pela Câmara de Deputados, segundo o parecer apresentado pelo seu então relator-geral (PL 8.046/2010).

1 NOÇÕES GERAIS SOBRE A PESSOA JURÍDICA

À medida que a sociedade foi se organizando, a prática revelou a necessidade de uma categoria jurídica capaz de favorecer o crescimento de setores produtivos, culturais, sociais e religiosos, o que não poderia ser alcançado pelo esforço isolado de pessoas ou da solidariedade interna de pequenos núcleos familiares. Para a viabilização dos planos de desenvolvi-mento, não bastavam mão de obra coletiva, recursos financeiros isolados, conhecimentos e experiências acumulados. Seria impraticável qualquer projeto arrojado sem que se criassem princípios e normas que distinguissem o todo dos indivíduos e sem atribuir personalidade jurídica ao ser meramen-te convencional. A doutrina jurídica correspondeu aos anseios da sociedade e projetou a categoria das pessoas jurídicas de que o Legislativo veio a se va-ler, aprovando estatuto dos seres de existência invisível. A adoção do nome pessoa para a construção jurídica não decorre do acaso, mas à semelhança de condições com a pessoa física, que possui personalidade jurídica, permi-tindo-lhe a prática de fatos jurídicos e a integrar a relação, seja no polo ativo como titular de direito subjetivos, seja no polo passivo como responsável pelo dever jurídico (Nader, 2009, p. 177-179).

A melhor teoria que explica a natureza das pessoas jurídicas é a da realidade técnica, integrante da corrente personificante9. Situada entre as teorias da ficção e da realidade orgânica, essa teoria esposa que a pessoa jurídica existe na realidade, malgrado a sua personalidade seja produto do ordenamento jurídico. A pessoa jurídica é uma entidade de existência pré-

9 Não há consenso quanto à sua natureza jurídica, existindo duas correntes: a personificante e a impersonificante, conforme se atribua ou não a personalidade jurídica à pessoa jurídica. A impersonificante se ramifica em duas teorias: a da ficção e a da equiparação. A corrente personificante também se ramifica, por sua vez, em duas teorias: a orgânica ou da realidade objetiva e a da realidade técnica. Alguns doutrinadores denominam diferentemente as correntes que procuram denominar a natureza da pessoa jurídica, v.g., Fábio Ulhoa Coelho (2003), que as divide em dois grupos: a normativista e a pré-normativista. Na primeira corrente, encontram-se a teoria orgânica e a da realidade objetiva e na segunda a da ficção e a da realidade jurídica.

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via à ordem jurídica, não dependendo desta para existir. O direito somen-te reconhece as pessoas jurídicas ao regulá-las. Como ensina Waldemar Ferreira Martins (1947, p. 33), onde existe uma vontade capaz de se de-terminar, existe um direito e, portanto, um sujeito de direitos. Pela mesma razão por que se reconhece a pessoa natural, de existência visível, há de se reconhecer a pessoa jurídica, distinta das pessoas físicas que a formam. Destarte, as pessoas jurídicas foram só reconhecidas pela legislação, pois já existiam mesmo antes da criação da lei que as positivou10.

Conquanto quase sempre as pessoas jurídicas sejam resultado de uma reunião de pessoas, esta não é essencial à sua natureza. As fundações, por exemplo, caracterizam-se pela existência de um acervo patrimonial11, mo-tivo por que Francisco Amaral (2003, p. 26-27) conceitua a pessoa jurídica como um conjunto de pessoas ou bens que se agruparam por conveniência, ou até mesmo por necessidade, para obter um objetivo em comum. Ain-da que os idealizadores da pessoa jurídica disponham de liberdade para a escolha de seu objeto, é imprescindível que ela tenha um fim a ser alcan-çado, não precisando ser a obtenção de lucro12. Os ramos de atuação das pessoas jurídicas são diversificados, podendo ser, verbi gratia, de natureza filantrópica, esportiva ou cultural. Além da reunião de pessoas ou de bens e da ideia de fim a realizar, sobressai como fator para caracterizar a pessoa jurídica a existência da personalidade jurídica13. A partir da inscrição do ato

10 Fábio Ulhoa Coelho (2003, p. 8) expõe que, para os adeptos das teorias pré-normativistas, que consideram as pessoas jurídicas seres de existência anterior e independente da ordem jurídica, a disciplina legal da pessoa jurídica é mero reconhecimento de algo preexistente, que a ordem positiva não teria como ignorar. As pessoas jurídicas se apresentam como realidades incontestáveis, como os reais sujeitos das ações dotadas de significado jurídico.

11 De acordo com o art. 62 do Código Civil, para criar uma fundação, o seu instituidor deve, por escritura pública ou testamento, realizar dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina, e declarando, se quiser, a maneira de administrá-la. A fundação somente pode constituir-se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência.

12 Sílvio de Salvo Venosa (2003, p. 253-254) sublinha que a atividade do novo ente deve dirigir-se a um fim lícito. Não se adapta à ordem jurídica a criação de uma pessoa que não tenha finalidade lícita. Não pode a ordem jurídica admitir que uma figura criada com seu beneplácito contra ela atente.

13 O Código Civil prevê duas hipóteses de sociedades não personificadas: a sociedade em comum (arts. 986 a 990) e a sociedade em conta de participação (arts. 991 a 994). Habitualmente chamadas na doutrina por entidades de fato ou sociedades de fato, as sociedades em comum são aquelas que não possuem atos constitutivos registrados. Apesar de a pessoa jurídica existir desde o momento em que o contrato é firmado, mesmo de forma verbal, e os sócios passam a atuar conjuntamente, a personalização acontece somente quando há o registro. Si et inquantum não houver o ato de registro, todos os sócios respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais, sendo defeso inclusive aproveitar o benefício de ordem aquele que contratou pela sociedade (CC, art. 990). No que tange às sociedades em conta de participação – exceção em relação aos demais tipos societários, na medida em que não constitui pessoa jurídica, não adquirindo, via de consequência, personalidade jurídica –, apenas o sócio ostensivo possui responsabilidade solidária e ilimitada pelas obrigações da sociedade, porquanto é ele que está à frente dos negócios. Os demais sócios participantes são meros financiadores das operações, obrigando-se exclusivamente apenas perante o sócio ostensivo, nos termos do contrato social (CC, art. 991).

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constitutivo no respectivo registro (CC, art. 45)14, a pessoa jurídica adquire a personalidade jurídica e, com ela, uma série de consectários, destacando-se a titularidade negocial e processual, a incomunicabilidade de seus direitos e obrigações e a autonomia patrimonial15. Tais atributos são fundamentais para o desenvolvimento da atividade econômica na medida em que incen-tivam os indivíduos a investirem ante a diluição dos riscos. Pois, diante da irresponsabilidade pelas obrigações sociais, os investidores podem aplicar seu dinheiro sem necessariamente comprometer o seu patrimônio particular (Lgow, 2011, p. 36).

Dotada de personalidade jurídica, a pessoa jurídica pode, por meio de seu administrador, praticar atos e negócios jurídicos em nome próprio para o bom desempenho de sua atividade, assim como, em face de sua capacidade processual, defender os seus interesses em juízo, ativa ou passi-vamente16. As pessoas jurídicas não se confundem com as de seus membros, tampouco com os seus direitos, as suas obrigações ou os seus patrimônios. Por conseguinte, somente o patrimônio da pessoa jurídica responde por suas dívidas perante terceiros. No entanto, essa autonomia de responsabilidade e de patrimônio não é absoluta em algumas modalidades de pessoas jurídicas de direito privado17. Mas, nessas hipóteses de comunicação de obrigações,

14 De acordo com o art. 45 do Código Civil, a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado começa com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo. O registro deve declarar a denominação, os fins, a sede, o tempo de duração e o fundo social, quando houver; o nome e a individualização dos fundadores ou instituidores, e dos diretores; o modo por que se administra e representa, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente; se o ato constitutivo é reformável no tocante à administração, e de que modo; se os membros respondem, ou não, subsidiariamente, pelas obrigações sociais; e as condições de extinção da pessoa jurídica e o destino do seu patrimônio, nesse caso (CC, art. 46). Essa regra não se aplica às pessoas jurídicas de direito público. Como bem ressalva Sílvio de Salvo Venosa (2003, p. 253-254), o Estado, pessoa jurídica fundamental, tem sua origem na Constituição. Surge espontaneamente de uma elaboração social, como necessidade para ordenar a vida de determinada comunidade. Os Estados federados têm sua origem na própria Constituição ou na lei que os cria, assim como os Municípios, que gozam de autonomia. Em síntese, a pessoa jurídica de direito público é criada por lei.

15 Também são consequências da personalidade jurídica o nome, a nacionalidade, o domicílio e a capacidade de contrair deveres e de ser titular de direito subjetivos, inclusive aqueles que protegem os direitos de personalidade. O art. 52 do Código Civil prevê expressamente que se aplica às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos de personalidade.

16 No momento em que adquire personalidade, pessoa jurídica adquire também capacidade, que se estende a todos os campos do direito. Entretanto, essa capacidade possui algumas limitações: a necessidade de um representante legal para que seja manifestada sua vontade, a observação dos limites impostos no ato constitutivo, a tomada de decisões por meio do voto e a existência de uma administração (Diniz, 2005, p. 261). Os atos dos administradores, exercidos nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo, obrigam a pessoa jurídica (CC, art. 47). Nos casos em que a pessoa jurídica tem administração coletiva, as decisões se tomam pela maioria de votos dos presentes, salvo se o ato constitutivo dispuser de modo diverso (CC, art. 48, caput).

17 Nas sociedades limitadas, ressalvadas algumas hipóteses (v.g., aquelas previstas nos arts. 1.010, § 3º; 1.080; 1.012; 1.015 a 1.017 e 1.158, § 3º, do Código Civil), os sócios são responsáveis até o valor de suas respectivas quotas, salvo se não estiver totalmente integralizado o capital social: hipótese em que todos os sócios respondem de forma solidária até o valor total do capital social (CC, art. 1.052). Semelhante responsabilidade têm os sócios ou acionistas das sociedades anônimas, visto que fica limitada ao preço de emissão das ações subscritas ou adquirida (Lei nº 6.404/1976, art. 1º). Já nas sociedades em comandita

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inexistindo cláusula de responsabilidade solidária18, os membros só respon-dem na proporção em que participem das perdas e caso os bens da pessoa jurídica não sejam suficientes para cobrirem a dívida (CC, art. 1.023)19. Du-rante a execução, eles têm o direito de requerer a execução de seus bens apenas depois de executados os da pessoa jurídica (CC, art. 1.024; CPC, art. 596, caput). Porém, para fazer jus ao benefício de ordem, cumprem-lhes nomear bens da pessoa jurídica suficientes para pagar o débito, sitos na mesma comarca, livres e desembargados (CPC, art. 596, § 1º).

A pessoa jurídica perde a personalidade jurídica com o cancelamento de sua inscrição no registro próprio, após o encerramento da liquidação (CC, art. 51, § 3º). No entanto, antes do procedimento liquidatário, é mister a dissolução da pessoa jurídica. A dissolução pode se dar por deliberação de seus membros, observando o previsto nos atos constitutivos (dissolução convencional); pela cassação da autorização para o seu funcionamento, nos casos em que se exige autorização de órgão competente para praticar a sua atividade (dissolução administrativa); ou por sentença, acolhendo-se pedido de qualquer dos sócios (dissolução judicial). Mesmo com a dissolução, a pessoa jurídica subsiste para os fins da liquidação, até que esta se conclua (CC, art. 51, caput), averbando-se a dissolução no registro em que a pessoa jurídica estiver inscrita (CC, art. 51, § 1º). Durante a liquidação, procuram--se solucionar as pendências negociais e vender o patrimônio com o escopo de se apurar o passivo e o ativo; após, apurada a existência de lucros na venda, procede-se à partilha destes entre os seus membros20. Sublinha Fábio Ulhoa Coelho (2003, p. 18) que, enquanto esse procedimento não se encer-

por ações, tão só o acionista diretor responde subsidiária e ilimitadamente pelas obrigações da sociedade (CC, art. 1.091). Nas sociedades em comandita simples, os sócios comanditados respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais, enquanto os sócios comanditários ficam obrigados somente pelo valor de suas quotas (CC, art. 1.045). No que respeita às sociedades em nome coletivo, todos os sócios respondem solidária e ilimitadamente caso sejam insuficientes os bens da sociedade (CC, art. 1039). Por sua vez, nas empresas individuais de responsabilidade limitada, as respectivas pessoas que as constituem têm as responsabilidade limitadas aos capitais sociais, que não podem ser inferior a cem vezes o maior salário-mínimo vigente no País (CC, art. 980-A). Nas sociedades simples, os sócios respondem subsidiariamente pelas obrigações sociais apenas se assim o determinar o contrato social (CC, art. 997, VIII).

18 Havendo responsabilidade solidária, não existe necessidade de prévio esgotamento dos bens da pessoa jurídica para que então se alcancem os bens particulares de seus membros, os quais poderão arcar com o total da dívida.

19 Em razão da personalização da sociedade empresária, os sócios não respondem, em regra, pelas obrigações desta. Se a pessoa jurídica é solvente, quer dizer, possui bens em seu patrimônio suficientes para o integral cumprimento de todas as suas obrigações, o ativo do patrimônio particular de cada sócio é absolutamente inatingível por dívida social. Mesmo em caso de falência, somente após o completo exaurimento do capital social é que se poderá cogitar de alguma responsabilidade por parte dos sócios, ainda assim condicionada a uma série de fatores (Coelho, 2011, p. 142). Sobre a frustração da execução coletiva pela falência e a busca do patrimônio pessoal dos sócios, veja-se: DINIZ, Gustavo Saad. Falência e problemas de desconsideração de personalidade jurídica. Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor, Porto Alegre, v. 6, n. 31, p. 10-20, fev./mar. 2010.

20 Há a possibilidade da extinção parcial do vínculo societário nas sociedades limitadas, com a aplicação de um procedimento distinto. Veja-se, a respeito: FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da. Dissolução parcial, retirada e exclusão de sócio. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012.

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ra, subsiste a personalidade jurídica própria e todos os efeitos derivados da personalização.

Desde o início até sua extinção, a pessoa jurídica mantém, de ordi-nário, em face de sua personificação, a limitação de responsabilidade e a autonomia patrimonial. À exceção das sociedades em nome coletivo, na qual todos os sócios respondem solidária e ilimitadamente caso sejam insu-ficientes os bens da sociedade, e de algumas sociedades em que há restrição do sócio que pode ser responsabilizado ou da medida em que podem ser responsabilizados os sócios, os membros da pessoa jurídica não são respon-sáveis pelas obrigações por ela assumidas. Contudo, essas limitações podem ser superadas a fim de se alcançar o patrimônio pessoal dos membros da pessoa jurídica ou de seu administrador, quer nas hipóteses em que a res-ponsabilidade seria exclusivamente da pessoa jurídica, quer nas hipóteses em que há uma limitação dessa responsabilidade. Isso é possível mediante a desconsideração da personalidade jurídica, quando, nos casos previstos em lei, transpõe-se a personalidade jurídica e se responsabiliza o membro da pessoa jurídica ou seu administrador. Não há extinção ou desconstituição da personalidade jurídica, mas, sim, a suspensão de sua eficácia no caso concreto por expressa decisão judicial. Como referem Marcelo Bertoldi e Marcia Carla Pereira Ribeiro (2011, p. 146), na hipótese de desconsidera-ção da personalidade jurídica, o ato constitutivo da pessoa jurídica não é desfeito, nem a sociedade se dissolve, permanecendo válida e eficaz para outros fins.

2 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

A desconsideração da personalidade jurídica tem por escopo, em hipóteses excepcionais, estender os efeitos subjetivos do título executivo a um membro ou ao administrador da pessoa jurídica, tornando-o patri-monialmente responsável pela dívida da pessoa jurídica em uma hipótese em que não teria nenhuma responsabilidade ou teria uma responsabilidade limitada. Isso significa que, procedida à desconsideração da personalida-de jurídica, o membro ou o administrador não se torna codevedor, mas, sim, responsável patrimonial pela obrigação da pessoa jurídica, pois os seus bens ficam sujeitos à execução caso os bens da pessoa jurídica não se-jam suficientes para satisfazer o débito (CPC, arts. 592, II, e 596)21. Ante a

21 Cândido Rangel Dinamarco faz, com maestria, a distinção entre responsabilidade patrimonial, responsabilidade e obrigação. A primeira seria a suscetibilidade à constrição judicial destinada a satisfazer obrigações mediante a execução forçada. Sujeitabilidade porque os bens ficam em estado de sujeição perante o juiz, suscetíveis de penhora em uma situação meramente potencial – pois, em princípio, o devedor responde por suas obrigações com os bens que integram seu patrimônio, nos termos do art. 591 do Código de Processo Civil. Já a responsabilidade civil é um conceito diferente da responsabilidade patrimonial, pois nada mais é que uma obrigação – decorrente da prática de um ilícito civil. Trata-se, pois, de um vínculo jurídico em virtude

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desconsideração da personalidade jurídica, o membro ou o administrador da pessoa jurídica torna-se executado na qualidade de responsável patri-monial, não de devedor, o qual segue sendo a pessoa jurídica, reconheci-da como tal no título executivo, na medida em que foi ela que assumiu a obrigação perante o credor. Por isso, a desconsideração da personalidade jurídica não é aplicável quando o membro ou o administrador da pessoa jurídica é responsável direto pela obrigação22, porquanto, nesta hipótese, não há interesse processual em se abstrair a personalidade jurídica para se alcançar o seu patrimônio pessoal.

Há duas teorias existentes sobre a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica: a maior e a menor. Sistematizada principalmente por Serick (1966), a teoria maior consiste em autorizar a desconsideração ignorando a autonomia patrimonial da pessoa jurídica em casos de fraude, abuso de direito ou confusão patrimonial quando há intenção de lesar ou fraudar. Gustavo Tepedino (2008, p. 10) explica que se exige a demonstra-ção de fatos atribuíveis ao membro ou administrador que frustrem legítimo interesse do credor mediante a manipulação fraudulenta da pessoa jurídi-ca. Logo, a mera insatisfação dos créditos não abona a desconsideração da personalidade jurídica, pois se busca preservar a autonomia patrimonial naquilo que for possível. De outra parte, a teoria menor autoriza a descon-sideração em caso de simples insolvência e a consequente constatação de prejuízo dos credores, sem perquirir se houve conduta abusiva ou fraudu-lenta. O simples prejuízo do credor permite a desconsideração da personali-dade jurídica, atingindo membro ou o administrador da pessoa jurídica, não obstante a probidade de suas condutas23.

A desconsideração da personalidade jurídica foi pela primeira vez prevista em lei no Brasil em 1990, com o advento do Código de Defesa do Consumidor. O art. 28, caput, do Código prevê que o juiz pode descon-siderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social, bem como

do qual uma pessoa fica adstrita a satisfazer uma prestação em proveito da outra. Com a desconsideração da personalidade jurídica, os bens daquele por ela afetados ficam sujeitos à execução e não há criação de qualquer vínculo jurídico entre credor e sócio, já que este jamais esteve adstrito a satisfazer uma prestação (Bianqui, 2011, p. 168-169).

22 Por exemplo, nos casos do art. 116, parágrafo único, e art. 135, III, ambos do Código Tributário Nacional, e arts. 117 e 158 da Lei nº 6.404/1976: com frequência referidos, equivocadamente, como hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica.

23 Rafael Lovato (2008, p. 221-222) critica a teoria menor pelo fato de que a desconsideração poderá atingir, neste caso, não só o patrimônio do sócio que agiu de má-fé e desviou o patrimônio da sociedade em prol de si mesmo, mas também daquele que tomou todas as medidas necessárias para uma boa administração e agiu de boa-fé. Assim, os riscos do negócio aumentam, e isto refletirá no preço do produto final, além de desestimular novos e arriscados empreendimentos, pois quanto maiores os riscos, menos investidores se interessam pelos empreendimentos.

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quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inativi-dade da pessoa jurídica provocados por má administração. Pela ânsia de proteger o consumidor, ou quiçá pela má compreensão do instituto, o le-gislador arrolou hipóteses que não se coadunam com a desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que permitem a responsabilidade direta do sócio ou do administrador. Na verdade, apenas o abuso de direito consti-tui autêntica hipótese de desconsideração da personalidade jurídica24. Sem embargo, depois de arrolar, no caput, uma séria de supostas hipóteses para a desconsideração da personalidade jurídica, o § 5º do art. 28 estabelece contraditoriamente que “também poderá ser desconsiderada a pessoa ju-rídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”, ou seja, a despei-to das hipóteses de cabimento previstas no caput. Forte no disposto neste § 5º, prepondera o entendimento, inclusive no Superior Tribunal de Justiça25, de que o Código de Defesa do Consumidor adota a teoria menor, bastando a simples caracterização da dificuldade do pagamento do consumidor em face da insolvência da pessoa jurídica para a efetivação da desconsideração da personalidade jurídica.

Também adotou a teoria menor a Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. A chamada Lei de Crimes Ambientais notadamente se inspirou no § 5º do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor ao prescrever, no art. 4º, integrante do Capítulo I da lei, refe-rente às disposições gerais, que “poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente”. Portanto, o mero fato de a perso-nalidade jurídica constituir obstáculo para o ressarcimento de prejuízos cau-sados à qualidade do meio ambiente permite a desconsideração da persona-lidade jurídica. Não há necessidade de se perquirir se houve concorrência de fraude ou abuso de direito. Neste caso, como sublinha Gustavo Tepedino

24 Como sublinha César Fiuza (2006, p. 157), o caput do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor mistura casos de genuína aplicação da teoria a casos em que não se aplicaria, por terem outra solução legal, em que os sócios são penalizados pessoalmente. Além disso, impõe as penalidades do insucesso gerado pela má administração, a qual não se confunde com a má-fé. Foi exatamente para proteger os sócios de eventuais problemas externos e mesmo de uma eventual má administração que surgiu a responsabilidade limitada. Os parágrafos segundo (“as sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código”), terceiro (“as sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código”) e quarto (“as sociedades coligadas só responderão por culpa”) do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor também não versam sobre desconsideração da personalidade jurídica. Como consigna Marlon Tomazette (2001, p. 90), tais hipóteses se referem à extensão da responsabilidade das sociedades que mantém relações entre si.

25 Vejam-se: STJ, REsp 1.096.604/DF, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, J. 02.08.2012, DJe 16.10.2012; STJ, AgRg-Ag 1.342.443/PR. 3ª T., Rel. Min. Massami Uyeda, J. 15.05.2012, DJe 24.05.2012; STJ, REsp 737.000/MG, 3ª T., Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, J. 01.09.2011, DJe 12.09.2011, RSTJ, v. 224, p. 337.

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(2008, p. 15), o Magistrado está livre para proceder à desconsideração da pessoa jurídica quando se prova a inexistência de bens sociais suficientes para satisfazer a dívida e a solvência de qualquer um dos sócios.

A segunda lei a positivar a possibilidade de desconsideração da per-sonalidade jurídica, a primeira pela teoria maior, foi a Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994, que transformou o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em autarquia e dispôs, entre outras providências, sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica. A cha-mada Lei Antitruste, em seu art. 18, previa que a “personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social”, bem como “quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”. Esse dis-positivo restou revogado pela Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 201126, que sucedeu a lei anterior, reproduzindo o texto do art. 18 da lei revogada no art. 34 da nova Lei Antitruste. Esta norma jurídica incorreu no mesmo erro do caput do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, ao prever hipóteses em que há responsabilidade pessoal do sócio ou do administra-dor. Como foi antes referido, o ato ilícito, o excesso de poder, a infração da lei, a violação do estatuto ou contrato social e a má administração não se relacionam com a desconsideração da personalidade jurídica, na medida em que permitem, por si sós, a responsabilidade direta de quem praticou o ato27. Como, nesses casos, o patrimônio do sócio ou do administrador já está descoberto por ser ele coobrigado, não subsiste qualquer interesse proces-sual em se abstrair a personalidade jurídica.

26 A Lei nº 12.529 “estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência; dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica; altera a Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, e a Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985; revoga dispositivos da Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994, e a Lei nº 9.781, de 19 de janeiro de 1999; e dá outras providências”.

27 Segundo Fábio Ulhoa Coelho (1995, p. 47), a teoria da desconsideração tem pertinência apenas quando a responsabilidade não pode ser, em princípio, diretamente imputada ao sócio, controlador ou representante legal da pessoa jurídica. E quando alguém, na qualidade de sócio, controlador ou representante legal da pessoa jurídica, provoca danos a terceiros em razão de comportamento ilícito, ele é responsável pela indenização correspondente. Não há, portanto, desconsideração da pessoa jurídica na definição da responsabilidade de quem age com excesso de poder, infração da lei, violação dos estatutos ou contrato social, ou por qualquer outra modalidade de ato ilícito. Em relação à má administração, o administrador não responde pelos atos praticados que não forem atos ilícitos. Ele responde “civilmente apenas pelas ações praticadas com culpa ou dolo em violação da lei ou dos estatutos, como assentado na doutrina societária, sem que se torne necessário desconsiderar a personalidade jurídica” (Tepedino, 2008, p. 27). Assim sendo, tanto a prática de ato ilícito quanto a má administração pelo administrador possuem consequências específicas àquele que praticou. A desconsideração somente poderá ocorrer quando houver prática do ato ilícito ou da má administração concomitantemente com fraude ou abuso.

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O Código Civil de 2002 também não se furtou de estabelecer os casos em que é possível se desconsiderar a personalidade jurídica, insculpindo, no seu art. 50, que,

em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam esten-didos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Esse dispositivo, que não derrogou as disposições dos microssistemas retrorreferidos, conforme se concluiu na 1ª Jornada de Direito Civil promo-vido pelo Conselho da Justiça Federal28, alinha-se à teoria maior, porquanto pressupõe, para a desconsideração da personalidade jurídica, a configura-ção de ato abusivo nas hipóteses previstas, não bastando o simples esta-do de insolvência da pessoa jurídica. Por meio de aplicação subsidiária, o art. 50 do Código Civil legitima a efetivação da desconsideração da per-sonalidade jurídica nos demais sistemas jurídicos em que não há norma específica. Na Justiça do Trabalho, por exemplo, diante da lacuna na Con-solidação das Leis Trabalhistas, é comum a aplicação subsidiária do art. 50 do Código Civil. Todavia, quase sempre se realiza uma leitura do dispositivo pela teoria menor, sendo considerada suficiente a caracterização de prejuí-zo ao trabalhador para que se desconsidere a personalidade jurídica29.

Sopesados esses diplomas, percebe-se que, embora não de maneira adequada e suficiente, a desconsideração da personalidade jurídica já está ao menos positivada no plano do direito material. Ainda não está prevista na lei a chamada desconsideração inversa, que vem sendo admitida pela doutrina e pela jurisprudência, sobretudo na partilha de bens em ações de

28 O Enunciado nº 51 aprovado na Jornada previa que “a teoria da desconsideração da personalidade jurídica – disregard doctrine – fica positivada no novo Código Civil, mantidos os parâmetros existentes nos microssistemas legais e na construção jurídica sobre o tema”.

29 De acordo com Gladston Mamede (2010, p. 239), a desconsideração da personalidade jurídica tem sido reiteradamente utilizada de forma equivocada na Justiça do Trabalho. Partindo da premissa de que os créditos trabalhistas têm natureza alimentar e são privilegiados, existem incontáveis julgamentos nos quais se desconsidera a personalidade jurídica da pessoa jurídica empregadora apenas como decorrência da insuficiência do patrimônio societário para fazer frente à condenação trabalhista. A partir da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, estendem-se os efeitos da obrigação sobre o patrimônio de qualquer dos sócios, independentemente de ter sido administrador ou ter responsabilidade direta sobre o dano verificado no patrimônio da empresa. O posicionamento é justificado apenas pela afirmação de que os créditos trabalhistas não podem ficar a descoberto. Veja-se, ainda, sobre a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito da Justiça do Trabalho: REIS, Marcelo Terra. Desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária: fundamentos da Justiça do Trabalho. Revista Síntese de Direito Empresarial, São Paulo: Síntese, n. 21, p. 114-132, jul./ago. 2011.

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divórcio e de dissolução de união estável30-31. A desconsideração inversa foi criada em virtude da utilização do estudo patrimonial da pessoa jurídica não para frustrar os credores desta, mas, sim, da pessoa do sócio mediante desvio de seus bens. Isso porque, muitas vezes, a pessoa física aproveita a sua condição de sócio para transferir os seus bens pessoais para a socie-dade com intuito de prejudicar terceiros mediante o esvaziamento de seu patrimônio. Portanto, a desconsideração inversa visa a alcançar o acervo patrimonial da pessoa jurídica quando o sócio desvirtua, de má-fé, a sua utilização em prejuízo de terceiros. Em 2010, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a aplicação desta desconsideração inversa por meio de uma interpretação teológica do art. 50 do Código Civil. Entretanto, asseverou o Superior Tribunal de Justiça que tal medida é de exceção, devendo ser aplicada tão somente se forem preenchidos os requisitos estabelecidos no art. 50 do Código Civil, com o uso abusivo da personalidade jurídica32.

3 O PROJETO DE NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Em 30 de setembro de 2009, por meio do Ato nº 379 de seu Presiden-te, o Senado Federal instituiu uma comissão de juristas destinada a elaborar o Anteprojeto de novo Código de Processo Civil. Presidida por Luiz Fux e tendo como Relatora-Geral Teresa Arruda Alvim Wambier, integraram a comissão Adroaldo Furtado Fabrício, Benedito Cerezzo Pereira Filho, Bruno Dantas, Elpídio Donizetti Nunes, Humberto Teodoro Júnior, Jansen Fialho de Almeida, José Miguel Garcia Medina, José Roberto dos Santos Bedaque Almeida, Marcus Vinícius Furtado Coelho e Paulo Cezar Pinheiro Carneiro. Conscientes da necessidade de se positivar um procedimento para a des-consideração da personalidade jurídica, previram no Anteprojeto, entregue ao Senado Federal em 8 de junho de 2010, em um capítulo próprio, for-mado pelos arts. 62 a 65, um incidente processual específico para este fim: o Capítulo II (Do incidente de desconsideração da personalidade jurídica)

30 Por exemplo, caso um dos cônjuges tenha, antes da dissolução do casamento, adquirido bens móveis ou imóveis e, com o intuito de não os compartilhar com o outro, os registra em nome de sua sociedade. No momento da partilha, tal bem não fará parte do rol dos bens a serem divididos pelo casal, pois se encontra registrado no nome da pessoa jurídica. Exemplo de cabimento da desconsideração inversa da personalidade jurídica fora do âmbito do direito de família dá-se quando o devedor transfere seus bens para a sociedade com o intuito de não adimplir dívidas com seus credores. Sobre a desconsideração inversa no direito de família, veja-se, por todos, MALHEIROS, Antônio Carlos. Teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica aplicada às relações familiares. In: ADAMEK, Marcelo Vieira von (Coord.). Temas de direito societário e empresarial contemporâneos: liber amicorum Prof. Dr. Erasmo Valladão Azevedo e Novaes e França. São Paulo: Malheiros, 2011.

31 Na 4ª Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, também se reconheceu essa teoria, mediante edição de enunciado no sentido de que a desconsideração da personalidade jurídica inversa é cabível quando o sócio utiliza a pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros (Enunciado nº 283).

32 Veja-se STJ, REsp 948.117/MS, 3ª T., Relª Min. Nancy Andrighi, J. 22.06.2010, DJe 03.08.2010.

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do Título IV (Das partes e dos procuradores)33 do Livro I (Parte Geral)34. Na Exposição de Motivos, a Comissão de Juristas consignou que esse procedi-mento foi concebido dando concreção a princípios constitucionais, com prévio contraditório e produção de provas:

O novo CPC prevê expressamente que, antecedida de contraditório e pro-dução de provas, haja decisão sobre a desconsideração da pessoa jurídica, com o redirecionamento da ação, na dimensão de sua patrimonialidade, e também sobre a consideração dita inversa, nos casos em que se abusa da sociedade, para usá-la indevidamente com o fito de camuflar o patrimônio pessoal do sócio. Essa alteração está de acordo com o pensamento que, entre nós, ganhou projeção ímpar na obra de J. Lamartine Corrêa de oliveira. Com efeito, há três décadas, o brilhante civilista já advertia ser essencial o predo-mínio da realidade sobre a aparência, quando “em verdade [é] uma outra pessoa que está a agir, utilizando a pessoa jurídica como escudo, e se é essa utilização da pessoa jurídica, fora de sua função, que está tornando possível o resultado contrário à lei, ao contrato, ou às coordenadas axiológicas”. (A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979. p. 613)

Assim dispõe o Anteprojeto de novo Código de Processo Civil sobre o procedimento para a desconsideração da personalidade jurídica:

Art. 62. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado na for-ma da lei, o juiz pode, em qualquer processo ou procedimento, decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas obrigações sejam es-tendidos aos bens particulares dos administradores ou dos sócios da pessoa jurídica.

Art. 63. A desconsideração da personalidade jurídica obedecerá ao procedi-mento previsto nesta Seção.

33 Além do segundo capítulo tratando do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, o Título IV do Livro I contém mais quatro capítulos: I – Da capacidade processual (arts. 55 a 61); III – Dos deveres das partes e dos seus procuradores (arts. 66 a 85); IV – Dos procuradores (arts. 86 a 95); e V – Da sucessão das partes e dos procuradores (arts. 96 a 100).

34 Pelo Anteprojeto, o novo Código de Processo Civil seria segmentado em cinco livros, intitulados respectivamente da seguinte forma: I – Parte Geral (arts. 1º a 301); II – Do processo de conhecimento (arts. 302 a 696); III – Do processo de execução (arts. 697 a 846); IV – Dos processos nos tribunais e dos meios de impugnação das decisões judiciais (arts. 847 a 960); e V – Das disposições finais e transitórias (arts. 961 a 970). O primeiro livro, no qual está previsto o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, seria dividido em onze títulos, a saber: I – Princípios e garantias, normas processuais, jurisdição e ação (arts. 1º a 19); II – Limites da jurisdição brasileira e cooperação internacional (arts. 20 a 26); III – Da competência interna (arts. 27 a 54); IV – Das partes e dos procuradores (arts. 55 a 100); V – Do litisconsórcio (arts. 101 a 106); VI – Do juiz e dos auxiliares da Justiça (arts. 107 a 144); VII – Do Ministério Público (arts. 145 a 150); VIII – Dos atos processuais (arts. 151 a 256); IX – Das provas (arts. 257 a 276); X – Tutela de urgência e tutela da evidência (arts. 277 a 296); XI – Formação, suspensão e extinção do processo (arts. 297 a 301). Salienta-se que, no texto original do Anteprojeto, o título “Das provas” foi equivocadamente enumerado como sétimo, enquanto deveria ser, pela sequência, o nono. Isso os dois seguintes e derradeiros títulos do Livro I também serem erradamente numerados. O Título “Tutela de urgência e tutela da evidência” foi enumerado como nono e “Formação, suspensão e extinção do processo” como décimo, em vez de décimo e décimo primeiro, respectivamente.

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Parágrafo único. O procedimento desta Seção é aplicável também nos casos em que a desconsideração é requerida em virtude de abuso de direito por parte do sócio.

Art. 64. Requerida a desconsideração da personalidade jurídica, o sócio ou o terceiro e a pessoa jurídica serão intimados para, no prazo comum de quinze dias, se manifestar e requerer as provas cabíveis.

Art. 65. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória impugnável por agravo de instrumento.

No tocante à natureza jurídica do procedimento, a Comissão de Juris-tas elegeu aquela que vem prevalecendo na prática forense, inclusive com respaldo do Superior Tribunal de Justiça: o incidente processual35. Com efei-to, o incidente processual afigura-se mais adequado para essa ampliação subjetiva da demanda com o propósito de incluir no polo passivo um res-ponsável patrimonial. Sublinha-se que não é necessária ação própria para que o contraditório e a ampla defesa sejam amplamente efetivados36. Em um incidente processual, pode se permitir não só a produção de todos os meios de prova que se poderia produzir em ação própria, como também garantir o duplo grau de jurisdição. Pelo Anteprojeto, o incidente se instaura por requerimento da parte interessada ou, ainda, quando atua na qualidade de custos legis do Ministério Público, não admitindo a instauração ex officio (art. 62). Tendo em vista que o objetivo do incidente é incluir terceiro no polo passivo da relação jurídica processual, a iniciativa só pode partir do autor ou, no interesse dele, do Parquet, não se justificando a relativização do princípio da demanda. Por outro lado, não andou bem a Comissão de Juristas em pretender estabelecer, no Código de Processo Civil, as hipó-teses de cabimento da desconsideração da personalidade jurídica: “abuso da personalidade jurídica” (art. 62) e “abuso de direito por parte do sócio”

35 No sentido da possibilidade da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica nos próprios autos da ação de execução, sendo desnecessária a propositura de ação autônoma, entre tantos outros: STJ, AgRg-EREsp 418.385/SP, 2ª S., Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, J. 14.03.2012, DJe 16.03.2012; STJ, REsp 331.478/RJ, 4ª T., Rel. Min. Jorge Scartezzini, J. 24.10.2006, DJ 20.11.2006.

36 Parte da doutrina defende que seria necessária uma ação cognitiva autônoma para que se viabilizasse o contraditório e se pudesse alcançar uma certeza acerca da responsabilidade do sócio ou administrador. Partidário dessa corrente, Fábio Ulhoa Coelho (2000, p. 48-45) anota que simples despachos em processos de execução movidos contra a sociedade, determinando a penhora de bens dos sócios, importam flagrante desobediência ao direito constitucional ao devido processo legal. O credor social deveria promover a prévia ação de conhecimento, citá-lo, provar o pressuposto de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica (fraude ou abuso de direito), obter sentença condenatória transitada em julgado para, somente depois, postular a penhora dos bens do patrimônio do mesmo da pessoa jurídica. Em sentido contrário, entre outros: ALVIM, Eduardo Pellegrini de Arruda; GRANADO, Daniel Willian. Aspectos processuais de desconsideração de personalidade jurídica. Revista Forense, Rio de Janeiro: Forense, v. 412, p. 63-84, nov./dez. 2010; THEODORO JÚNIOR, Humberto. A desconsideração da personalidade jurídica no direito processual civil brasileiro. In: YARSHELL, Flávio Luiz; PEREIRA, Guilherme Setoguti J. (Coord.). Processo societário. São Paulo: Quartier Latin, 2012. p. 317-331.

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(parágrafo único do art. 63). As hipóteses permissivas devem ser reguladas na legislação de direito material, considerando as suas especificidades37.

Outra falha do Anteprojeto foi prever, no caput do art. 63, que “a desconsideração da personalidade jurídica obedecerá ao procedimento previsto nesta Seção”. Ora, se está instituindo um procedimento legal para os casos de aplicação da disregard doctrine, obviamente que deve ser ob-servado quando for requerida a desconsideração da personalidade jurídica. Se assim não fosse, toda vez que o legislador estabelece um procedimento especial, seja para ação autônoma ou incidente processual, deveria haver um dispositivo determinando a sua aplicação38. Quanto ao procedimento propriamente dito, o Anteprojeto assentou que, “requerida a desconsidera-ção da personalidade jurídica, o sócio ou o terceiro e a pessoa jurídica serão intimados para, no prazo comum de quinze dias, se manifestar e requerer as provas cabíveis” (art. 63). Portanto, além da pessoa jurídica que se bus-ca preterir a personalidade jurídica, propôs a comunicação daquele que se pretende responsabilizar a partir da desconsideração, permitindo-se-lhe impugnar os argumentos suscitados pelo requerente a fim desconsiderar a personalidade jurídica. Este é o principal mérito do Anteprojeto: propiciar previamente o contraditório e a ampla defesa, indo ao encontro dos direitos processuais fundamentais assegurados na Constituição Federal. A imposi-ção de uma medida severa como é a desconsideração da personalidade ju-rídica não pode surpreender o jurisdicionado, não lhe oportunizando prévio contraditório e o direito de defesa, princípios básicos na seara processual contemporânea39.

