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1 ANÁLISE COMPARATIVA DE MODELOS DE ENSINO DA LEITURA PARA A ALFABETIZAÇÃO: O PROFA (2001-2002) E O LIVRO DE LILI (1930) Cleonara Maria Schwartz 1 Fernanda Zanetti Becalli 2 Palavras-chave: Prática educativa escolar dos professores alfabetizadores. Ensino da leitura. Texto como unidade de ensino na alfabetização. Considerações Iniciais O estudo apresentado teve como preocupação central realizar uma análise comparativa entre dois modelos de ensino da leitura que circularam no Brasil em períodos distintos, a fim de refletir sobre aspectos que têm contribuído para assegurar permanências no trabalho com o texto e no ensino da leitura na alfabetização de crianças. Tendo em vista esse objetivo, analisamos o modelo de ensino da leitura proposto pelo Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (PROFA), implementado pela Secretaria de Educação Fundamental (SEF) do Ministério da Educação (MEC) em 20 Estados brasileiros e no Distrito Federal, no período de 2001 a 2002, em comparação com o modelo de ensino da leitura difundido pela cartilha de Anita Fonseca, intitulada O Livro de Lili, divulgada no Brasil a partir da década de 1930. Vale destacar que, independente dos períodos em que circularam, tanto os materiais do PROFA como a cartilha em questão tiveram como objetivo principal a divulgação de metodologia de ensino que contribuísse para a melhoria do desempenho em leitura e escrita em fase inicial de escolarização de crianças. A análise empreendida comparou concepções de linguagem, de texto e de leitura que fundamentam as duas propostas de ensino de leitura. Para a análise das referidas concepções nos orientamos, teoricamente, nas reflexões de Bakhtin (2004) acerca da linguagem e, metodologicamente, seguimos os delineamentos da pesquisa documental, pautada numa perspectiva dialógica do discurso, tendo em vista o diálogo que tecemos com um conjunto de documentos que compõem o kit de materiais escritos do PROFA e a própria cartilha O Livro de Lili em sua materialidade. Tais documentos foram compreendidos como textos, isto é, unidades de significação, portanto, produtos de criação ideológica, devendo ser entendidos em relação com o contexto histórico, cultural, social, político, econômico, etc. em que foram produzidos. É necessário ressaltar que, ao buscarmos contribuições decorrentes de pesquisas que investigaram comparativamente o trabalho com textos proposto pelo PROFA e pelo O Livro de Lili, observamos que há uma ausência de estudos dessa natureza. Dessa forma, consideramos de fundamental importância realizar essa análise comparativa por acreditarmos que ela possibilita localizar permanências de concepções e de princípios que são responsáveis pela continuidade de práticas de ensino da leitura como decodificação e/ou de prática de 1 Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo, professora adjunta do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo e vice-coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alfabetização, Leitura e Escrita do Espírito Santo (NEPALES - UFES/CE/PPGE). <[email protected] > 2 Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo, membro integrante e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alfabetização, Leitura e Escrita do Espírito Santo (NEPALES - UFES/CE/PPGE), professora das séries iniciais do Ensino Fundamental do Sistema Municipal de Ensino de Vitória (ES). <[email protected] >

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1

ANÁLISE COMPARATIVA DE MODELOS DE ENSINO DA LEITURA PARA A

ALFABETIZAÇÃO: O PROFA (2001-2002) E O LIVRO DE LILI (1930)

Cleonara Maria Schwartz 1

Fernanda Zanetti Becalli 2

Palavras-chave: Prática educativa escolar dos professores alfabetizadores. Ensino da leitura.

Texto como unidade de ensino na alfabetização.

Considerações Iniciais

O estudo apresentado teve como preocupação central realizar uma análise comparativa entre

dois modelos de ensino da leitura que circularam no Brasil em períodos distintos, a fim de

refletir sobre aspectos que têm contribuído para assegurar permanências no trabalho com o

texto e no ensino da leitura na alfabetização de crianças.