Naturalmente, até mesmo para viabilizar o exercício do direito de defesa, o requerente deveria precisar, na petição, os fatos e fundamentos ju-rídicos em que embasaria o pedido de desconsideração, em conformidade com a norma material invocada. Quanto ao ônus da prova, sendo omisso o Anteprojeto, presume-se que o ônus da prova pertenceria ao requerente,

37 Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero (2010, p. 80) consideraram positiva a previsão pelo anteprojeto do incidente de desconsideração da personalidade jurídica (arts. 62 a 65), por se tratar de medida que vista a resguardar o direito ao contraditório daqueles que podem ter as suas esferas jurídicas afetadas por decisão judicial a cujo respeito não tiveram a oportunidade de influir na formação. Contudo, criticaram, com razão, a previsão das hipóteses de cabimento da desconsideração da personalidade jurídica: “É o direito material que determinar quais são as hipóteses em que possível a desconsideração da personalidade jurídica. O art. 62 respeita apenas em parte este espaço. O ideal é que não enuncie qualquer requisito para desconsideração. Este assunto pode variar de acordo com o caso concreto (comparem-se, por exemplo, os arts. 50 do CC e 28 do CDC)”.

38 Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero (2010, p. 80) também criticaram o caput do art. 63 do anteprojeto, referindo que não tem qualquer função dentro do capítulo referente ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica, já que se limita a afirmar o óbvio.

39 Sobre o direito de defesa, mormente sobre suas bases constitucionais, veja-se SICA, Heitor Vitor Mendonça. O direito de defesa no processo civil brasileiro: um estudo sobre a posição do réu. São Paulo: Atlas, 2011. p. 42 e ss.

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por aplicação subsidiária do art. 261 do Código de Processo Civil propos-to40. O fato de o art. 64, in fine, afirmar o direito do requerido de postular as provas cabíveis não tem o condão de inverter o ônus da prova, razão pela qual o requerente deveria provar os fatos constitutivos que embasariam a desconsideração da personalidade jurídica. Caso não se desincumbisse de seu ônus probatório, o pedido deveria ser rejeitado. Concluída a instrução, ou não sendo esta necessária em função da prova documental acostada, o incidente seria resolvido por decisão interlocutória, impugnável por agravo de instrumento (art. 65). A nota negativa do dispositivo foi firmar intima-ção como forma de comunicação do requerido. Como essa comunicação é dirigida a quem não participa da relação jurídica processual para que se defenda em juízo, tratar-se-ia, na verdade, de citação41.

O Anteprojeto de novo Código de Processo Civil foi tombado no Se-nado Federal como Projeto de Lei do Senado nº 166, de 2010. A Comis-são Temporária de Senadores responsável pela apreciação foi formada pelo então Senador Demóstenes Torres (Presidente), o Senador Antonio Carlos Valadares (Vice-Presidente e Relator parcial na parte referente à execução e ao cumprimento de sentença), o Senador Valter Pereira (Relator-Geral) e mais cinco relatores parciais – Senador Romeu Tuma (PTB-SP), responsá-vel pela parte geral; Senador Marconi Perillo (PSDB-GO), responsável pelo processo de conhecimento; Senador Almeida Lima (PMDB-SE), responsável pelos procedimentos especiais; Senador Acir Gurgacz (PDT-RO), responsá-vel pelos recursos; e Antonio Carlos Júnior (DEM-BA), responsável processo eletrônico. No curso dos trabalhos, o Senador Valter Pereira cumulou a re-latoria parcial da parte geral, em face da morte do Senador Romeu Tuma, e do capítulo referente aos procedimentos especiais. Amparado por uma comissão técnica formada pelos juristas Athos Gusmão Carneiro, Cassio Scarpinella Bueno, Dorival Renato Pavan e Luiz Henrique Volpe Camargo, a Comissão Temporária de Senadores propôs, em linhas gerais, a manuten-ção do texto original do Anteprojeto. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica restou assim redigido no relatório-geral elaborado pelo Senador Valter Pereira:

40 Defendendo que deveria ser invertido o ônus da prova em caso de desconsideração da personalidade jurídica: WARDE JÚNIOR, Walfrido Jorge. A crise da limitação de responsabilidade dos sócios e a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. 2004. 269p. Tese (Doutorado em Direito), Faculdade de Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. p. 224-228.

41 No mesmo sentido: MAZZEI, Rodrigo. Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica do Código de Defesa do Consumidor e no Projeto do novo Código de Processo Civil. Revista Síntese de Direito Empresarial, São Paulo: Síntese, v. 4, n. 24, p. 9-40, jan./fev. 2012, p. 24: Não há que se falar em intimação do sócio ou terceiro, pois em relação a estes a demanda nem sequer foi instaurada. Não se trata de intimação, mas de verdadeira “citação”. Em sentido divergente, entendendo que estava correto o Anteprojeto de novo Código de Processo Civil ao prever “intimação”: MONTENEGRO FILHO, Misael. Projeto do novo Código de Processo Civil: confronto entre o CPC atual e o Projeto do novo CPC, com comentários às modificações substanciais. São Paulo: Atlas, 2011. p. 238.

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Art. 77. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado na for-ma da lei, o juiz pode, em qualquer processo ou procedimento, decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas obrigações sejam es-tendidos aos bens particulares dos administradores ou dos sócios da pessoa jurídica ou aos bens de empresa do mesmo grupo econômico.

Parágrafo único. O incidente da desconsideração da personalidade jurídica:

I – pode ser suscitado nos casos de abuso de direito por parte do sócio;

II – é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumpri-mento de sentença e também na execução fundada em título executivo ex-trajudicial.

Art. 78. Requerida a desconsideração da personalidade jurídica, o sócio ou o terceiro e a pessoa jurídica serão citados para, no prazo comum de quinze dias, se manifestar e requerer as provas cabíveis.

Art. 79. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória impugnável por agravo de instrumento.

Em suma, o Senador Federal propôs a correção da forma de comu-nicação que estava prevista no art. 64 do Anteprojeto (art. 78 na redação proposta no relatório-geral do Senador Valter Pereira), substituindo “intima-dos” por “citados”. Propôs ainda a eliminação do art. 63 do Anteprojeto, suprimindo a inútil disposição de seu caput e transferindo o seu parágrafo único para o artigo de abertura do capítulo (art. 77 na redação proposta no relatório-geral do Senador Valter Pereira). Nesse dispositivo (corresponde ao art. 62 do Anteprojeto), adicionou-se ainda a possibilidade de se aplicar o mesmo incidente processual a fim de se alcançar, para satisfazer crédito, bens de empresa do mesmo grupo econômico. Ademais, apesar de constar no caput do art. 62 do Anteprojeto (art. 77 na redação proposta no relatório--geral do Senador Valter Pereira) que a desconsideração pode se dar “em qualquer processo ou procedimento”, propôs o acréscimo de um inciso no parágrafo único com a finalidade de deixar claro que o incidente “é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sen-tença e também na execução fundada em título executivo extrajudicial”. Com a aprovação do relatório-geral em 15 de dezembro de 2010, foi o projeto de lei encaminhado à Câmara dos Deputados.

Na Câmara dos Deputados, o projeto de lei foi tombado sob o nº 8.046/2010. Criada e instalada a Comissão Especial para emitir parecer, foram eleitos Presidente o Deputado Fábio Trad; Primeiro Vice-Presidente, o Deputado Miro Teixeira; Segundo Vice-Presidente, o Deputado Vicente Arruda; e Terceira Vice-Presidente, a Deputada Sandra Rosado. Como rela-tor-geral, foi designado o Deputado Sérgio Barradas Carneiro (PT-BA), além

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de cinco relatores parciais: o Deputado Efraim Filho (DEM-PB), para os arts. 1º a 291, referentes à parte geral; o Deputado Jerônimo Goergen (PP-RS), para os arts. 292 a 499 e 500 a 523, referentes ao processo de conhecimen-to e ao cumprimento de sentença, nessa ordem; o Deputado Bonifácio de Andrada (PSDB-MG), para os arts. 524 a 729, referentes aos procedimentos especiais; o Deputado Arnaldo Farias de Sá (PTB-SP), para os arts. 730 a 881, referentes ao processo de execução; o Deputado Hugo Leal (PSC-RJ), para os arts. 882 a 998 e 999 a 1007, referentes ao processo nos tribunais e meios de impugnação das decisões judiciais e às disposições finais e transi-tórias, nessa ordem.

O parecer, apresentado no dia 19 de setembro de 2012, propondo significativas e numerosas mudanças em relação à redação aprovada pelo Senado Federal, ainda precisa ser aprovado pela Comissão Especial e vo-tado no Plenário da Câmara dos Deputados. No que tange ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica, há várias alterações. Por primei-ro, deslocou o incidente para o capítulo referente à intervenção de terceiro, passando a ser disposto em uma seção (arts. 330 a 334), a saber, a Seção IV do Capítulo V (“Da intervenção de terceiros”) do Título I (“Do procedimento comum”) do Livro I (“Do processo de conhecimento e do cumprimento de sentença”) da Parte Especial42. Posto que se afigure correta a inserção no capítulo referente à intervenção de terceiros, por se tratar efetivamente de uma hipótese de intervenção de terceiro, o ideal é que este capítulo se loca-lizasse dentro da Parte Geral, e não na Parte Especial, ainda mais de forma específica no título concernente ao procedimento comum, como se só neste fossem possíveis intervenções de terceiro. Há hipóteses de intervenção de terceiros cabíveis em procedimentos especiais, bem como no cumprimento de sentença e no processo de execução, como é justamente o caso da des-consideração da personalidade jurídica. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica está sendo assim proposto no relatório-geral redigido pelo então Deputado Sérgio Barradas Carneiro, do PT da Bahia:

Art. 330. O incidente de desconsideração de personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.

42 O Relatório-Geral elaborado pela Câmara dos Deputados está propondo uma reforma significativa na estrutura do Código de Processo Civil comparativamente ao texto aprovado no Senado Federal. Propõe a divisão do Código de Processo Civil em duas partes: uma geral e outra especial, além de um livro complementar referente das disposições finais e transitórias (arts. 1.067 a 1.087). A Parte Geral seria dividida em cinco livros: Das normas processuais civis (Livro I), Da função jurisdicional (Livro II), Dos sujeitos do processo (Livro III), Dos atos processuais (Livro IV), Da tutela antecipada (Livro V). Já a Parte Especial seria segmentada em três livros: Do processo de conhecimento e do cumprimento de sentença (Livro I), Do processo de execução (Livro II) e Dos processos nos tribunais e dos meios de impugnação das decisões judiciais (Livro III).

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§ 1º Os pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica serão previstos em lei.

§ 2º Aplica-se o disposto nesta Seção à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.

Art. 331. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fun-dada em título executivo extrajudicial.

§ 1º A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao distribui-dor para as anotações devidas.

§ 2º Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da perso-nalidade jurídica for requerida já na petição inicial, caso em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica.

§ 3º Salvo na hipótese do § 2º, a instauração do incidente suspenderá o processo.

§ 4º Admite-se a concessão de tutela antecipada de urgência neste incidente.

§ 5º O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para a desconsideração da personalidade jurídica.

Art. 332. Requerida a desconsideração da personalidade jurídica, no curso do processo, o sócio ou a pessoa jurídica serão citados para, no prazo co-mum de quinze dias, manifestar-se e requerer as provas cabíveis.

Art. 333. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória impugnável por agravo.

Parágrafo único. Se a decisão for proferida pelo relator, cabe agravo interno.

Art. 334. Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou oneração de bens, havida em fraude de execução, após a instauração do incidente, será ineficaz em relação ao requerente.

O primeiro destaque foi a acertada supressão das hipóteses de ca-bimento da desconsideração da personalidade jurídica, acolhendo-se as Emendas nºs 106, 118 e 866/2011 dos Deputados Paes Landim, Sandro Mabel e Jerônimo Goergen. Conforme foi antes referido, as hipóteses de ca-bimento não devem estar previstas na lei processual, mas, sim, na legislação de direito material, considerando as suas peculiaridades (art. 330, § 1º, na redação proposta no parecer). De outra parte, a redação proposta pela Co-missão Especial avançou prevendo expressamente que o incidente é cabível também nos casos de desconsideração inversa da personalidade jurídica, o que ainda não havia sido contemplado (§ 2º do art. 330 na redação proposta no parecer); e prevendo expressamente a admissão de medida de natureza cautelar, ao prescrever a admissão de “tutela antecipada de urgência” (§ 4º do art. 331 na redação proposta no parecer), a qual, pelo parecer, reuniria

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tanto provimentos de natureza cautelar como satisfativa sob o rótulo “tutela antecipada” (Livro V da Parte Geral)43. Outra modificação positiva foi tornar expresso que o requerimento de desconsideração da personalidade jurídica deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos (§ 4º do art. 331 na redação proposta no parecer), o que permite, de forma mais adequada, o direito de defesa por parte do requerido, que permanece com o prazo de quinze dias para se manifestar sobre o pleito e requerer as provas que entender pertinentes.

De outra banda, não se afigura adequado o parecer ao manter o ca-bimento do incidente de desconsideração da personalidade jurídica no pro-cesso de conhecimento (caput do art. 331 na redação proposta no parecer), podendo, inclusive, ser requerido já na petição inicial (§ 2º do art. 331 na redação proposta no parecer). Considerando que o objetivo da desconsi-deração da personalidade jurídica é estender os efeitos subjetivos do título executivo, o incidente deveria ser cabível apenas durante o cumprimento de sentença ou do processo de execução. Não há sentido em se incluir, já durante o processo cognitivo, o desconsiderando se a decisão que acolhe o pedido pode somente declarar a responsabilidade patrimonial do sócio ou administrador requerido, e não condená-lo conjuntamente com a pessoa jurídica que teve a sua personalidade desconsiderada. O comando declara-tório tem lugar apenas durante a execução, em caso de procedência da de-manda condenatória ajuizada contra a pessoa jurídica e, salvo nas hipóteses em que se adota a teoria menor, de restar comprovada a insuficiência de seus bens para satisfazer o crédito. Se assim não for, estar-se-á desvirtuando o instituto para tornar obrigado o membro ou o administrador, e não mais responsável patrimonial. Como já salientado, somente a pessoa jurídica tem legitimidade passiva ad causam para responder eventual ação em processo cognitivo, na medida em que foi ela quem assumiu a obrigação perante o credor, não o membro ou o administrador. Vale consignar que o próprio parecer prevê que “ficam sujeitos à execução os bens do responsável, nos casos de desconsideração da personalidade jurídica” (art. 816, VII).

Há, ademais, dois inconvenientes: a) a dilação inapropriada do ob-jeto do processo, em face da necessidade de se provar os requisitos para a desconsideração, quando sequer existe juízo de certeza de que a pessoa ju-rídica é devedora e/ou insolvente; e b) a eventual vã prestação de atividade jurisdicional, onerando em tempo e em dinheiro as partes e o Poder Judiciá-

43 A inclusão desse parágrafo visando a tornar expressa a garantia acerca da possibilidade de se deferir tutela antecipada de urgência foi proposta pelo Poder Executivo Federal – por meio do Ministério da Justiça, da Secretaria de Direitos Humanos, da Advocacia-Geral da União e da Casa Civil da Presidência – bem como pelo Professor João Batista Lopes. No plano doutrinário, quem reclamava da ausência de previsão de tutela de urgência era André Pagani de Souza (2011, p. 202).

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rio, visto que a sentença pode não reconhecer o crédito cobrado da pessoa jurídica e/ou não se confirmar a insolvência dela. Salienta-se, a respeito disso, que, pelo parecer apresentado na Câmara dos Deputados, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica suspende o processo (§ 3º do art. 331 na redação proposta no parecer), podendo prolongar indevidamen-te o tempo processual. E mais: pode ser proposta a qualquer tempo, inclusi-ve quando estiver pendente de julgamento no tribunal, hipótese em que in-cumbiria ao relator decidi-lo quando for instaurado originariamente perante o Tribunal (art. 954 na redação proposta no parecer). Ao que parece, além do absoluto desvirtuamento do instituto (tornar obrigado quem não é), os riscos de se praticar inútil atividade jurisdicional, a evidente possibilidade de se ampliar indevidamente o tempo do processo e se tumultuar em vão a marcha processual não justificam o incidente durante o processo de co-nhecimento. Melhor seria admiti-lo apenas durante a execução, quando há certeza de que a pessoa jurídica é devedora e se consubstancia a ausência de bens para satisfazer o crédito executado.

Por fim, salienta-se que o parecer a) é redundante ao prever, tanto no art. 333 como no inciso IV do art. 1.037, que cabe agravo de instrumen-to contra a decisão que decidir o incidente de desconsideração da perso-nalidade jurídica; b) prevê inutilmente, nas Disposições Finais e Transitó-rias, que o incidente também se aplica ao processo dos Juizados Especiais (art. 1.080 na redação proposta no parecer); e c) estabelece, de forma con-traditória, que pode ajuizar embargo de terceiro “quem sofre constrição ju-dicial de seus bens por força de desconsideração da personalidade jurídica, de cujo incidente não fez parte” (art. 699, § 2º, III, do parecer). Ou seja, ao mesmo tempo em que prevê como obrigatória a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, admite que sofra constrição judicial sem o incidente. De outra parte, ao reconhecer que há fraude à execução quando o sócio ou administrador aliena ou onera bens, refere no § 3º do art. 818 que se verifica a fraude à execução a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar, enquanto no art. 334 assinala que a alienação ou oneração de bens, havida em fraude à execu-ção, será ineficaz em relação ao requerente após a instauração do incidente se o pedido de desconsideração for acolhido. Provavelmente, todas essas falhas decorrem da ausência de uma harmonização dos relatórios parciais que formam o parecer elaborado pela Comissão Especial instituída na Câ-mara dos Deputados.

CONCLUSÃO

A desconsideração da personalidade jurídica tem por escopo, nos casos admitidos na lei, estender os efeitos subjetivos do título executivo a

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membro ou ao administrador da pessoa jurídica, tornando-o patrimonial-mente responsável por uma dívida da pessoa jurídica em uma hipótese em que não teria nenhuma responsabilidade ou teria uma responsabilida-de limitada. Essa possibilidade de relativização da autonomia patrimonial, abstraindo-se no caso concreto a personalidade jurídica da pessoa jurídica, está prevista no Código Civil (art. 50), na Lei Antitruste (art. 34), no Código de Defesa do Consumidor (art. 28) e na Lei de Crimes Ambientais (art. 4º). Nos dois primeiros diplomas, alinhados à teoria maior, é necessária para a desconsideração da personalidade jurídica, além da insolvência da pessoa jurídica, a demonstração do uso desvirtuado da pessoa jurídica mediante fraude ou abuso do direito. O ônus da prova é, portanto, mais ameno quan-do o credor é o consumidor e para aquele que busca o ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente. Ao encontro da teoria menor, basta que a personalidade jurídica da pessoa jurídica represente um obstáculo para a satisfação do direito para que se legitime a sua desconsi-deração, não havendo necessidade de se configurar a existência de fraude ou abuso de direito.

Apesar de estar prevista há anos no ordenamento jurídico brasileiro a desconsideração da personalidade jurídica, até hoje não existe procedi-mento regulamentado em lei. Por isso, o primeiro benefício do Projeto do Novo Código de Processo Civil, caso seja aprovado no Congresso Nacional, é conferir segurança jurídica aos operadores do direito, mormente porque a doutrina e a jurisprudência, principais fontes utilizadas para integrar a lacuna, não têm sido conseguido uniformizar um rito. Além do dissenso, não raro há arbítrio judicial e afronta a direitos processuais fundamentais, como o contraditório e a ampla defesa, no procedimento implementado na prática forense. E, neste particular, centra-se o principal mérito do Projeto do novo Código de Processo Civil no que diz respeito à desconsideração da personalidade jurídica. Ele propõe um incidente processual que oportuniza o prévio contraditório e direito de defesa, positivando, na desconsideração da personalidade jurídica, esses caros valores constitucionais.

De outra banda, o Projeto do novo Código de Processo Civil tem como principal deficiência confundir obrigação com responsabilidade pa-trimonial, pois, ao admitir a hipótese de requerer a desconsideração da per-sonalidade jurídica já durante o processo de conhecimento, parece alme-jar que o requerido seja condenado conjuntamente com a pessoa jurídica. Como foi referido alhures, a decisão que acolhe o pedido de desconsidera-ção deve tão somente reconhecer a responsabilidade patrimonial do mem-bro ou do administrador, e não condená-lo. Tendo em vista a ausência de vínculo jurídico com o credor, ele não pode vir a ser obrigado, mas, sim, responsabilizado em virtude da desconsideração da personalidade jurídica.

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Nesse sentido, o credor ou o administrador não tem legitimidade passiva ad causam para responder a ação no processo cognitivo. Somam-se a esses ar-gumentos jurídicos àqueles de ordem prática, sobretudo a possibilidade de ser produzir atividade jurisdicional inútil, pois sequer existe juízo de certeza de que a pessoa jurídica é devedora e/ou seus bens são insuficientes para satisfazer o crédito.

Considerando que o objetivo da desconsideração da personalidade jurídica é estender os efeitos subjetivos do título executivo, o incidente de-veria ser cabível apenas durante o cumprimento de sentença ou do processo de execução (no caso de execução de título extrajudicial), quando já há juízo de certeza quanto à obrigação da pessoa jurídica e já restou demons-trada, nos autos, a insuficiência de seu acervo patrimonial. Ademais, caso acolhido o incidente, apenas se reconhece a responsabilidade patrimonial do membro ou do administrador (e a esse ponto deve se cingir a sua defe-sa no incidente). Mas, uma vez reconhecida a sua responsabilidade, deve ser-lhe garantido o direito de impugnar o cumprimento de sentença, sem limitações de amplitude, ou de opor embargos. Tendo em vista que é o seu patrimônio que vai satisfazer o crédito, é defeso lhe negar o direito de questionar eventual excesso de execução ou mesmo o débito indevido (por exemplo, caso já esteja prescrito). Essas proposições, além salvaguardar os relevantes intentos que levaram a se reconhecer a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, vão ao encontro do direito ao processo justo. Não que a celeridade e a efetividade processual não sejam importantes, mas, sim, por não justificarem a redação proposta no Projeto de novo Código de Processo Civil, ao gerarem ganhos de tempo e de efetividade incertos e pre-cários. Assim, reiteradas as críticas anteriores, inclusive quanto às demais disposições existentes no corpo do Projeto de novo Código de Processo Civil, propõe-se, especificamente quanto ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica, a seguinte redação:

Art. 330. O credor ou o Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, poderá requerer, em petição fundamentada e devidamente instruí-da, a desconsideração de personalidade jurídica nas hipóteses previstas em lei durante o cumprimento de sentença ou execução fundada em título exe-cutivo extrajudicial.

Art. 331. O juiz indeferirá a petição quando for manifestamente improce-dente.

Art. 332. Recebida a petição, suspende-se o processo e determina-se a ci-tação do requerido para, no prazo comum de quinze dias, manifestar-se e requerer as provas cabíveis, sob pena de serem considerados verdadeiros os fatos alegados pelo credor.

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Parágrafo único. Admite-se a concessão de tutela antecipada de urgência neste incidente.

Art. 333. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória impugnável por agravo.

Art. 334. Acolhido o pedido, ficam sujeitos à execução os bens do requerido, sendo ineficaz em relação ao requerente eventual alienação ou oneração de bens, havida em fraude de execução, após a instauração do incidente.

Parágrafo único. Aplica-se o disposto nesta Seção à hipótese de desconside-ração inversa da personalidade jurídica.

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Parte Geral – Doutrina

As Implicações da Governança Corporativa nas Empresas Familiares

BRUNO MODESTO SILINGARDIAdvogado, Inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional de São Paulo, Graduado em Direito pelo Centro Universitário Eurípedes de Marília (Univem), Pós-Graduado em Direito Empresarial pela Universidade Estadual de Londrina, Integrante do Departamento Jurídico da Empresa Dori Alimentos Ltda., Militante nas Áreas Empresarial e Trabalhista.

RESUMO: O presente trabalho foi elaborado por meio do método dedutivo, com a finalidade de de-monstrar os benefícios alcançados pelas empresas familiares que adotam em seu ambiente laboral as práticas de governança corporativa. Entre as vantagens obtidas por meio dessa técnica de organi-zação empresarial estão a reestruturação da gestão, a avaliação dos riscos da atividade, a diminuição dos conflitos de interesse entre os sócios, o desenvolvimento do planejamento societário e, por fim, a tão sonhada propagação da empresa para as futuras gerações.

PALAVRAS-CHAVES: Governança corporativa; empresas familiares; práticas de gestão.

ABSTRACT: This present work was prepared by the deductive method, in order to demonstrate the benefits achieved by companies that adopt family in their workplace practices in corporate governance. Among the advantages obtained by this technique of business organization are the restructuring of management, risk assessment activity, the decrease of conflicts of interest between the partners, the development of corporate planning and, finally, the long awaited spread of the company for future generations.

KEyWORDS: Corporate governance; family business; management practices.

SUMÁRIO: Introdução; 1 Governança corporativa; 1.1 Origem; 1.2 Conceito; 1.3 Princípios básicos; 1.4 Profissionalização; 1.5 Conselho de administração; 1.5.1 Órgãos auxiliares do conselho de admi-nistração; 1.6 Conselho de família; 1.7 Conflitos de agência; 2 Empresas familiares; 2.1 Conceito de família; 2.2 Origem das empresas familiares; 2.3 Conceito de empresas familiares; 2.4 Pontos fortes e fracos das empresas familiares; 2.5 Política de sobrevivência e controle das empresas familiares; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃOQuase todas as sociedades mercantis, sejam elas industriais, comer-

ciais ou prestadoras de serviços, geralmente iniciam suas atividades em-presariais por meio da atitude arrojada e audaciosa do sócio fundador ou de determinados integrantes da mesma família, que, por meio de suas vi-sões empreendedoras, vislumbram a possibilidade de explorar determinado ramo da economia, gerando produtos, serviços, bens, empregos e tributos.

No Brasil, aproximadamente 90% (noventa por cento) das empresas pertencem a grupos familiares. Essas sociedades, controladas por uma ou mais famílias, totalizam o montante de 2 (dois) milhões de empregos diretos e representam parcela significativa do Produto Interno Bruto do país.

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Destacam-se, entre as maiores sociedades familiares do país, as em-presas: Pão de Açúcar, Itaú-Unibanco, Gerdau, Votorantim, Casas Bahia, Globo; além disso, de acordo com a lista publicada pelo site inglês Camp-den FB, estão entre os 50 (cinquenta) principais líderes de empresas fami-liares os brasileiros “Jorge Gerdau Johannpeter, do Grupo Gerdau, Marcelo Bahia Odebrecht, do Grupo Odebrecht e Abílio dos Santos Diniz, da Com-panhia Brasileira de Distribuição” (Ferreira, 2011, p. 01).

No entanto, devido a conflitos de ordem legal, econômico, gerencial e, principalmente, emocional, apenas um terço dessas empresas chegam à segunda geração, e, desse percentual, somente 15% (quinze por cento) passam para a terceira geração (Adachi, 2006, p. 01).

Para reverter esse quadro, a maioria das corporações familiares – na-cionais e internacionais – tem adotado diversas práticas de governança cor-porativa, ou seja, ferramentas que possibilitam a reinvenção do negócio, bem como a recuperação da credibilidade dessas empresas perante os acio-nistas, quotistas e terceiros envolvidos na atividade econômica.

Desta forma, com a finalidade de ressaltar a influência dessas novas práticas adotadas pela área empresarial e demonstrar como elas contribuem para o desenvolvimento econômico e social das empresas, o presente tra-balho – embasado no método dedutivo – procurou abordar, no primeiro capítulo, de forma aprofundada, o conceito, a origem e, principalmente, a atuação dos órgãos auxiliares instituídos pela governança corporativa, para, posteriormente, no segundo capítulo, demonstrar a importância des-sas ferramentas no tocante à realidade das famílias empresárias, explicitan-do, ainda, como elas podem contribuir para que as organizações familiares atravessem – de forma sólida – as crises decorrentes do mercado – cada vez mais massificado e competitivo.

1 GOVERNANÇA CORPORATIVA

No Brasil, conforme antes dito, o tema “governança corporativa” ganhou maior relevância tendo em vista o elevado número de empresas familiares formalmente constituídas. Todavia, esses tipos de sociedade difi-cilmente chegavam à terceira geração, nitidamente por falta de direciona-mento estratégico.

Destarte, durante as décadas de 70, 80 e 90, inúmeros consultores e pesquisadores verificaram a necessidade de aprofundar seus conhecimen-tos acerca de novas técnicas de gestão e como elas poderiam beneficiar as organizações familiares, principalmente na preparação dos herdeiros e na melhoria do processo decisório.

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Atualmente, diversas consultorias auxiliam as empresas familiares e seus principais executivos na implementação da governança corporativa, bem como apresentam os benefícios decorrentes deste inovador sistema de administração de empresas.

Entre esses fatores positivos, pode-se ressaltar: o alinhamento dos interesses de seus gestores, a preservação dos valores da organização, o aumento da confiança entre os membros da família e, especialmente, a per-petuidade da empresa (Mendes, 2010, p. 01).

Por conseguinte, a governança corporativa é considerada a prática de gestão moderna mais utilizada atualmente pelas empresas familiares, para perpetuar o empreendimento ao longo dos anos e amenizar os conflitos de interesses gerados em decorrência do crescimento do negócio.

Além disso, destaca-se por auxiliar na construção da

confiança no seio da família e, por sua vez, uma boa dinâmica familiar tor-na-se um trunfo para a empresa porque permite que cada aspecto da go-vernança funcione melhor e agregue mais valor, ao mesmo tempo em que permanece alinhado com os outros componentes do sistema de governança. (Mendes, 2010, p. 02)

Durante a implantação desses métodos progressistas de gestão, as or-ganizações familiares estabelecem, com clareza, “o processo decisório da empresa, contemplando as relações da família e a estrutura da mesma, de forma que se torne um órgão com competência e função de grupo controla-dor” (Bernhoeft; Gallo, 2003, p. 01).

Outro ponto importante durante a instituição desse controle de gestão é o surgimento dos conselhos de família e administração, cujos conceitos e atribuições serão aprofundados nos itens 2.5 e 2.6 do presente trabalho.

Apenas para facilitar entendimento, cumpre salientar que os primeiros (conselho de família) “funcionam como instâncias em que se definem os pla-nos de sucessão; por meio de equipes de apoio, os herdeiros são avaliados quanto às habilidades, interesses e perfis pessoais” (Inohara, 2011, p. 01).

Por meio desse levantamento de características, é possível apurar qual o herdeiro possui o perfil de liderança necessário para dar continui-dade ao negócio, bem como selecionar aquele que melhor se adéqua aos valores estabelecidos pelo fundador.

Além disso, em muitos casos, a escolha do sucessor é auxiliada por consultores especializados, que identificam os principais conflitos no mo-mento da sucessão, entrevistam os candidatos à “presidência”, analisam seus perfis com base em diversos fatores e selecionam aquele com maior capaci-dade intelectual e emocional para liderar a atividade econômica da família.

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Segundo Lodi (1993, p. 08):A família reunida em conselho familiar deve ajudar seus membros que tra-balham na empresa a desenvolverem uma lealdade à empresa. Deve saber realocar parentes importantes, às vezes chefes de algumas linhagens secun-dárias que não encontraram o seu lugar na firma.

Enquanto o conselho de administração visa a afastar as questões fa-miliares e permitir um estudo estratégico voltado para o mercado, ou seja, estabelecendo metas e decisões que reinventem a atividade econômica es-tagnada durante vários anos.

Porém, o maior desafio encontrado pelos idealizadores da governan-ça corporativa foi conscientizar os antigos administradores a abandonarem o modelo de gestão patriarcal utilizado até então e passar a utilizar os mé-todos inovadores de descentralização do poder no intuito de modernizar a gestão e valorizar o negócio.

Para alguns estudiosos, como, por exemplo, Garcia (2005, p. 04), a governança corporativa criou a chamada “democracia societária”, ou seja, “sistema de equilíbrio e separação de poderes, em oposição ao regime an-terior de onipotência e poder absoluto e discricionário do controlador ou grupo de controle”.

Acerca dos desafios enfrentados pela governança corporativa, co-mentam Mizumoto e Filho (2007, p. 08) que as sociedades familiares

são empresas mais complexas no atendimento aos interesses da família e sobrepõem funções dentro da empresa. Os objetivos econômicos podem não estar alinhados com os objetivos da família. Uma empresa tipicamente fami-liar apresenta, portanto, condições de violar os elementos nos quais se pauta a tradicional governança corporativa.

Outra dificuldade encontrada pelos especialistas foi a simultaneidade de papéis desenvolvidos pelos gestores, pois ora atuam como proprietários ou acionistas, ora como filhos, irmãos e sobrinhos dos fundadores.

Neste diapasão, salientam Mizumoto e Filho (2007, p. 08) que:As empresas familiares não se encaixam claramente na divisão apontada para a linha de comando. As diferentes divisões são ocupadas pelas mesmas pessoas ou, pelo menos, são concentradas entre membros da família. Os papéis a serem desempenhados em cada função se tornam facilmente con-fundíveis, a lógica de proposição e avaliação das decisões podem ocorrer em colegiados informais, a decisão e acompanhamento das estratégias podem fugir da lógica das corporações.

Essa mescla de atitudes, sentimentos e identidades são as principais causas de conflitos entre herdeiros e sócios. Para solucionar – ou pelo me-nos amenizar – esse problema intrínseco das organizações familiares, a go-

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vernança corporativa propõe a instituição dos conselhos de administração e família, a profissionalização dos gestores e, em alguns casos, a governança relacional.

A respeito dessa última medida, destacam Mizumoto e Filho (2007, p. 09) que:

Além dos mecanismos formais recomendados pela governança corporativa, considerada como governança contratual pelos autores, é proposta a gover-nança relacional. Na forma complementar são utilizados mecanismos infor-mais para incentivar o compartilhamento de informação entre membros da família e para minimizar conflitos. Os dois mecanismos de governança foram testados, A governança contratual mostrou-se eficiente em aumentar a qua-lidade das decisões estratégicas enquanto a governança relacional propicia um maior comprometimento dos gestores com as decisões tomadas.

Nessas condições, verifica-se que a administração corporativa tem a difícil missão de reestruturar as organizações por meio dos instrumentos supracitados, estabelecendo novas estratégias ao negócio e perpetuando as empresas de controle familiar.

Ademais, a evolução dos métodos gerenciais facilita a obtenção de investimentos por meio da negociação de títulos mobiliários no mercado de capitais.

Nesse sentido, ressalta Garcia (2005, p. 06) que “o objetivo de in-centivar novos investidores a aplicarem seus recursos voluntariamente no mercado, que se tem procurado aperfeiçoar as regras de governança propor-cionando mais direitos e garantias aos investidores”.

Por conseguinte, torna-se notório que o assunto ganhou maior rele-vância nos últimos anos, especialmente no âmbito acadêmico, tendo em vista os reflexos por ele gerados na área empresarial, bem como na legisla-ção societária em vigor.

1.1 origEm

O assunto governança corporativa começou a se destacar no mundo jurídico na década de 90, após a elaboração do Código de Práticas Re-comendáveis desenvolvido pela “Comissão Cadbury”, equipe coordenada pelo inglês “Lord Cadbury” para corrigir os problemas e restaurar a imagem dos conselhos de administração das empresas.

Em pouco tempo, as novas práticas adotadas pelos conselhos de ad-ministração das corporações inglesas repercutiram em diversos países, oca-sionando a elaboração outros códigos governança corporativa, conforme relata Garcia (2005, p. 12):

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Como exemplo de outros códigos voltados peara a governança corporativa no exterior podemos citar, entre outros, os seguintes: The OECD Report, pu-blicado abril de 1999; The NACD Report, relatório preparado pela National Association Of Corporate Directores e publicado em novembro de 1996; Euroshareholders Corporate Governance Guideline 2000, publicado pelo European Shareholders Group em fevereiro de 2000; e Global Share Voting Principles, publicado pela International Corporate Governance Network – ICGN de 1998. (grifos nossos)

No Brasil, não podia ser diferente: em 27 de novembro de 1995, foi fundado o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), órgão má-ximo em matéria de gestão empresarial.

Desde a sua instituição, o IBGC atua como principal balizador das técnicas de governança corporativa, obtendo reconhecimento internacional pelo trabalho realizado junto às empresas brasileiras.

Entre os principais feitos do IBGC, está a elaboração do Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa, documento que reúne os principais sistemas de governança a serem adotados pelas sociedades em-presariais, cujos detalhes serão apresentados e discutidos nos itens a seguir.

Outro importante manual acompanhado, via de regra, por socieda-des anônimas brasileiras de capital aberto é a “Cartilha de Recomendações de Governança Corporativa”, editada em junho de 2002 pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Esse documento dispõe acerca das práticas de governança corporativa que devem ser adotadas pelas empresas preten-dem pretender abrir seu capital no mercado financeiro, como também para aquelas que já subscreveram suas ações na bolsa de valores.

1.2 concEito

A partir da promulgação do Código das Melhores Práticas de Gover-nança Corporativa, publicado em 1999, inúmeros doutrinadores passaram a discorrer acerca do tema, como Werner Bornholdt (IBGC, 2009, p. 193), que conceitua a governança corporativa como “um sistema de estruturas de tomada de decisão fundamentado em crenças, valores, regras econômicas e princípio de negócios de clãs familiares para poderem se articular com rapidez frente à volatilidade dos mercados”.

Complementando a definição acima, Paz (2010, p. 02) ressalta que a governança corporativa

é uma das melhores ferramentas de gestão da atualidade, pois oferece uma profissionalização da gestão, com separação dos vínculos afetivos, emocio-nais e valores sanguíneos tão comuns nas decisões empresariais. Além des-

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ta vantagem, temos a melhora da gestão do patrimônio da empresa e dos sócios.

Do mesmo sentir, Chagas (2011, p. 01) dispõe que o termo governan-ça corporativa:

Trata-se de um sistema que, usando principalmente o conselho de adminis-tração, a auditoria externa e o conselho fiscal, estabelece regras e poderes para conselhos, comitês, diretoria, e outros gestores, procurando prevenir abusos de poder e criando instrumentos de fiscalização, princípios e regras que possibilitem uma gestão eficiente e eficaz.

Para outros, a governança corporativa tem como finalidade diminuir os desentendimentos entre os controladores majoritários e minoritários, evi-tando, assim, os chamados “conflitos de agência”.

Nessa esteira, destaca Barufaldi (2011, p. 114) que:

A governança corporativa constitui-se de mecanismo ou princípios que re-gem o processo decisório dentro das empresas objetivando mitigar os proble-mas de agência, sendo um dos seus focos evitar o comportamento oportunis-ta do agente (Moral Hazard).

Um terceiro ponto de vista que merece destaque é a definição apre-sentada pela Comissão de Valores Mobiliários (2002, p. 01). Confira-se:

Governança corporativa é o conjunto de práticas que tem por finalidade oti-mizar o desempenho de uma companhia ao proteger todas as partes interes-sadas, como investidores, empregados e credores, facilitando o acesso ao ca-pital. A análise das práticas de governança corporativa aplicada ao mercado de capitais envolve, principalmente: transparência, equidade de tratamento dos acionistas e prestação de contas.

Em que pesem todos os conceitos acima declinados estejam corretos, o mais conhecido e utilizado pelos gestores empresariais é aquele constante Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa criado pelo IBGC (2009, p. 19):

Governança corporativa é o sistema pelo qual as organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre proprie-tários, conselho de administração, diretoria e órgão de controle. As boas práticas de governança corporativa convertem princípios em recomendações objetivas, alinhando interesses com a finalidade de preservar e otimizar o valor da organização, facilitando seu acesso a recursos e contribuindo para sua longevidade.

Em outras palavras, a governança corporativa pode ser entendida como uma técnica de gestão capaz de agilizar a tomada de decisões cor-porativas por meio da descentralização de poderes, delegação de tarefas e profissionalização dos principais executivos da empresa.

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1.3 princípios básicos

A governança corporativa está consubstanciada em quatro princípios fundamentais que norteiam os procedimentos gerenciais por ela disciplina-dos: transparência, equidade, prestação de contas (accountability) e respon-sabilidade corporativa:

a) transparência – dever de informar o teor e a motivação de todas as atitudes e decisões tomadas em âmbito da empresa, com a finalidade de preservar a confiança entre os agentes de gover-nança;

b) equidade – tratamento igualitário destinado a todos os envolvi-dos – direito ou indiretamente – na corporação (stakeholders);

c) prestação de contas – maneira pela qual os sócios, administrado-res (conselheiros internos ou independentes, executivos e gesto-res), conselheiros fiscais e auditores responsabilizam-se por seus atos ou omissões.

d) responsabilidade corporativa – “significa uma visão de longo prazo, sustentabilidade, considerando aspectos de ordem so-cial e ambiental na definição dos negócios e operações” (IBGC, 2009, p. 175).

Embasada nesses fundamentos, a governança corporativa difundiu sua teoria em quase todos os países, conscientizando os agentes do comér-cio de que a tomada de decisões com fulcro nos princípios acima elenca-dos elevaria o índice de acerto, proporcionando benefícios à organização e, consequentemente, aumentando da confiança no poder decisório e na valorização do negócio.

Nesse diapasão, convém descartar a tabela elaborada por Silveira (2010, p. 07), ao demonstrar os aspectos positivos decorrentes da aplicação da governança corporativa nas sociedades empresárias:

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Por tais razões, os mecanismos ditados pela boa governança passaram a ser incorporados e desenvolvidos por entidades com interesse de ingressar no mercado acionário e obter, com maior facilidade – e menores custos –, os recursos necessários ao desenvolvimento de sua atividade econômica, mas, para isso, precisariam ser conhecidas pela qualidade de seu processo decisório – característica alcançada por meio das práticas inseridas no sis-tema de governança.

1.4 profissionalização

Esta é uma das questões mais delicadas encontradas pelos consultores durante o processo de implementação da governança corporativa; portanto, deve ser realizada com extrema cautela e paulatinamente – caso contrário, será desastrosa ao andamento do negócio, tendo em vista que o profissional integrará uma relação – nem sempre amistosa – entre a família, a empresa e os demais profissionais (colegas e subordinados).

Independentemente das dificuldades, a profissionalização é uma fer-ramenta importantíssima para a sobrevivência empresa, porquanto propicia a melhora na qualidade das decisões e a diminuição de erros que com-prometem o andamento do negócio; por conseguinte, deve ser iniciada o quanto antes.

Em muitas empresas, principalmente nas familiares, a profissionali-zação tem início com a capacitação dos membros da família ocupantes de cargos de gestão. Porém, em regra, a profissionalização começa na criação do conselho administrativo, visto que, neste momento, os sócios e acionis-tas se afastam da gestão da companhia para integrar o referido conselho, surgindo espaço para a contratação de executivos especializados, que têm como função “administrar situações em que existam condições incertas, para as quais existe um modo de agir já definido, mas flexível para mudan-ças a qualquer momento, devido a transformações internas ou externas na realidade da empresa” (Neto, 1998, p. 40).

Acerca das principais vantagens decorrentes da profissionalização dos sistemas de gestão, ressalta Bernhoeft e Gallo (2003, p. 103) que:

A formulação da estratégia; a auditoria da organização; a avaliação, remune-ração e planos de carreiras profissionais dos dirigentes, a alocação de recur-sos econômicos e humanos etc., que, além de sua potencialidade para uma boa gestão estratégica da empresa, incrementam o nível de objetividade e permitem informar melhor todos os interessados, duas coisas muito neces-sárias na medida em que a empresa familiar cresce e a família se faz mais numerosa.

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O processo de profissionalização tem continuidade com a admissão – pelo conselho de administração – de conselheiros externos e independentes no sentido de auxiliar a família na tomada de decisões estratégicas.

Para Bernhoeft e Gallo (2003, p. 35), é função do conselheiro externo “demonstrar conhecimento e habilidade no trato e na dinâmica das ques-tões família, sociedade e gestão”. Complementam dizendo que “a qualida-de das decisões vai depender da qualidade e qualificação dos conselheiros escolhidos”.

Entretanto, a concretização dessa etapa depende muito da disposição e confiança do acionista controlador e/ou dos membros da família no sen-tido de aceitarem as sugestões e orientações estratégicas transmitidas pelos conselheiros, sejam eles internos, sejam externos.

1.5 consElho dE administração

O conselho de administração é considerado como o principal órgão colegiado e deliberativo criado pela governança corporativa, bem como o responsável pela separação entre propriedade e gestão e grande incentiva-dor da inovação estratégica das empresas, primordialmente as familiares.

Referido conselho foi regulamentado pelos arts. 140 e seguintes da Lei de Sociedade Anônima (Lei nº 6.404/1976), com finalidade de:

I – fixar a orientação geral dos negócios da companhia;

II – eleger e destituir os diretores da companhia e fixar-lhes as atribuições, observado o que a respeito dispuser o estatuto;

III – fiscalizar a gestão dos diretores, examinar, a qualquer tempo, os livros e papéis da companhia, solicitar informações sobre contratos celebrados ou em via de celebração, e quaisquer outros atos;

IV – convocar a assembleia-geral quando julgar conveniente, ou no caso do art. 132;

V – manifestar-se sobre o relatório da administração e as contas da diretoria;

VI – manifestar-se previamente sobre atos ou contratos, quando o estatuto assim o exigir;

VII – deliberar, quando autorizado pelo estatuto, sobre a emissão de ações ou de bônus de subscrição;

VIII – revogado;

VIII – revogado;

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VIII – autorizar, se o estatuto não dispuser em contrário, a alienação de bens do ativo não circulante, a constituição de ônus reais e a prestação de garan-tias a obrigações de terceiros; (Redação dada pela Lei nº 11.941, de 2009)

IX – escolher e destituir os auditores independentes, se houver.

No entanto, para Bernhoeft (2004, p. 02/03), o conselho de adminis-tração pode ser conceituado como um conjunto de “estratégias corporati-vas/organizacionais” que analisa e avalia a atuação dos executivos.

Em visto disso, o CAD é considerado como o responsável pelas deci-sões estratégicas da companhia, decidindo sempre de acordo com a missão, a visão e os valores preestabelecidos pela organização.

Outra importante função do CAD – principalmente nas empresas fa-miliares – é a prevenção e administração de conflitos de interesses entre os acionistas, sócios, executivos e demais partes interessadas, contornando as opiniões controvertidas e escolhendo aquela que melhor atenda aos inte-resses da empresa.

Nessa esteira, o Código das Melhores Práticas de Governança Corpo-rativa instituído pelo IBGC (2009, p. 29) estabelece como missão do conse-lho de administração:

Proteger e valorizar a organização, otimizar o retorno do investimento no longo prazo e buscar equilíbrio entre os anseios das partes interessadas (shareholders e demais stakeholders), de modo que cada uma receba benefí-cio apropriado e proporcional ao vínculo que possui com a organização e ao risco a que está exposta. (grifos nossos)

Em regra, o CAD é composto por no mínimo 5 (cinco) e no máximo 11 (onze) conselheiros internos (diretores, sócios e/ou acionistas), indepen-dentes (sem vínculo com a companhia) e externos (profissionais com amplo conhecimento nas áreas contábil, financeira e jurídica, facilidade na expo-sição de ideias, visão estratégica e identificação com os valores da empresa) com mandato de até 2 (dois) anos e eleitos por meio de assembleia geral.

No tocante à estrutura do conselho de administração, a CVM salienta, em sua “Cartilha de Recomendações de Governança Corporativa” (2002, p. 04), que:

O conselho de administração deve ter de cinco a nove membros tecnica-mente qualificados, com pelo menos dois membros com experiência em fi-nanças e responsabilidade de acompanhar mais detalhadamente as práticas contábeis adotadas. O conselho deve ter o maior número possível de mem-bros independentes da administração da companhia. Para companhias com controle compartilhado, pode se justificar um número superior a nove mem-

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bros. O mandato de todos os conselheiros deve ser unificado, com prazo de gestão de um ano, permitida a reeleição.

E complementa dizendo que:

A recomendação sobre o número de membros leva em conta que o con-selho de administração deve ser grande o suficiente para assegurar ampla representatividade, e não tão grande que prejudique a eficiência. Mandatos unificados facilitam a representação de acionistas minoritários no conselho.

O respectivo conselho é comandado, coordenado e supervisionado por um dos conselheiros, mais conhecido como “chairman”, expressão uti-lizada no meio corporativo para indicar o presidente do conselho de admi-nistração. No entanto, o conselheiro nomeado para o cargo de “chairman” de maneira alguma poderá assumir simultaneamente a função de presidente executivo (CEO – chief executive officer) da corporação. Diversos manuais de governança corporativa ratificam a segregação das referidas funções.

Independentemente de acumular ou não os dois cargos, o principal executivo da empresa geralmente participa das sessões ordinárias e extra-ordinárias do conselho administrativo apenas como convidado. Além do diretor presidente, podem ser convidados a participar das reuniões diversos profissionais ou consultores especializados nos temas constante da pauta.

Outra importante função atribuída ao presidente do conselho é ava-liação anual de desempenho dos demais conselheiros e do diretor presiden-te. A respectiva avaliação consiste em verificar o cumprimento das metas imputadas no ano anterior, a aplicação de novos objetivos para o próximo exercício, bem como a análise de outros indicadores como assiduidade e participação nas deliberações. Os resultados serão apresentados aos sócios e/ou acionistas por meio do relatório da administração.

Nesses moldes, constata-se a importância desse órgão no processo decisório das empresas, afastando, por completo, o poder unilateral do gru-po controlador em relação aos rumos a serem tomados pela corporação.

Além disso, é imprescindível que o CAD seja considerado como um organismo vivo dentro da empresa, com voz ativa e poder persuasão, e não apenas um requisito formal imposto pela legislação brasileira para algumas sociedades empresárias.

1.5.1 Órgãos auxiliares do conselho de administraçãoAlém da estrutura supra mencionada, os conselhos de administração

utilizam como suporte na tomadas das decisões os seguintes órgãos: conse-lho fiscal e comitês.

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Os comitês são órgãos vinculados ao conselho administrativo, com-postos por no mínimo três conselheiros e especialistas externos, com a fina-lidade de analisar, apurar e executar determinadas atividades ou situações pontuais – nas áreas de recursos humanos, administração, finanças, marketing e outras – que demandam tempo e dedicação de seus membros.

Corroborando desse posicionamento, a CVM (2002, p. 04) relata que o CAD deve dispor de “comitês especializados para analisar certas questões em profundidade, notadamente relacionamento com o auditor e operações entre partes relacionadas”.

O conselho fiscal, por sua vez, tem como objetivo verificar o cumpri-mento das obrigações legais e estatutárias, manifestar-se a respeito do rela-tório anual da administração, apresentar propostas referentes à alteração do capital social, expedição de debêntures, planos de investimentos, repartição de dividendos, transformação, incorporação, fusão ou cisão da empresa, delatar a ocorrência de crimes e fraudes e apreciar as demonstrações finan-ceiras (IBGC, 2009, p. 62).

Ambos os órgãos são independentes e suas manifestações têm por base os princípios norteadores da governança corporativa, ou seja, consubs-tanciados na política de transparência e prestação de contas da empresa.

1.6 consElho dE família

Segundo exposto anteriormente, as empresas familiares necessitam de apoio especializado para sanar os problemas decorrentes das três prin-cipais instâncias de poder: propriedade, gestão e família. Para esta última, torna-se imprescindível a criação do conselho de família, órgão instituído para “blindar” a organização de assuntos particulares dos sócios e membros da família controladora.

Entre outras responsabilidades do conselho de família está a diminui-ção de conflitos pessoais entre os herdeiros e o fortalecimento dos laços de amizade e cumplicidade dos membros da família, característica esta que será o diferencial em relação às empresas do mesmo gênero.

Convém ressaltar, ainda, que, na maioria das organizações familiares, esse tipo de conselho estabelece as regras para que os herdeiros integrem a sociedade, geralmente por meio de protocolos familiares, acordos de quo-tistas ou códigos de conduta e ética, documentos que estabelecem requisi-tos mínimos para que os herdeiros possam assumir cargos gerenciais.

Portanto, para Bernhoeft (2004, p. 02/03):

O conselho ou governança familiar deve administrar questões como as re-lações sociais e familiares; a história registrada ou verbal da família para

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conhecimento das gerações seguintes; um family office que atue como gestor dos interesses familiares; zelar e preparar a família no que se refere à conduta pessoal e postura ética na medida em que seu comportamento individual pode ter efeitos sobre a imagem da sociedade e empresa (necessitam saber que são figuras públicas e como lidar com isto); fornecer orientação e apoio para projetos pessoais; contemplar pontos comuns à educação dos herdei-ros; criar instrumentos de comunicação para a família; administrar conflitos que possam surgir. Evitando que eles cheguem até a empresa ou mercado; despertar e treinar as novas lideranças; assumir a gestão da responsabilidade social da família na sua relação com a comunidade e finalmente manter atualizado e respeitado um código de valores familiares.

Para outros doutrinadores, como Alexandre Di Miceli da Silva e Elismar Alvares, o conselho de família serve como um “escritório” destinado à realização de assuntos particulares, como pagamentos de contas, agenda-mento de compromissos, elaboração de documentos, manutenção de bens, como residências e veículos, promoção de cursos ou treinamentos voltados à capacitação dos herdeiros.

Em síntese, pode-se afirmar que o conselho de família – por meio de uma equipe de funcionários com dedicação exclusiva – é o grande respon-sável pela administração dos interesses da família controladora, orientação em investimentos financeiros e gerenciamento “nas questões de sobrevivên-cia, liquidez e negócios pessoais dos familiares” (Bernhoeft; Gallo, 2003, p. 30).

1.7 conflitos dE agência

Há algumas décadas, as corporações nacionais, especificamente as familiares, tinham como característica a gestão da sociedade centralizada na pessoa do proprietário. Com o passar do tempo, o papel do administra-dor passou a se desvincular da figura do sócio ou acionista, iniciando os primeiros conflitos de agência.

No Brasil, essa espécie conflito ocorre geralmente entre sócios majo-ritários e minoritários, visto que nem sempre os interesses de um estão em consonância com as preferências do outro, acarretando sérios desentendi-mentos que podem ocasionar até mesmo o desaparecimento da empresa.

Em países desenvolvidos, cujos capitais das sociedades encontram--se pulverizados, os conflitos de agência emergem entre os acionistas (ma-joritários e minoritários) e os executivos responsáveis pela administração da corporação, pois as pretensões, muitas vezes, divergem dos objetivos estratégicos da companhia, ocasionando discussões entre as partes e, con-sequentemente, a diminuição do valor ao negócio, prejuízo este mais co-nhecido como custo de agência.

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Neste momento, surge novamente a necessidade aplicação dos me-canismos ditados pela governança corporativa, a fim de amenizar as diver-gências e evitar a expropriação de riquezas dos controladores.

Demonstrando a importância da governança corporativa no sentido de mitigar os efeitos dos conflitos de agência, salienta Bedicks (IBGC, 2009, p. 82) que:

A adoção de práticas de governança, como conselho de administração for-mado por maioria de membros independentes, presença de pessoas distintas ocupando os cargos de presidente do conselho e diretor presidente, e sistema de remuneração que preveja posse de ações por parte dos gestores, reforça o alinhamento de interesses, com o intuito de minimizar possíveis conflitos de agência.

Outro tipo de situação que pode ser caracterizada como conflito de agência é a coação dos controladores majoritários sobre minoritários, por meio de práticas desleais, de modo que a relação entre eles se torne insus-tentável e o acionista minoritário seja obrigado a alienar suas ações.

Uma quarta espécie de conflito de agência seria a fraude praticada pelos acionistas contra os credores da organização. Nesse sentido, Jensen e Meckling apud Silveira (2011, p. 44) exemplificam esse conceito citando:

Uma empresa preponderantemente financiada por dívida. Nesse caso, é pos-sível que os gestores escolham projetos mais arriscados do que gostariam os credores. Isso aconteceria porque, para os acionistas, importará apenas a porção superior à distribuição de probabilidades do projeto, enquanto, para o credor, a porção inferior seria a relevante. Logo, em caso de sucesso do empreendimento, a maior parte dos ganhos iria para os acionistas, uma vez que os credores têm direito apenas à parcela fixa de juros. Já em caso de fracasso, a maior parte dos prejuízos recairia sobre os credores, tendo em vista que a empresa não conseguiria arcar com seus compromissos assumi-dos com eles.

Independente do conflito, seja ele de agência, familiar ou em face de credores, cada vez mais se torna imprescindível a adoção das políticas de governança corporativa, com intuito de manter a harmonia das relações, maximizar o valor da companhia e, mais do que isso, tornar-se referência nos quesitos transparência, equidade e respeito a todos os envolvidos na atividade econômica (stakeholders).

2 EMPRESAS FAMILIARES

O principal tema discorrido ao longo deste trabalho tem sido objeto de “desejo” de inúmeros pesquisadores, tanto no Brasil como no exterior. Em que pesem os esforços dos acadêmicos no sentido de esclarecer o maior

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número de questões possíveis acerca da família empresária, jamais conse-guiram esgotar o assunto, porquanto, a cada dia, emergem novas situações, problemas e desafios envolvendo os proprietários e gestores de companhias controladas ou geridas por entes familiares.

Por essa razão, convém apresentar nos tópicos abaixo algumas pe-culiaridades acerca do fator considerado por muitos doutrinadores como o maior desafio, atualmente, enfrentado pelas pequenas e médias compa-nhias: a família.

2.1 concEito dE família

O direito de família passou a ter relevância no arcabouço jurídico brasileiro com a promulgação da Constituição Federal de 1988. A partir da instituição da Carta Magna, diversos princípios passaram a ser reconhecidos e tutelados pelo poder constituinte originário, como a igualdade entre os filhos e a proteção à entidade familiar, consoante transcrito abaixo:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.

§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua con-versão em casamento.

§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 66, de 2010)

§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternida-de responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (grifos nossos)

Com a introdução desses princípios norteadores (equidade entre os filhos, cônjuges e companheiro, bem como da solidariedade familiar), os efeitos jurídicos do direito de família passaram a repercutir diretamente na

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vida da sociedade, atraindo a atenção dos aplicadores do Direito, conside-rados os responsáveis pela atualização normativa nessa área em decorrên-cia da constante evolução da realidade social.

Nesse sentido, importante ressaltar a opinião de Rocha (2009, p. 10):

Explorar o conceito de família para além das fronteiras do matrimônio tem sido o desafio de toda a doutrina familiarista moderna. Trata-se de corres-ponder a certas imposições sociais que há tempos vem ditando o ritmo da evolução constitucional, legislativa e jurisprudencial. A doutrina reflete, am-plamente, este movimento. No Brasil, impulsionada pela Constituição Fe-deral de 1988, a ciência jurídica tem reconhecido a juridicização de muitas relações familiares não fundadas no casamento. Discute-se, ainda, se os tipos de família expressamente mencionados na Constituição Federal de 1988 são os únicos admissíveis na ordem jurídica brasileira ou se a enumeração cons-titucional é meramente exemplificativa.

Como exemplo dessa renovação da ordem jurídica, convém descartar o reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) das uniões homo-afetivas e a instituição de famílias monoparentais formadas por pessoas do mesmo sexo, atribuindo a elas os mesmos direitos e obrigações inerentes às entidades familiares constituídas pelo matrimônio ou união estável de pessoas heterossexuais.

A propósito da transformação legislação do Direito de Família nos últimos anos, Prado (2011, p. 26) expõe que:

E a evolução será sempre contínua e sem fim. Tomemos como exemplo a atual discussão, ainda não pacificada, sobre o reconhecimento jurídico da união estável entre pessoas do mesmo sexo, que vem caminhando na mesma linha da evolução do regramento da união estável entre um homem e uma mulher. Inicialmente, em uma separação judicial, apenas era reconhecido o direito do(a) companheiro(a) de pleitear “indenização por serviços presta-dos” ao outro companheiro de sexo oposto. Mais adiante, a jurisprudência passou admitir a divisão de bens entre casal considerando-se uma sociedade civil de fato. Finalmente, a lei passa a reconhecer a união estável entre um homem e uma mulher como um instituto o Direito de Família, com todos os direitos e obrigações dele decorrentes. Vale dizer, embora a discussão doutrinária e jurisprudencial a respeito do reconhecimento jurídico a união estável entre pessoas do mesmo sexo ainda não esteja completamente supe-rada, que é certo que a jurisprudências já vem, há alguns anos, caminhando nesse sentido.

Portanto, de acordo com o Sistema Normativo Brasileiro, a família pode ser definida como qualquer instituição jurídica formada por casais homossexuais ou heterossexuais cujos direitos e deveres previstos na legis-lação decorrem do matrimônio ou da união estável. Ademais, podem ser

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consideradas “famílias” as organizações compostas por apenas um dos pais acompanhado de seus filhos.

2.2 origEm das EmprEsas familiarEs

Para muitos historiadores, as primeiras organizações familiares surgi-ram durante a Idade Média com a formação dos impérios e/ou reinos co-mandados por monarquias absolutistas, cujo poder real era transferido de forma hereditária de pai para filho.

No Brasil, essa espécie de sociedade tem início em 1534, com a se-paração do território brasileiro em capitanias hereditárias, como forma de mitigar a invasão de estrangeiros na colônia brasileira. A partir desse sis-tema de administração e divisão territorial, instituído pelo Rei de Portugal (D. João III), surgem os grandes latifúndios, responsáveis pelo desenvolvi-mento da agroindústria brasileira, segmento esse controlado por famílias nobres ligadas a coroa portuguesa.

Com a decadência dos ciclos da cana-de-açúcar e do café, no final do século XIX, os grandes latifundiários passaram a investir e explorar ou-tras atividades – secundárias até aquela época – como a manufatura e a comercialização de produtos, emergindo, assim, as primeiras sociedades empresariais geridas por entes da mesma família.

Impulsionados pelo crescente processo de industrialização, os imi-grantes saíram das propriedades rurais em busca de novas oportunidades no setor industrial, onde foram contratados como mão de obra, principal-mente, da indústria têxtil. Mas nem todos optaram pelo trabalho assalariado; alguns, com espírito empreendedor, partiram para a atividade mercantil, aumentando o número de organizações familiares.

Compartilhando esse entendimento, Bernhoeft e Gallo (2003, p. 06/07) consignam que:

No caso brasileiro, a maioria das nossas empresas tem sua história inicial vin-culada à figura de um imigrante que, em algum momento da sua vida, fugiu de uma realidade adversa e chegou ao novo país sem grandes recursos ma-teriais. Mas dispondo de duas características importantes para o surgimento do espírito empreendedor: destemor para correr riscos, pelo fato de não ter nada a perder, e alguma habilidade que lhe permitiu empresariá-la com base na sua forte intuição. São origens, naturalmente, muito mais apoiadas em variáveis e características emocionais do que em qualquer lógica ou visão estratégica.

Consubstanciado nesses dados históricos, é possível entender clara-mente a importância das empresas familiares no desenvolvimento econô-

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mico do País, porquanto, sem a participação desse tipo de atividade orga-nizada, com toda a certeza, o Brasil não estaria ocupando uma posição de destaque na ordem econômica mundial.

2.3 concEito dE EmprEsas familiarEs

Em decorrência de suas particularidades, as organizações familiares podem ser classificadas e conceituadas de acordo com três fatores: proprie-dade, gestão e sucessão. Entretanto, a definição mais correta é aquela que abrange as três vertentes simultaneamente, segundo aduz Gonçalves (2000) apud Leone (2005, p. 10):

1ª situação: a empresa é propriedade de uma família, detentora da totalidade ou da maioria das ações ou cotas, de forma a ter o seu controle econômico; 2ª situação: a família tem a gestão da empresa, cabendo a ela a definição dos objetivos, das diretrizes e das grandes políticas; 3ª situação: finalmente, existem membros da família responsáveis pela administração do empreendi-mento, com a participação de um ou mais níveis executivos mais altos.

Importante consignar que a referida definição foi adotada inclusive pela jurisprudência pátria, segundo se verifica das decisões abaixo:

Ação revisional de alimentos. Obrigação decorrente do poder familiar. Filhas menores. Alegação de alteração da situação financeira do alimentante não comprovada. O autor detém cotas em sociedade limitada e trabalha com seu pai no ramo de laticínios, sendo certo que sua família exerce a atividade empresária em diversos ramos de atividade e, ao que tudo indica, ostenta boa condição financeira. Os ganhos reais do autor são de difícil apuração; no entanto, é certo que não logrou demonstrar que, pouco tempo após serem arbitrados os alimentos devido às filhas menores, viu alterada a sua situação financeira de modo a justificar a redução da pensão alimentícia. Sentença reformada. Recurso provido. (Proc. 0017570-93.2009.8.19.0061, 2ª C.Cív., Relª Desª Elisabete Filizzola, J. 08.02.2012 – grifos nossos)

Suficiência. Demonstração de indícios de autoria. Inépcia. Não ocorrência. Justa causa. Suporte probatório mínimo. Existência. Ação penal. Trancamen-to. Impossibilidade. 1. Não há na descrição fática da denúncia a pecha da inépcia, pois demonstrados indícios de autoria, tanto mais que se trata de uma empresa familiar, cujo quadro societário é formado pelos pais e pe-los filhos, ocupando a ora paciente (uma das irmãs) a gerência financeira. 2. Tese de inexistência de liame da sua atuação com os fatos narrados que não se reveste de credibilidade na via eleita. Plausibilidade da acusação. 3. Direito de defesa assegurado, em face do cumprimento dos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal. 4. O habeas corpus não se apresenta como via adequada ao trancamento da ação penal, quando o pleito se ba-seia em falta de suporte probatório mínimo à acusação, não relevado, primo oculi, pois trata-se de intento que demanda revolvimento fático-probatório,

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não condizente com a via angusta do writ. Justa causa presente. 5. Ordem denegada. (HC 231.903/RJ, 6ª T., Relª Min. Maria Thereza de Assis Moura, J. 18.06.2012, DJe 27.06.2012 – grifos nossos)

Recurso de revista. Grupo econômico. Responsabilidade solidária. Cisão de empresas. Decisão recorrida em que se consigna ter havido cisão de empre-sas, porém com manutenção de todas as empresas resultantes sob direção dos mesmos sócios, controle do mesmo grupo familiar e atividade econômi-ca compartilhada; empresa cindida subsequentemente debilitada, sem pos-sibilidade de reversão, com prejuízo aos credores. Aplicação do princípio contido no art. 233 da Lei nº 6.404/1976. Violação de dispositivos legais e divergência jurisprudencial não demonstrada. Recurso de revista de que não se conhece. (5379824119995035555, (537982-41.1999.5.03.5555), 5ª T., Rel. Des. Gelson de Azevedo, J. 15.10.2003 – grifos nossos)

Nessa ordem de ideias, pode-se afirmar que as corporações familiares são aquelas cujo capital pertence a pessoas ligadas entre si pelo fator heredi-tário, que ocupam simultaneamente cargos estratégicos e de gestão e, além disso, seus princípios e crenças pessoais repercutem diretamente na missão, visão e valores da organização.

2.4 pontos fortEs E fracos das EmprEsas familiarEs

Em que pese a importância das corporações familiares no cenário econômico brasileiro e internacional, estas não são conhecidas apenas por suas qualidades, mas também por seus aspectos negativos.

Destarte, alguns doutrinadores, como, por exemplo, Bernhoeft (1990) apud Leone (2005, p. 12), reúnem e elencam os pontos fortes e fracos das empresas sob controle familiar:

Pontos fortes:

– proximidade entre a empresa e o centro do poder;

– possibilidade de decisões ágeis;

– conhecimento das características do país;

– facilidade para implantar mudanças estruturais;

– agilidade para estabelecer parcerias tecnológicas;

Pontos fracos:

– confusão entre propriedade e gestão;

– ausência de estratégias claramente definidas;

– lutas constantes pelo poder;

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– predominância de caprichos individuais;

– falta de clareza sobre a vocação da empresa;

– carência de investimentos em recursos humanos, tecnologia e melhoria de métodos e processos.

No mesmo sentido, complementa Silveira (2010, p. 298) que:

Entre os principais riscos tradicionalmente associados às empresas familiares, destacam-se: i) problemas sucessórios de transição de gerações; ii) nepotis-mo, informalidade na avaliação de desempenho dos executivos familiares e ausência de meritocracia; iii) geração de facções entre ramos familiares; iv) separação das questões familiares das questões empresariais; v) manuten-ção do profissionalismo em certas situações; e vi) ausência de fóruns para so-lução de divergências de âmbito familiar. Por outro lado, vários especialistas argumentam que as empresas familiares possuem vantagens potenciais, entre as quais: i) maior convergência de interesses na alta gestão entre os acio-nistas e administradores; ii) maior comprometimento e dedicação dos exe-cutivos familiares para com a empresa; vis-a-vis os executivos de mercado; iii) possibilidade de um maior horizonte temporal nas decisões corporativas; iv) maior agilidade no processo decisório; e v) maior interesse dos controla-dores em construir um negócio para gerações futuras.

Em resumo, as vantagens das empresas familiares estão diretamen-te ligadas à celeridade das decisões, à desburocratização dos processos e controles (internos e externos) e do conhecimento profundo da atividade econômica desempenhada pela sociedade, ao passo que as desvantagens podem ser elencadas como o conflito de interesses e de poder entre os fa-miliares, ausência de profissionalismo na gestão, informalidade excessiva e falta de preparo dos herdeiros.

2.5 política dE sobrEvivência E controlE das EmprEsas familiarEs

Em virtude da intensa competitividade do mercado, as empresas che-gam a um estágio evolutivo em que precisam optar pela reinvenção de seus negócios, por meio da capitalização da sociedade; caso contrário, serão suprimidas facilmente pela concorrência.

Neste momento, consoante amplamente ratificado no presente traba-lho, surge a necessidade de implantar os instrumentos de governança cor-porativa como forma de obter – com maior facilidade – recursos capazes de auxiliar nessa fase de inovação. Entretanto, nem sempre essa escolha traz benefícios, visto que, em alguns casos, a família empresária é obrigada a se desvincular do controle da empresa, fazendo seus herdeiros se acostuma-rem unicamente com o papel de acionista.

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Acerca desse entendimento, corrobora Bernholdt (IBGC, 2009, p. 189):

Portanto, uma das vantagens das empresas familiares está condicionada ao conhecimento e à prática de boa governança corporativa. Essas práticas permitem rápida adaptação à modernidade líquida da contemporaneidade. Apenas ser uma empresa familiar não corresponde a um passaporte de su-cesso como um diferencial competitivo. As recomendações de manter as boas práticas de governança corporativa são necessárias para manter o grupo coeso, aderindo às leis do novo capitalismo. Para a sobrevivência dessas empresas familiares, a nova contemporaneidade pode exigir novas formas de gestão, novas lideranças, novas alianças com fornecedores, clientes, concor-rentes e empregados.

Independentemente da alternativa selecionada pelas sociedades, “é da maior importância que as famílias empresárias, especialmente os funda-dores e seus herdeiros, compreendam que ela se caracteriza por alguns di-ferenciais importantes” que devem ser analisados – em consonância com as melhores práticas de governança corporativa – antes de tomarem qualquer decisão (Bernhoeft; Gallo, 2003, p. 11).

CONCLUSÃO

Diante do exposto, constata-se que a aplicação da governança corpo-rativa nas empresas de controle familiar é fundamental para sua perpetua-ção através da profissionalização do modelo de gestão e do desenvolvimen-to dos controles internos e externos.

Demais disso, a implementação das boas práticas de governança me-lhoram o foco e o planejamento da empresa, com base em uma visão estra-tégica a médio e longo prazo, aumenta a produtividade, diminui o índice de decisões equivocadas e melhora o relacionamento com os stakeholders por meio de condutas sustentáveis, como a realização de projetos sociais, ambientais e econômicos, conforme disciplina o princípio da responsabili-dade corporativa.

Nas empresas familiares, os impactos são ainda mais favoráveis, visto que estabelece regras claras no tocante à sucessão, por meio de protocolos e acordo de quotistas, mitiga os conflitos de interesses entre os sócios e acionistas, alinhando-os em prol da companhia.

Outro ponto que merece destaque é a majoração do valor, da con-fiabilidade e visibilidade da organização no mercado, tornando-se alvo de investidores e até mesmo avaliando a possibilidade de ingressar no mercado de capitais.

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Nesse contexto, conclui-se que as políticas de governança corporati-va vêm de encontro com a necessidade das famílias empresárias, trazendo condições para persecução de seu maior objetivo: perpetuar a sociedade, mantendo os valores estabelecidos por seus fundadores, porém moderni-zando o sistema de gestão de modo a estruturar e preparar o negócio para o próximo estágio de crescimento.

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Parte Geral – Doutrina

Marcas e Operações Societárias – O Valor dos Intangíveis nas Fusões e Incorporações

FERNANDA BORGHETTI CANTALIAdvogada, Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, Professora Titular da Disciplina de Direito Empresarial da Faculdade de Direito do Cen-tro Universitário Metodista do Sul – IPA, Professora Convidada do Curso de Especialização em Propriedade Intelectual da Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul – FADERGS, Professora Substituta de Direito Empresarial da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS (2008-2010), Membro Pesquisador do GEDF – Grupo de Estudos em Direitos Funda-mentais (CNPq) Coordenado pelo Professor Doutor Ingo Wolfgang Sarlet.

DIOGO DORNELLES QUEIROZBacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Centro Universitário Metodista do Sul – IPA.

RESUMO: As marcas possuem um papel extremamente relevante para o exercício da empresa, qual seja: distinguir os produtos e serviços que são disponibilizados no mercado de consumo. Esse caráter distintivo permite também que a marca atraia a clientela, incite o consumo e valorize a atividade empresarial do titular. Nessa medida, as marcas, enquanto ativos intangíveis dos empresários, são elementos determinantes para a realização de operações de fusão e incorporação de empresas.

PALAVRAS-CHAVE: Marcas; ativos intangíveis; fusões e incorporações.

ABSTRACT: A brand plays a prominant role in a corporation, which is to distinguish the products and services available on the consumer market. This distinctive nature also allows for the brand to lure the consumers, boost sales and increase the value of the entrepreneurial activity. This way, brands as intangible assets are determinig elements in order to achieve M&A success.

KEyWORDS: Brands; intangible assets; mergers and acquisitions.

SUMÁRIO: Introdução; 1 Noções sobre operações societárias de concentração empresarial: a fusão e a incorporação; 2 Noções sobre as marcas: importantes ativos intangíveis do patrimônio do empre-sário; 3 Marca: elemento integrante do estabelecimento empresarial e fundamental na avaliação do fundo empresarial; 4 O “valor” das marcas para as operações de incorporação e fusão de empresas; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO

O presente artigo objetiva fundamentalmente analisar a importância dos ativos intangíveis nas fusões e incorporações de empresas – mais es-pecificamente o papel relevante que as marcas possuem nessas operações societárias.

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As marcas são bens que integram o estabelecimento empresarial, o fundo empresarial. Nessa medida, exigem uma avaliação econômica quan-do da realização de operações societárias, até porque, em muitos casos, elas representam motivos determinantes para que se realizem tais negócios. A avaliação de bens intangíveis é tarefa que exige técnicas específicas, méto-dos objetivos e ponderações mercadológicas muitas vezes subjetivas.

Nesse contexto, buscando alcançar a compreensão do tema funda-mental, é necessária breve incursão sobre questões fundamentais como a apresentação das operações societárias em debate, definindo-as e delimi-tando direitos dos credores e responsabilidades dos sócios, bem como no-ções sobre o regime jurídico aplicável às marcas, trazendo à baila consi-derações sobre suas funções, espécies, requisitos para a registrabilidade e princípios informadores.

1 NOÇÕES SOBRE AS OPERAÇÕES SOCIETÁRIAS DE CONCENTRAÇÃO EMPRESARIAL: A FUSÃO E A INCORPORAÇÃO

Operações societárias são mutações que podem ocorrer na estrutura de sociedades empresárias. A legislação brasileira consagra diferentes ope-rações: a transformação, a cisão, a fusão e a incorporação.

De forma muito singela, pode-se dizer que a transformação é a ope-ração que permite a alteração do tipo societário; a cisão permite a versão de parte ou da totalidade do patrimônio de uma sociedade para outra já existente ou constituída para este fim; a fusão é a união de duas ou mais sociedades para a constituição de uma nova e, por fim, a incorporação é a operação em que uma sociedade é absorvida por outra, extinguindo-se a incorporada e mantendo-se a incorporadora.

As duas operações que têm o objetivo explícito de concentração em-presarial são a fusão e a incorporação1. Portanto, o foco de análise recai sobre elas2.

1 A previsão da possibilidade de reunir sociedades numa só veio com a consagração legislativa da operação de fusão no Código Comercial italiano de 1882. Embora já fizesse parte dos usos e costumes de comerciantes, foi o Decreto nº 434, de 1891, que referiu a fusão nas suas disposições finais, ainda que de forma tímida, afirmando que tal operação implicava a constituição de nova sociedade, devendo, por isso, observar as disposições legais para tanto. O referido decreto não fez alusão específica à incorporação, já que esta era tida como parte do mesmo fenômeno; uma das formas de manifestação da fusão. A incorporação só se consagrou como instituto autônomo pelo Decreto-Lei nº 2.627, de 1940 (GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 506).

2 Para aprofundamento sobre as demais operações societárias, vide: COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 14. ed. São Paulo: Saraiva, v. 2, 2010. p. 493/500; NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa. 8. ed. São Paulo: Saraiva, v. I, 2011. p. 499/510.

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A fusão e a incorporação são modalidades legais de reorganização de sociedades que podem possuir os mais diversos objetivos e que permi-tem aos empresários promover as reformulações estruturais que entenderem pertinentes. Normalmente, visam a alcançar a economia de escala, otimi-zando e potencializando as capacitações das empresas envolvidas3. Tais operações podem resultar de processos relativamente simples de ser detec-tados, definidos e implantados. Todavia, usualmente, envolvem operações de grande complexidade4.

Diversos autores definem a operação de incorporação e não há muita variação entre eles. Mamede5 sustenta que a incorporação é quando uma ou várias sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede nos direi-tos e obrigações. Tomazette6 explicita que a incorporação é a operação pela qual uma sociedade absorve outra, a qual desaparece. A sociedade incorporada deixa de operar, sendo sucedida em direitos e obrigações pela incorporadora, que tem um aumento no seu capital social. Sustenta que tal tipo de operação está ligada ao fenômeno da expansão empresarial. Ainda, Campinho7 afirma que, na incorporação, uma ou mais sociedades de tipos iguais ou diferentes são absorvidas por outra, que lhes sucede em direitos e obrigações.