Tendo em vista esse objetivo, analisamos o modelo de ensino da leitura proposto pelo

Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (PROFA), implementado pela

Secretaria de Educação Fundamental (SEF) do Ministério da Educação (MEC) em 20 Estados

brasileiros e no Distrito Federal, no período de 2001 a 2002, em comparação com o modelo

de ensino da leitura difundido pela cartilha de Anita Fonseca, intitulada O Livro de Lili,

divulgada no Brasil a partir da década de 1930. Vale destacar que, independente dos períodos

em que circularam, tanto os materiais do PROFA como a cartilha em questão tiveram como

objetivo principal a divulgação de metodologia de ensino que contribuísse para a melhoria do

desempenho em leitura e escrita em fase inicial de escolarização de crianças.

A análise empreendida comparou concepções de linguagem, de texto e de leitura que

fundamentam as duas propostas de ensino de leitura. Para a análise das referidas concepções

nos orientamos, teoricamente, nas reflexões de Bakhtin (2004) acerca da linguagem e,

metodologicamente, seguimos os delineamentos da pesquisa documental, pautada numa

perspectiva dialógica do discurso, tendo em vista o diálogo que tecemos com um conjunto de

documentos que compõem o kit de materiais escritos do PROFA e a própria cartilha O Livro

de Lili em sua materialidade. Tais documentos foram compreendidos como textos, isto é,

unidades de significação, portanto, produtos de criação ideológica, devendo ser entendidos em

relação com o contexto histórico, cultural, social, político, econômico, etc. em que foram

produzidos.

É necessário ressaltar que, ao buscarmos contribuições decorrentes de pesquisas que

investigaram comparativamente o trabalho com textos proposto pelo PROFA e pelo O Livro

de Lili, observamos que há uma ausência de estudos dessa natureza. Dessa forma,

consideramos de fundamental importância realizar essa análise comparativa por acreditarmos

que ela possibilita localizar permanências de concepções e de princípios que são responsáveis

pela continuidade de práticas de ensino da leitura como decodificação e/ou de prática de

1 Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo, professora adjunta do Centro de Educação da

Universidade Federal do Espírito Santo e vice-coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em

Alfabetização, Leitura e Escrita do Espírito Santo (NEPALES - UFES/CE/PPGE). <[email protected]> 2 Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo, membro integrante e pesquisadora do

Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alfabetização, Leitura e Escrita do Espírito Santo (NEPALES -

UFES/CE/PPGE), professora das séries iniciais do Ensino Fundamental do Sistema Municipal de Ensino de

Vitória (ES). <[email protected]>

2

leitura como pretexto para o estudo de aspectos gramaticais e ortográficos da língua. Em face

dessas considerações, o diálogo estabelecido com o conjunto de materiais analisados buscou

responder às seguintes questões:

a) Qual prática de ensino da leitura o PROFA e O Livro de Lili legitimaram?

b) Quais concepções de linguagem, de texto e de leitura sustentaram essa prática?

c) Essas concepções contribuem para promover práticas de ensino da leitura

consideradas pela produção de conhecimento como favorecedoras da formação do leitor

crítico?

Nesse sentido, vale esclarecer que concebemos o leitor crítico como aquele que realiza um

trabalho de compreensão ideológica ativa, opondo “[...] à palavra do locutor uma

contrapalavra” (BAKHTIN, 2004, p. 132, grifo do autor), o que significa dizer que ler

criticamente é entrelaçar as palavras do autor às suas vivências, às suas opiniões, aos seus

conhecimentos sobre o assunto, mobilizando o que domina sobre a linguagem, como o

sistema de escrita, características dos gêneros, variedade de suportes, contexto, autor, época e,

assim, recriar sentidos implícitos, construir inferências, estabelecer relações e produzir

sentidos num processo de produção dialógica.

Foi nesse sentido que, responder a esses questionamentos, nos favoreceu não só para que

conhecêssemos, de forma aprofundada, o PROFA, mas também para que tomássemos

consciência de como determinados princípios teóricos e metodológicos, propagados nas

“antigas” cartilhas de alfabetização, que desconsideram a formação da consciência crítica nas

crianças, se perpetuam de diferentes formas (materiais didáticos e materiais utilizados em

políticas de formação de professores) e, assim, acabam por perpetuar e legitimar perfis de

leitores como decodificadores de mensagens ou como captadores dos sentidos que estão

aprisionados apenas na materialidade linguística do texto.

O trabalho com textos no Programa de Formação de Professores Alfabetizadores

(PROFA)

Comecemos por esclarecer que, diante do desafio colocado pelos resultados das avaliações do

Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e do Programa Internacional de

Avaliação de Alunos (PISA), que evidenciam o baixo nível acadêmico em leitura e escrita dos

estudantes brasileiros, uma das estratégias adotadas pelo Ministério da Educação (MEC) na

elaboração das políticas educacionais voltadas para a melhoria da qualidade do ensino

ministrado nas escolas públicas de Educação Básica do País tem sido o investimento em

programas de formação continuada dos profissionais do magistério que atuam nesse nível de

ensino.

Esses investimentos em processos formativos no exercício da profissão docente estão

vinculados às prescrições de organismos internacionais, como a Organização das Nações

Unidas Para a Educação (UNESCO), o Fundo das Nações Unidas Para a Infância (UNICEF),

o Banco Mundial, dentre outros, que vinham apontando, desde a década de 1990, vinculações

entre a reestruturação produtiva capitalista e as reformas político-educacionais que deveriam

ser postas em prática por diversos países, dentre eles o Brasil. Assim, os programas de

formação continuada de professores assumem um papel central na implementação das

políticas educacionais que se encontram atreladas ao universo ideológico pós-moderno e

reguladas pelo projeto político e econômico neoliberal.

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É nesse cenário que a SEF/MEC implementou, nos anos de 2001 a 2002, um “novo”

programa de formação continuada para os professores que trabalhavam especificamente em

classes de alfabetização – o PROFA – pautado teoricamente no construtivismo e

metodologicamente no modelo da resolução de situações-problemas, com a finalidade de

instrumentalizar os professores alfabetizadores para promover melhorias nas práticas

escolares correlacionadas com o ensino da linguagem escrita e, em parceria com as

Secretarias Estaduais e Municipais de Educação e instituições formadoras, implementou-o no

Distrito Federal e em 20 Estados brasileiros.

Após assinar o Termo de Cooperação Técnica, as instituições parceiras receberam da

SEF/MEC o kit de materiais escritos e videográficos do PROFA composto por 30 Programas

de Vídeo, três Guias do Formador, três Coletâneas de Textos, um Documento de

Apresentação, um Guia de Orientações Metodológicas Gerais, um Catálogo de Resenhas e

um Fichário. Para analisar os discursos sobre o trabalho com textos concretizado nos

documentos do PROFA, selecionamos, dentre os materiais escritos do programa, o

Documento de Apresentação, o Guia do Formador (Módulos 1, 2 e 3), a Coletânea de Textos

(Módulos 1, 2 e 3) e o Programa de Vídeo n. 8, por encontrarmos, nesses materiais, aspectos

que estavam diretamente relacionados com o objeto de estudo deste trabalho.

A análise dialógica dos discursos, materializados nos documentos selecionados, sobre o

trabalho com textos na alfabetização difundido pelo PROFA, permite-nos confirmar que a

proposta do programa buscou superar o modelo de textos apregoado pela abordagem

associacionista de aprendizagem materializado nas “antigas” cartilhas como um agregado

aleatório de frases que não possui nenhuma conexão lógica, semântica ou discursiva

necessária, que não vincula o texto à sua função comunicativa, a situação, aos objetivos, aos

destinatários, ao uso dos elementos lingüísticos e outros elementos da situação de

comunicação que o texto é produzido e, por sua vez, se apóia “[...] na capacidade do sujeito

de associar estímulos e respostas, repetir, memorizar e fixar na memória” (BRASIL/PROFA,

2001, p. 215), tal como ilustra o texto a seguir:

Figura 1 – Texto produzido pelos alunos e grafado

pela professora – “O sapo”.