A sociedade incorporadora sub-roga-se, portanto, em todos os direi-tos e obrigações da sociedade incorporada, ou seja, os direitos e obriga-ções que antes eram da sociedade incorporada se transferem para a socie-dade incorporadora. Isso porque a sociedade incorporada deixa de existir no momento em que seu patrimônio é incorporado por outra sociedade. A sua extinção, inclusive, deve ser averbada no Registro Público de Empresas Mercantis, a cargo das Juntas Comerciais dos Estados da Federação8.

A incorporadora, por sua vez, continua existindo tal como era antes da incorporação, permanecendo com sua personalidade jurídica intacta. Apenas resulta dessa operação um aumento do seu patrimônio e, em regra, a união dos seus sócios com os da sociedade incorporada9. Portanto, na operação de incorporação, não surge uma nova sociedade.

3 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, p. 494.4 IUDÍCIBUS, Sérgio de; MARTINS, Eliseu; GELBCKE, Ernesto Rubens. Manual de contabilidade das

sociedades por ações. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2003. p. 518.5 MAMEDE, Gladston. Manual de direito empresarial. São Paulo: Atlas, 2006. p. 219.6 TOMAZETTE, Marlon. Direito societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004. p. 446.7 CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo Código Civil. 9. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro:

Renovar, 2008. p. 305.8 CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo Código Civil, p. 305.9 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa, p. 507.

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O comum é a operação de incorporação de sociedades. No entanto, existem outras modalidades de incorporação, quais sejam: a incorporação de empresário individual, a incorporação de ações, a incorporação em caso de coligação e controle e, por fim, a incorporação de sociedade em liquidação.

A incorporação de empresário individual se dá com a baixa do re-gistro mercantil e absorção do patrimônio da antiga firma individual ao da sociedade incorporadora. Na incorporação de ações, normalmente o que ocorre é a conversão de uma sociedade anônima em subsidiária integral10 mediante a incorporação da totalidade de suas ações por outra sociedade, a incorporadora. Já a incorporação nos casos de coligação e controle11 ocorre quando uma sociedade possui ações ou quotas da outra que irá incorporar ou ser por ela incorporada. Ainda, há a incorporação de socie-dade em liquidação, o que somente será possível se anterior à partilha do acervo social12.

Quanto à fusão, Mamede13 a define como a operação pela qual se unem duas ou mais sociedades para formar uma nova, que lhes sucederá em todos os direitos e obrigações, extinguindo-se as sociedades que se uniram. Novamente sem grandes variações, Tomazette14 define a fusão como a aglutinação de duas ou mais sociedades formando uma nova que lhes sucede em todos os direitos e obrigações. Campinho15 afirma que a fusão consiste na operação em que duas ou mais sociedades, de tipos iguais ou diferentes, se unem para formar sociedade nova que as sucederá em todos os direitos e obrigações, determinando a extinção das socieda-des objeto do negócio.

Como visto, na fusão, as sociedades originais se extinguem, criando--se uma nova pessoa jurídica que inicia sua atividade econômica a partir da data da fusão. O patrimônio da nova sociedade é composto pela soma dos patrimônios das empresas fusionadas; o seu capital será integralizado

10 Conforme o disposto nos arts. 251 a 253 da Lei nº 6.406/1976, a subsidiária integral é uma hipótese excepcional de sociedade empresária unipessoal não temporária, que adota sempre o tipo sociedade anônima. Ela pode ser originariamente unipessoal, quando é constituída e todas as suas ações são subscritas por uma única sociedade empresária brasileira; ou pode resultar da incorporação de suas ações, operação que não se confunde com a incorporação de sociedades (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, p. 502).

11 A coligação ocorre quando uma sociedade tem influência significativa sobre outra no que se refere ao poder de participar das decisões relativas à política financeira ou operacional, mas sem controlar. Se a relação é de controle, a controlada tem a maioria do seu capital social titularizado pela controladora, o que garante a esta a maioria dos votos nas deliberações sociais e o poder de eleger os administradores (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, p. 500/501).

12 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa, p. 510/512.13 MAMEDE, Gladston. Manual de direito empresarial, p. 220/221.14 TOMAZETTE, Marlon. Direito societário, p. 449.15 CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo Código Civil, p. 306.

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com os bens, direitos e obrigações recebidos das sociedades fusionadas. Essa soma de patrimônios ocorre apenas juridicamente, ou seja, com mu-dança de titularidade e como tal escriturada na contabilidade, encerran-do-se as empresas fusionadas e abrindo-se a nova com o patrimônio equi-valente à soma dos encerrados, sem qualquer movimentação física entre os estabelecimentos das empresas fusionadas. Portanto, não há circulação de mercadorias, nem transmissão de bens imóveis entre vivos, que seriam fatos geradores do ICMS16 e do ITBI17-18. Normalmente, apura-se o valor patrimonial líquido das sociedades, cujo resultado formará o capital da sociedade resultante da fusão.

Diferentemente da incorporação, na fusão nenhuma das socieda-des envolvidas na operação mantém intacta sua personalidade jurídica. Nessa operação, surge uma nova sociedade, e todas as envolvidas deixam de existir. Esse fato representa uma significativa vantagem operacional da incorporação, já que, considerando-se como uma nova sociedade a que resulta da fusão, depois de concluída a operação, deverá ela regularizar--se tanto no Registro Mercantil como nos diversos cadastros fiscais (CNPJ, FGTS, INSS, estados e prefeituras)19.

Não obstante, trata-se de operações muito similares, sujeitas prati-camente à mesma disciplina legal20, tanto que, em outros países, não há uma efetiva diferença entre operação de incorporação e fusão, utiliza-se apenas o termo “fusões e aquisições”, o que abrange ambas as opera-ções21, já que ligadas ao processo de concentração empresarial.

O Código Civil de 2002, no art. 1.11622, define a operação de in-corporação; já no art. 1.11923, explicita a fusão. Assim também a Lei das Sociedades por Ações, que, no art. 22724 consagra a incorporação e, no

16 O ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços é um tributo estadual que incide sobre a movimentação de produtos e sobre serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação. Está previsto na Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996.

17 O ITBI – Imposto de Transmissão de Bens Imóveis Inter Vivos está previsto na Constituição Federal de 1988, no inciso II do art. 156. Tem como fato gerador a transmissão ou a cessão de direitos sobre bens imóveis.

18 FEBRETTI, Láudio Camargo. Fusões, aquisições, participações e outros instrumentos de gestão de negócios: tratamento jurídico, tributário e contábil. São Paulo: Atlas, 2005. p. 155.

19 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, p. 494.20 TOMAZETTE, Marlon. Direito societário, p. 449.21 No exterior, utiliza-se a sigla M&A para definição das operações societárias. A sigla significa “mergers and

acquisitions”, ou seja, fusões e aquisições, o que mostra exatamente que não há distinção entre as operações de fusão e incorporação.

22 CCB: “Art. 1.116. Na incorporação, uma ou várias sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações, devendo todas aprová-las, na forma estabelecida para os respectivos tipos”.

23 CCB: “Art. 1.119. A fusão determina a extinção das sociedades que se unem, para formar sociedade nova, que a elas sucederá nos direitos e obrigações”.

24 Lei nº 6.404/1976: “Art. 227. É a operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações”.

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art. 22825, define a fusão. A propósito, se a operação envolve pelo menos uma sociedade anônima26, será ela submetida prioritariamente à disciplina da LSA; se não envolver sociedade desse tipo, aplicam-se as regras gerais do Código Civil.

Para além da legislação pertinente, o procedimento que deve ser obedecido nas operações está detalhado na Instrução Normativa nº 88 do Departamento Nacional de Registro do Comércio – DNRC27.

As operações de fusão e incorporação são decorrências de delibe-rações sociais, além de ser necessária a observância de condições para a alteração do contrato ou estatuto social28. Portanto, a formalização da operação se dá por meio de ata de assembleia geral de sócios ou por alte-ração contratual. Esses documentos que trazem a aprovação da operação pelos sócios devem ser arquivados na junta comercial e averbados nos órgãos de assentamentos de propriedades, como, por exemplo, o INPI – Instituto Nacional de Propriedade Industrial, órgão de registro de marcas, e os registros de imóveis. Essa formalização, na verdade, corresponde à etapa final da operação, já que é precedida de uma série de providências que visam a garantir a validade e eficácia do negócio, bem como a sua economicidade.

Não há dúvida de que essas operações se iniciam pelo contato entre os administradores ou controladores das empresas envolvidas, já previa-mente assegurados por termos de confidencialidade. Afinal, no momento em que se externa a intenção de realização da operação, os envolvidos deverão permitir o livre acesso aos seus livros, documentos e estabele-

25 Lei nº 6.404/1976: “Art. 228. A fusão é a operação pela qual se unem duas ou mais sociedades para formar sociedade nova, que lhes sucederá em todos os direitos e obrigações”.

26 Ressalte-se que, se a incorporação envolver companhia aberta – aquelas que negociam seus títulos, como, por exemplo, as ações, no Mercado de Valores Mobiliários –, a sociedade que sucede deverá também ser aberta, devendo obter o respectivo registro e, se for o caso, promover a admissão de negociação das novas ações no mercado, dentro de prazo máximo contados da data da Assembleia Geral que aprovou a operação, observando as normas editadas pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM. A propósito, a CVM é uma autarquia federal, instituída pela Lei nº 6.385, de 1976, criada com o objetivo de fiscalizar, regulamentar e desenvolver o Mercado de Valores Mobiliários. Uma de suas principais atribuições é proteger o investidor, de modo a garantir o cumprimento da legislação que disciplina as diversas modalidades de investimentos que são apresentadas e vendidas as pessoas (MAMEDE, Gladston. Direito societário: sociedades simples e empresárias. São Paulo: Atlas, 2004. p. 216/217).

27 O DNRC – Departamento Nacional de Registro do Comércio, criado pela Lei nº 4.048, de 1961, é órgão central do Sinrem – Sistema Nacional de Registro de Empresas Mercantis e tem como principais atribuições às funções supervisora, orientadora e normativa, no plano técnico; e supletiva, no plano administrativo, relativamente aos registros mercantis no país. Vide art. 55 da Lei nº 8.934, de 1994 – Lei de Registros Mercantis.

28 As sociedades empresárias são classificadas conforme o seu ato constitutivo. São estatutárias as sociedades por ações, quais sejam: as sociedades anônimas e as comanditas por ações; já as sociedades limitadas, em nome coletivo e comanditas simples são contratuais.

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cimento para que se realizem auditorias, também chamadas de due diligence29.

Essas providências preparatórias são absolutamente fundamentais, já que, concluída a operação, os interesses dos envolvidos estarão entre-laçados e qualquer irregularidade de uma passa a ser da outra ou ainda da nova sociedade que resultou do próprio negócio. A auditoria tem como finalidade avaliar a regularidade da empresa envolvida em todas as searas, como fiscal, trabalhista, ambiental, securitária etc., e, além disso, auxilia na fixação do valor que será atribuído a empresa envolvida30. Tal valor envolve inclusive a avaliação dos intangíveis como eventuais marcas titu-larizadas pelos empresários.

Finalizadas as diligências preparatórias, caso mantida a intenção de realização da operação, os representantes legais das empresas envolvi-das assinam o protocolo de intenções, no qual são traçadas as bases da operação, condições e forma de operacionalização. Tal instrumento vem acompanhado de uma justificativa; uma exposição de motivos. Em segui-da, procede-se à avaliação do patrimônio a ser incorporado, mediante perícia técnica, de modo a assegurar a equivalência entre o seu valor e o capital a realizar31.

O protocolo acompanhado da justificativa, bem como os laudos de avaliação das empresas envolvidas são levados à apreciação dos sócios em assembleia. Com a aprovação dos laudos e do texto do estatuto ou contrato resultante da operação, cumprem-se as formalidades registrais antes mencionadas32.

As fusões e incorporações podem também estar condicionadas à aprovação pelo Cade – Conselho Administrativo de Defesa Econômica33, sempre que resultar em empresa que possa dominar um mercado relevan-

29 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, p. 494.30 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, p. 494.31 RIZZARDO, Arnaldo. Direito de empresa: Lei nº 10.406, de 10.01.2002. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense,

2009. p. 638.32 RIZZARDO, Arnaldo. Direito de empresa, p. 638.33 O Cade é um órgão judicante, com jurisdição em todo o território nacional, criado pela Lei nº 4.137/1962

e transformado em autarquia vinculada ao Ministério da Justiça pela Lei nº 8.884, de 1994. As atribuições do Cade estão previstas atualmente na Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011, a qual estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações da ordem econômica. O Cade tem competência para orientar, fiscalizar, prevenir e apurar abusos de poder econômico, exercendo papel tutelador da prevenção e da repressão a tais abusos.

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te, ou se qualquer das sociedades envolvidas tiver faturamento bruto anual expressivo, conforme a Lei de Defesa da Concorrência34-35.

As operações também devem ser observadas do ponto de vista dos direitos dos credores e responsabilidades dos sócios. Não é uma novidade que a garantia dos credores é o patrimônio do devedor36 e que as operações societárias podem eventualmente afetar essa garantia, seja em razão da mu-dança do tipo societário, quando implicar a limitação da responsabilidade dos sócios37 antes não existente, seja em virtude da redução do patrimônio líquido da devedora decorrente da união com outra de menor liquidez.

34 Os atos de concentração empresarial que possam limitar ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços, deverão ser submetidos à apreciação do Cade. Trata-se de previsão legal: art. 88 da Lei nº 12.529/2011: “Serão submetidos ao Cade pelas partes envolvidas na operação os atos de concentração econômica em que, cumulativamente: I – pelo menos um dos grupos envolvidos na operação tenha registrado, no último balanço, faturamento bruto anual ou volume de negócios total no País, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a R$ 400.000.000,00 (quatrocentos milhões de reais); e II – pelo menos um outro grupo envolvido na operação tenha registrado, no último balanço, faturamento bruto anual ou volume de negócios total no País, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a R$ 30.000.000,00 (trinta milhões de reais). [...] § 5º Serão proibidos os atos de concentração que impliquem eliminação da concorrência em parte substancial de mercado relevante, que possam criar ou reforçar uma posição dominante ou que possam resultar na dominação de mercado relevante de bens ou serviços, ressalvado o disposto no § 6º deste artigo. § 6º Os atos a que se refere o § 5º deste artigo poderão ser autorizados, desde que sejam observados os limites estritamente necessários para atingir os seguintes objetivos: I – cumulada ou alternativamente: a) aumentar a produtividade ou a competitividade; b) melhorar a qualidade de bens ou serviços; ou c) propiciar a eficiência e o desenvolvimento tecnológico ou econômico; e II – sejam repassados aos consumidores parte relevante dos benefícios decorrentes. [...] Art. 90 da Lei nº 12.529/2011: Para os efeitos do art. 88 desta lei, realiza-se um ato de concentração quando: I – 2 (duas) ou mais empresas anteriormente independentes se fundem; II – 1 (uma) ou mais empresas adquirem, direta ou indiretamente, por compra ou permuta de ações, quotas, títulos ou valores mobiliários conversíveis em ações,ou ativos, tangíveis ou intangíveis, por via contratual ou por qualquer outro meio ou forma, o controle ou partes de uma ou outras empresas; III – 1 (uma) ou mais empresas incorporam outra ou outras empresas; ou IV – 2 (duas) ou mais empresas celebram contrato associativo, consórcio ou joint venture. [...] § 3º Incluem-se nos atos de que trata o caput aqueles que visem a qualquer forma de concentração econômica, seja através de fusão ou incorporação de empresas, constituição de sociedade para exercer o controle de empresas ou qualquer forma de agrupamento societário, que implique participação de empresa ou grupo de empresas resultante em 20% (vinte por cento) de um mercado relevante, ou em que qualquer dos participantes tenha registrado faturamento bruto anual no último balanço equivalente a R$ 400.000.000 (quatrocentos milhões de reais)”.

35 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito de empresa, p. 224.36 No Direito Romano arcaico, a execução incidia sobre a pessoa do devedor, a exemplo da manus injectio

que autorizava o credor a manter o devedor em cárcere privado ou escravizá-lo. Esse instituto draconiano somente foi afastado pela alteração introduzida pela Lex Poetelia Papiria com a qual o regime executório passou a ser o da constrição patrimonial. A máxima de que a garantia dos credores é o patrimônio do devedor está refletida ainda hoje na legislação, a exemplo do art. 591 do CPC, que determina: “O devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei” (FAZZIO JUNIOR, Waldo. Manual de direito comercial. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 624).

37 Não há dúvidas de que a sociedade – pessoa jurídica devedora – responde com a totalidade do seu patrimônio, até porque este é a garantia dos credores. No entanto, dependendo do tipo de sociedade, os sócios poderão vir a responder subsidiariamente por obrigações que eram da sociedade e restaram inadimplidas por esgotamento do patrimônio social. Essa responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais acaba por classificar as sociedades em três grupos distintos: a) sociedades com sócios de responsabilidade ilimitada: é o caso da sociedade em nome coletivo em que os sócios, esgotado o patrimônio da sociedade, respondem pelas obrigações sociais de forma ilimitada e solidária; b) sociedades com sócios de responsabilidade limitada: é o caso das sociedades limitadas e anônimas em que os sócios respondem de forma limitada até o valor do capital investido, ou seja, seu patrimônio pessoal apenas poderá ser atingido se o capital social não

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As operações societárias de fusão e incorporação implicam a chama-da sucessão empresarial. A incorporadora ou a nova sociedade resultante da fusão são as sucessoras, em todos os direitos e obrigações. Nesses dois casos, o credor da pessoa jurídica extinta exerce o direito de crédito contra a incorporadora ou a sociedade resultante da fusão38. Os sócios, por sua vez, responderão pelas obrigações sociais conforme o tipo societário que estrutura a sociedade resultante após a operação39.

Logicamente que os credores que tiverem reduzida a garantia de re-cebimento de seus créditos em virtude dessas operações podem pleitear judicialmente sua anulação40. Todavia, somente pode ser considerado pre-judicado o credor que vê reduzida a garantia patrimonial que possuía antes da operação se consumar41. Não seria crível que a simples discordância do credor chancelasse o pleito de anulação, já que esta exige apresentação de máculas capazes de justificá-la, definidas a partir da teoria geral dos vícios ou defeitos dos atos jurídicos em geral. Em última análise, a anulação se justifica diante de uma hipótese, no mínimo, próxima à de fraude contra credores, com prova de ocorrência efetiva de prejuízo42.

Apresentadas, ainda que de forma pontual e sintética, as operações de concentração empresarial, parte-se para a exploração de algumas noções básicas sobre um bem de propriedade dos empresários que é de extrema importância para a atividade empresarial e, na maioria das vezes, representa fator crucial para a efetivação de ditas operações societárias: as marcas de produtos e serviços.

2 NOÇÕES SOBRE AS MARCAS: IMPORTANTES ATIVOS INTANGÍVEIS DO PATRIMÔNIO DO EMPRESÁRIO

As marcas são ativos intangíveis integrantes do patrimônio dos em-presários e que indubitavelmente fazem parte dos negócios celebrados entre eles, sendo consideradas, até mesmo, como fatores decisivos para a realiza-ção ou não dos ditos negócios. Ativo intangível é um ativo não monetário, identificável e sem substância física. A definição de ativo pela norma é a

estiver totalmente integralizado, ressalvadas as situações em que desconsiderada a personalidade jurídica; c) sociedades mistas: caso das sociedades em comandita simples e por ações, as quais possuem duas categorias de sócios, uma delas de responsabilidade ilimitada e solidária e outra de responsabilidade limitada (NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa, p. 288/290; COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, p. 28/30).

38 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, p. 497.39 NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa, p. 480.40 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa, p. 525/526.41 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa, p. 525/526.42 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa, p. 526.

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mesma da estrutura conceitual, uma vez que um ativo é um recurso con-trolado pela entidade como resultado de eventos passados sobre o qual são esperados benefícios futuros. As empresas frequentemente realizam gastos com todos os tipos de recursos intangíveis, tais como conhecimento cientí-fico ou técnico, projeto e implementação de novos processos ou sistemas, licenças de softwares, marcas, patentes, listas de clientes e muitos outros. Para serem reconhecidos como ativos intangíveis, esses bens precisam aten-der aos critérios de identificação, de controle e de existência de benefícios econômicos futuros43.

Pode-se dizer que tais ativos também são considerados bens incor-póreos, imateriais. Os bens incorpóreos, oriundos da criação humana, são tutelados pela propriedade intelectual44. Estes bens decorrem de ideias ori-ginais e inovadoras que, ao serem desenvolvidas e aplicadas no exercício da atividade empresarial, podem auxiliar substancialmente na conquista de mercado consumidor, sucesso de venda e, consequentemente, aumento de lucratividade.

O ativo de propriedade intelectual está diretamente relacionado ao capital humano da empresa. Uma equipe eficiente e criativa produzirá ideias inovadoras que, se bem utilizadas e aplicadas, agregam um diferen-cial ao produto ou serviço oferecido em relação aos da concorrência e, as-sim, facilitam o estabelecimento de vínculo de lealdade entre o consumidor e determinado produto ou serviço da empresa ou até em relação à própria empresa45.

A propriedade industrial é uma espécie do gênero propriedade inte-lectual que trata da proteção jurídica dos bens incorpóreos aplicáveis aos

43 ERNST & YOUNG, Fipecafi. Manual de normas internacionais de contabilidade: IFRS versus normas brasileiras. São Paulo: Atlas, 2009. p. 324/325.

44 Os bens imateriais, oriundos da criação humana, são tutelados pelo sistema da propriedade intelectual. Esta, por sua vez, abrange a tutela dos direitos autorais e da propriedade industrial. As marcas, objeto específico de análise neste artigo, juntamente com as patentes de invenção e de modelo de utilidade e os desenhos industriais são os bens da propriedade industrial que possuem uma importância decisiva no âmbito do exercício de empresas. São bens extremamente caros aos empresários que muitas vezes dependem deles para o melhor desempenho de sua atividade. O regramento da propriedade industrial no Brasil está na Lei de Propriedade Industrial (LPI) – Lei nº 9.279/1996, bem como conta com regras internacionais sobre o tema, como, por exemplo, a Convenção União de Paris (CUP), com texto inicial realizado em 1880, incorporada pelo Decreto nº 75.572/1975, com as modificações da última revisão que ocorreu em Estocolmo, conforme o Decreto nº 635/1992, bem como o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS), incorporado pelo Decreto nº 1.355/1994. Para aprofundamento sobre a propriedade intelectual, vide, por todos: BARBOSA, Denis Borges. Tratado de propriedade intelectual. Rio de Janeiro: Lumen Juris; e, especificamente, sobre a propriedade industrial, vide: CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da propriedade industrial. Rio de Janeiro: Lumen Juris.

45 IDRIS, Kamil. A importância do uso de ativos de propriedade intelectual. Revista da ABPI, n. 74, p. 4. jan./fev. 2005.

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diversos segmentos empresariais46 e tutela, além dos registros de marcas e desenhos industriais, as patentes de invenções e de modelos de utilidade e reprime a concorrência desleal47.

As marcas48 são perfeitos exemplos de ativos intangíveis, protegidos pelo sistema da propriedade industrial, e que, exercendo uma função distin-tiva e identificadora de produtos e serviços no mercado de consumo, são de extrema valia para seus titulares empresários.

A propósito, define-se marca como todo sinal distintivo, visualmente perceptível, que identifica e distingue produtos e serviços de outros análo-gos, de procedência diversa, bem como certifica a conformidade deles com determinadas normas ou especificações técnicas. É um meio eficaz para a constituição de uma clientela, já que representa para o consumidor uma orientação para a escolha do produto ou serviço, levando em conta, entre outros fatores, a proveniência, a qualidade e o desempenho49.

Enquanto sinal gráfico ou simbolizado, a marca possui uma função identificadora, já que busca identificar a origem ou procedência de um pro-duto ou serviço, e uma função distintiva, porque a marca também distingue os produtos ou serviços que identifica de outros, idênticos ou semelhantes, de procedência diversa50. Enfim, as marcas distinguem produtos e serviços entre si, identificando-os, dando-lhes individualidade própria51.

Essa função identificadora também auxilia na repressão à concorrên-cia desleal, como bem identifica Tavares52, para quem

46 Para Bertoldi, a propriedade industrial não é uma espécie de bem imaterial relacionado exclusivamente com a atividade industrial. Essa denominação está presa ao contexto histórico em que surgiram as primeiras manifestações de proteção do direito imaterial pertencente ao empresário, que estavam geralmente ligadas à indústria. Atualmente, a propriedade industrial é entendida como o conjunto de normas e institutos que têm como objetivo a proteção dos bens imateriais pertencentes ao empresário e ligados à atividade por ele desenvolvida. Desta forma, as expressões “propriedade industrial” e “direito industrial” certamente não são as mais adequadas. O certo seria que se fizesse referência à “propriedade empresarial imaterial” (BERTOLDI, Marcelo. Curso avançado de direito comercial: teoria geral do direito comercial direito societário. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, v.1, p. 125).

47 DI BLASI, Gabriel. A propriedade industrial: os sistemas de marcas, patentes, desenhos industriais e transferência de tecnologia. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 25.

48 A origem da marca se deu com o produtor rural, que desde a antiguidade teve a inclinação de assinalar, de modo característico, a sua produção. Vem de outros tempos o hábito de identificar o gado com marca em fogo. Não constituíam propriamente marcas, traziam em si mais um cunho de sinal de propriedade. Na Idade Média, era comum o emprego de marcas figuradas, constituídas de linhas retas ou curvas, sendo reconhecido como direito privado absoluto, protegido pelas corporações de mercadores. Essa proteção acabou caindo em desuso e, somente em tempos recentes, foi reimplantada (REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 246).

49 DI BLASI, Gabriel. A propriedade industrial, p. 292.50 SOARES, José Carlos Tinoco. Tratado da propriedade industrial: marcas e congêneres. São Paulo: Jurídica

Brasileira, 2003. p. 111; OLIVEIRA, Maurício Lopes de. Propriedade industrial: o âmbito de proteção da marca registrada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. p. 4/7.

51 CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da propriedade industrial, p. 756/758.52 TAVARES, Paulo Roberto. Curso de direito comercial. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1993. p. 118.

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a marca torna o produto conhecido, ocorrendo, em muitos os casos, que ele escolhe o fabricante. O consumidor conhece a marca, a sua bondade, desconhecendo o fabricante na maior parte das vezes. Conclui que, além da função identificadora, as marcas dão proteção contra a concorrência desleal, esteando o aviamento do comerciante.

Gonçalves53 afirma ainda que a marca, além de indicar que os produ-tos ou serviços são originários de empresários ilibados, também indica que os produtos ou serviços se reportam a um sujeito que assume em relação a ele o ônus pelo seu uso não enganoso.

Dentro dessa perspectiva, pode-se dizer que a marca também exerce uma função comercial, já que deve evitar a concorrência desleal e garantir a qualidade de produtos e serviços ofertados aos consumidores. Aliás, a marca é fundamental para a livre escolha do consumidor e para evitar o risco de confusão entre produtos e serviços dispostos no mercado. Esta é a função social da marca.

A marca também atua como um veículo de divulgação, exercendo função publicitária54, já que, promovendo produtos e serviços, forma nas pessoas o hábito de consumi-los, induzindo preferências por meio do estí-mulo ocasionado por uma denominação, palavra, emblema, figura, símbolo ou outro elemento distintivo. É, efetivamente, o agente individualizador de um produto ou serviço e proporciona à clientela garantia de identificação daquele de sua preferência55.

Ainda se pode afirmar que as marcas exercem: função atrativa, já que devem atrair a clientela, incitar ao consumo e valorizar a atividade empresarial do titular; função estratégica, por meio da qual, ao correspon-der à expectativa dos consumidores, induz ao consumo; e, por fim, função econômica, ao determinar que a marca serve para diminuir o esforço de busca do consumidor e criar incentivos para instituir e manter a qualidade do produto.

Denis Borges Barbosa56 afirma que,

ao contrário do que ocorre com a bula de um remédio ou as especificações de um equipamento, a marca indica apenas sumariamente que o bem ou serviço pode ser objeto da expectativa de um conjunto de características, conforme a confiança que o consumidor adquiriu, ou recebeu da informação

53 GONÇALVES, Luís M. Direito de marcas. Coimbra: Almedina, 2000. p. 22.54 NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa, p. 168.55 DI BLASI, Gabriel. A propriedade industrial, p. 292.56 BARBOSA, Denis Borges. Proteção das marcas: uma perspectiva semiológica. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2008.

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publicitária. Ao mesmo tempo, proporciona ao consumidor economia de esforço, desnecessidade de reflexão e indução ao consumo.

A marca também pode estabelecer o vínculo de lealdade do consu-midor, fazer face à concorrência, introduzir ou repor produtos no mercado, distinguir linhas de produtos em uma empresa, estabelecer alianças e par-cerias estratégicas, demonstrar o cumprimento de determinados padrões, promover a conscientização a uma causa social e fortalecer a imagem na-cional57.

Em muitos casos, o que motiva a realização de operações societárias de fusão e incorporação é a obtenção dos bens incorpóreos. Um dos maio-res interesses recai sobre as marcas, diante das inúmeras funções que exer-cem. Os empresários, às vezes, não querem ou não podem gastar tempo e dinheiro para desenvolvimento de novas marcas. Desta forma, há um dina-mismo em obter todos os benefícios que as marcas existentes produzem.

A marca assume papel de destaque nos modernos métodos de gestão empresarial. Trata-se do reconhecimento de que a marca precisa ser trata-da como um ativo estratégico, uma vantagem competitiva para qualquer empresa. Alguns dos muitos benefícios de sua exploração adequada são: melhorar ou defender o market share58 de uma empresa, valorizando um produto com uma marca forte ou já conhecida no mercado; ultrapassar e construir barreiras legais, por meio da aplicação dos direitos de propriedade intelectual, para a entrada de outros empresários em determinados merca-dos; estabelecer a superioridade tecnológica de uma empresa, em especial quando ela é a primeira a produzir ou comercializar determinado produto tecnologicamente inovador; gerar capital por meio da negociação e do re-cebimento de royalties59 advindos do licenciamento de marcas; utilização enquanto “moeda” em negócios envolvendo empresas (aquisição da titu-laridade de marcas por meio de contratos de cessão de direitos) ou mesmo como garantia em operações financeiras60.

Para além das funções, importa ainda esclarecer que, quanto a sua natureza, as marcas classificam-se em: a) marca de produto ou de serviço: aquela usada para distinguir produto ou serviço de outro idêntico, seme-lhante ou afim, de origem diversa, um exemplo é a marca Caloi – quem

57 IDRIS, Kamil. A importância do uso de ativos de propriedade intelectual, p. 8/9.58 Por market share se entende a “quota ou fatia de mercado”.59 Valor pago ao titular de uma marca, patente, processo de produção, produto ou obra literária original, pelos

direitos de sua exploração comercial (IUDÍCIBUS, Sérgio de; MARTINS, Eliseu; GELBCKE, Ernesto R.; SANTOS, Ariovaldo dos. Manual de contabilidade societária, p. 570).

60 SANTAROSA, Dirceu Pereira de. A importância da propriedade intelectual no mundo dos negócios. Revista da ABPI, n. 60, p. 4-5, set./out. 2002.

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esquece a sua primeira Caloi?; b) marca de certificação: aquela usada para atestar a conformidade de um produto ou serviço com determinadas nor-mas ou especificações técnicas, notadamente quanto à qualidade, natureza, material utilizado e metodologia empregada, um exemplo é a ABNT – As-sociação Brasileira de Normas Técnicas; e c) marca coletiva: aquela usada para identificar produtos ou serviços provindos de membros de uma deter-minada entidade, como exemplo a Associação dos Cafeicultores da Região de Ribeirão Preto61.

Já em relação à forma de apresentação, as marcas podem ser: a) no-minativa ou verbal: quando composta por uma ou mais palavras no sentido amplo do alfabeto romano, compreendendo neologismos e combinações com algarismos, desde que esses elementos não se apresentem de forma fantasiosa ou figurativa; b) figurativas ou emblemáticas: quando composta por desenho, imagem, figura, símbolo ou qualquer forma fantasiosa ou figu-rativa de letra e números, isolada ou acompanhada de desenho, bem como ideogramas (enquanto figura) de línguas como o japonês, o chinês, hebraico etc.; c) mistas: quando compostas pela combinação de elementos nominati-vos e figurativos, com ou sem combinação de cores, ou mesmo apenas por elementos nominativos cuja grafia se apresente sob a forma fantasiosa ou estilizada; e, por fim, d) tridimensionais: compostas pela forma plástica, de produto ou embalagem, que tenha cunho distintivo em si e esteja dissociada de qualquer efeito técnico, ou seja, não seja essencial para o uso do produ-to ou afete seu custo ou qualidade, como, por exemplo, a caneta Bic ou a caixa do chocolate Toblerone62.

O registro de marca, que confere ao titular o direito de exclusividade de uso e exploração econômica, é concedido pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI, uma autarquia federal que tem competência para concessão de todos os direitos da propriedade industrial63.

Todavia, para que o pedido de registro não seja indeferido, a mar-ca pretendida deve contemplar um sinal distintivo visualmente perceptível, distinto de outros já protegidos e não compreendido em proibições legais64.

61 DI BLASI, Gabriel. A propriedade industrial, p. 312.62 DI BLASI, Gabriel. A propriedade industrial, p. 312/313.63 SOARES, José Carlos Tinoco. Tratado da propriedade industrial, p. 831.64 Art. 124 da Lei nº 9.279/1996: “Não são registráveis como marca: I – brasão, armas, medalha, bandeira,

emblema, distintivo e monumento oficiais, públicos, nacionais, estrangeiros ou internacionais, bem como a respectiva designação, figura ou imitação; II – letra, algarismo e data, isoladamente, salvo quando revestidos de suficiente forma distintiva; III – expressão, figura, desenho ou qualquer outro sinal contrário à moral e aos bons costumes ou que ofenda a honra ou imagem de pessoas ou atente contra liberdade de consciência, crença, culto religioso ou ideia e sentimento dignos de respeito e veneração; IV – designação ou sigla de entidade ou órgão público, quando não requerido o registro pela própria entidade ou órgão público; V – reprodução ou imitação de elemento característico ou diferenciador de título de estabelecimento ou nome de empresa de terceiros, suscetível de causar confusão ou associação com estes sinais distintivos; VI – sinal de caráter

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Portanto, o princípio da legalidade é o primeiro que se apresenta como pre-missa registral, já que, a contrário senso, todo o sinal visualmente perceptí-vel é registrável como marca, se legalmente permitido65.

Além disso, a marca não pode ferir direito de terceiro, ou seja, precisa ser distinta das marcas já registradas ou com pedidos depositados. Trata-se da novidade que se exige da marca. Essa novidade, porém, não é absoluta, mas relativa. Para que seja nova, não precisa ser necessariamente criada pelo empresário: basta que determinado signo ainda não seja utilizado para assi-nalar produtos ou serviços idênticos ou semelhantes66. Portanto, o que deve ser nova é utilização desta marca na identificação de determinado produto ou serviço, por exemplo, usar uma estrela para identificação de brinquedos.

A marca é registrável no INPI para fins de concessão do direito de exploração exclusiva. O Direito brasileiro conferiu ao registro industrial o caráter de ato administrativo constitutivo. Ou seja, o direito de utilização exclusiva da marca não nasce da anterioridade em sua utilização, mas da anterioridade do registro67.

genérico, necessário, comum, vulgar ou simplesmente descritivo, quando tiver relação com o produto ou serviço a distinguir, ou aquele empregado comumente para designar uma característica do produto ou serviço, quanto à natureza, nacionalidade, peso, valor, qualidade e época de produção ou de prestação do serviço, salvo quando revestidos de suficiente forma distintiva; VII – sinal ou expressão empregada apenas como meio de propaganda; VIII – cores e suas denominações, salvo se dispostas ou combinadas de modo peculiar e distintivo; IX – indicação geográfica, sua imitação suscetível de causar confusão ou sinal que possa falsamente induzir indicação geográfica; X – sinal que induza a falsa indicação quanto à origem, procedência, natureza, qualidade ou utilidade do produto ou serviço a que a marca se destina; XI – reprodução ou imitação de cunho oficial, regularmente adotada para garantia de padrão de qualquer gênero ou natureza; XII – reprodução ou imitação de sinal que tenha sido registrado como marca coletiva ou de certificação por terceiro, observado o disposto no art. 154; XIII – nome, prêmio ou símbolo de evento esportivo, artístico, cultural, social, político, econômico ou técnico, oficial ou oficialmente reconhecido, bem como a imitação suscetível de criar confusão, salvo quando autorizados pela autoridade competente ou entidade promotora do evento; XIV – reprodução ou imitação de título, apólice, moeda e cédula da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios, dos Municípios, ou de país; XV – nome civil ou sua assinatura, nome de família ou patronímico e imagem de terceiros, salvo com consentimento do titular, herdeiros ou sucessores; XVI – pseudônimo ou apelido notoriamente conhecidos, nome artístico singular ou coletivo, salvo com consentimento do titular, herdeiros ou sucessores; XVII – obra literária, artística ou científica, assim como os títulos que estejam protegidos pelo direito autoral e sejam suscetíveis de causar confusão ou associação, salvo com consentimento do autor ou titular; XVIII – termo técnico usado na indústria, na ciência e na arte, que tenha relação com o produto ou serviço a distinguir; XIX – reprodução ou imitação, no todo ou em parte, ainda que com acréscimo, de marca alheia registrada, para distinguir ou certificar produto ou serviço idêntico, semelhante ou afim, suscetível de causar confusão ou associação com marca alheia; XX – dualidade de marcas de um só titular para o mesmo produto ou serviço, salvo quando, no caso de marcas de mesma natureza, se revestirem de suficiente forma distintiva; XXI – a forma necessária, comum ou vulgar do produto ou de acondicionamento, ou, ainda, aquela que não possa ser dissociada de efeito técnico; XXII – objeto que estiver protegido por registro de desenho industrial de terceiro; e XXIII – sinal que imite ou reproduza, no todo ou em parte, marca que o requerente evidentemente não poderia desconhecer em razão de sua atividade, cujo titular seja sediado ou domiciliado em território nacional ou em país com o qual o Brasil mantenha acordo ou que assegure reciprocidade de tratamento, se a marca se destinar a distinguir produto ou serviço idêntico, semelhante ou afim, suscetível de causar confusão ou associação com aquela marca alheia”.

65 NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa, p. 174/175.66 CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da propriedade industrial, p. 778.67 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial, p. 88/89.

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Daí se extrai a aplicação do princípio da atributividade68, por meio do qual a propriedade e o direito ao uso exclusivo da marca são adquiridos pelo registro válido; atribui-se o direito pelo registro válido. Confere-se o registro e os direitos daí decorrentes àquele que primeiro requerer perante o INPI; aquele que primeiro depositar o pedido goza da prioridade de direito ao registro. Todavia, a legislação ressalva o direito de precedência ao regis-tro, que é assegurado a quem, de boa-fé, usava no país há pelo menos seis meses marca idêntica ou semelhante, para distinguir ou certificar produto ou serviço idêntico, semelhante ou afim69.

O certificado de registro será expedido após ter sido deferido o pedi-do e comprovado o pagamento das retribuições correspondentes. Expedido o certificado, estará assegurada a exclusividade da utilização da marca, em todo o território nacional, durante dez anos, prorrogáveis por mais dez anos iguais e sucessivos70.

Para além dos princípios da legalidade e da atributividade, existem outros três princípios extremamente relevantes para a estrutura do direito marcário: o da territorialidade, o da especialidade e o da repressão à con-corrência desleal.

O princípio da territorialidade determina que os direitos conferidos ao titular da marca registrada estão restritos ao território do país em que foram requeridos; o registro marcário garante o uso exclusivo em todo o território nacional71.