Fonte: BRASIL/PROFA, M1U2T5, 2001a, p. 2.

Conforme vemos nesse exemplo, encontramos na primeira linha do texto o principal elemento

de referência envolvido no processo de coesão textual: “o sapo”, que foi retomado, por

repetição, em cinco das seis linhas do “texto”. Apenas na quinta linha um mecanismo de

coesão é introduzido: a substituição do substantivo pelo pronome “ele”. No entanto, além de

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pouco explorar os mecanismos de coesão, fazendo uso somente de coesão referencial e de não

utilizar mecanismos de coesão sequencial, a coerência fica a desejar por se tratar de uma

sequência aleatória de frases, totalmente descontextualizadas e, por isso, não constitui um

todo de sentido.

No Brasil, as tematizações do trabalho com textos começaram a ser disseminadas a partir do

início da década de 1980, como aponta Mortatti (2000), pelo professor João Wanderley

Geraldi que compreende o trabalho com textos como um processo contínuo de produção de

sentidos, visto que o texto é o “[...] lugar de entrada para [...] [o] diálogo com outros textos,

que remetem a textos passados e que farão surgir textos futuros” (GERALDI, 2004, p. 22).

Segundo Geraldi (1997), tomar o texto como ponto de partida e de chegada de todo o

processo de ensino aprendizagem na sala de aula requer o redimensionamento das concepções

que subjazem a esse processo. Desse modo, torna-se necessário entender que

a língua (no sentido sociolingüístico do termo) não está de antemão pronta,

dada como um sistema de que o sujeito se apropria para usá-la segundo suas

necessidades específicas do momento de interação, mas que o próprio

processo interlocutivo, na atividade de linguagem, a cada vez a (re)constrói;

os sujeitos se constituem como tais à medida que interagem com os outros,

sua consciência e seu conhecimento de mundo resultam como „produto‟

deste mesmo processo. Neste sentido, o sujeito é social já que a linguagem

não é o trabalho de um artesão, mas trabalho social e histórico seu e dos

outros que ela se constitui. Também não há um sujeito dado, pronto, que

entra na interação, mas um sujeito se completando e se construindo nas suas

falas;

as interações não se dão fora de um contexto social e histórico mais amplo;

na verdade, elas se tornam possíveis enquanto acontecimentos singulares, no

interior e nos limites de uma determinada formação social, sofrendo as

interferências, os controles e as seleções impostas por esta. Também não são,

em relação a estas condições, inocentes. São produtivas e históricas e como

tais, acontecendo no interior e nos limites do social, constroem por sua vez

limites novos (GERALDI, 1997, p. 6-7, grifo do autor).

Nessa perspectiva, a adoção do texto como unidade básica de ensino aprendizagem nas

classes de alfabetização implica o reconhecimento de que a leitura envolve um processo de

ensino aprendizagem que permite aos alunos reconhecerem a linguagem como produto da

interação entre sujeitos que se atualiza na enunciação dialógica, num contexto de produção

concreto, heterogêneo, contraditório e de natureza sócio-histórica ideológica.

Desse modo, a leitura se coloca como uma prática que promove a interação entre os sujeitos

que, com alguma finalidade, dialogam com outros sujeitos por meio dos textos que circulam

na sociedade. Nesse contexto, consideramos necessário clarificar que o sentido da palavra

interação, adotada por Geraldi (1997), se distancia do modo como os autores construtivistas a

interpretam – de natureza essencialmente biológica e, portanto, naturalizante das relações

entre indivíduo e sociedade. Para o autor, a linguagem é concebida como interação, porque é

“[...] vista como um lugar de interação humana: através dela o sujeito que fala pratica ações

que não conseguiria praticar a não ser falando; com ela o falante age sobre o ouvinte,

constituindo compromissos e vínculos que não preexistiam antes da fala” (GERALDI, 2006,

p. 43).