Já pelo princípio da especialidade, o titular do registro marcário tem exclusividade de uso no segmento de mercado para o qual a marca foi re-gistrada. Esse princípio pretende que a marca seja capaz de diferenciar pro-dutos e serviços de outros. Não exige que o sinal seja novo, mas que tenha a possibilidade de diferenciar o produto ou o serviço72. Está ele estreitamente ligado ao requisito da novidade relativa. Nas palavras de Gama Cerqueira73:

A novidade da marca, portanto, deve ser apreciada em relação aos produtos a que se aplica [...]. Nada impede também que a marca seja idêntica ou

68 No Brasil, vige o sistema atributivo de direito (first-to-file), diferente de outros países, como os EUA, que utiliza o sistema declarativo de direito (first-to-use). O sistema atributivo é aquele que o registro atribui o direito de propriedade e uso exclusivo; já o declarativo é aquele pelo qual o direito resulta primeiro do uso e o registro serve apenas como uma simples homologação de propriedade.

69 Art. 129 da Lei nº 9.279/1996: “A propriedade da marca adquire-se pelo registro validamente expedido, conforme as disposições desta lei, sendo assegurado ao titular seu uso exclusivo em todo o território nacional, observado quanto às marcas coletivas e de certificação o disposto nos arts. 147 e 148. § 1º Toda pessoa que, de boa fé, na data da prioridade ou depósito, usava no País, há pelo menos 6 (seis) meses, marca idêntica ou semelhante, para distinguir ou certificar produto ou serviço idêntico, semelhante ou afim, terá direito de precedência ao registro”.

70 DI BLASI, Gabriel. A propriedade industrial, p. 323/324.71 DI BLASI, Gabriel. A propriedade industrial, p. 319-320.72 TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial, p. 139.73 CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da propriedade industrial, p. 778/779.

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semelhante a outra já usada para distinguir produtos diferentes ou emprega-da em outro gênero de comércio ou indústria. É neste caso que o princípio de especialidade da marca tem sua maior aplicação, abrandando a regra relativa à novidade. A marca deve ser nova, diferente das já existentes; mas, tratando-se de produtos ou indústrias diversas, não importa que ela seja idên-tica ou semelhante a outra em uso.

Os princípios da territorialidade e especialidade são estruturantes do regime marcário, mas não são absolutos; sofrem relativização diante de es-pécies especiais de marcas: as marcas de alto renome e as notoriamente conhecidas.

A marca de alto renome excepciona o princípio da especialidade, ou seja, recebe proteção em todos os segmentos de mercado; é protegida em todas as classes de produtos e serviços. Como exemplo, tem-se a Coca-Cola e as Havaianas. Tal condição deve ser reconhecida pelo INPI, já que se trata de marca que

goza de uma autoridade incontestável, de um conhecimento e prestígio di-feridos, resultantes da sua tradição e qualificação no mercado e da qualida-de e confiança que inspira, vinculadas, essencialmente à boa imagem dos produtos ou serviços a que se aplica, exercendo um acentuado magnetismo, uma extraordinária força atrativa sobre o público em geral, indistintamente, elevando-se sobre os diferentes mercados e transcendendo a função a que se prestava primitivamente, projetando-se apta a atrair clientela pela sua sim-ples presença.74

Já a marca notoriamente conhecida goza de tal fama e notoriedade no seu segmento de mercado, que, mesmo não registrada no INPI, recebe proteção do Direito brasileiro, excepcionando, assim, o princípio da terri-torialidade. Trata-se de uma fama internacional e, por isso, os países devem protegê-la – mesmo que não haja registro75.

A marca notoriamente conhecida76 distingue-se da marca de alto re-nome77 por duas razões. Primeiro, para que a marca seja considerada noto-riamente conhecida, é suficiente que seja conhecida no Brasil pelo público usuário dos produtos ou serviços a que se aplica, ou seja, não precisa estar registrada no Brasil. Segundo, sua proteção é regida pelo princípio da es-

74 Art. 2º da Resolução do INPI nº 121/2005.75 HILÚ NETO, Miguel. Direito empresarial I, p. 168/169.76 Art. 126 da Lei nº 9.279/1996: “A marca notoriamente conhecida em seu ramo de atividade nos termos do

art. 6º-bis (I), da Convenção da União de Paris para Proteção da Propriedade Industrial, goza de proteção especial, independentemente de estar previamente depositada ou registrada no Brasil. § 1º A proteção de que trata este artigo aplica-se também às marcas de serviço. § 2º O INPI poderá indeferir de ofício pedido de registro de marca que reproduza ou imite, no todo ou em parte, marca notoriamente conhecida”.

77 Art. 125 da Lei nº 9.279/1996: “À marca registrada no Brasil considerada de alto renome será assegurada proteção especial, em todos os ramos de atividade”.

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pecialidade, que a limita ao ramo de atividade da marca. Isto significa que o titular da marca notoriamente conhecida só pode prevenir terceiros de registrarem ou usarem sinal idêntico ou semelhante quando pertencer ao mesmo segmento de mercado78.

Por fim, o princípio da repressão à concorrência desleal tem carac-terística instrumental, já que se caracteriza pela tipificação dos ilícitos que eventualmente podem ser praticados para garantir clientela em detrimento dos demais concorrentes. Entende-se como concorrência desleal o conjun-to de condutas do empresário que, fraudulenta ou desonestamente, busca afastar a clientela do concorrente79-80.

As marcas vêm se modernizando, adequando-se às necessidades do mercado. Ela adquire forma intangível aos olhos humanos, mas tangível à visão de negócio e mercado. Existem diversas formas, tipos e especificida-des de marca. Cada uma para o tipo de negócio que quer representar, sendo específica a natureza, será específica a marca. Daí a sua importância que toma tal proporção inclusive a ser decisiva para a celebração de negócios de concentração empresarial.

3 MARCA: ELEMENTO INTEGRANTE DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL E FUNDAMENTAL NA AVALIAÇÃO DO FUNDO EMPRESARIAL

O estabelecimento empresarial é um bem do patrimônio do empre-sário, não se confundindo com este, tampouco com a empresa, que é a própria atividade econômica desenvolvida.

Pode-se defini-lo como todo o complexo de bens necessários para o exercício da empresa pelo empresário81. Não se trata apenas do local onde o empresário exerce sua atividade. Este é o ponto de negócios, também integrante do estabelecimento. O estabelecimento é muito mais, envolve bens corpóreos e incorpóreos82, como, por exemplo, mercadorias, máqui-

78 HILÚ NETO, Miguel. Direito empresarial I, p. 169-171.79 FAZZIO JUNIOR, Waldo. Manual de direito comercial, p. 145-146.80 Para o aprofundamento sobre os princípios do direito marcário, vide: CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da

propriedade industrial. Op. cit.81 Art. 1.142 do CC/2002: “Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da

empresa, por empresário, ou por sociedade empresária”.82 O Superior Tribunal de Justiça não deixa dúvida quanto à definição de estabelecimento empresarial: “A

par das divergências doutrinárias acerca do alcance do conceito de ‘estabelecimento comercial’, é fato incontroverso que este é composto por patrimônio material e imaterial, constituindo exemplos do primeiro os bens corpóreos essenciais à exploração comercial, como mobiliários, utensílios e automóveis, e, do segundo, os bens e direitos industriais, como patente, nome empresarial, marca registrada, desenho industrial e o ponto. Esse entendimento é de Fábio Ulhoa Coelho: ‘Os elementos imateriais do estabelecimento empresarial são, principalmente, os bens industriais (patente de invenção, de modelo de utilidade, registro de desenho industrial, marca registrada, nome empresarial e título de estabelecimento) e o ponto (local em que se explora a atividade econômica)’ (Curso de direito comercial. 11. ed. São Paulo: Saraiva, v. 1, 2007. p. 101)” (STJ,

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nas, instalações, tecnologia, patentes, ponto e, obviamente, as marcas83. Em resumo, compreende todos os bens indispensáveis ou úteis ao desenvolvi-mento da empresa.

Não há como iniciar um negócio sem organizar um estabelecimen-to84. Pretendendo realizar uma atividade de comércio de vestuário, o em-presário deverá adquirir as roupas e outros produtos comercializados como acessórios, sapatos e bolsas; deverá também adquirir as estantes, as araras, os balcões e demais itens do mobiliário para a loja. Também deverá esco-lher um ponto para o seu estabelecimento, ou seja, o local onde irá realizar a atividade, além de, se quiser, registrar uma marca para distinguir seus produtos de fabricação própria, ou mesmo para usá-la como título de seu estabelecimento85.

O empresário soma a esses bens uma organização racional que per-mite a realização da atividade e gera o potencial de lucratividade, o que resulta no aumento do valor do estabelecimento, enquanto tais bens estive-rem reunidos. Ou seja, o conjunto dos bens reunidos alcança, no mercado, um valor superior à simples soma dos valores dos bens individualmente considerados86.

Ora, este empresário que pretende se estabelecer no ramo de comér-cio de vestuário poderá fazê-lo desde o início, ou seja, organizando todo o complexo de bens necessários para o desenvolvimento da atividade, ou poderá adquirir uma loja de roupas pronta, já organizada por outro empre-sário. Neste último caso, o valor que irá despender será maior, já que não resta dúvida de que a organização do complexo de bens tem um valor por si, para além do valor individual de cada bem que faz parte do conjunto. Além disso, o estabelecimento pronto, já em funcionamento, traz uma pers-pectiva de lucratividade que também influencia no seu valor.

REsp 633.179/MT, (2004/0025280-0), Recorrente: Shell Brasil Ltda., Recorrida: VIP Auto Posto Ltda. – massa falida, Rel. Luis Felipe Salomão. Brasília, 2 de dezembro 2010. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 30 maio 2012).

83 MÜLLER, Sergio José Dulac; MÜLLER, Thomas. Empresa e estabelecimento: a avaliação do goodwill. Revista Jurídica, n. 318, p. 30, abr. 2004.

84 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v. 1, p. 98.85 O título do estabelecimento é conhecido pela expressão “nome fantasia”, que não se confunde com o nome

empresarial, tampouco com a marca. O nome empresarial identifica o empresário, a marca identifica produtos ou serviços e o título do estabelecimento identifica o local em que o empresário exerce a empresa. Conforme Fábio Ulhoa Coelho: “Além da marca e do nome empresarial, o direito industrial cuida de uma terceira categoria de sinal distintivo: o título do estabelecimento. Trata-se da designação que o empresário empresta ao local em que desenvolve sua atividade. [...] Por razões econômicas e mercadológicas, entretanto, é comum a adoção, como título do estabelecimento, da própria marca registrada. [...] Quando o título e estabelecimento, contudo, apresenta expressão linguística diversa da marca, o empresário somente poderá impedir que alguém o imite ou reproduza, com base na repressão à concorrência desleal” (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v. 1, p. 188/189).

86 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v. 1, p. 98.

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Coelho afirma que a agregação de sobrevalor aos bens integrantes do estabelecimento empresarial, em função da atividade organizacional do empresário, é um fato econômico não ignorado pelo direito. No meio empresarial, é conhecido pela expressão inglesa goodwill of a trade, ou simplesmente como goodwill87. Já no meio jurídico, é conhecido pela ex-pressão “fundo de comércio” (derivada do francês fonds de commerce), ou pela palavra “aviamento” (do italiano avviamento)88.

O aviamento ou fundo empresarial89 – expressão mais alinhada à teoria da empresa, também referido por alguns como “os intangíveis”, é definido como o potencial de lucratividade do negócio que decorre do estabelecimen-to. Trata-se de um atributo do estabelecimento – atributo que agrega valor, um plus que exprime um potencial de ganhos ou uma expectativa de lucrati-vidade. Assim, o intangível potencial de lucratividade é o aludido goodwill90.

A jurisprudência reflete tal entendimento afirmando que

o fundo de comércio, atualmente, considerando a adoção da teoria da em-presa pelo CC/2002, fundo empresarial, nos estudos acerca do estabeleci-mento empresarial tem como sinônimo o aviamento, que vem a ser o sobre-valor ou mais-valia que o conjunto de bens adquire, superior ao individual de cada um, pelo fato de estarem estes inteligentemente organizados para o exercício da empresa. É esse plus valorativo, também chamado luvas ou cha-ves, levado em conta em eventual venda, composto da contribuição de todos os elementos que integram o estabelecimento: (a) bens corpóreos (mercado-rias, instalações, máquinas e utensílios e imóveis); e (b) incorpóreos (título do estabelecimento e insígnia ou emblema, ponto empresarial e freguesia).91

Por tudo, tem-se que não há como falar em marca sem mencionar o fundo empresarial. A marca, enquanto bem incorpóreo que compõe o esta-belecimento empresarial, exerce um papel fundamental para a avaliação do próprio fundo empresarial. Se o estabelecimento empresarial é um bem do

87 Ágio por expectativa de rentabilidade futura (KPMG, Cutting through complexity. Sinopse contábil & tributária 2010, 2010, p. 10).

88 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v. 1, p. 99/100.89 Negrão faz a ressalva de que muitos autores usam a expressão “fundo de comércio” como sinônimo de

estabelecimento (NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 83). A doutrina nacional clássica entende como sinônimas as expressões estabelecimento e fundo de comércio, como já mencionado. Requião é um exemplo, para quem o fundo de comércio ou estabelecimento empresarial é o instrumento da atividade do empresário (REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, p. 244). No entanto, o termo fundo de comércio, ou melhor, fundo empresarial, vem sendo paulatinamente utilizado, pela doutrina nacional, à luz da doutrina alienígena, para exprimir o aviamento do estabelecimento. Coelho registra que não é correto tomar por sinônimos “estabelecimento empresarial” e “fundo de empresa”. Este é um atributo daquele; não são, portanto, a mesma coisa. O estabelecimento é o conjunto de bens que o empresário reúne para explorar uma atividade econômica, e o fundo de empresa é o valor agregado ao referido conjunto, em razão da mesma atividade (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, p. 100).

90 MÜLLER, Sergio José Dulac; MÜLLER, Thomas. Empresa e estabelecimento, p. 30.91 TJRS, AC 70027138957/2008, 1ª C.Cív., Apelantes: Estado do Rio Grande do Sul, Apelado: Uilson Antonio

do Canto Cardoso, Rel. Irineu Mariani, Porto Alegre, 15.04.2009.

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patrimônio do empresário, é ele passível de negócios jurídicos e, para tanto, será necessário atribuir-lhe um valor, cuja fixação é totalmente dependente da do fundo empresarial.

Contudo, cada empresário, seja individual ou coletivo, possui um fundo empresarial. Não se pode dizer qual é o elemento preponderante que forma o fundo empresarial. Para o empresário de varejo, pode ser o local em que está instalado, pela situação privilegiada no centro da cidade, comumente chamado de ponto de negócios. Para outros, o elemento mais destacado do fundo empresarial é a exclusividade de determinados produ-tos, devidamente identificados por marcas próprias92.

O estabelecimento empresarial, enfim, é o conjunto que forma o uni-verso dos bens que visam à realização da atividade empresarial, ocupando posição de destaque na composição do contexto endereçado ao sucesso do negócio. Tudo isso representa um valor de natureza patrimonial e pode ser destacado, na medida em que surge o interesse na respectiva negociação93.

4 O “VALOR” DASMARCASPARAAS OPERAÇÕES DE INCORPORAÇÃO E FUSÃO DE EMPRESASComo visto, a marca, ativo intangível integrante do estabelecimento

do empresário, é um poderoso elemento estratégico que atua decisivamen-te no ato de consumo: serve para que o consumidor identifique o produto ou serviço com as características desejadas entre tantos outros que lhe são concorrentes, por meio da atração que exerce no seu espírito, seja por com-por a identidade visual, seja por valorizar uma característica, natureza ou qualidade dos produtos ou serviços identificados.

Além disso, a marca pode incentivar o empresário a investir na manu-tenção ou no aprimoramento da qualidade dos produtos ou serviços marca-dos, construindo ou garantindo a sua reputação, além de aumentar vendas e, consequentemente, o lucro, impulsionadas por planejamento de marketing, a partir do estabelecimento de vínculo de lealdade com o consumidor. Quando o público é fiel, pode-se até aumentar os preços com maior facilidade.

A marca também pode ser objeto de negócios, como, por exem-plo, o licenciamento de uso94, propiciando ao seu titular o recebimento de royalties95.

92 MARTINS, Fran. Curso de direito comercial: empresa comercial, empresários individuais, microempresas, sociedades comerciais, fundo de comércio. 32. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 418/422.

93 MARTINS, Fran. Curso de direito comercial, p. 421/422.94 São contratos de licenciamento, em que o detentor da marca autoriza outra empresa a utilizar sua marca

para a comercialização de produtos diferentes aos comercializados pela empresa, na exploração de outros mercados onde a empresa não tenha interesse em atuar (IDRIS, Kamil. A importância do uso de ativos de propriedade intelectual, p. 8).

95 IDRIS, Kamil. A importância do uso de ativos de propriedade intelectual, p. 8.

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Em suma, a marca atua essencialmente no plano comercial: do ponto de vista público, na defesa do consumidor, evitando confusão; do ponto de vista privado, auxiliando o titular no combate a concorrência desleal. Além disso, enquanto instrumento poderoso de maximização da lucratividade, influencia sobremaneira o aviamento, determinando o valor de negociação do estabelecimento, seja por meio do trespasse96 ou de operações societá-rias. Dessa forma, a marca assume um papel fundamental na economia das nações97.

A marca delineia a reputação do empresário. O produto de qualida-de, que corresponde à expectativa de um grau razoável de confiabilidade, juntamente com função de tornar palpável para o consumidor a filosofia e os objetivos de determinada empresa, permitem a construção de uma repu-tação. Tal reputação constitui elemento essencial do valor de uma marca98.

O valor da marca não pode ser incluído como um bem ou direito nas demonstrações contábeis das empresas, a não ser que essa marca tenha sido adquirida de outro empresário99. Grosso modo, o valor da marca é dado pela diferença entre o valor de mercado da empresa e o seu patrimônio líquido, mensurado por meio da diferença entre todos os bens e direitos a receber e obrigações a pagar100.

Uma marca consistente representa um diferencial competitivo de grande importância no mundo atual. Em um mercado dominado pela in-formação e tecnologia, a importância de uma empresa está cada vez mais baseada no valor que seus ativos intangíveis podem atingir. Desenvolver, gerenciar e utilizar estrategicamente estes ativos se tornou matéria funda-mental para as empresas verdadeiramente preocupadas com o futuro. Mais do que nunca, as atenções do meio empresarial estão voltadas para a pro-

96 O trespasse é a alienação do estabelecimento empresarial. 97 DI BLASI, Gabriel. A propriedade industrial, p. 293.98 HILÚ NETO, Miguel. Direito empresarial. São Paulo: MP, v. 2, 2009. p.167.99 Não obstante, até mesmo a jurisprudência já vem reconhecendo o valor dos intangíveis, já que bens

pertencentes ao patrimônio dos empresários: “A sociedade anônima que funciona mediante autorização governamental dispõe de um aviamento legal, que tem valor e que até era, de modo teratológico, alienado isoladamente, como se fora possível ao particular dispor de um ato administrativo de natureza estatal. Para evitar que esse patrimônio social fosse, na alienação do controle da sociedade anônima, aproveitado apenas pelos acionistas majoritários, o art. 255 da Lei nº 6.404/1976 lhe deu disciplina própria, diferente daquela assinada para as sociedades anônimas de capital aberto que independem de licença para funcionamento. A premissa correspondente é a de que o valor dos intangíveis (v.g., carta patente no caso das instituições financeiras) pertence à companhia. A conclusão está em que o ágio representativo do respectivo valor deve ser distribuído a todos os acionistas de forma equitativa” (STJ, REsp 901.260/PR, (2006/0177987-9), Recorrente: Alfredo Zamlutti Junior e Banco Bamerindus do Brasil S/A, Recorrida: HSBC Bank Brasil S/A Banco Múltiplo, Relator: Carlos Alberto Menezes Direito. Brasília, 13 de novembro de 2008. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 31 maio 2012).

100 DOMENEGHETTI, Daniel. A marca não é igual ao ativo intangível das empresas. São Paulo: HSM. Disponível em: <http://www.hsm.com.br/blog/2010/03/a-marca-nao-e-igual-ao-ativo-intangivel-das-empresas-ela-e-mais- um-dos-intangiveis/>. Acesso em: 10 nov. 2010, às 02h18min.

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priedade intelectual como ferramenta estratégica para garantir a melhor uti-lização dos bens intelectuais101.

A marca é um bem móvel incorpóreo, de cunho eminentemente eco-nômico, devido à sua decisiva atuação no espírito do consumidor no mo-mento do consumo. Não raro assumem um valor muito superior ao fatura-mento com a própria venda dos produtos e serviços por elas identificados, a exemplo da famosa marca Coca-Cola.

Foi-se o tempo em que estoque, faturamento e imobilizado102 eram os únicos ativos dos empresários. Atualmente, um dos ativos mais valiosos é a marca, um intangível que diferencia uma empresa dos seus concorrentes, influencia na competitividade e nos resultados alcançados103.

Nem todo direito de propriedade intelectual tem valor, até porque depende de sua natureza e do mercado. Empresas inovadoras, inseridas na economia globalizada, precisam identificar os ativos intangíveis e as pes-quisas chaves, a fim de valorizá-los para aperfeiçoar suas performances. Os direitos de propriedade intelectual são vitais para o dimensionamento adequado da importância desses ativos na produção da riqueza. Na década de 1980, essa valoração estava inserida no item atinente aos resultados da empresa; hoje, leva-se em consideração o prestígio e o potencial merca-dológico e gerador de lucro, o chamado fundo empresarial ou goodwill104.

No Brasil, os valores contábeis atinentes aos bens imateriais que se referem às contas de investimentos, de imobilizados e de ativos diferidos e intangíveis, são relacionadas na Lei das Sociedades por Ações105, mas são utilizados analogicamente para os demais tipos societários, como, por exemplo, as sociedades limitadas106.

101 SANTAROSA, Dirceu Pereira. A importância de due diligence de propriedade intelectual nas reorganizações societárias. Revista da ABPI, n. 60, p. 8, set./out. 2002.

102 Imobilizado é um ativo tangível que é mantido para uso na produção ou fornecimento de mercadorias ou serviços, para aluguel a outros, ou para fins administrativos, e que se espera utilizar por mais de um ano (IUDÍCIBUS, Sérgio de; MARTINS, Eliseu; GELBCKE, Ernesto R.; SANTOS, Ariovaldo dos. Manual de contabilidade societária, p. 222).

103 DOMENEGHETTI, Daniel. Marcas não são o valor intangível das empresas. Paginação indeterminada.104 BARROS, Carla Eugenia Caldas. Manual de direito da propriedade intelectual. Aracaju: Evocati, 2007.

p. 52-53.105 Art. 179 da Lei nº 6.404/1976: “As contas serão classificadas do seguinte modo: [...] III – em investimentos:

as participações permanentes em outras sociedades e os direitos de qualquer natureza, não classificáveis no ativo circulante, e que não se destinem à manutenção da atividade da companhia ou da empresa; IV – no ativo imobilizado: os direitos que tenham por objeto bens corpóreos destinados à manutenção das atividades da companhia ou da empresa ou exercidos com essa finalidade, inclusive os decorrentes de operações que transfiram à companhia os benefícios, riscos e controle desses bens; V – no diferido: as despesas pré-operacionais e os gastos de reestruturação que contribuirão, efetivamente, para o aumento do resultado de mais de um exercício social e que não configurem tão somente uma redução de custos ou acréscimo na eficiência operacional; VI – no intangível: os direitos que tenham por objeto bens incorpóreos destinados à manutenção da companhia ou exercidos com essa finalidade, inclusive o fundo de comércio adquirido”.

106 BARROS, Carla Eugenia Caldas. Manual de direito da propriedade intelectual, p. 54.

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Como já ressaltado, ativo intangível é um ativo não monetário, iden-tificável sem substância física. Uma entidade reconhece um ativo intangível quando é dela separável ou surge de direitos contratuais ou legais. Diferente do que ocorre com ativos imobilizados, os intangíveis, muitas vezes, em função de sua natureza, não podem ser adicionados, tampouco substituí-dos em parte. Ativos intangíveis, gerados internamente, geralmente não são passíveis de reconhecimento, especialmente o ágio por expectativa de ren-tabilidade futura, conhecido como goodwill ou aviamento, cujo reconheci-mento não é permitido107.

Os ativos de propriedade intelectual são extremamente úteis aos em-presários, tanto para os já estabelecidos como para os novos. Em nego-ciações de fusões e incorporações, o empresário detentor de uma robusta carteira de ativos estará em uma posição vantajosa, já que marcas estabele-cidas no mercado aumentam o valor estimado da empresa e fortalecem sua posição para negociações108.

Para a realização de negociações que envolvem ativos intangíveis, estes precisarão ser avaliados. A avaliação da marca é muito importante nas operações societárias de fusão e incorporação, principalmente consideran-do que, em muitos casos, essas operações são realizadas justamente pelo interesse de englobar tais ativos. A importância é tão grande que, depen-dendo da avaliação, eleva-se substancialmente o valor das negociações, já que, não raro, a marca pode ser avaliada por valores superiores ao próprio patrimônio financeiro da empresa que a detém.

A avaliação do goodwill não é simples, pois o aviamento não é coisa, é um valor. É visto como o valor atual dos lucros futuros esperados, des-contados seus custos de oportunidade. Nesta linha, afirma-se que, quando um empresário possui um fundo empresarial, significa que o valor de seu patrimônio líquido supera o valor de seus ativos e passivos avaliados indivi-dualmente a preço de mercado. Por tudo, conclui-se que ele não pode ser reconhecido contabilmente com segurança, pois seu grau de subjetividade é muito alto109.

Existem dois métodos muito conhecidos para a avaliação do avia-mento: o primeiro é o método do fluxo de caixa descontado, e o segundo, o da avaliação relativa. No primeiro método, o valor dos fluxos de caixa esperados deste ativo é descontado a uma taxa que reflita o risco dos fluxos de caixa, sendo este o valor intrínseco, ou seja, o valor das operações é igual

107 KPMG, Cutting through complexity, p. 10.108 IDRIS, Kamil. A importância do uso de ativos de propriedade intelectual, p. 13109 MÜLLER, Sergio José Dulac; MÜLLER, Thomas. Empresa e estabelecimento, p. 38/39.

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ao valor das projeções dos fluxos de caixa livres descontados ao seu valor presente. Já a avaliação relativa se dá por meio da diferença entre o valor pago e o valor contábil ou o excesso de preço pago pela compra de um em-preendimento sobre o valor de mercado de seus ativos líquidos110.

A doutrina francesa utiliza o método de avaliação de intangíveis com base nos custos históricos, em que o custo de aquisição da marca e a sua co-locação no mercado são considerados. Leva-se em consideração, portanto, pesquisas, produção, campanhas publicitárias e promoções. No Brasil, ado-ta-se a distinção entre bens intangíveis identificáveis e não identificáveis, a qual é importante para as avaliações de marcas e patentes. Para a teoria contábil, as marcas e patentes são compreendidas como bens intangíveis identificáveis; já o know how e o próprio aviamento, como não identificá-veis. Os primeiros são passíveis de cessão singular, registráveis contabil-mente; já os outros só se podem contabilizar quando cedidos como parte de um conjunto de bens estruturados para a produção. Também cabe salientar que os intangíveis podem ser classificados como bens do ativo intangível111.

Nos últimos vinte anos, surgiram no Reino Unido diferentes técnicas para avaliar bens intangíveis, cada qual com características próprias. No entanto, as metodologias existentes sempre serão usadas em combinação com três métodos de avaliação: método de custo, método de mercado e método de renda112.

O método de custo é uma estimativa de quanto custaria criar ou re-produzir um bem da propriedade intelectual. Esse método está fundamen-tado no princípio da substituição113. Os custos históricos mensuráveis são propaganda, custos regulatórios, capital humano, desenvolvimento do bem, manutenção, proteção do bem, incluindo aí os honorários advocatícios. O principal desafio desse método é ter certeza de que todos os custos de pro-dução ou reposição foram incluídos na avaliação. As maiores dificuldades de aplicação são determinar os elementos para os quais o custo de reprodu-ção será calculado, calcular o valor do custo de substituição do nome e do logo da marca, segregar os custos de recriação e o custo de manutenção da marca e identificar e quantificar os custos gerados com a redução de vendas durante o período de criação114.

110 MÜLLER, Sergio José Dulac; MÜLLER, Thomas. Empresa e estabelecimento, p. 42.111 BARROS, Carla Eugenia Caldas. Manual de direito da propriedade intelectual, p. 56/57.112 LOUREIRO, Claudio França. Método de avaliação de bens intangíveis. Revista da ABPI, n. 74, p. 34, jan./fev.

2005.113 O bem intangível vale quanto representaria o custo de criação, a valor histórico ou de reposição.114 LOUREIRO, Claudio França. Método de avaliação de bens intangíveis, p. 34

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Além das dificuldades expostas acima, este método não reflete o po-tencial de ganho do bem intangível. Para ilustrar, coloca-se a seguinte si-tuação: o custo de desenvolvimento da patente da cura do câncer pode ser menor que o custo de desenvolvimento de um produto para crianças. Aconselha-se a utilização desse método quando se quer calcular o valor de um bem que pode ser substituído por vários outros no mercado, como com-paração de análise de custo para lançamento de um novo produto ou para assegurar um valor mínimo para o bem intangível115.

O método de mercado é o mais intuitivo dos métodos de avaliação. É comparativo e tem como premissa a constituição do bem. Determina-se o valor do bem pelo quanto se paga por um bem similar. Esse método parte do princípio de que o valor real de um bem deriva do quanto os outros estariam dispostos a pagar por ele. A dificuldade de aplicação do referido método é identificar corretamente as transações que reflitam a mesma substância econômica da sua operação, pois cada propriedade intelectual tem valor intrínseco único; assim, não existem duas transações iguais. Tal método é muito utilizado pelas autoridades fiscais nos Estados Unidos116.

Já o método de renda é baseado na ideia de que o valor de um ativo é igual ao valor presente dos benefícios econômicos que este ativo oferece durante sua existência. Esse método aplica-se às receitas originárias do pa-gamento de royalties, em virtude da licença de determinado ativo e aquelas resultantes das macroeconomias, baseadas na indústria ou economias de investimentos ou gastos decorrentes da propriedade de um bem. A premissa desse método é simples: é a diferença de quanto a empresa ganharia pos-suindo e não possuindo o bem de propriedade industrial. As dificuldades de aplicação deste método são as seguintes: identificar qual o fluxo de caixa fu-turo decorrente do ativo analisado, qual a duração e qual o risco deste fluxo de caixa. Mas, mesmo levando em conta essas dificuldades, os especialistas são unânimes em afirmar que este é o melhor e mais completo método para se avaliar bens intangíveis117.

Ninguém desconhece o poder das marcas; elas estão em todos os lugares e estimulam milhões de pessoas ao consumo. Elas estão em todas as esquinas, nos prédios, nas escolas, nas roupas, nos carros etc. O século XX viu a sua ascensão e consolidação; é o século da expressão de sua força. Basta dizer que, em 2003, a Interbrand, empresa especializada em ativos intangíveis, orçou o valor da marca Coca-Cola em US$ 70.400.000.000,00

115 LOUREIRO, Claudio França. Método de avaliação de bens intangíveis, p. 35.116 LOUREIRO, Claudio França. Método de avaliação de bens intangíveis, p. 36.117 LOUREIRO, Claudio França. Método de avaliação de bens intangíveis, p. 36.

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(setenta bilhões e quatrocentos milhões de dólares)118. Esse valor reflete a capacidade que as marcas têm de diferenciar bens e serviços e assim atrair cliente, aumentando lucratividade e, consequentemente, funcionando como fator decisivo para a conclusão de negócios119.

CONSIDERAÇÕES FINAISAs consequências de um mundo sem marcas não seriam só os produtos que se confundiriam em um mar revolto, sem ordem ou hierarquia. Nós perde-ríamos o vínculo da experiência com os objetos. [...] A caneta Mont Blanc que nossos pais nos deram no dia de nossa formatura. O aroma daquele café tão especial que tomamos todos os dias pela manhã. Nossa relação emotiva com os produtos sofreria uma mutilação irreparável. Vivemos em um mundo fetichista, onde as marcas estruturam relacionamentos, alavancam qualidade e garantem a segurança de alguns produtos.120

As marcas são fatores estratégicos tanto para o desenvolvimento da atividade empresária quanto para a realização de negócios entre empresá-rios, exercendo papel fundamental e decisivo em muitos casos.

A constante busca por melhores resultados, o aumento nas vendas e lucros geram muitos problemas para as organizações, exigindo a maximiza-ção da produtividade e a minimização dos gastos e do tempo nela emprega-dos. Nesse contexto, as operações societárias surgem como uma ferramenta empresarial para atender a demanda com a aplicação de tempo e dinheiro mais racional e econômica.

Nas fusões e incorporações, normalmente, se visa à aglutinação de ativos a partir de uma estrutura administrativa pronta, em que sua opera-cionalidade não depende de maiores investimentos. Os ativos intangíveis fazem parte dessas operações. Todo o valor gasto em conhecimento cientí-fico ou técnico, projetos e novos processos ou sistemas, marcas e patentes são exemplos de intangíveis.

Esta é a carga genética que as empresas que realizam a incorporação ou a fusão buscam – este desenvolvimento científico ou técnico pronto, sem

118 Conforme a Interbrand, as 20 marcas mais valiosas do mundo em 2012, com valores estimados em bilhões de dólares, são: 1º) Coca-Cola, US$ 77,839; 2º) Apple, US$ 76,568; 3º) IBM, US$ 75,532; 4º) Google, US$ 69,726; 5º) Microsoft, US$ 57,853; 6º) GE, US$ 43,682; 7º) McDonald’s, US$ 40,062; 8º) Intel, US$ 39,385; 9º) Samsung, US$ 32,893; 10º) Toyota US$ 30,280, 11º) Mercedes-Benz, US$ 30,097; 12º) BMW, US$ 29,052; 13º) Disney, US$ 27,438; 14º) Cisco, US$ 27,197; 15º) HP, US$ 26,087; 16º) Gillette, US$ 24,898; 17º) Louis Vuitton, US$ 23,57; 18º) Oracle, US$ 22,126; 19º) Nokia, US$ 21,009; 20º) Amazon, US$ 18,625. Disponível em: <http://exame.abril.com.br/marketing/noticias/as-100-marcas-mais-valiosas-do-mundo-em-2012>. Acesso em: 11 out. 2012, às 16h40min.

119 MAMEDE, Gladston. Manual de direito empresarial, p. 292.120 PETIT, Francesc. Marca e meus personagens. São Paulo: Futura, 2003.

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a necessidade de um novo processo, pretendem apenas manter ou dar con-tinuidade àquilo que já existe ou já está em prática. Imagine-se uma marca já consolidada, cujas vantagens de todo o tempo despendido para desenvol-vimento, afirmação e notoriedade são transferidos nessas operações.

Todavia, deve-se ter cuidado no momento da realização da opera-ção, já que os ativos intangíveis normalmente não são reconhecidos con-tabilmente, especialmente o ágio por expectativa de rentabilidade futura, o chamado goodwill, cujo reconhecimento não é permitido.

O valor da negociação em uma operação de fusão ou incorporação está diretamente relacionado com o valor que se atribuiu ao estabelecimen-to empresarial, o qual engloba bens materiais e imateriais, bens tangíveis e intangíveis, para além de possuir um atributo específico: o aviamento ou fundo de comércio, que nada mais é do que um valor agregado ao estabele-cimento em função expectativa de lucros futuros e possibilidade de geração destes.

Assim, o valor dos ativos intangíveis como a marca para as operações societárias de incorporação e fusão é muito grande. Essa importância acaba até mesmo elevando o valor das negociações, já que, em muitas situações, os intangíveis são avaliados por valores superiores ao próprio patrimônio financeiro da empresa que o detém.

Não resta dúvida de que as marcas têm muito valor!

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Parte Geral – Doutrina

O Direito Empresarial Brasileiro após 10 Anos de Vigência do Código Civil de 2002

MARCELO GAZZI TADDEIAdvogado, Parecerista, Administrador Judicial em Processo de Recuperação Judicial, Gradua-do e Mestre em Direito pela UNESP – Franca/SP, Professor de Direito Empresarial e Direito do Consumidor na UNIP – São José do Rio Preto/SP, Professor de Direito Empresarial na Escola Superior de Advocacia de São José do Rio Preto/SP.

SUMÁRIO: Introdução; 1 O projeto de novo Código Comercial brasileiro; 2 Do direito comercial ao direito empresarial; 3 A evolução do direito empresarial brasileiro; 4 O direito de empresa no Código Civil brasileiro de 2002; 5 Alterações nas normas jurídicas empresariais do Livro II – Do direito de empresa; 5.1 A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – Eireli; 5.2 Possibilidade de trans-formação do empresário individual em sociedade empresária ou Eireli e vice-versa; 5.3 Simplificação nos registros do microempreededor individual – MEI; 5.4 Sociedades constituídas por incapazes; 5.5 Designação de administrador não sócio na sociedade limitada; Conclusão.

INTRODUÇÃO

O direito empresarial brasileiro passou por profundas alterações nos últimos 40 anos. A promulgação do Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002) foi responsável pela consolidação, no País, da teoria italiana da empresa, inaugurando uma nova e importante fase do direito empresarial. Entretanto, a técnica da unificação legislativa utilizada pelo legislador causou, inicialmente, infundado receio do desaparecimento da disciplina empresarial no País. A unificação legislativa, ou seja, a inserção de normas civis e empresariais no mesmo Código constitui critério de or-ganização do legislador e não afeta a autonomia jurídica do direito empre-sarial, que possui método próprio, princípios específicos e uma extensão delimitada, o que evidencia a sua autonomia jurídica. Após dez anos de vigência do Código Civil, o direito empresarial permanece como disciplina jurídica autônoma no país.

O Código Civil de 2002 não atribui aos civilistas a necessidade co-gente da ampliação de seus estudos somente pelo fato de possuir normas de natureza empresarial. A matéria empresarial e a matéria civil não se con-fundem no Código Civil, a teoria da empresa não extinguiu a dicotomia do direito privado tradicional, ampliou, isso sim, a abrangência do direito empresarial ao alterar os limites de incidência das normas empresariais, que

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passaram a tratar de atividades econômicas anteriormente destinadas ao re-gime civil pela problemática teoria francesa dos atos de comércio.

O Código Civil de 2002, embora apresente grande importância para o direito empresarial, constituindo o marco inaugural do último e atual pe-ríodo de sua evolução no País, não alterou de forma abrangente o conteúdo do direito empresarial. O Código Civil de 2002 contém atualmente 230 artigos de natureza empresarial, deixando de disciplinar muitos e relevantes institutos jurídicos empresariais, que continuam previstos em leis especiais. A exemplo do que ocorreu durante a vigência da Parte Primeira do Código Comercial de 1850, o estudo e a aplicação do direito empresarial na vigên-cia do Código Civil de 2002 não se encontram concentrados nesse diploma legal, destacando-se a importância da legislação especial.

No Código Civil de 2002, encontra-se a base para a caracterização do empresário, que também permite a delimitação da matéria empresarial de acordo com a teoria da empresa, contribuindo para a definição da em-presarialidade das relações jurídicas no País. Outros temas específicos e importantes do direito empresarial também são disciplinados no Código Ci-vil, entre os quais se destacam o estabelecimento empresarial, o nome em-presarial, a sociedade limitada, a sociedade simples e as outras sociedades empresárias de menor importância previstas no Livro II.

Os demais institutos jurídicos empresariais, não disciplinados no Có-digo Civil de 2002, continuam a ser regidos por leis especiais, que não sofreram alterações com o surgimento do Código Civil de 2002. Assim, o registro de marcas e de desenhos industriais, a patente de invenções e de modelos de utilidade, encontram-se disciplinados na Lei nº 9.279/1996; a sociedade anônima continua a ser regida pela Lei nº 6.404/1976; os títulos de crédito típicos continuam disciplinados pela legislação correspondente (letra de câmbio e nota promissória – Decreto nº 2.044/1908 e Decreto nº 57.663/1966, cheque – Lei nº 7.357/1985, duplicata – Lei nº 5.474/1968), a Lei nº 8.884/1994, recentemente alterada, disciplina a livre concorrência, tratando das infrações à ordem econômica e do controle dos atos de con-centração empresarial no País, sendo que a Lei nº 11.101/2005 disciplina falência, recuperação judicial e recuperação extrajudicial. A Lei Comple-mentar nº 123/2006, com a alterações sofridas em 2008 e 2011, correspon-de ao Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte.

Em relação ao Registro Público de Empresas Mercantis, embora o Có-digo Civil apresente alguns dispositivos referentes à inscrição do empresá-rio, o registro realizado nas juntas comerciais permanece disciplinado pela Lei nº 8.934/1994, regulamentada pelo Decreto nº 1.800/1996. As opera-ções e as ligações societárias, responsáveis pela transformação da espécie

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societária ou de sua estrutura, compreendendo a transformação, incorpo-ração, fusão e cisão, devem obedecer ao regime do Código Civil de 2002 caso não envolvam sociedades por ações. Se envolver sociedades por ações (sociedade anônima e sociedade em comandita por ações), deve-se aplicar a disciplina da Lei nº 6.404/1976 (Lei das Sociedades Anônimas).

O Código Civil de 2002, sob a perspectiva do direito empresarial, é importante por ser o marco inaugural de nova fase dessa disciplina jurídica no País, e o seu grande trunfo foi a adoção da teoria da empresa, que se mostra mais adequada às atuais conjunturas econômicas. Ao contrário do que a unificação legislativa poderia sugerir, o direito empresarial não per-deu seu brilho com a inserção de suas normas fundamentais ao lado das normas civis no mesmo Código, pelo contrário. A unificação legislativa foi apenas parcial, não alcançou todos os institutos jurídicos empresariais e, por ironia, foi em seu bojo que o direito empresarial brasileiro rompeu o pe-ríodo transitório vivido no País, conseguindo superar a ultrapassada teoria francesa dos atos de comércio e ingressar, definitivamente, no período da teoria da empresa.

No artigo escrito logo após o surgimento do Código Civil de 20021, diante do caráter dinâmico das normas empresariais, foi previsto que o Livro II da Parte Especial sofreria alterações em curto espaço de tempo. Confir-mando referida previsão, após dez anos de vigência do referido diploma civil, vários dispositivos de natureza empresarial sofreram alterações, desta-cando-se, nesse período, o surgimento de uma nova figura jurídica empre-sarial, a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (Eireli), que será objeto de tratamento específico mais adiante.

Embora seja possível a identificação de várias críticas ao Código Civil de 2002, é possível ressaltar os benefícios proporcionados ao direito empre-sarial brasileiro. Entre os pontos relevantes favoráveis, destaca-se a adoção da teoria da empresa nas normas fundamentais, que permitiu consolidar a ampliação da abrangência do direito empresarial no País, tendência veri-ficada nos últimos trinta anos que antecederam o surgimento do Código Civil de 2002. Com a teoria da empresa, o direito empresarial passou a ser delimitado com base na atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços, libertando-se da arbitrária divisão das atividades econômicas segundo o seu gênero, como previa a teoria francesa dos atos de comércio.

1 O futuro do direito comercial e o novo Código Civil brasileiro. Revista Em Tempo, Marília/SP, v. IV, p. 98-109, ago. 2002.

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1 O PROJETO DE NOVO CÓDIGO COMERCIAL BRASILEIRO

O Código Civil de 2002 aparece para transpor o período de transição do direito empresarial, consolidando-o como o direito da empresa, maior e mais adequado para disciplinar o desenvolvimento das atividades eco-nômicas no País. Questionou-se, entretanto, se essa evolução não poderia resultar de uma legislação autônoma que reformasse o Código Comercial sem inserir normas empresariais no bojo do Código Civil, considerando, entre outras razões, a natureza dinâmica das normas empresariais, a indicar a sua organização em leis especiais específicas, mediante a criação de mi-crossistemas legais.

Em contradição ao referido entendimento, em 13 de junho de 2011, foi apresentado à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 1.572/2011, que objetiva a criação de um novo Código Comercial, disciplinando no âm-bito do direito privado a organização e a exploração da empresa. O Projeto prevê a alteração da Lei nº 10.406, de 2002; Lei nº 11.101, de 2005; Decre-to-Lei nº 2.848, de 1940. Revoga: a Lei nº 556, de 1850 (Código Comercial brasileiro); o Decreto nº 1.102, de 1903; os arts. 59 a 73 do Decreto-Lei nº 2.627, de 1940; a Lei nº 5.474, de 1968; os arts. 226, 693 a 721, 887 a 926, 966 a 980, 984, 986 a 996, 1.039 a 1.092, 1.097 a 1.101, 1.113 a 1.122, 1.142 a 1.149, 1.151 a 1.158, 1.160 a 1.195 e os incisos IV e V do § 1º e os incisos VI, VII, VIII do § 3º do art. 206 da Lei nº 10.406, de 2002; o parágrafo único do art. 55, o § 4º do art. 56, o inciso III do art. 73 e o art. 81 da Lei nº 11.101, de 2005.

O Projeto de novo Código Comercial disciplina no Livro I, denomina-do “Da empresa”, a teoria geral do direito empresarial, tratando dos princí-pios do direito de empresa (liberdade de iniciativa, liberdade de competição e função social da empresa), definição de empresa e de empresário, empre-sário individual, nome empresarial, das obrigações gerais dos empresários, escrituração, demonstrações contábeis, estabelecimento empresarial, con-corrência, locação empresarial e comércio eletrônico.

O Livro II do projeto, “Das sociedades empresárias”, abrange os prin-cípios do direito comercial societário (liberdade de associação, autonomia patrimonial da sociedade empresária, subsidiariedade da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais, limitação da responsabilidade dos só-cios pelas obrigações sociais como proteção do investimento, prevalência da vontade ou entendimento da maioria nas deliberações sociais, proteção dos sócios minoritários), personalidade jurídica, teoria da desconsideração da personalidade jurídica, sociedade irregular, atos societários, naciona-lidade da sociedade empresária, sociedade anônima, sociedade limitada, sociedades com sócios de responsabilidade ilimitada (sociedade em nome

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coletivo, sociedade em comandita simples, sociedade em comandita por ações), operações societárias (transformação, incorporação, fusão e cisão).

“Das obrigações dos empresários” corresponde à denominação atri-buída ao Livro III do projeto, que abrange as normas específicas sobre as obrigações empresariais, inadimplemento, responsabilidade civil, prescri-ção e decadência, regime jurídico dos contratos empresariais, princípios contratuais (autonomia da vontade, plena vinculação dos contratantes ao contrato, proteção do contratante economicamente mais fraco nas relações contratuais assimétricas e reconhecimento dos usos e costumes do comér-cio), cláusulas gerais do direito contratual empresarial, interpretação do contrato empresarial, vigência e dissolução do contrato, contratos empre-sariais em espécie (compra e venda mercantil, contratos de colaboração empresarial – mandato mercantil, comissão mercantil, agência, distribui-ção, concessão mercantil, franquia empresarial –, contratos de logística – armazenamento, transporte de cargas, fretamento –, contratos bancários, conta de participação), títulos de crédito (letra de câmbio, nota promissória, duplicata, títulos armazeneiros, conhecimento de transporte de cargas).

O Livro IV foi denominado “Da crise da empresa”, abrangendo os princípios da crise empresarial (inerência do risco a qualquer atividade em-presarial, impacto social da crise da empresa, transparência nas medidas de prevenção e solução da crise e tratamento paritário dos credores), recupera-ção judicial da empresa, recuperação extrajudicial e falência.

O Livro V, sob o título “Das disposições finais e transitórias”, encerra o projeto, estabelecendo o alcance do Código Comercial, normas proces-suais empresariais específicas e as disposições de praxe de natureza progra-mática, normas revogadoras prevendo alterações no Código Civil de 2002, na Lei nº 11.101/2005, no Código Penal e outras leis, incluindo o antigo Código Comercial de 1850. A vacatio legis foi prevista em 6 meses.

Conforme se verifica, se o projeto de novo Código Comercial conver-ter-se em lei na forma prevista, o Código Civil de 2002 perderá totalmente a sua importância para o direito empresarial, que mudará novamente de foco, passando a concentrar-se novamente em um Código Comercial, como ocorreu logo após o surgimento do diploma comercial de 1850. Entretanto, não se pode esquecer que o Código Comercial do Império não conseguiu concentrar a disciplina legal da matéria comercial; as normas dinâmicas do direito empresarial motivaram o surgimento de novos institutos jurídicos empresariais e de novas leis, que resultaram em sucessivas mutilações do Código Imperial, que se enfraqueceu rapidamente como referência do direi-to empresarial brasileiro ao longo de sua existência.

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A inserção de normas empresariais no Código Civil, sob a influência do direito italiano, certamente não correspondeu à melhor técnica para a disciplina legal do direito empresarial brasileiro. Nesse contexto, a proposta de alteração que tramita no Congresso Nacional comprova a necessidade de ajustes. Mas, considerando as características das normas empresariais e a própria metodologia do direito empresarial, a proposta de codificação na forma apresentada poderia ser repensada; afinal, pela dinamicidade das normas empresariais, é certo que a fragmentação legislativa jamais será to-talmente afastada, e a criação de microssistemas legais não deixa de ser uma alternativa a ser considerada, lembrando que o projeto do novo Código Comercial não abrange todo o conteúdo do direito empresarial.

2 DO DIREITO COMERCIAL AO DIREITO EMPRESARIAL

Para entender o atual direito empresarial, bem como as opções uti-lizadas pelo legislador brasileiro e as que podem, ainda, ser consideradas, mostra-se necessário ressaltar os principais aspectos da evolução histórica desse relevante ramo do Direito, lembrando-se de que a história do desen-volvimento das atividades comerciais confunde-se com a história da própria civilização. O surgimento do direito comercial relaciona-se com a ascensão da classe burguesa, originando-se da necessidade de os comerciantes da Idade Média manter um conjunto de normas para disciplinar a atividade profissional por eles desenvolvida. Reunidos em corporações de ofício, os comerciantes criaram o direito comercial com base nos usos e costumes comerciais difundidos pelos povos que se dedicaram à atividade comercial, entre os quais se destacam os gregos e os fenícios. Esses povos antigos trou-xeram importantes contribuições na área do comércio marítimo, permitindo o surgimento de importantes institutos jurídicos incorporados pelo direito comercial no decorrer de sua evolução histórica.

O direito comercial aparece na Idade Média com um caráter eminen-temente subjetivista, já que foi elaborado pelos comerciantes reunidos nas corporações para disciplinar suas atividades profissionais, caracterizando--se, no início, como um direito corporativista e fechado, restrito aos co-merciantes matriculados nas corporações de mercadores. Criado para disci-plinar a atividade profissional dos comerciantes, o direito comercial nasce como um direito especial, autônomo em relação ao direito civil, o que lhe permitiu alcançar autonomia jurídica, possuindo uma extensão própria, além de princípios e métodos característicos, que contribuíram para a sua consolidação como disciplina jurídica autônoma.

O prestígio e a importância das corporações começaram a se enfra-quecer com o mercantilismo, que fortaleceu o Estado e afastou das corpo-

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rações de mercadores a elaboração das normas comerciais e sua respectiva aplicação pelos cônsules, que eram os juízes eleitos pelos comerciantes nas corporações para decidir os conflitos de natureza comercial. As primeiras codificações das normas comerciais surgiram na França, com as Ordena-ções Francesas. A primeira Ordenação, de 1673, tratava do comércio ter-restre e ficou conhecida como Código Savary em referência ao nome do co-merciante responsável pela sua elaboração. Em 1681, surgiu a Ordenação da Marinha, que disciplinava o comércio marítimo.

As Ordenações Francesas tiveram vigência por um longo tempo, e o Código Savary foi a base para a elaboração do Código de Comércio Napoleônico de 1807, responsável pela objetivação do direito comercial, afastando-o do aspecto subjetivo da figura do comerciante matriculado na corporação. Com o Código Comercial francês de 1807, o direito comercial passou a ser baseado na prática de atos de comércio enumerados na lei segundo critérios históricos, deixando de ser aplicado somente aos comer-ciantes matriculados nas corporações.

De acordo com a teoria francesa dos atos de comércio, a matéria comercial deixa de ser baseada na figura do comerciante da Idade Média e passa a ser definida pela prática dos atos de comércio enumerados na lei. Assim, para se qualificar como comerciante e submeter-se ao direito comercial, deixou de ser necessário à pessoa que se dedica a exploração de uma atividade econômica pertencer a uma corporação, bastando a prática habitual de atos de comércio. Essa objetivação do direito comercial atendia aos princípios difundidos pela Revolução Francesa em 1789 e influenciou a legislação de vários países, entre os quais se destacam Portugal, Espanha, Itália e Brasil.

Na enumeração realizada nos arts. 632 e 633 do Código francês, o legislador considerou de natureza comercial os atos que eram tradicional-mente realizados pelos comerciantes na sua atividade, não sendo possível identificar nessa enumeração legal qualquer critério científico para definir quando um ato é ou não de comércio. Ao enumerar os atos de comércio, o legislador baseou-se em fatores históricos, sendo esse o grande problema da teoria francesa, que se mostrou bastante limitada diante da rápida evo-lução das atividades econômicas, tornando-se uma teoria ultrapassada por não identificar com precisão a matéria comercial, já que não foi possível a identificação de um elemento de ligação entre os atos de comércio previstos na lei que não fosse o histórico.

A enumeração legal dos atos de comércio apresenta natureza exem-plificativa e, sabendo-se que novas atividades econômicas surgiriam, cou-be à doutrina elaborar uma fórmula para se definir a comercialidade das

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relações jurídicas. Entretanto, jamais se conseguiu criar um critério seguro para se definir a comercialidade de um ato com base na teoria francesa, já que os atos de comércio foram selecionados e inseridos na lei tendo como referência apenas o fato de serem praticados pelos comerciantes no exer-cício de sua profissão. Assim, atividades econômicas que tradicionalmente não eram desenvolvidas pelos comerciantes, como a atividade imobiliária, a prestação de serviços em geral e a atividade agrícola foram afastadas do regime comercial. A ausência de um critério científico na separação das atividades econômicas em civis e comerciais e a exclusão de importantes atividades do regime comercial, em razão do seu gênero, constituíram os principais fatores para o desprestígio da teoria francesa, contribuindo para a sua superação.

Em consonância com o desenvolvimento das atividades econômicas e de acordo com a tendência de crescimento do direito comercial, surgiu na Itália uma teoria que substituiu a teoria francesa, superou os seus defeitos e ampliou o campo de abrangência do direito comercial. Essa teoria, deno-minada de teoria jurídica da empresa, caracteriza-se por não dividir as ati-vidades econômicas em dois grandes regimes, como fazia a teoria francesa, e foi inserida no Código Civil italiano de 1942, que ficou conhecido por ter realizado a unificação legislativa do direito privado na Itália.

A teoria da empresa elaborada pelos italianos afasta o direito comer-cial da prática de atos de comércio para incluir no seu núcleo a empresa, ou seja, a atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços. Com a teoria da empresa, deixa de ser importante o gênero da atividade econômica desenvolvida, não importando se esta cor-responde a uma atividade agrícola, imobiliária ou de prestação de serviços, mas que seja desenvolvida de forma organizada, em que o empresário reú-ne capital, trabalho, matéria-prima e tecnologia para a produção e circula-ção de riquezas.

De acordo com a teoria da empresa, o direito comercial tem o seu campo de abrangência ampliado, alcançando atividades econômicas até então consideradas civis em razão do seu gênero. A teoria da empresa, ao contrário da teoria francesa, não divide as atividades econômicas em dois grandes regimes (civil e comercial), prevê um regime amplo para as ativi-dades econômicas, excluindo desse regime apenas as atividades de menor importância, que são, a princípio, as atividades intelectuais, de natureza literária, artística ou científica. Segundo a teoria da empresa, a atividade agrícola também pode estar afastada do direito comercial, já que cabe ao seu titular a opção pelo regime comercial, que ocorre mediante o registro da atividade econômica no registro público de empresas, realizado no Brasil pelas juntas comerciais e disciplinado pela Lei nº 8.934/1994.

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Considerando o núcleo que delimita a matéria comercial ao longo de sua evolução histórica, pode-se dividir o desenvolvimento do direito co-mercial em três períodos. O primeiro período, do século XII ao século XIX, denominado de período subjetivo corporativista ou período subjetivo do comerciante, tem como núcleo do direito comercial a figura do comerciante matriculado na corporação. O segundo período, denominado de período objetivo dos atos de comércio, compreendido entre o século XIX e o século XX, inicia-se com o Código de Comércio Napoleônico de 1807 e tem como núcleo os atos de comércio. O terceiro e atual período de evolução histórica do direito comercial, denominado período da teoria da empresa, inicia-se com o Código Civil italiano de 1942 e tem como núcleo a empresa, com-preendendo o século XX até nossos dias.

3 A EVOLUÇÃO DO DIREITO EMPRESARIAL BRASILEIRO

O direito comercial brasileiro tem origem em 1808 com a chegada da família real portuguesa ao Brasil e a abertura dos portos às nações amigas. Da sua origem até o surgimento do Código Comercial brasileiro, discipli-navam as atividades comerciais no País as leis portuguesas e os Códigos Comerciais da Espanha e da França, já que entre as leis portuguesas existia uma lei (Lei da Boa Razão) prevendo que, no caso de lacuna da lei portu-guesa, deveriam ser aplicadas, para dirimir os conflitos de natureza comer-cial, as leis das nações cristãs, iluminadas e polidas. Por essa razão, nessa primeira fase do direito comercial brasileiro, a disciplina legal das ativida-des comerciais mostrava-se bastante confusa, e, mesmo após a proclamação da independência em 1822, as leis portuguesas continuaram a ser aplicadas no Brasil para disciplinar as questões comerciais.

Em 1834, uma comissão de comerciantes apresentou ao Congresso Nacional um projeto de Código Comercial, que, após uma tramitação de mais de 15 anos, originou o primeiro código brasileiro no âmbito do direito privado, o Código Comercial (Lei nº 556, de 25 de junho de 1850), que foi baseado nos Códigos de Comércio de Portugal, da França e da Espanha. O Código Comercial brasileiro adotou a teoria francesa dos atos de comér-cio, podendo-se, entretanto, identificar traços do período subjetivo na lei de 1850, em razão de o art. 4º prever que somente os comerciantes matricu-lados em alguns dos Tribunais de Comércio do Império poderão gozar dos privilégios previstos no Código Comercial.

Cumpre ressaltar que, embora o Código Comercial brasileiro seja baseado na teoria dos atos de comércio, em nenhum dos seus artigos ele apresenta a enumeração legal desses atos, como faz o Código Comercial francês de 1807 nos arts. 632 e 633. Essa ausência da enumeração dos atos

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de comércio no Código Comercial foi proposital, justificando-se pelos pro-blemas que a enumeração causava na Europa, onde eram conhecidas gran-des divergências doutrinárias e jurisprudenciais referentes à caracterização da natureza comercial ou civil de determinadas atividades econômicas em razão da enumeração legal dos atos de comércio.

Temendo que essas divergências e disputas judiciais se repetissem no País, o legislador brasileiro preferiu, após grandes discussões na fase de elaboração do Código Comercial, não inserir a enumeração dos atos de comércio na Lei nº 556, de 1850. Entretanto, não foi possível ao legislador brasileiro escusar-se de apresentar uma enumeração legal dos atos de co-mércio no País, que foi realizada no Regulamento nº 737, de 1850, espe-cificamente nos arts. 19 e 20. O Regulamento nº 737 tratava do processo comercial, e a enumeração dos atos de comércio baseou-se no Código de Comércio francês.

Até 1875, a enumeração dos atos de comércio constante no Regula-mento nº 737 era utilizada para delimitar o conteúdo da matéria comercial para o fim jurisdicional e para qualificar a pessoa como comerciante no País. Em 1875, os Tribunais de Comércio foram extintos, e, com a unificação do processo, deixou de ser necessário para o fim jurisdicional diferenciar a atividade comercial da atividade civil. Assim, sob o aspecto processual, a teoria dos atos de comércio perdeu a sua importância no Brasil, mas conti-nuou a ser necessária para diferenciar o comerciante do não comerciante, já que a lei prevê um tratamento diferenciado para aquele que desenvolve uma atividade econômica de natureza comercial, sendo o principal exem-plo dessa diferenciação a aplicação do regime falimentar ao comerciante, entre outras distinções.

O Regulamento nº 737, de 1850, foi revogado em 1939 pelo Códi-go de Processo Civil e desde então deixou de existir no País um diploma legal que apresentasse a enumeração dos atos de comércio, dificultando a definição da comercialidade das relações jurídicas no Brasil a ponto de não existir, até o surgimento do Código Civil de 2002, um critério seguro para se definir o conteúdo da matéria comercial. Essa dificuldade justificava-se por vários motivos. A teoria dos atos de comércio, por sua própria natureza, não permitiu a criação de um critério científico para definir a natureza comer-cial de um ato e, quando determinado ato não se encontrava enumerado na relação legal, surgiam insuperáveis dificuldades para definir sua natureza comercial ou não.

No Brasil, esse problema intensificou-se porque desde 1939, com a revogação do Regulamento nº 737/1850, a enumeração legal dos atos de comércio deixou de existir. Se não bastasse, a partir de 1970, várias leis bra-

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sileiras de natureza comercial passaram a apresentar fortes traços da teoria da empresa e a doutrina nacional passou a se dedicar ao estudo da teoria italiana, prestigiando-a em detrimento da teoria francesa, o que acabou re-fletindo em várias decisões dos tribunais brasileiros, que passaram a definir o conteúdo da matéria comercial de acordo com a teoria italiana.

Todo esse contexto fez a definição da comercialidade das relações jurídicas no País se transformar em um grande problema. Nessa difícil tarefa em delimitar o conteúdo da matéria comercial, utilizaram-se, como referên-cia histórica, os atos de comércio enumerados no revogado Regulamento nº 737, de 1850, o disposto em lei como sendo matéria comercial (socie-dades anônimas, empresas de construção civil) e a jurisprudência, já que várias decisões envolvendo complexos casos passaram a definir a natureza comercial de certas atividades econômicas.

Na delimitação do conteúdo da matéria comercial, foi possível iden-tificar, em várias ocasiões, a adoção da teoria da empresa para definir como comercial a natureza de determinada atividade econômica, evidenciando a influência e o prestígio da teoria italiana no Direito brasileiro. Nesse senti-do, destacaram-se decisões que consideraram como de natureza comercial as atividades desenvolvidas por clínicas de serviços médicos, salões de ca-beleireiros, empresas de publicidade e também a atividade pecuária. Essas atividades, pela teoria dos atos de comércio, estariam, em regra, afastadas do regime comercial e, consequentemente, não estariam submetidas à fa-lência e não poderiam obter concordata.

As dificuldades encontradas na definição da comercialidade das re-lações jurídicas e a adoção da teoria da empresa para caracterizar deter-minadas atividades econômicas sob o regime comercial caracterizaram o período de transição do direito comercial brasileiro nos últimos 30 anos que antecederam o Código Civil de 2002. Esse período transitório entre a teoria dos atos de comércio, presente no Código Comercial e na antiga Lei de Falência de 1945, e a teoria da empresa, prestigiada pela doutrina e pela jurisprudência e presente em importantes leis comerciais (p. ex.: Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976 – Lei das Sociedades Anônimas; Lei nº 8.934, de 18 de novembro de 1994 – Lei de Registro Público de Empresas; Lei nº 8.884, de 20 de julho de 1994 – Lei de Defesa da Livre Concorrência; Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996 – Lei da Propriedade Industrial), foi finalmente superado com o surgimento do Código Civil brasileiro de 2002.

4 O DIREITO DE EMPRESA NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002

O Código Civil brasileiro de 2002 nasceu com 2.046 artigos e divide--se, fundamentalmente, em Parte Geral e Parte Especial. A Parte Geral pos-

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sui três Livros: I – Das pessoas; II – Dos bens; III – Dos fatos jurídicos. A Parte Especial contém cinco Livros: I – Do direito das obrigações; II – Do direito de empresa; III – Do direito das coisas; IV – Do direito de família; V – Do direito das sucessões. As disposições finais e transitórias estão previstas no Livro Complementar.

As normas fundamentais do direito empresarial estão presentes no Livro II da Parte Especial do Código Civil de 2002, denominado “Do direito de empresa”. Esse Livro II foi baseado no Código Civil italiano de 1942, fa-moso por ter realizado a unificação formal ou legislativa do direito privado na Itália, mas que se destaca realmente sob o aspecto jurídico por apre-sentar uma teoria nova para disciplinar as atividades econômicas, a teoria da empresa, que substitui com vantagens a imprecisa e ultrapassada teoria francesa dos atos de comércio.

Em relação ao direito empresarial, a grande evolução proporcionada pelo novo Código Civil foi a introdução da teoria da empresa nas suas nor-mas fundamentais e a consequente revogação da Parte Primeira do Código Comercial de 1850, permitindo a superação da teoria dos atos de comércio e a harmonização do tratamento legal da disciplina privada da atividade econômica no país. O Livro II da Parte Especial não tratou de todos os ins-titutos jurídicos comerciais em seus iniciais 229 artigos, ressaltando-se que importantes temas empresariais não foram ali disciplinados. O Livro “Do direito de empresa” não abrangeu falência, não tratou dos títulos de crédito em espécie, remeteu para a lei especial a disciplina legal da sociedade anô-nima, não se referiu aos bens industriais (marcas de produtos ou serviços, desenho industrial, invenção e modelo de utilidade) e também não discipli-nou a concorrência empresarial.

O fato desses importantes institutos jurídicos não serem abordados pelo Código Civil de 2002, se por um lado foi objeto de críticas da doutrina, por outro lado evidenciou a característica fragmentária sempre presente no direito empresarial, que dificulta a codificação dos seus principais institutos jurídicos e contribui para a existência de uma grande quantidade de leis especiais, mais adequadas ao dinamismo exigido para as normas empresa-riais. O direito empresarial é um ramo do direito privado que adota o méto-do indutivo, acompanhando o desenvolvimento das atividades econômicas, o que torna as suas normas extremamente dinâmicas. Esse fato caracteriza sua fragmentariedade, afastando desse ramo jurídico a tendência da codifi-cação, mais adequada ao direito civil, de normas estáticas e de caráter con-servador em razão da utilização do método dedutivo, que valoriza as tradi-ções de uma sociedade, mostrando-se pouco receptivo às novas tendências.

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O direito empresarial destaca-se por disciplinar o desenvolvimento profissional das atividades econômicas, devendo apresentar normas capa-zes de acompanhar o ritmo da evolução dos negócios empresariais, sob pena de se tornarem obsoletas. Nesse contexto, as normas dinâmicas do direito empresarial ajustam-se melhor em leis especiais. A tendência ino-vadora e a dinamicidade desse ramo jurídico de tendências profissionais devem estar disciplinadas, preferencialmente, fora da estrutura pesada de um Código.

Em relação ao conteúdo do Livro II da Parte Especial, são discipli-nados no livro “Do direito de empresa”: caracterização do empresário; so-ciedades empresárias; sociedade simples; sociedade em comum; sociedade em conta de participação; sociedade cooperativa; sociedades coligadas; liquidação da sociedade; transformação, incorporação, fusão e cisão das sociedades; sociedade dependente de autorização; sociedade nacional e sociedade estrangeira; estabelecimento empresarial; registro público de em-presas; nome empresarial; prepostos; gerentes; contabilistas e escrituração.

Ao caracterizar o empresário no art. 966, o Código Civil de 2002 in-troduz definitivamente no Direito brasileiro a definição de empresário que já vinha se cristalizando no Brasil durante o período transitório. De acordo com referido dispositivo, empresário é aquele que exerce profissionalmente uma atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços. O parágrafo único do art. 966 exclui da definição de empresário quem exerce atividade intelectual, de natureza literária, artística ou científica, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de em-presa.

O Código Civil de 2002 afastou do direito empresarial a antiga figura do comerciante, que se caracterizava pela prática habitual de atos de co-mércio. Sob o enfoque da teoria da empresa, o enigmático e impreciso con-ceito de ato de comércio foi definitivamente superado, surgindo a empresa (atividade econômica) como o novo núcleo do direito empresarial atual. A antiga figura do comerciante transformou-se no empresário, que passa a ser o principal elemento da empresarialidade. É o empresário quem organiza o estabelecimento empresarial e exerce a atividade econômica. Em sentido jurídico, empresa corresponde à atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços, surgindo da vontade do empresário, que exerce a atividade econômica a partir da organização dos bens que integram o estabelecimento. Tem-se assim os três elementos da empresarialidade (empresário, estabelecimento empresarial e empresa), que constituem a base fundamental do atual direito empresarial.

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Da mesma forma que no Código Civil italiano de 1942, o Código Ci-vil de 2002 também não apresenta o conceito legal para empresa. Seguindo o modelo italiano, o Código nacional definiu apenas dois dos elementos da empresarialidade – empresário e estabelecimento empresarial. Entretanto, quando confrontamos os referidos dispositivos conceituais, é possível ve-rificar que o conceito doutrinário adotado para empresa encontra-se intui-tivamente presente na conjugação dos arts. 966 e 1.142 do Código Civil, de forma que o caráter abstrato da empresa, que corresponde ao perfil fun-cional identificado pelo italiano Asquini, deve ser prestigiado no âmbito do atual direito empresarial.

Caracteriza-se como empresário, segundo o art. 966, quem se dedica profissionalmente à produção ou circulação de bens ou serviços, excluindo--se dessa definição, segundo o parágrafo único do referido artigo, quem exerce atividade intelectual, de natureza literária, artística ou científica. Assim, a princípio, estão excluídos do regime empresarial os profissionais liberais (dentista, médico e engenheiro, por exemplo), que podem ingressar no regime empresarial se fizerem do exercício da profissão um elemento de empresa, ou seja, se inserirem a sua atividade numa organização empre-sarial.

Pela caracterização do empresário prevista no art. 966, identifica-se o regime geral estabelecido pela teoria da empresa para as atividades econô-micas, do qual são excluídas apenas as atividades econômicas de menor im-portância. Em relação aos agricultores (empresários rurais), o Código Civil de 2002 prevê, no art. 971, ser facultativa a opção pelo regime empresarial:

O empresário, cuja atividade rural constitua sua principal profissão, pode, observadas as formalidades de que tratam o art. 968 e seus parágrafos, reque-rer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro.

O art. 970 do novo Código Civil prevê que “a lei assegurará tratamen-to favorecido, diferenciado e simplificado ao empresário rural e ao pequeno empresário, quanto à inscrição e aos efeitos daí decorrentes”. Nota-se que referido dispositivo não prevê a dispensa da inscrição aos agricultores (con-forme visto, a inscrição nesse caso é optativa para submetê-los ao regime comercial) e aos pequenos empresários, como previa o antigo texto do arti-go correspondente do projeto que sofreu emenda no Senado Federal.

O conceito de pequeno empresário previsto no art. 970 não se refere ao microempresário (ME) e ao empresário de pequeno porte (EPP), definidos atualmente no art. 3º da Lei Complementar nº 123/2006 (Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte). O pequeno empresário

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recebeu definição legal por meio da Lei Complementar nº 139, de 10 de novembro de 2011, que alterou a redação do art. 68 da Lei Complementar nº 123/2006, que passou a definir pequeno empresário da seguinte forma:

Art. 68. Considera-se pequeno empresário, para efeito de aplicação do dis-posto nos arts. 970 e 1.179 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), o empresário individual caracterizado como microempresa na forma desta lei complementar que aufira receita bruta anual até o limite previsto no § 1º do art. 18-A.

Portanto, pequeno empresário é empresário individual enqua-drado como microempresa cuja receita bruta anual não seja superior a R$ 60.000,00 (sessenta mil reais), ressaltando-se a possibilidade sempre pre-sente da modificação do referido valor mediante alteração legal.

No âmbito da exploração individual da empresa de menor vulto eco-nômico, destaca-se ainda o microempreendedor individual – MEI, definido no § 1º do art. 18-A da Lei Complementar nº 123/2006 como o “empresário individual a que se refere o art. 966 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), que tenha auferido receita bruta, no ano –calendário anterior, de até R$ 60.000,00 (sessenta mil reais), optante pelo Simples Na-cional e que não esteja impedido de optar pela sistemática prevista neste ar-tigo”. Nos termos do § 4º do art. 18-A da Lei Complementar nº 123/2006, o MEI deve desenvolver a atividade econômica em um único estabelecimento e não pode participar de outra empresa como titular, sócio ou administra-dor. O art. 18-C permite que o MEI contrate um único empregado que re-ceba exclusivamente 1 (um) salário-mínimo ou o piso salarial da categoria.

O Código Civil de 2002, no art. 967, prevê a obrigatoriedade da ins-crição do empresário no Registro Público de Empresas Mercantis da respec-tiva sede antes de iniciar a atividade empresarial. O art. 967 refere-se ao arquivamento do ato constitutivo do empresário na junta comercial, disci-plinado pela Lei nº 8.934, de 18 de novembro de 1994, que já apresentava traços da teoria da empresa ao ampliar o âmbito do registro (arquivamento) realizado na junta comercial em seu art. 2º: “Os atos das firmas mercantis individuais e das sociedades mercantis serão arquivados no Registro Públi-co de Empresas Mercantis e Atividades Afins, independentemente de seu objeto, salvo as exceções previstas em lei”. Em relação às exceções previstas em lei, destaca-se a sociedade voltada a prestação de serviços de advocacia, que deve ter os seus atos constitutivos encaminhados à Ordem dos Advoga-dos do Brasil (OAB), conforme determina o § 1º do art. 15 da Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto da Advocacia).

Ao prever a possibilidade de registro aos empresários individuais e às sociedades empresárias sem considerar a natureza da atividade desenvolvi-

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da (independentemente de seu objeto), a Lei nº 8.934, de 1994, demonstra, claramente, a adoção da teoria da empresa (regime geral para as atividades econômicas sem considerar o gênero da atividade, mas a sua importância) e a superação da teoria dos atos de comércio (divisão das atividades econô-micas em razão do gênero da atividade).

As sociedades empresárias devem ter os seus atos constitutivos arqui-vados na junta comercial, ao passo que a sociedade que não se configura como empresária, em razão de não prevalecer nessa sociedade a organiza-ção de capital e trabalho sobre a profissão intelectual de seus integrantes, possui os seus atos constitutivos arquivados no Registro Civil de Pessoas Ju-rídicas, correspondendo às sociedades simples. As sociedades empresárias adquirem personalidade jurídica com o registro na junta comercial (art. 985 do Código Civil 2002), enquanto as sociedades simples tornam-se pessoas jurídicas com a inscrição no Registro Civil de Pessoas Jurídicas (arts. 45 e 1.150 do Código Civil 2002).

Na disciplina jurídica do Código Civil, existem cinco espécies de sociedades empresárias: sociedade em nome coletivo, sociedade em co-mandita simples, sociedade limitada, sociedade em comandita por ações e sociedade anônima. A sociedade de capital e indústria prevista no Código Comercial de 1850 não foi prevista na lei de 2002. Em relação à manuten-ção no Código das sociedades em nome coletivo, em comandita simples e em comandita por ações, questionou-se a permanência em razão da rara utilização dessas espécies de sociedades empresárias no País. Na constitui-ção de uma sociedade empresária para a exploração da atividade econô-mica, os empreendedores escolhem aquelas em que a responsabilidade de todos os sócios, em regra, é limitada ao valor investido. No Brasil, as socie-dades empresárias mais utilizadas são a sociedade limitada e a sociedade anônima em razão da limitação da responsabilidade, em regra, de todos os seus sócios.

A partir da vigência do Código Civil de 2002, a sociedade limitada, anteriormente denominada sociedade por quotas de responsabilidade limi-tada, passou a ser disciplinada no Capítulo IV (Da sociedade limitada). Sen-do omisso o Código Civil na disciplina da sociedade limitada, aplicam-se supletivamente as normas da sociedade simples (art. 1.053 do Código Civil 2002) ou da sociedade anônima, caso o contrato social assim estabelecer (parágrafo único, art. 1.053 do Código Civil de 2002). Portanto, se o con-trato social da limitada apresentar cláusula prevendo a disciplina supletiva dessa espécie societária pelas normas da sociedade anônima, aplica-se a Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976 (Lei das Sociedades Anônimas), nas omissões do Capítulo IV do Código Civil; do contrário, a lei prevê que, nas omissões do referido capítulo, devem ser aplicadas as normas das socieda-

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des simples. Ressalta-se que o Código Civil é a lei aplicável na constituição e dissolução da sociedade limitada, ainda que o contrato social eleja a lei das sociedades anônimas para a regência supletiva. Em relação à sociedade anônima, o Código Civil, no art. 1.089, remete para lei especial a sua dis-ciplina jurídica. Assim, a sociedade anônima continua a ser regida pela Lei nº 6.404, de 1976, que já foi objeto de várias alterações.

No âmbito da limitação da responsabilidade decorrente da explora-ção da atividade econômica, destaca-se a criação da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – Eireli, criada pela Lei nº 12.441, de 11 de julho de 2011, que acrescentou o Título I-A, “Da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada”, ao Livro II da Parte Especial do Código Civil de 2002, mediante a introdução do art. 980-A ao diploma legal, que cor-responde a uma das principais alterações sofridas pelo Código Civil nesses primeiros dez anos de vigência. A Eireli será objeto de tratamento específico no próximo item.

O Código Civil 2002, pela primeira vez no País, disciplinou, de forma específica, o estabelecimento empresarial no Título III (Do estabelecimen-to), dedicando oito artigos que apresentam a definição de estabelecimento, sua natureza como objeto de direito, os efeitos do contrato de compra e venda do estabelecimento (trespasse), os requisitos para a eficácia da sua alienação, a questão da sucessão empresarial como regra e a proibição do restabelecimento do empresário alienante do estabelecimento nos 5 (cinco) anos seguintes à transferência dele, ressalvando a estipulação das partes em contrário no contrato de trespasse.

O estabelecimento empresarial, chamado antigamente de fundo de comércio e conhecido na Itália por azienda, corresponde ao conjunto de bens corpóreos e incorpóreos organizados pelo empresário para a explo-ração da atividade econômica. Juntamente com o empresário e a empresa, o estabelecimento empresarial corresponde a um dos elementos da empre-sarialidade, e o tratamento previsto no Código Civil mostrou-se de grande relevância para o tratamento das questões jurídicas envolvendo o estabele-cimento, motivando elogios por parte da doutrina.

5 ALTERAÇÕES NAS NORMAS JURÍDICAS EMPRESARIAIS DO LIVRO II – DO DIREITO DE EMPRESA

A dinamicidade das normas jurídicas empresariais, que fulminaram a integridade do Código Comercial de 1850 em menos de cinquenta anos da sua existência, também motivaram alterações no Livro II da Parte Espe-cial do Código Civil de 2002. Nos dez anos de vigência do diploma civil de 2002, a Lei Complementar nº 128/2008 acrescentou o § 3º ao art. 968, que também sofreu alteração com os acréscimos dos §§ 4º e 5º pela Lei

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nº 12.470/2011. A Lei nº 12.399/2011 acrescentou o § 3º, caput, e três inci-sos ao art. 974. A Lei nº 12.441/2011 acrescentou o Título I-A “Da empresa individual de responsabilidade limitada”, composto pelo art. 980-A, caput e por seis parágrafos, e modificou a redação do parágrafo único do art. 1.033. O art. 1061 teve a redação alterada pela Lei nº 12.375/2010.

Conforme se observa, em dez anos, o Código Civil de 2002 recebeu, em seus dispositivos legais de natureza empresarial, o acréscimo de dez parágrafos (sendo um deles vetado), três incisos e a redação do caput do art. 1.061, bem como do parágrafo único do art. 1.033, sofreram modifica-ções nesse período, sendo este último alterado duas vezes. Paralelamente, demonstrando a dinamicidade das normas jurídicas empresariais, destacam--se nesse período a entrada em vigor a Lei nº 11.101/2005, que introduziu no País os institutos da recuperação judicial e da recuperação extrajudicial, além de atribuir novo tratamento à falência, surgiu o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte por meio da Lei Comple-mentar nº 123/2006 (que já recebeu importantes alterações), o Decreto nº 6.022/2007 instituiu o Sistema Público de Escrituração Digital – SPED, a Lei nº 6.404/1976 (Lei das Sociedades Anônimas) sofreu alterações promovi-das pela Lei nº 11.638/2007, Lei nº 11.941/2009 e pela Lei nº 12.431/2011, entre várias alterações sofridas por outras leis empresariais, como a Lei nº 8.934/1994 (Registro Público de Empresas).

Em relação às alterações ocorridas diretamente nas normas jurídicas empresariais constantes no Livro II – Do direito de empresa, destaca-se abai-xo a análise das referidas modificações introduzidas.

5.1 a EmprEsa individual dE rEsponsabilidadE limitada – EirEli

Nesses 10 anos de vigência do Código Civil de 2002, sem dúvida a criação da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – Eireli cor-responde a principal novidade, já que a doutrina, desde a tramitação do Projeto nº 634/1975 (projeto do novo Código Civil), pleiteava a limitação da responsabilidade do empresário individual no País. A busca da limitação de possíveis prejuízos decorrentes da exploração da atividade econômica, sempre presentes e inerentes ao desenvolvimento da atividade empresarial, motivou os empreendedores nacionais a optarem pela criação de socieda-des limitadas pro forma, ou seja, pessoas jurídicas constituídas por apenas dois sócios onde apenas um deles participava ativamente do desenvolvi-mento da empresa.

Essa realidade verificada no âmbito empresarial motivou a apresen-tação de sugestões doutrinárias para a limitação da responsabilidade do empresário individual no Brasil, a exemplo do já se verificava em outros

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países. O Código Civil de 2002 perdeu uma grande oportunidade de trazer para o direito brasileiro a limitação da responsabilidade do empresário in-dividual, a exemplo do que ocorre em Portugal, onde, desde 1986, existe o EIRL (Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada). No EIRL, o empresário individual destaca uma parcela de seu patrimônio, destinando--o à exploração da atividade econômica. Essa parcela do seu patrimônio corresponde ao capital inicial do EIRL e equivale ao limite da sua responsa-bilidade. A limitação da responsabilidade do empresário individual também existe na França, Itália e Alemanha. A Alemanha introduziu em seu sistema normativo a sociedade unipessoal em 1980, sendo seguida pela Itália. Em 1985, a França também aderiu à ideia da limitação da responsabilidade do empresário individual.

O Brasil aproximou-se de limitar a responsabilidade do empresário individual em 2006. O art. 69 da Lei Complementar nº 123/2006, que insti-tuiu o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, previa, no art. 69, o Empreendedor Individual de Responsabilidade Limita-da, mas o art. 69 foi objeto de veto do presidente da República por razões tributárias. O vetado dispositivo previa:

Art. 69. Relativamente ao empresário enquadrado como microempresa ou empresa de pequeno porte nos termos desta lei complementar, aquele so-mente responderá pelas dívidas empresariais com os bens e direitos vincu-lados à atividade empresarial, exceto nos casos de desvio de finalidade, de confusão patrimonial e obrigações trabalhistas, em que a responsabilidade será integral.

Frustrada a tentativa prevista na LC 123/2006, foi atribuída a limi-tação da responsabilidade ao empreendedor individual no País pela Lei nº 12.441, de 11 de julho de 2011, que alterou o Código Civil de 2002, acrescentando o inciso VI ao art. 44 e o art. 980-A ao Livro II da Parte Es-pecial. Referida lei também alterou o parágrafo único do art. 1.033 para instituir a “Empresa Individual de Responsabilidade Limitada”.

A análise das alterações promovidas pela Lei nº 12.441/2011 per-mite constatar a criação de um novo tipo jurídico empresarial, a “Empresa Individual de Responsabilidade Limitada”, que, nos termos da nova reda-ção do art. 44, VI, do Código Civil de 2002, atribui à “Eireli” a natureza de pessoa jurídica de direito privado, mesma categoria das associações, sociedades, fundações, organizações religiosas e partidos políticos. A Lei nº 12.441/2011 introduziu o Título I-A no Livro II da Parte Especial do Códi-go Civil de 2002, denominado “Da empresa individual de responsabilidade limitada”. O Título I do referido Livro trata “Do empresário” e o Título II é denominado “Da sociedade”, de forma que o novo tipo jurídico empresarial instituído encontra-se entre o empresário individual e as sociedades.

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De acordo com as alterações promovidas, as alternativas possíveis para a exploração da atividade empresarial no País passam a ser três: empre-sário individual, empresa individual de responsabilidade limitada e socieda-de empresária. Como empresário individual, a responsabilidade permanece ilimitada, se o empreendedor deseja explorar sozinho a empresa e limitar os riscos decorrentes da exploração da atividade econômica, deve optar pelo novo tipo jurídico da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, que será constituída, no que for cabível, de acordo com as regras previstas para a sociedade limitada, tendo o ato constitutivo arquivado na junta comercial na hipótese de se dedicar à exploração de atividade econômica empresarial.

Nos termos do art. 980-A, caput, do Código Civil de 2002, a Eireli será constituída por uma única pessoa, titular da totalidade do capital social, que deverá encontrar-se totalmente integralizado e não poderá ser inferior a 100 salários-mínimos vigentes no País no ato da constituição. Discute-se se essa única “pessoa” deve ser necessariamente pessoa natural ou tam-bém pode ser pessoa jurídica. O texto legal não especifica e também não restringe; menciona simplesmente “pessoa” em seu contexto genérico, que abrange tanto a pessoa natural como a pessoa jurídica, de forma que tanto uma como a outra pode ser titular de uma Eireli.

Entretanto, de forma incompreensível, o Departamento Nacional de Registro do Comércio – DNRC, por meio da Instrução Normativa nº 117, de 22 de novembro de 2011, no Capítulo 1.2.11, veda a possibilidade de pessoa jurídica ser titular de uma Eireli. A vedação criada no âmbito admi-nistrativo pelo DNRC, órgão responsável pela criação de normas destinadas a orientar a atuação das juntas comerciais no País, entre outras funções previstas no art. 4º da Lei nº 8.934/1994, foi recepcionada com grande in-dignação e inconformismo no meio empresarial, já que a constituição de Eireli por pessoa jurídica facilita a instalação de sociedades estrangeiras no Brasil, diante da desnecessidade da pluralidade de sócios prevista para a constituição da sociedade empresária.

O tratamento atribuído à questão pelo DNRC diverge do Projeto de Lei nº 4.605/2009, que deu origem à Lei nº 12.441/2011 e que previa: “A Eireli será constituída por um único sócio, pessoa natural, que é titular do capital social [...]”. Conforme se observa, o texto original do projeto previa a constituição da Eireli exclusivamente por pessoa natural; entretanto, o tex-to sofreu alteração na Câmara dos Deputados, sendo retirado o vocábulo “natural”, de forma que a inevitável conclusão é que tanto a pessoal natural como a pessoa jurídica podem constituir a Eireli. Referida conclusão torna--se mais clara diante do disposto no § 2º do art. 980-A, em que se verifica referência expressa à “pessoa natural” como titular de uma única Eireli, que seria totalmente desnecessário se somente a pessoa natural fosse realmente

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a única autorizada a ser titular da Eireli. O § 2º do art. 980-A restringe a participação da pessoa natural em mais de uma Eireli, estabelecendo que “a pessoa natural que constituir empresa individual de responsabilidade li-mitada somente poderá figurar em uma única empresa dessa modalidade”.

A vedação imposta pela IN 117/2011 do DNRC motivou a provoca-ção do Poder Judiciário, e uma liminar deferida pela Justiça carioca garantiu a uma consultoria norte-americana a continuidade do processo de trans-formação da uma sociedade limitada da qual fazia parte em Eireli. Nessa primeira decisão judicial conhecida no País, concluiu-se que não cabe ao DNRC normatizar a matéria prevendo proibição não prevista na lei. Con-forme se verifica, ao regulamentar a matéria por meio da IN 117/2011, o DNRC apresenta restrição não prevista na lei, em flagrante extrapolação de poderes que pode ser combatida judicialmente pelos interessados na hipó-tese de encontrarem dificuldades impostas pelas juntas comerciais para o registro da Eireli constituída por pessoa jurídica.

Outro ponto que gerou divergências foi a previsão de um limite vin-culado ao salário-mínimo para a constituição do capital social da Eireli. A lei exige como valor mínimo de investimento a importância de 100 salários--mínimos, que deve estar totalmente integralizado no ato da constituição e em futuros aumentos do capital social. Quanto à inconstitucionalidade do capital mínimo vinculado ao salário-mínimo, o Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestou no julgamento da ADIn 4.637, proposta pelo Parti-do Popular Socialista (PPS). De acordo com o entendimento dos ministros do STF, a exigência do capital mínimo é perfeitamente compatível com os princípios constitucionais, na medida em que viabiliza a constituição da Eireli e protege os credores. A decisão também se baseou no relatório do Banco Mundial (Doing Business 2011), que demonstra exigências similares em outros países, como Itália e Argentina.

Considerando que a Eireli é regida subsidiariamente e, no que cou-ber, pelas regras previstas para a sociedade limitada (arts. 1.052 a 1.087 do Código Civil), o capital social da Eireli pode ser integralizado em bens suscetíveis de avaliação pecuniária, não sendo necessária a apresentação de laudo de avaliação de bens no registro público de empresas, sendo vedada, por óbvio, a contribuição que consista apenas em prestação de serviços.

De acordo com o § 1º do art. 980-A, o nome empresarial será cons-tituído pela inclusão da expressão “Eireli” após a firma ou a denominação, que, nos termos do art. 1.158 do Código Civil de 2002, correspondem às espécies de nome empresarial que podem ser adotados pela sociedade li-mitada. De acordo com as regras legais previstas, a firma deve ser consti-tuída exclusivamente pelo nome civil do titular da Empresa Individual de

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Responsabilidade Limitada acrescido da expressão Eireli e a denominação será formada pelo elemento fantasia (expressão comum ou vulgar da língua nacional ou estrangeira) ou nome civil do titular da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada e pela descrição do objeto social, acrescidos da expressão Eireli.

Quanto à constituição, o § 3º do art. 980-A, dispõe que a Eireli po-derá resultar da concentração das quotas de outra modalidade societária num único sócio, independentemente das razões que motivaram referida concentração. De acordo com referida previsão, a Eireli pode resultar da dissolução parcial de uma sociedade limitada ou de qualquer outra mo-dalidade societária contratual, como se verifica nas hipóteses geradoras da unipessoalidade (apuração de haveres e pagamento aos herdeiros em caso de falecimento de sócio, exercício do direito de retirada, expulsão de sócio e cessão de quotas).

A Eireli pode abrir filiais ou desenvolver a atividade em um único estabelecimento. Nos termos da IN 117/2011, a assinatura do titular no ato constitutivo deve ser lançada por extenso com o nome do signatário de forma legível, não sendo necessário o reconhecimento de firma, salvo se a junta comercial exigir em caso de dúvida quanto à veracidade. O ato constitutivo deve ter o visto do advogado, com a indicação do número da OAB, salvo se juntamente com o ato constitutivo for apresentado declara-ção de enquadramento como ME ou EPP. A alteração do ato constitutivo não necessita do visto de advogado. É possível a alteração na titularidade da Eireli que ocorre mediante alteração do ato constitutivo com a indicação e qualificação do novo titular. A sucessão na Eireli dar-se-á por alvará judicial ou na partilha, por sentença judicial ou escritura pública.

A administração da Eireli pode ser feita por uma ou mais pessoas naturais, que podem ser o titular da Eireli ou terceiro residente no País de-signados no ato constitutivo, que deve conter a assinatura do administrador nomeado. A nomeação e a destituição sempre serão realizadas pelo titular da Eireli mediante alteração da cláusula correspondente à administração no ato constitutivo.

No âmbito doutrinário e jurisprudencial, talvez pela brevidade de suas normas, a Eireli já enseja a necessidade de soluções destinadas a asse-gurar a sua existência para os fins que motivaram a sua criação, ressaltando que qualquer receio de fraude ou abuso de direito por meio da criação de Eireli não pode ser maior que o existente em relação ao surgimento de sociedades limitadas, cabendo aos aplicadores do Direito a utilização dos mecanismos jurídicos já existentes para a coibição de atos ilícitos por meio da regra da limitação da responsabilidade.

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5.2 possibilidadE dE transformação do EmprEsário individual Em sociEdadE EmprEsária ou EirEli E vicE-vErsa

A introdução do § 3º ao art. 968 do Código Civil tornou possível a transformação do empresário individual em sociedade empresária, obser-vando-se, no que couber, os arts. 1.113 e 1.115 do Código Civil. Trata-se de uma novidade introduzida ao ordenamento jurídico brasileiro, já que, no re-gime anterior, referida possibilidade não existia, exigindo que o empresário que desejasse transformar-se em sociedade empresária mediante a entrada de sócios deveria promover sua extinção como empresário individual no Registro Público de Empresas.

A transformação de empresário individual em sociedade empresária ou em Eireli, e vice versa, encontra-se disciplinada na Instrução Normati-va nº 118, de 22.11.2011, do DNRC (Departamento Nacional de Registro do Comércio). De acordo com o art. 2º da referida instrução normativa: “Transformação de registro é a operação pela qual a sociedade, a empresa individual de responsabilidade limitada ou o empresário individual altera o tipo jurídico, sem sofrer dissolução ou liquidação, obedecidas as normas reguladoras da constituição e do registro da nova forma a ser adotada”.

Nos termos do art. 3º da IN/DNRC 118/2011, a transformação do em-presário individual em sociedade empresária ou em Eireli, e vice-versa, não abrange as sociedades anônimas, sociedades simples e as cooperativas. Na transformação, há a alteração do nome empresarial para adequá-lo às re-gras previstas para o novo tipo jurídico empresarial adotado, que conservará como data de início das atividades a constante na inscrição ou constituição originária.

Nos termos do art. 9º da IN/DNRC 118/2011, o empresário individu-al, a sociedade empresária ou a Eireli resultante da transformação de registro receberá o Número de Identificação do Registro de Empresa – Nire pertinen-te à sua natureza jurídica, sendo que as filiais que forem mantidas continua-rão com os Nire’s a elas atribuídos. Se o empresário individual, a sociedade empresária ou a Eireli em transformação não estiverem enquadrados como microempresa ou empresa de pequeno porte, serão exigidas as certidões negativas para a transformação do registro pela junta comercial.

A possibilidade de transformação do empresário individual em socie-dade empresária ou Eireli também repercutiu nas hipóteses de dissolução da sociedade previstas no art. 1.033 do Código Civil. De acordo com o art. 1.033, IV, a sociedade será dissolvida quando ocorrer a falta de plurali-dade de sócios e o quadro societário não for reconstituído no prazo de 180 dias. Com a modificação introduzida no parágrafo único do art. 1.033 pela

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Lei nº 12.441/2011, verificada a unipessoalidade societária em decorrência de direito de retirada, falecimento sem o ingresso de herdeiro, expulsão ou cessão de quotas, se o sócio remanescente não conseguir reconstituir a pluralidade de sócios no prazo de 180 dias, ele poderá, como opção à dissolução da sociedade, requerer a transformação da sociedade empresária em empresário individual ou em Eireli.

Conforme se verifica, as inovações introduzidas no art. 968, § 3º e no parágrafo único do art. 1.033 encontram-se em consonância com as atuais exigências empresariais. Constitui hipótese comum a necessidade de admis-são de novos sócios em razão do crescimento dos negócios explorados pelo empresário individual e a possibilidade da manutenção dos cadastros exis-tentes pela agora permitida transformação em sociedade empresária certa-mente contribui para a reunião de novos investidores para fortalecer uma atividade que se mostrou rentável, permitindo o seu crescimento. Por outro lado, não menos incomum é a unipessoalidade que se verifica em muitas sociedades, de forma que a possibilidade de continuidade da mesma ativi-dade e com a manutenção dos cadastros existentes pelo sócio remanescente mediante a adoção de outro tipo jurídico empresarial sem a necessidade de dissolução da sociedade mostra-se mais coerente e prestigia o princípio da preservação da empresa.

5.3 simplificação nos rEgistros do microEmprEEdEdor individual – mEi

Em consonância com o disposto no art. 970 do Código Civil, o art. 968, § 4º, acrescentado em 2011, prevê que o processo de abertura, re-gistro, alteração e baixa do MEI, definido no art. 18-A da Lei Complementar nº 123/2009, bem como qualquer exigência para o início do seu funcio-namento, terão trâmite especial e simplificado, preferencialmente eletrô-nico, sendo que o § 5º do referido dispositivo prevê a dispensa do uso da firma, do capital, requerimentos, demais assinaturas, informações relativas à nacionalidade, estado civil e regime de bens, assim como a remessa de documentos.

Em atendimento ao disposto nos referidos artigos, vigora no DNRC a Instrução Normativa nº 122, de 20 de dezembro de 2012, que, em seu art. 2º, dispõe:

Os dados constantes de arquivos eletrônicos recebidos do Portal do Empre-endedor pelas Juntas Comerciais, pertinentes à inscrição, alteração e extin-ção de empresários enquadrados como microempreendedores individuais, assim como as comunicações de enquadramentos e de desenquadramentos referentes a essa condição, efetuadas pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, em cumprimento ao disposto no art. 28 da Resolução CGSIM nº 16,

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de 2009, deverão ser mantidos no respectivo Cadastro Estadual de Empresas – CEE vinculados ao cadastro do empresário a que se refiram, de forma a preservar a sua individualidade, com integridade, enquanto ato arquivado.

§ 1º Os dados dos arquivos recebidos deverão, também, ser incorporados ao cadastro do empresário de forma a permitir a atualização cadastral dos dados dele constantes.

§ 2º A exibição dos dados pertinentes ao Registro Mercantil referentes a cada arquivo recebido, quando necessária, será efetuada por intermédio do mo-delo Cadastro de Arquivo Recebido do Portal do Empreendedor – Empresário – MEI, constante do Anexo I desta instrução normativa.

§ 3º Para fins de incorporação dos dados de cada arquivo à base de imagens digitalizadas dos documentos arquivados, deverá ser utilizado o modelo mencionado no parágrafo anterior.

5.4 sociEdadEs constituídas por incapazEs

O art. 308 do Código Comercial de1850 proibia os menores de fa-zerem parte de sociedade, quando herdeiros da participação societária. A lei vedou, assim, a participação de menores nas sociedades comerciais pre-vistas no Código Comercial. Na década de 1970, apesar de ainda vigorar a proibição legal de participação de menor em decorrência de ato causa mortis, passou a predominar na jurisprudência a admissibilidade na socie-dade limitada de sócio incapaz, desde que presentes determinados requisi-tos, cuja exigência decorria do atendimento às normas civis de representa-ção e também para a proteção do patrimônio do incapaz.

A partir de 1980, o registro público de empresas passou a admitir o arquivamento referente às sociedades limitadas constituídas por incapaz, desde que atendidos os requisitos exigidos pela jurisprudência: o incapaz deveria ser representado ou assistido na forma da lei civil, o capital social deveria encontrar-se e permanecer totalmente integralizado e o incapaz não poderia exercer a administração da sociedade.

A orientação do DNRC às juntas comerciais refletiu o entendimento do Superior Tribunal Federal. Assim, se o incapaz não é juridicamente apto para manifestar, por si só, a sua própria vontade, não há como lhe atribuir poderes para manifestar a vontade da sociedade. A exigência da integrali-zação do capital social objetiva afastar do incapaz a regra da solidariedade entre os sócios pela parte que falta para a integralização do capital, manten-do o limite da sua responsabilidade ao montante investido na sociedade. Em razão da incapacidade absoluta ou relativa, o incapaz deve ser representado ou assistido de acordo com as normas civis.

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Em consonância com o entendimento jurisprudencial e respecti-va orientação do Departamento Nacional de Registro do Comércio, a Lei nº 12.399/2011 acrescentou o § 3º ao art. 974 do Código Civil de 2002, que prevê:

§ 3º O Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comer-ciais deverá registrar contratos ou alterações contratuais de sociedade que envolva sócio incapaz, desde que atendidos, de forma conjunta, os seguintes pressupostos:

I – o sócio incapaz não pode exercer a administração da sociedade;

II – o capital deve ser totalmente integralizado;

III – o sócio relativamente incapaz deve ser assistido e o absolutamente inca-paz deve ser representado por seus representantes legais.

Conforme se verifica, mediante o acréscimo do referido § 3º, o Có-digo Civil de 2002 passou a disciplinar a participação de incapazes nas sociedades contratuais de acordo com os critérios já adotados pelas juntas comerciais no País, de forma que a questão, até então tratada apenas no âmbito jurisprudencial e administrativo do registro público de empresas, foi recepcionado pelo ordenamento jurídico, encontrando-se o tema devida-mente positivado.

5.5 dEsignação dE administrador não sÓcio na sociEdadE limitada

Pela redação antiga, a designação de administrador não sócio na so-ciedade limitada exigia que o contrato social apresentasse previsão expres-sa nesse sentido, autorizando previamente a nomeação de administrador não sócio: “Se o contrato permitir administradores não sócios, a designação deles dependerá de aprovação da unanimidade dos sócios, enquanto o ca-pital não estiver integralizado, e de dois terços, no mínimo, após a integrali-zação”.

A nova redação atribuída ao dispositivo afastou a necessidade de cláusula expressa no contrato social autorizando previamente a designação de terceiros para a administração societária: “A designação de administra-dores não sócios dependerá de aprovação da unanimidade dos sócios, en-quanto o capital não estiver integralizado, e de 2/3 (dois terços), no mínimo, após a integralização”.

De acordo com a redação anterior, se o contrato social não autorizas-se previamente a existência de administrador não sócio na sociedade, era necessário alterar o contrato social mediante a vontade de sócio ou sócios que representassem 3/4 do capital social para incluir a cláusula permissi-va, conforme art. 1.071 c/c art. 1.076 do Código Civil, com a ressalva do

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art. 70, caput, da Lei Complementar nº 123/2006, que, no caso de enqua-dramento da sociedade como ME ou EPP, prevê quórum da maioria abso-luta. Com a alteração prevista, a designação de administrador não sócio independe de prévia autorização contratual, dependendo somente do aten-dimento aos quóruns legais e respectivas providências perante o Registro Público de Empresas para a formalização e eficácia da nomeação.

CONCLUSÃO

A dinamicidade das normas empresariais, conforme demonstrado pela história do direito empresarial brasileiro, motivou importantes altera-ções no Livro II – Do Direito de Empresa, ao longo dos dez anos de vi-gência do Código Civil de 2002. Paralelamente, importantes leis especiais de natureza empresarial surgiram (nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas, Estatuto Nacional da ME e da EPP) e outras leis empresariais vi-gentes sofreram alterações (Lei de Registro Público de Empresas, Lei das Sociedades Anônimas).

O surgimento de novas leis empresariais e as frequentes alterações nas leis de natureza empresarial vigentes objetivam atender às necessidades do meio empresarial. Por outro lado, permanece paralisada no tempo a evo-lução dos títulos de créditos típicos no País, que permanecem disciplinados em leis desatualizadas e muito antigas, exigindo urgente reformulação para que referidos institutos jurídicos empresariais recebam a adequação neces-sária ao atual processo de transferência eletrônica de dados.

Além da reforma dos títulos de créditos, a Lei nº 11.101/2005 também demonstra a necessidade de ajustes, conforme se verifica pelas decisões judiciais no âmbito dos Tribunais Estaduais e no Superior Tribunal de Justi-ça. Nesse contexto, o projeto de novo Código Comercial em tramitação no Congresso Nacional pode ser o meio de promover os ajustes necessários; entretanto, com fundamento na história do direito empresarial brasileiro e diante da dinamicidade das normas jurídicas empresariais, parece que a criação de uma Lei Geral para disciplinar os títulos de crédito no País, bem como alterações pontuais na atual Lei de Falência e Recuperação de Empre-sas, poderão apresentar melhores resultados melhores diante do prestígio da manutenção dos microssistemas legais em detrimento à pretendida codifi-cação empresarial.

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Parte Geral – Doutrina

Sociedade entre Cônjuges: Aplicação do Artigo 977 do CC/2002 às Sociedade Simples

ROLF MADALENO1

Advogado e Professor de Direito de Família e Sucessões na Graduação e na Pós-Graduação da PUC/RS, Diretor Nacional do IBDFAM, Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/RS.

BIBIANA BRUM OHIRADoutoranda pela Université de Fribourg/Universität Freiburg – Suíça, Mestre em Ciências Jurí-dicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – Portugal, Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Escola Paulista de Direito, Membro do IBDFAM, Advogada.

RESUMO: O presente trabalho tratará da possibilidade de aplicação do art. 977 do Código Civil de 2002 às sociedades simples. Analisar-se-á a aplicação ou não desse tipo societário às sociedades entre cônjuges, cujo casamento é regido pelo regime de comunhão universal de bens. O objetivo do estudo é o de examinar, com base na doutrina e na jurisprudência, empresarial e familiar, decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça em recurso especial em que o egrégio Tribunal analisou e julgou a aplicabilidade do referido artigo às sociedades simples constituídas entre marido e mulher casados sob o regime da comunhão universal de bens.

PALAVRAS-CHAVE: Sociedade simples; cônjuges; regime de bens.

RÉSUMÉ: Le présent travail traitera de la possibilité d’application de l’article 977 du Code Civile de 2002 sur les societés simples. L’application de ce type de societé será analysée cocernant les societés entre conjoints mariés sous le régime matrimonial de la communauté universelle des biens. L’objectif de cette étude est d’examiner avec le support de la doctrine et de la jurisprudence du droit d’entreprise et familial, la décision prononcée par “Superior Tribunal de Justiça” en Recours Spéciel. Le Tribunal a analysé et jugé l’application de l’article mentionné sur le societé simple que se sont formées entre mari et femme sous le régime matrimonial de la communauté universelle des biens.

MOTS-CLÉ: Société simple; conjoints; régime matrimonial.

SUMÁRIO: Introdução; 1 Regimes de bens; 1.1 Pacto antenupcial; 1.2 Alteração do regime de bens; 2 Comunhão universal de bens; 2.1 Regime da comunhão universal de bens; 3 Sociedade simples: conceito; 3.1 Sociedade simples: natureza e tipo; 3.2 Sociedade simples: responsabilidade dos só-cios; 4 Artigo 977 do Código Civil e sociedade simples; 4.1 Sociedade entre cônjuges; 4.2 A aplica-ção do artigo 977 do Código Civil às sociedades simples nas hipóteses de comunhão universal de bens; 4.3 A aplicação do artigo 977 do Código Civil e a responsabilidade dos sócios nas sociedades simples; 4.4 A aplicação do artigo 977 do Código Civil e a sua localização no texto legal; Conclusão; Referências.

1 Site: www.rolfmadaleno.com.br.

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INTRODUÇÃO

Por meio do casamento, um homem e uma mulher assumem o estado familiar de cônjuges, cujo gesto nascido do desejo de constituir família acar-reta recíprocos direitos e obrigações, próprios de uma comunhão de vida afetiva e indissociavelmente vinculada em seus aspectos de cunho material.

Ao lado da comunhão plena de vida, como condição de existência efetiva de uma sociedade conjugal, do matrimônio também fluem outros efeitos jurídicos que influenciam na vida dos consortes, no tocante, por exemplo, à presunção de paternidade nos vínculos de filiação, na automáti-ca alteração do estado civil e mudança eventual do sobrenome, quando os cônjuges fazem esta opção, além da assunção natural dos deveres nupciais, como mais um exemplo meramente adicional. O laço matrimonial2 também constitui circunstancial direito aos alimentos em caso de ruptura da relação, o direito real de habitação como um dos efeitos do direito sucessório, assim como indica o cônjuge para a função de curador nos casos previstos em lei3.

Portanto, por meio do casamento, duas pessoas, por livre manifesta-ção de vontade, podem, em plena sociedade de afetos, compartilhar seus planos e suas expectativas, seja em tempos de alegria, seja em momentos de tristeza, mas, solidários, buscam a concretização conjunta da felicidade e da realização pessoal de cada cônjuge. Ambos almejam, por meio do ma-trimônio, a mútua troca de afeto, o recíproco auxílio material e espiritual, na essência do seu relacionamento familiar, em cujo núcleo como legítima entidade familiar o casal busca proteger-se, complementa-se e, sobremodo, procura economicamente prosperar4.

Dentro desse panorama, não é raro aos cônjuges prolongarem seus vínculos conjugais para outros campos adiante dos seus relevantes vínculos de afeto.

Passado algum tempo, conquistada a confiança, firmada a cumplici-dade e alterados ou ampliados seus projetos de vida, os consortes sentem-se mais seguros e mais bem resolvidos para a prática de atos que, no ardor dos

2 O Código Civil espanhol, após a promulgação da Lei nº 13/2005, de 1º de julho, passou a autorizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Neste sentido, Luis Díez-Picazo e Antonio Gullón conceituam casamento como “la unión de dos personas de distinto o igual sexo, concertada de por vida mediante la observancia de determinados ritos o formalidades legales y tendente a realizar una plena comunidad de existencia” (DÍEZ-PICAZO, Luis; GULLÓN, Antonio. Sistema de derecho civil. 10. ed. Madrid: Tecnos, v. IV, 2007. p. 61-62).

3 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 235.

4 Sobre outros conceitos de casamento, veja-se: GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito civil: família. São Paulo: Atlas, 2008. p. 5-12; COELHO, Francisco Manuel Pereira. Casamento e divórcio no ensino de Manuel de Andrade e na legislação actual. Coimbra: FDUC, 2001. p. 23.

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160 ............................................................................................................ RDE Nº 32 – Maio-Jun/2013 – PARTE GERAL – DOUTRINA

primeiros anos de comunhão de vida, nem sempre são tratados sem algum traço de constrangimento.

Com vistas ao sustento e ao aumento da renda familiar, marido e mu-lher encontram na atividade comercial uma boa opção para dividirem suas angustias e seus anseios pela busca incessante da estabilidade financeira. Ultrapassam a barreira da sociedade conjugal para assumirem em paralelo uma sociedade empresária, ou, na linguagem antiga, uma sociedade comer-cial, mas que poderá ou não ser uma sociedade empresária.

Diante desta prática corriqueira de cônjuges como sócios comerciais e das normas em vigor para a sua regulamentação, realça o desafio desse texto em tentar contribuir para a melhor compreensão do tema e das suas idiossincrasias, devendo ser abordado em três estágios. No primeiro deles, vai exposta breve síntese acerca das questões envolvendo o regime de bens regulado pela legislação atual, com ênfase especial ao regime da comunhão universal de bens, em razão da importância no qual o regime se reveste em razão da vedação imposta pelo art. 977 do Código Civil.

Em um segundo momento, ingressam no presente estudo conceitos de direito empresarial, direcionando para os aspectos singulares da socieda-de simples, porquanto a aplicação das limitações trazidas pelo art. 977 do Código Civil às referidas sociedades foi alvo de controvérsia e análise pelo egrégio Tribunal de Justiça, em recurso especial.

Na sequência e para conclusão, com suporte na doutrina e na juris-prudência mencionada, serão feitas considerações questionando acerca da aplicação ou não desse tipo societário às sociedades entre cônjuges, cujo casamento é regido pelo regime de comunhão universal de bens.

1 REGIME DE BENS

Concretizado o casamento, sobrevêm os direitos e as obrigações em relação à pessoa e aos bens patrimoniais dos consortes. As relações econô-micas entre os cônjuges estão vinculadas ao regime matrimonial de bens – este submetido às normas específicas5.

Por essa razão, junto aos chamados efeitos pessoais do matrimônio, a lei regula os efeitos patrimoniais do instituto. Denomina-se regime matrimo-nial de bens ou regime de bens o conjunto de regras jurídicas que discipli-nam a economia do casamento6.

5 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Direito de família. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 154.

6 DÍEZ-PICAZO, Luis; GULLÓN, Antonio. Sistema de derecho civil. 10. ed. Madrid: Tecnos, v. IV, 2007. p. 133.

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O papel do regime matrimonial de bens é o de regular as relações pa-trimoniais entre os consortes, no que tange ao domínio e à administração de cada um ou de ambos sobre os bens trazidos ao casamento e os adquiridos durante a união conjugal7.

O Código Civil brasileiro prevê quatro tipos de regime de bens: a) o da comunhão parcial, regulado pelos arts. 1.658 a 1.666; b) o da participa-ção final dos aquestos, regulado pelos arts. 1.672 a 1.686; c) o da comu-nhão universal, previsto nos arts. 1667 a 1671; d) e o da separação total, consoante os arts. 1687 a 16888.

No tocante à escolha do regime matrimonial de bens, o art. 1.639 do Código Civil autoriza aos nubentes escolherem o regime que melhor atenda às necessidades e aos anseios do casal. Contudo, trata-se de regra de caráter geral, vez que, frente às hipóteses previstas nos três incisos do art. 1.641 do Código Civil, torna obrigatória a adoção do regime da separação de bens, ressalvados os efeitos advindos da eventual aplicação da Súmula nº 337 do STF.

Sob o manto da permissão normativa, poderão os nubentes adotar um dos quatro tipos de regime de bens, como, também, combiná-los entre si, formando regime misto, salvo nas hipóteses de incompatibilidade de dispo-sições entre eles9.

1.1 pacto antEnupcial

Os arts. 1.639 e 1.640 do Código Civil brasileiro apontam as hipóte-ses de aplicação do regime legal de bens e autorizam a concretização de pacto antenupcial, por escritura pública, naqueles casos em que os nuben-tes desejem adotar regime matrimonial diverso da comunhão parcial. Se nada for pactuado em escritura pública pré-nupcial, ou sendo ela nula ou ineficaz, será aplicado aos nubentes o regime da comunhão parcial de bens, tirante as ressalvas previstas no art. 1.641 do Código Civil impondo o regime obrigatório da separação de bens.

O pacto antenupcial é ato público, solene, celebrado perante Tabelião ou o Oficial de Notas, não podendo ser convencionado por meio de simples

7 LÔBO, Paulo. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 292.8 Após a revisão de 1998, o Código Civil suíço adotou três tipos de regimes matrimoniais de bens, sendo

eles: participação nos aquestos, comunhão de bens e separação de bens. O primeiro tipo é chamado de ordinário e os últimos são chamados de convencionais. Cumpre ressaltar que, não havendo escolha pelos nubentes quanto ao regime de bens, será adotado o regime da participação nos aquestos (MICHELI, Jacques; NORDMANN, Philippe; TISSOT, Catherine; CRETTAZ, Joël; THONNEY, Thierry; RIVA, Erica. Le nouveau droit du divorce. Lausanne: Editions Pépinet, 1999. p. 109).

9 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Direito de família. 38. ed. rev. e atual. por Regina Beatriz Tavares da Silva de acordo com o novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 184.

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instrumento particular, sendo obrigatória a forma da escritura pública10. O contrato antenupcial não poderá conter cláusulas ou condições estranhas às suas finalidades11, e a falta de formalidade gera a nulidade do pacto.

A escritura antenupcial deverá ser registrada no Cartório de Registro de Imóveis do domicílio do casal a fim de assegurar direitos legítimos de terceiros. Quanto aos bens móveis, a eficácia do regime de bens em face de terceiros decorre do próprio pacto e do registro do casamento12.

A escritura pública deverá ser lavrada antes do casamento, sob pena de ineficácia do negócio – e o pacto não produzirá efeito algum quando revogado pelos nubentes antes do casamento. Ocorrendo nulidade ou ine-ficácia do pacto antenupcial lavrado, prevalecerá o regime da comunhão parcial de bens entre cônjuges.

1.2 altEração do rEgimE dE bEns

Reza o art. 1.639, § 2º, do Código de 2002 que, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros, é admissível a alteração do regime de bens. Trata-se de regra modificadora baseada no princípio da mutabilidade do regime de bens e trazida para o sistema pátrio apenas com a edição do vigente diploma civil, porquanto, em período pre-cedente, havia sérias restrições quanto à relativização da disponibilidade do regime matrimonial depois do casamento.

A norma ora em vigor, obra de ingente trabalho doutrinário de Or-lando Gomes, permite aos cônjuges, na plena constância da vida conjugal, depois de ultrapassadas as normais incertezas dos primeiros anos de comu-nhão de vida e uma vez já fortalecida a relação conjugal, poderem alterar o regime de bens escolhido por eles no casamento. É a possibilidade de examinar e corrigir decisão tomada, principalmente sob efeito emocional oriundo do momento envolto em juras e expectativas de pura paixão, bem próprio das vivências pré-nupciais.

A alteração do regime de bens legal ou convencional, após o casa-mento, ressalvadas as hipóteses do art. 1.64113, deverá observar três exigên-

10 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Direito de família. 38. ed. rev. e atual. por Regina Beatriz Tavares da Silva de acordo com o novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 190.

11 LÔBO, Paulo. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 309.12 LÔBO, Paulo. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 311.13 Sílvio de Salvo Venosa aduz que, “[...] com base no texto literal e nos princípios gerais, não poderão os

cônjuges, mediante justificação e razões plausíveis, alterar voluntariamente um regime imposto pela lei” (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 6. ed. São Paulo: Atlas, v. VI, 2006. p. 343).

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cias cumulativas: a) autorização judicial; b) motivação relevante; c) ressalva dos direitos de terceiros14.

Para que seja possível a alteração do regime de bens na constância do casamento, ambos os consortes, em pedido conjunto e fundamentado, de-verão requerer formalmente autorização judicial. A sentença que conceder a mudança do regime deverá ser averbada no assento do casamento, bem como no Registro de Imóveis do domicílio do casal15.

Necessário se faz certa cautela, principalmente quanto aos interes-ses, em especial de terceiros, que poderão ser atingidos pela alteração do regime de bens – isso porque, não raro, se utilizam da faculdade ofertada pelo legislador para execução de fraudes na partilha dos bens16. Um dos exemplos clássicos é a fraude à meação conjugal, nascida da utilização do uso abusivo da sociedade empresarial, e, como remédio para tais hipóteses, é empregado o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, pre-visto no art. 50 do Código Civil17-18.

2 COMUNHÃO UNIVERSAL DE BENS

Conforme já explicitado, no Brasil existem quatro diferentes regime de bens; contudo, como o intuito não é o de esgotar o assunto referente ao direito patrimonial entre cônjuges, interessa ao ponto a abordagem es-pecífica do regime da comunhão universal de bens, pois, a respeito desse regime, tratou o julgado do Superior Tribunal de Justiça – Recurso Especial nº 1.058.165/RS, a vedação trazida pelo art. 977 do Código Civil e sua apli-cação nas sociedades simples.

2.1 rEgimE da comunhão univErsal dE bEns

A Lei nº 6.515/1977 substituiu o regime da comunhão universal de bens, vigente até a época como sendo regime comum ou legal, pelo regime da comunhão parcial de bens, previsto no atual Código Civil19.

14 LÔBO, Paulo. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 295.15 MADALENO, Rolf. Efeitos patrimoniais do casamento. Regime de bens. Direito de família: direito civil. In:

HIRONAKA, Giselda M. F. Novaes (Orient.); BARBOSA, Águida Arruda; VIEIRA, Cláudia Stein (Coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, v. VII, 2008. p. 106.

16 Para melhor desenvolvimento do tema, veja-se: MADALENO, Rolf. Novos horizontes no direito de família. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 20 e ss.

17 MADALENO, Rolf. Efeitos patrimoniais do casamento. Regime de bens. Direito de família: direito civil. In: HIRONAKA, Giselda M. F. Novaes (Orient.); BARBOSA, Águida Arruda; VIEIRA, Cláudia Stein (Coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, v. VII, 2008. p. 105.

18 Para melhor desenvolvimento do tema, veja-se: MADALENO, Rolf. A desconsideração judicial da pessoa jurídica e da interposta pessoa física no direito de família e no direito das sucessões. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009; RODRIGUES, Daniel Gustavo de Oliveira Colnago. Abuso da personalidade jurídica e fraude no direito de família. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo: [s.n.], n. 99, 2011.

19 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Direito de família. 38. ed. rev. e atual. por Regina Beatriz Tavares da Silva de acordo com o novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 196.

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164 ............................................................................................................ RDE Nº 32 – Maio-Jun/2013 – PARTE GERAL – DOUTRINA

Atualmente, por meio do pacto antenupcial, podem os nubentes ado-tar o regime da comunhão universal de bens, fazendo comunicarem todos os seus bens, presentes e futuros, adquiridos antes ou depois do casamen-to, e também as dívidas tornando-se comuns, constituindo tudo uma única massa. Cada um dos consortes passa a ter o direito à metade ideal do patri-mônio comum20-21. Trata-se de sociedade ou de um condomínio conjugal22, com características próprias23.

Todavia, a comunicação de todos os bens dos consortes, oriunda do regime da comunhão universal, sofre algumas restrições. A lei admite exce-ções em que bens incomunicáveis pertencerão a apenas um dos cônjuges, formando um patrimônio especial.

Neste sentido, dispõe o art. 1.668 do Código Civil de 2002 que:

São excluídos da comunhão:

I – os bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar;

II – os bens gravados de fideicomisso e o direito do herdeiro fideicomissário, antes de realizada a condição suspensiva;

III – as dívidas anteriores ao casamento, salvo se provierem de despesas com seus aprestos, ou reverterem em proveito comum;

IV – as doações antenupciais feitas por um dos cônjuges ao outro com a cláusula de incomunicabilidade;

V – os bens referidos nos incisos V a VII do art. 1.659.

Ressalta-se que os frutos dos bens incomunicáveis, quando se per-cebam ou vençam durante o casamento, comunicam-se, segundo prevê o art. 1.669 do Código Civil.

A administração dos bens na comunhão universal poderá ser conjun-ta ou a cargo de qualquer um dos cônjuges. A matéria vem disciplinada no art. 1.670 do Código Civil, a qual dispõe que, quanto à administração dos bens, aplica-se ao regime da comunhão universal o disposto no capítulo antecedente (arts. 1.663 a 1.666).

20 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Direito de família. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 177.

21 O Direito suíço dispõe que, no regime da comunhão de bens, cada cônjuge é proprietário de seus bens próprios e possui uma parte indivisível sobre bens comuns do casal (MICHELI, Jacques; NORDMANN, Philippe; TISSOT, Catherine; CRETTAZ, Joël; THONNEY, Thierry; RIVA, Erica. Le nouveau droit du divorce. Lausanne: Editions Pépinet, 1999. p. 122).

22 Em sentido contrário ao conceito de condomínio conjugal, veja-se: MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Direito de família. 38. ed. rev. e atual. por Regina Beatriz Tavares da Silva de acordo com o novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 196-197.

23 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 6. ed. São Paulo: Atlas, v. VI, 2006. p. 356.

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RDE Nº 32 – Maio-Jun/2013 – PARTE GERAL – DOUTRINA ............................................................................................................... 165

Quanto às dívidas contraídas no exercício da administração, reza o § 1º do art. 1.663 da codificação civil que tais débitos obrigam os bens co-muns e particulares do cônjuge que os administra, e os do outro na medida do ganho obtido. Faz concluir, portanto, que os bens do cônjuge não admi-nistrador responderão pelas dívidas contraídas se comprovado que este ob-teve algum lucro, sendo de responsabilidade de ambos as dívidas contraídas em benefício comum. Além disso, evidente que, pelas dívidas assumidas por qualquer dos consortes na administração dos seus bens particulares, e em proveito destes, não responderão os bens comuns do casal24.

De ser notado, entretanto, que as dívidas posteriores perpetradas por qualquer dos cônjuges, após o casamento, comprometem o patrimônio co-mum, desde que contraídas por atos lícitos25-26. Assim, os bens comuns do casal não responderão pelas obrigações geradas por atos ilícitos cometidos por um dos cônjuges, ressalvada a hipótese em que o consorte obteve ren-dimento com o produto do ilícito cometido pelo outro, mesmo que sem participação direta ou indireta para tanto27.

Analisando a responsabilidade dos consortes na gestão dos bens con-jugais, a doutrina salienta ser ela tão clara que o § 3º do art. 1.663 do Código Civil destitui da administração o cônjuge que dissipa o patrimônio comum com a sua má administração28.

Os atos que exigem a autorização do outro cônjuge como, por exem-plo, vender, doar, permutar ou dar em pagamento bens imóveis; doar bens móveis; prestar fiança ou aval; concessão gratuita de uso ou gozo dos bens comuns, móveis ou imóveis, estão excluídos da administração, mas inclui, todavia, a venda ou permuta de bens móveis29.

Quanto à extinção da responsabilidade, dispõe o art. 1.671 do Códi-go Civil que, efetuada a divisão do ativo e do passivo, e extinta a comunhão,

24 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Direito de família. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 181.

25 LÔBO, Paulo. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 325.26 Regina Beatriz Tavares sustenta que, nos casamentos celebrados após a entrada em vigor do novo Código

Civil, “[...] não existe mais a incomunicabilidade das obrigações provenientes de atos ilícitos, do que resulta a comunicação, independentemente do proveito obtido pelo casal. Assim, é protegida a pessoa do lesado, que não precisa aguardar a dissolução da sociedade conjugal e a partilha de bens do casal para receber o que lhe é devido” (MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Direito de família. 38. ed. rev. e atual. por Regina Beatriz Tavares da Silva de acordo com o novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 202).

27 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Direito de família. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 181.

28 MADALENO, Rolf. Efeitos patrimoniais do casamento. Regime de bens. Direito de família: direito civil. In: HIRONAKA, Giselda M. F. Novaes (Orient.); BARBOSA, Águida Arruda; VIEIRA, Cláudia Stein (Coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, v. VII, p. 121, 2008.

29 LÔBO, Paulo. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 327.

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166 ............................................................................................................ RDE Nº 32 – Maio-Jun/2013 – PARTE GERAL – DOUTRINA

cessará a responsabilidade de cada um dos cônjuges para com os credores do outro.

Por fim, dá-se a extinção da comunhão universal com a dissolução da sociedade conjugal pela morte de um dos cônjuges, pela sentença de nulidade ou anulação do casamento, pela separação (derrogado pela EC 66/2010) e pelo divórcio e pela separação de corpos ou de fato.

3 SOCIEDADE SIMPLES: CONCEITO

A sociedade simples é tipo societário introduzido pelo Código Civil de 2002 e tem a sua origem no Código Civil italiano de 1942. Dentro da nova sistemática trazida pela unificação do direito privado, a sociedade simples veio preencher o espaço ocupado pelas chamadas sociedades civis30.

O Código Civil de 2002 distinguiu as sociedades em: a) não personifi-cadas, isto é, aquelas que não possuem personalidade jurídica, quais sejam, sociedade em comum e sociedade em conta de participação, previstas nos arts. 986 a 996; e b) sociedades personificadas, ou seja, aquelas que adqui-rem personalidade jurídica com a inscrição no registro próprio (art. 985), incluindo estas últimas, as sociedades simples31.

Outra distinção feita pelo Diploma civilista foi entre sociedades em-presárias e sociedades simples.

Atualmente, inúmeros são os conceitos apresentados pela doutrina para determinar a sociedade simples. Assim, sem a pretensão de esgotar o tema, calha a lição trazida do conceituado jurista Fran Martins, ao definir a sociedade simples

[...] como sendo aquela constituída por duas ou mais pessoas, mediante escrito particular, ou público, de finalidade não empresarial, caracteristica-mente de pessoas, podendo destinar-se à determinada atividade profissional, ou ser supletivamente adotada por outro modelo societário.32-33

30 WALD, Arnoldo. Comentários ao novo Código Civil. Livro II – Do direito de empresa. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, v. XIV, 2005. p. 113-114.

31 CALÇAS, Manoel de Queiroz Pereira. A sociedade simples no Código Civil. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos: Divisão Jurídica, Bauru: Edite, n. 41, 2004. p. 172.

32 MARTINS, Fran. Curso de direito comercial. 33. ed. rev. atual. e ampl. conforme a Lei nº 10.406, de 10.01.2002, e a Lei nº 11.101/2005 (falência) por Carlos Henrique Abrão. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 249.

33 Sobre outros conceitos de sociedade simples, veja-se: DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. 9. ed. rev. e atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei nº 10. 406, de 10.01.2002). São Paulo: Saraiva, 2003. p. 625; JUNIOR, Nelson Nery; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. 7. ed. rev., ampl. e atual. até 25.08.2009. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 848; CALÇAS, Manoel de Queiroz Pereira. A sociedade simples no Código Civil. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos: Divisão Jurídica, Bauru: Edite, n. 41, p. 173, 2004; CASTRO, Moema Augusta Soares de. A teoria da empresa no Código Civil de 2002. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte: Nova Fase, n. 42, p. 179 e ss., 2003;

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RDE Nº 32 – Maio-Jun/2013 – PARTE GERAL – DOUTRINA ............................................................................................................... 167

3.1 sociEdadE simplEs: naturEza E tipo

Ultrapassadas as questões conceituais, cabe a análise das regras per-tinentes a esse tipo de societário.

Dispõe o art. 982 do Código Civil:

Salvo exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e simples, as demais.34

Parágrafo único. Independentemente de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e simples, a cooperativa.35

Assim, conforme prevê a legislação civilista, empresária é a socieda-de que tem por objeto o exercício de atividade própria do empresário, sen-do empresário “[...] quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou serviços” (art. 966 do CC)36.

Registre-se que a atividade escolhida para a sociedade simples, ou seja, o seu objeto, é que assegurará a sua natureza37.

Neste sentido, conclui-se que serão simples as demais sociedades que tenham por objeto atividades próprias de profissão intelectual, como às li-gadas às ciências, literatura, artes, salvo se o exercício de tais atividades constituir elemento de empresa38.

Note-se que pretendeu o legislador demonstrar que tais atividades, uma vez exercidas intuitu personae, classifiquem-se como simples e que, na verdade, “a presença” do sócio ou do empresário individual frente ao seu

MARTINELLI, Ingrid Santos. Sociedades simples do novo Código Civil – Aspectos polêmicos. IOB – Repertório de Jurisprudência: Civil Processual, Penal e Comercial, São Paulo: [s.n.], n. 21, p. 579, 2002.

34 Sobre as sociedades simples no Direito italiano e suíço, veja-se: FRANCO, Vera Helena de Melo. As sociedades de pessoas na atualidade. Uma visão comparativa crítica. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo: Malheiros, n. 157, p. 104 e ss., jan/mar. 2011.

35 Rubens Requião aduz que: “O legislador não foi claro ao traçar o perfil da sociedade simples. Prestando- -se, de um lado, como espécie de um ‘standard’ específico, e, de outro, como um compartimento comum ou esquema para os demais tipos de sociedades de pessoas, às quais suas normas poderão ser aplicadas subsidiariamente e, ao mesmo tempo, permitindo que ela assuma o tipo de certas sociedades empresárias, criou-se um fator de ambiguidade que lança a sociedade simples numa zona gris” (REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 29. ed. rev. e atual. por Rubens Edmundo Requião. São Paulo: Saraiva, v. I, 2010. p. 468).

36 Miguel Reale sustenta que: “Não define a nova Lei Civil o que seja ‘sociedade empresária’, mas seu conceito resulta da definição dada à figura do empresário” (REALE, Miguel. A sociedade simples e a empresária no Código Civil. Disponível em: <http://www.miguelreale.com.br/artigos/socse.htm>. Acesso em: 25 set. 2012.

37 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 29. ed. rev. e atual. por Rubens Edmundo Requião. São Paulo: Saraiva, v. I, 2010. p. 472.

38 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 29. ed. rev. e atual. por Rubens Edmundo Requião. São Paulo: Saraiva, v. I, 2010. p. 472.

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168 ............................................................................................................ RDE Nº 32 – Maio-Jun/2013 – PARTE GERAL – DOUTRINA

empreendimento não caracteriza o chamado elemento de empresa, próprio das atividades tipicamente empresárias39.

Assim, pode ser dito que o campo de atuação da sociedade simples é escasso, vez que limita as atividades intelectuais, não permitindo a sua ex-ploração direta, isso porque a sociedade deixará de ser considerada simples quando exercida por intermédio da sociedade, tornando-se, então, elemen-to desta40.

Conforme as lições de Miguel Reale: “Tanto a sociedade simples como a empresária poderão constituir-se para a prestação de serviço, mas, na pri-meira, a palavra serviço corresponde à profissão exercida pelo sócio”41.

Outra característica é que as sociedades simples podem se utilizar de diferentes formas societárias, exceto das sociedades por ações. Nesses casos, mantêm-se as características e a condição de sociedade simples, mas subordinadas às normas do tipo societário adotado (art. 983 do CC)42.

Nos casos em que a sociedade simples deixar de adotar outras formas societárias, permitidas pela lei, seguirá, então, as regras do tipo societário – sociedade simples e subordinar-se-á às normas que lhe são próprias.

Em suma, segundo Arnoldo Wald, existem dois regimes:

O da sociedade simples pura, ou seja, aquela que se formaliza adotando, na sua integralidade, as normas instituídas nos arts. 997 a 1.038 do Código Civil, e o das sociedades simples que adotaram um regime de sociedade em-presária, mantendo, todavia, a sua natureza de sociedade simples.43

3.2 sociEdadE simplEs: rEsponsabilidadE dos sÓcios

O art. 997 do Código Civil brasileiro regula a constituição e a respon-sabilidade dos sócios da sociedade simples, ao prever que:

A sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público, que, além de cláusulas estipuladas pelas partes, mencionará:

39 OLIVEIRA, Thiago Martins de. Do elemento de empresa e sua aplicação na distinção das sociedades simples e empresárias. IOB – Repertório de Jurisprudência: Civil Processual, Penal e Comercial, São Paulo: [s.n.], n. 9, p. 277, 2005.

40 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 29. ed. rev. e atual. por Rubens Edmundo Requião. São Paulo: Saraiva, v. I, 2010. p. 472. Em sentido contrário: REALE, Miguel. A sociedade simples e a empresária no Código Civil. Disponível em: <http://www.miguelreale.com.br/artigos/socse.htm> Acesso em: 25 set. 2012.

41 REALE, Miguel. A sociedade simples e a empresária no Código Civil. Disponível em: <http://www.miguelreale.com.br/artigos/socse.htm>. Acesso em: 25 set. 2012.

42 WALD, Arnoldo. Comentários ao novo Código Civil. Livro II – Do direito de empresa. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, v. XIV, 2005. p. 81-82.

43 WALD, Arnoldo. Comentários ao novo Código Civil. Livro II – Do direito de empresa. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, v. XIV, 2005. p. 83.

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RDE Nº 32 – Maio-Jun/2013 – PARTE GERAL – DOUTRINA ............................................................................................................... 169

I – nome, nacionalidade, estado civil, profissão e residência dos sócios, se pessoas naturais, e a firma ou a denominação, nacionalidade e sede dos sócios, se jurídicas;

II – denominação, objeto, sede e prazo da sociedade;

III – capital da sociedade, expresso em moeda corrente, podendo compreen-der qualquer espécie de bens, suscetíveis de avaliação pecuniária;

IV – a quota de cada sócio no capital e o modo de realizá-la;

V – prestação do sócio cuja contribuição consista em serviço;

VI – pessoas naturais incumbidas da administração da sociedade seus pode-res e atribuições;

VII – participação de cada sócio nos lucros e nas perdas;

VIII – se os sócios respondem ou não, subsidiariamente, pelas obrigações sociais.

Com relação a terceiros, dispõe o referido Diploma:

Art. 1.023. Se os bens da sociedade não lhe cobrirem as dívidas, respondem os sócios pelo saldo, na proporção em que participem das perdas sociais, salvo cláusula de responsabilidade solidária.44

Nas sociedades simples, se os bens sociais não forem capazes de su-prir as dívidas contraídas, os sócios responderão subsidiariamente e na pro-porção da participação individual que tiverem nas perdas sociais. Todavia, a lei permite aos sócios que estipulem por cláusula contratual a responsabi-lidade solidária.

Apesar de a disposição legislativa, nos arts. 997, VIII, e 1.023 do CC, apresentar duas formas distintas de responsabilidade para regular o mesmo tipo social, a sociedade simples entende-se que, quanto à responsabilidade dos sócios, a regra geral é que esta seja subsidiária45, sendo a solidariedade a exceção.

Registre-se que o Enunciado nº 61 do Conselho da Justiça Federal, na Jornada de Direito Civil, estabeleceu que “o termo subsidiariamente, cons-tante do inciso VIII do art. 997 do Código Civil, deverá ser substituído por

44 Como bem salienta Ingrid Martinelli, o conflito das normas transcritas pelos arts. 997 e 1.023 é cristalino, vez que, “[...] enquanto o art. 977 prevê a faculdade de responsabilidade subsidiária, o art. 1023 prevê a obrigatoriedade (a não ser que haja cláusula de solidariedade)” (MARTINELLI, Ingrid Santos. Sociedades simples do novo Código Civil – Aspectos polêmicos. IOB – Repertório de Jurisprudência: Civil Processual, Penal e Comercial, São Paulo: [s.n.], n. 21, p. 578, 2002).

45 No mesmo sentido: MARTINS, Fran. Curso de direito comercial. 33. ed. rev., atual. e ampl. conforme a Lei nº 10.406, de 10.01.2002, e a Lei nº 11.101/2005 (falência) por Carlos Henrique Abrão. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 252; TOMAZETTE, Marlon. As sociedades simples do novo Código Civil. Revista doTribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 800, p. 41, 2002.

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solidariamente a fim de compatibilizar esse dispositivo com o art. 1.023 do mesmo Código”46.

Tomando em consideração o referido enunciado e a pretensão do legislador civilista, é possível concluir que a cláusula exceptiva, responsa-bilidade solidária, mencionada no art. 1.023 do CC, corresponde à disposi-ção prevista pelo art. 977, VIII, que determina aos sócios, no momento da constituição da sociedade simples, dispor no contrato social, a extensão de suas responsabilidades.

A subsidiariedade trazida pelo vigente Código Civil às sociedades simples determina que a responsabilidade dos sócios seja ilimitada, ou seja, a responsabilidade subsidiária prevista no Diploma civilista não per-mite que o contrato estabeleça a responsabilidade limitada dos sócios pelas obrigações sociais47. Nos casos em que os bens sociais não possam cobrir as dívidas da sociedade, os sócios responderão pelo saldo das dívidas da sociedade. Isto é, o patrimônio pessoal do sócio responderá pelas dívidas da sociedade simples nas hipóteses de insuficiência do patrimônio social na proporção em que participem dos prejuízos sociais48.

Como bem salienta José Virgílio Neto:

Os sócios, nas sociedades de pessoas no novo Código Civil, por serem auto-rizados a tratá-las como coisa sua, responderão no mínimo subsidiariamente pelas obrigações da sociedade. Assim, a contrapartida legislativa para a per-missão dada aos sócios para gerirem a sociedade de acordo com seus interes-ses pessoais é a sua responsabilidade pessoal pelas obrigações assumidas.49

Em contrapartida, estipulada cláusula, via contrato social, de respon-sabilidade solidária, os percentuais de participação dos sócios nos lucros e nas perdas do empreendimento não serão considerados. Neste caso, o credor poderá responsabilizar um dos sócios, pelo total da obrigação, desde que exaurido o patrimônio da sociedade, sem que contra ele possa ser invo-cada a equidade em relação aos ganhos e às perdas fixadas no instrumento contratual50.

46 Conselho da Justiça Federal. Disponível em: <http://www.jf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-v-jornada-de-direito-civil/compilacaoenunciadosaprovados1-3-4jornadadircivilnum.pdf>. Acesso em: 27 set. 2012.

47 CALÇAS, Manoel de Queiroz Pereira. A sociedade simples no Código Civil. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos: Divisão Jurídica, Bauru: Edite, n. 41, p. 174, 2004.

48 TOMAZETTE, Marlon. As sociedades simples do novo Código Civil. Revista doTribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 800, p. 41, 2002.

49 VITA NETO, José Virgílio. A sociedade limitada no novo Código Civil. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo: Malheiros, n. 130, p. 211, abr./jun. 2003.

50 RIBEIRO, Maria Carla Pereira. O que podemos esperar das sociedades simples. Revista de Direito Empresarial, Curitiba: Juruá, n. 1, p. 15, jan/jun. 2004.

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Por fim, o contrato constitutivo deve ser levado a registro, nos trinta dias subsequentes à sua constituição, no registro civil das pessoas jurídicas (art. 998 do CC).

4 ARTIGO 977 DO CÓDIGO CIVIL E SOCIEDADE SIMPLES

Conforme dispõe o art. 977 do Código Civil: “Faculta-se aos cônju-ges contratar sociedade, entre si ou com terceiros, desde que não tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória”.

A vedação trazida pelo referido artigo culminou em discussões dou-trinárias de todas as espécies. Discute-se sobre a inconstitucionalidade do dispositivo51, sobre a sua função ou falta dela, sobre a aplicação no direito empresarial, no direito de família, enfim, existe um vasto leque de questões que circundam a referida proibição.

Contudo, o objetivo do presente estudo é o de examinar as questões pertinentes à decisão proferida pelo Superior Tribunal Justiça em recurso especial em que o egrégio Tribunal analisou e julgou a aplicabilidade do referido artigo às sociedades simples.

Trata-se de recurso especial, interposto por um homem e uma mu-lher, casados pelo regime da comunhão universal de bens, e que preten-diam constituir sociedade simples, alegando, para tanto, a inaplicabilidade do art. 977 do Código Civil a este tipo societário, em face da localização do mencionado dispositivo legal no texto do Código Civil de 2002.

4.1 sociEdadE EntrE cônjugEs

Até o advento da Lei nº 4.161/1962 (Estatuto da Mulher Casada), a mulher, solteira ou casada, era considerada incapaz, pois, se solteira, estava subordinada ao pai, e, se casada, passava para a tutela do marido. Contudo, os efeitos jurídicos da emancipação da mulher casada continuaram objeto de discussões entre os comercialistas, sobretudo quanto à sua participação como sócia do marido em sociedade comercial52.

51 Quanto à inconstitucionalidade do art. 977 do Código Civil de 2002, veja-se: OLIVEIRA FILHO, João Glicério de; LOPES NETO, Abelardo Sampaio. A inconstitucionalidade da vedação à formação de sociedade marital pelo Código Civil brasileiro. Revista de Direito Empresarial, Curitiba: Juruá, n. 12, p. 169 e ss., jul./dez. 2009; LOUREIRO, Luiz Guilherme. A atividade empresarial do cônjuge no novo Código Civil. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueirêdo (Coord.). Questões controvertidas no novo Código Civil. São Paulo: Método, v. II, 2004. p. 245.

52 MALHEIROS, Haroldo; VERÇOSA, Duclerc. Curso de direito comercial. Teoria geral das sociedades – As sociedades em espécie do Código Civil. 2. ed. rev. e atual. São Paulo, v. II, 2010. p. 451.

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Argumentava-se que a sociedade entre os cônjuges possibilitava a re-alização da fraude no regime de bens, isto é, na comunhão universal bens, por exemplo, devido às características do próprio regime, a sociedade entre os consortes seria infrutuosa. E, além disso, o marido, diante dos credores, poderia ocultar a sua responsabilidade, fraudulentamente, por meio de uma sociedade ilusória com objetivo único de desfrutar de uma responsabilidade que não existia53-54.

A doutrina e a jurisprudência avançaram, e com a promulgação do Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121/1962) agregado à consolidação da Constituição Federal de 1988, igualou-se a condição da mulher à do homem e assim, até a entrada em vigor do atual Código Civil de 2002, a sociedade entre cônjuges era admitida no direito pátrio.

4.2 a aplicação do artigo 977 do cÓdigo civil às sociEdadEs simplEs nas hipÓtEsEs dE comunhão univErsal dE bEns

É lícita a sociedade entre marido e mulher, desde que não sejam ca-sados sob o regime de comunhão universal de bens ou sob o da separação obrigatória, objetivando o exercício de uma atividade econômica55.

A legislação civil permite aos cônjuges casados no regime da comu-nhão parcial, na separação total convencional, e na participação final nos aquestos, em que marido e mulher participam individualmente na formação do patrimônio social, constituir sociedade, cujos efeitos restritivos, no en-tanto, quando tratam de vedar direitos, não podem ser simplesmente esten-didos por analogia aos conviventes de uma união estável56.

53 MALHEIROS, Haroldo; VERÇOSA, Duclerc. Curso de direito comercial. Teoria geral das sociedades – As sociedades em espécie do Código Civil. 2. ed. rev. e atual. São Paulo, v. II, 2010. p. 451.

54 “No tocante ao regime de comunhão universal de bens, a sociedade entre esposos seria pleonástica, porque, pelo casamento, marido e mulher já constituíram uma sociedade muito mais ampla, indissolúvel e irrevogável. Parece, destarte, absurdo falar-se em sociedade comercial entre marido e mulher, já vinculados, de modo muito mais acentuado e mais genérico, pela comunhão universal.” (FARIA, Anacleto de Oliveira. Sociedade comercial entre cônjuges. Revista de Direito Privado, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 8, p. 231, out./dez. 2000)

55 Segundo Claudio Calo, “[...], ao invés de o legislador ter vetado a sociedade entre cônjuges quando o regime for o da comunhão universal de bens ou da separação obrigatória, poderia, seguindo outros ordenamento jurídicos, acolher a figura do empresário individual com responsabilidade limitada, que afetaria parte do seu patrimônio para o exercício da empresa, acabando com a situação hipócrita que ocorre em várias sociedades denominadas fictícias, em que formalmente são formadas por, no mínimo, dois sócios, porém, substancialmente são unipessoais, levando-se em consideração que um dos sócios acaba possuindo uma participação irrisória” (SOUSA, Claudio Calo. As sociedades limitadas entre cônjuges e novo Código Civil. Revista da Emerj: Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: [s. n.], v. 7, n. 27, p. 138, 2004).

56 WALD, Arnoldo. Comentários ao novo Código Civil. Livro II – Do direito de empresa. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, v. XIV, 2005. p. 66. No mesmo sentido: NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 7. ed. rev., ampl. e atual. até 25.08.2009. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 846; GONÇALVES, Oksandro; FLEURY, Bráulio Cesco. A sociedade

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Questão controversa é a que trata da separação dos patrimônios, ou seja, o patrimônio familiar em contraponto ao patrimônio da sociedade e conforme já exposto, o regime de comunhão universal de bens caracteriza--se pela sua unidade, por representar uma única massa, e, neste sentido, evidente que esse tipo de regime, em que, via de regra, todos os bens se comunicam, é fácil causar confusão entre os patrimônios do casal e da so-ciedade57. Nesse emaranhado patrimonial, quando, entre marido e mulher, “tudo é de todos”, torna-se custoso distinguir e separar o patrimônio conju-gal do societário.

Da mesma forma, nas hipóteses de constituição de sociedade simples entre os consortes, casados pelo regime da comunhão universal de bens, as quotas sociais pertencentes a cada um dos cônjuges não estão separa-das no campo da sociedade conjugal, assim como os demais bens, salvo como disposto no art. 1.668, quando pertencentes a ambos58. Misturam-se em meio a uma imensa confusão quotas sociais e bens matrimoniais como se pertencessem a um só bloco.

Demonstrado o emaranhado de bens, “sociais e conjugais”, entre os consortes, regidos pela comunhão universal, a vedação do art. 977 do CC justifica-se, ainda, quando pretende a preservação do patrimônio do casal. Assim, não havendo prosperidade do empreendimento, os cônjuges não serão levados, repentinamente, à bancarrota pelas dívidas sociais. Isso por-que, regra geral, nas hipóteses de sociedade simples, a responsabilidade dos sócios é subsidiária e ilimitada, não sendo desconhecida a via fácil da frau-de em concreto quando adotado regime de comunhão entre os consortes59.

Para Claudio Calo, em contrapartida, olhando sob outro prisma, afir-ma ser comum

[...] um cônjuge, ao invés de exercer a empresa individualmente, procurando sair da responsabilidade ilimitada, que é característica do empresário indi-vidual, procurar o outro cônjuge, conferindo-lhe uma pequena participação societária, a fim de constituir uma sociedade, mas não necessariamente para burlar o regime matrimonial de bens, mas sim para viabilizar o exercício

entre cônjuges e o novo Código Civil. Revista de Direito Empresarial, Curitiba: Juruá, n. 2, p. 159, jul./dez. 2004.

57 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 7. ed. rev., ampl. e atual. até 25.08.2009. São Paulo: Revista do Tribunais, 2009. p. 846.

58 DE LUCCA, Newton. Arts. 996 a 1.195. Código Civil comentado. 7. ed. rev. e atual. Coord. até a 5. ed. por Ricardo Fiuza; coord. a partir da 6. ed. por Regina Beatriz Tavares Silva. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 875.

59 OLIVEIRA FILHO, João Glicério de; LOPES NETO, Abelardo Sampaio. A inconstitucionalidade da vedação à formação de sociedade marital pelo Código Civil brasileiro. Revista de Direito Empresarial, Curitiba: Juruá, n. 12, p. 166, jul./dez. 2009.

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da empresa pela pessoa jurídica a assegurar a proteção ao seu patrimônio particular.60

Anota a legislação vigente diferentes meios de proteção ao patrimô-nio do cônjuge empresário individual, que limitam a sua responsabilidade na atividade comercial e, consequentemente, asseguram o seu patrimônio particular. Para tanto, melhor solução sempre se apresenta pela adoção de tipo societário no qual a lei já prevê a responsabilidade limitada, como no caso das sociedades limitadas.

4.3 a aplicação do artigo 977 do cÓdigo civil E a rEsponsabilidadE dos sÓcios nas sociEdadEs simplEs

Ultrapassadas as questões quanto à confusão patrimonial, na cons-tituição de sociedade simples, nos casos de comunhão universal de bens, cumpre proceder à análise da aplicabilidade do art. 977 do Código Civil, fundada na responsabilidade dos sócios perante associedades simples, pois nestas, consoante o exposto, a responsabilidade dos sócios será sempre sub-sidiária e ilimitada, salvo se, no contrato social, os sócios estipularem cláu-sula de solidariedade.

Neste sentido, quanto à aplicação do art. 977 do Código Civil, co-erente o legislador ao determinar que, tanto nas sociedades empresárias, quanto nas sociedades simples, esta última, regida pela subsidiariedade e pela falta de limitação da responsabilidade de seus sócios, restou assegura-da a proteção patrimonial do casal.

Sustentam doutos que, nas sociedades limitadas, a responsabilida-de é determinada no instante da integralização do capital social, e, assim, quando alguém contrata com a sociedade, já conhece o seu credor a exata extensão da responsabilidade de seus sócios61-62.

Quer isto dizer que, nas sociedades de responsabilidade limitada, o credor terá a perfeita noção da extensão da responsabilidade dos seus só-cios, porém não no caso das sociedades simples – e é por essa razão que

60 SOUSA, Claudio Calo. As sociedades limitadas entre cônjuges e novo Código Civil. Revista da Emerj: Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: [s. n.], n. 27, v. 7, p. 138, 2004.

61 GONÇALVES, Oksandro; FLEURY, Bráulio Cesco. A sociedade entre cônjuges e o novo Código Civil. Revista de Direito Empresarial, Curitiba: Juruá, n. 2, p. 61, jul./dez. 2004. No mesmo sentido: PERES, Fábio Henrique. Sociedade entre cônjuges e o regime do Código Civil. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro: Padma, v. 33, p. 91, jan./mar. 2008.

62 “Na prática, dificilmente se fará opção pela sociedade simples; normalmente será utilizada a forma de uma sociedade limitada, dada a sua simplicidade de constituição e funcionamento, aliada à limitação da responsabilidade dos sócios.” (TOMAZETTE, Marlon. As sociedades simples do novo Código Civil. Revista dos Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 800, p. 36, 2002)

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acertou o legislador em prever a vedação disposta no art. 977 do Código Civil de 2002.

Consoante a responsabilidade subsidiária e a falta de limitação, ca-racterísticas da sociedade simples, inviável determinar balizas à responsa-bilidade dos sócios, visto que esse tipo societário não limita exatamente a responsabilidade dos sócios envolvidos.

Deste modo, uma vez que à sociedade simples é facultada a pos-sibilidade de adoção de outras formas societárias, inclusive a empresária (art. 983 c/c o art. 1.150), pelo qual a responsabilidade dos sócios poderá ser limitada à participação no capital social63, a solução seria que os inte-ressados na limitação da sua responsabilidade escolhessem a roupagem de um dos tipos possíveis, permitidos às sociedades simples, sem que com isto percam sua natureza de sociedade simples64.

4.4 a aplicação do artigo 977 do cÓdigo civil E a sua localização no tExto lEgal

Não há como deixar de comentar, ainda, acerca do argumento levan-tado quando da crítica à aplicação da regra prevista no art. 977 do Código Civil à sociedade simples, em virtude de sua localização no texto legal.

O dispositivo legal em tela encontra-se inserido no Livro II (Do direito de empresa), do Título I (Do empresário), Capítulo II (Da capacidade) do Código Civil de 2002.

A questão a ser levantada é a de que as limitações previstas no refe-rido artigo não se aplicam às sociedades simples, mas apenas às socieda-des empresárias, devido à localização do mencionado dispositivo no Có-digo Civil. E sobre o tema existem duas correntes doutrinárias tratando do assunto.

A primeira defende a não aplicação da regra prevista no art. 977 do Código Civil às sociedades simples, pelo fato de o dispositivo mencionado estar inserido na disciplina da sociedade empresária – Livro II, Título I (Do empresário), Capítulo II (Da capacidade) – não alcançando, portanto, a so-ciedade simples que não tenha forma de empresarial65.

63 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 29. ed. rev. e atual. por Rubens Edmundo Requião. São Paulo: Saraiva, v. I, 2010. p. 472.

64 MOURÃO, Gustavo César de Souza. Algumas reflexões sobre a sociedade simples e a limitação da responsabilidade de seus sócios. Revista de Direito Empresarial, Curitiba: Juruá, n. 4, p. 123, jul./dez. 2005.

65 WALD, Arnoldo. Comentários ao novo Código Civil. Livro II – Do direito de empresa. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, v. XIV, 2005. p. 66.

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Contudo, o entendimento majoritário é o da aplicação do dispositivo mencionado às sociedades simples, uma vez que se trata de disposição ge-nérica, referente às sociedades em geral66.

Assim, decidiu o egrégio Tribunal de Justiça em Recurso Especial nº 1.058.165/RS, por meio do entendimento da eminente Relatora Ministra Nancy Andrighi, que não existem nas características conceituais das so-ciedades simples e das sociedades empresárias particularidade alguma que fundamente a não aplicação da vedação prevista no art. 977 do CC às pri-meiras. Fundamenta que o que difere as sociedades simples das sociedades empresárias é o fato de que as últimas possuem como objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro, conforme dispõe o art. 982 do Código Civil de 2002.

Complementa, no que concerne à forma de participação dos sócios nas sociedades, com o disposto no art. 983 do Código Civil. Neste sentido, a sociedade empresária deve constituir-se conforme um dos tipos regula-dos nos arts. 1.039 a 1.092 (sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples, sociedade limitada, sociedade anônima, sociedade em comandita por ações), sendo facultado às sociedades simples que não de-sejarem subordinar-se às normas que lhe são próprias, constituírem-se de conformidade com qualquer um daqueles tipos, exceto os previstos para as sociedades por ações.

Por fim, conclui que a expressão “sociedade”, utilizada pelo legisla-dor no art. 977 do Código Civil, impossibilita o entendimento de tratar-se apenas de sociedade empresária, devido à ausência de especificação.

Do exposto, para a aplicação ou não do art. 977 do Código Civil, deve ser levado em consideração a efetiva intenção do legislador.

Ao que parece, pretendeu o legislador civilista proteger o patrimônio conjugal dos consortes casados no regime de comunhão universal ou no da separação obrigatória de bens, nos casos de constituição de sociedade entre si ou com terceiros. Neste sentido, consoante as características das socie-dades simples, em especial, as regras referentes à responsabilidade de seus

66 DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 9. ed. rev. e atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10.01.2002). São Paulo: Saraiva, 2003. p. 620. No mesmo sentido: DE LUCCA, Newton. Arts. 996 a 1.195. Código Civil comentado. 7. ed. rev. e atual. Coord. até a 5. ed. por Ricardo Fiuza; coord. a partir da 6. ed. por Regina Beatriz Tavares Silva. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 875; PERES, Fábio Henrique. Sociedade entre cônjuges e o regime do Código Civil. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro: Padma, v. 33, p. 100, jan./mar. 2008; GALIZZI, Gustavo Oliva. Sociedade limitada entre cônjuges. IOB – Repertório de Jurisprudência: Civil Processual, Penal e Comercial, São Paulo: [s.n.], n. 10, p. 309, 2004; OLIVEIRA FILHO, João Glicério de; LOPES NETO, Abelardo Sampaio. A inconstitucionalidade da vedação à formação de sociedade marital pelo Código Civil brasileiro. Revista de Direito Empresarial, Curitiba: Juruá, n. 12, p. 159, jul./dez. 2009.

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sócios, combinadas as peculiaridades dos regimes de bens mencionados, mostra-se imprescindível a aplicação da vedação trazida pelo referido artigo para que seja atingido o fim almejado pelo legislador.

CONCLUSÃO

A aplicação da proibição disposta no art. 977 do Código Civil incitou polêmicas de cunho patrimonial, societário e até mesmo quanto a sua loca-lização no Código Civil de 2002.

Diante da inquietação a respeito do referido dispositivo pode ser di-mensionado após uma análise das principais abordagens quanto ao tema, ser necessária a aplicação da regra insculpida no art. 977 do Código Civil, em todas as hipóteses nas quais os cônjuges são casados pelo regime da separação obrigatória de bens, ou no da comunhão universal e decidem constituir sociedade simples.

Justifica-se o artigo com base nas características deste tipo societário, em especial à responsabilidade dos sócios, combinadas às peculiaridades oriundas dos regimes mencionados.

Assim, necessário respeitar a vontade do legislador que pretendeu as-segurar o patrimônio do casal, em uma sociedade (conjugal), onde os bens correspondem a uma mesma massa (comunhão universal de bens), na cons-tituição de sociedade simples, sendo esta de responsabilidade subsidiária e não limitada, tendo os credores como garantia não apenas o capital social, mas, por vezes, os bens pessoais dos consortes.

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