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Nesse sentido, o trabalho com a leitura exige o exercício do diálogo, ou seja, da produção de

sentidos e, para que as crianças aprendam a dialogar com os textos, a oferecer suas

contrapalavras, a assumir uma posição responsiva diante dos textos, faz-se necessário que o

processo ensino aprendizagem se efetive num contexto em que o professor alfabetizador

assuma o papel de ensinar aos alunos a se relacionar com os escritos de forma a construírem

diálogos com diferentes gêneros textuais, porque, como salienta Geraldi (2002), são as

palavras que carregamos que multiplicam as possibilidades de compreensão do que está

explícito e do que está subentendido no texto e a partir das relações dialógicas estabelecidas

entre autor-texto-leitor aquelas se constituem em novas contrapalavras num processo contínuo

de produção de sentidos.

Como se pode perceber, numa perspectiva dialógica de linguagem, o texto se constitui numa

unidade de significação em que alguém tem o que dizer para o outro, tem uma razão para

dizer o que se tem a dizer e tem para quem dizer o que se tem a dizer (GERALDI, 1997).

Assim, o texto não é um produto pronto e fechado que carrega um único significado possível

definido previamente pelo autor no momento da escritura, uma vez que seus sentidos são

produzidos no encontro do autor com o leitor por meio do texto. E as crianças se constituem

como sujeitos do discurso, sujeitos de saberes, idéias, cultura, posicionando-se, conforme suas

capacidades, oferecendo suas contrapalavras, visto que

[...] compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a

ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada

palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos

corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. Quanto

mais numerosas e substanciais forem, mais profunda e real é a nossa

compreensão [...]. A compreensão é uma forma de diálogo; ela está para a

enunciação assim como uma réplica está para a outra no diálogo.

Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra [...]

(BAKHTIN, 2004, p. 131-132).

De diferente modo e coerente com seus pressupostos teóricos, a equipe pedagógica do

PROFA afirma que o processo de compreensão depende fundamentalmente da relação entre

os olhos e o cérebro, pois os primeiros captam de diferentes maneiras a mesma quantidade de

letras dependendo da forma como elas estão apresentadas, ou seja, em um mesmo intervalo de

tempo, os olhos captam “[...] aproximadamente, 5 letras, em uma seqüência apresentada ao

acaso; cerca de 10 a 12 letras, em palavras avulsas conhecidas; cerca de 25 letras (mais ou

menos cinco palavras), quando se trata de um texto com significado” (BRASIL/PROFA,

M1U7T8, 2001a, p. 2).

Em função disso, entende-se que, quando a criança lê um texto com significado, o cérebro

consegue reter mais informações do que durante a leitura de palavras e/ou sentenças isoladas

entre si. Acreditamos que essa compreensão fundamenta-se nos estudos de Decroly e demais

estudiosos do Método Global porque esses autores defendiam que a memorização ampara-se

em aspectos visuais das palavras, assim, quanto maior a diferença visual entre as palavras de

uma frase mais fácil seria para as crianças memorizarem.

Com base nesse entendimento, o PROFA postula a idéia de que é “[...] interagindo com textos

reais, mesmo que não se saiba ler convencionalmente, que se aprende a ler diferentes tipos de

textos e sua respectiva linguagem” (BRASIL/PROFA, 2001, p. 216). Ainda que as crianças

não tenham o domínio do caráter alfabético da escrita, a interação com textos conhecidos

assegura a aprendizagem das

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[...] relações entre o que se fala e o que se escreve, que a linguagem que se

usa para escrever é diferente da linguagem falada, que os textos escritos não

são todos iguais. Que textos com diferentes funções têm características

formais e procedimentos de leitura diferentes. Por exemplo, aprenderão que

uma receita não se escreve e nem se lê como uma carta. Assim, eles

constroem gradativamente a idéia de que o escrito diz coisas e que pode ser

prazeroso e interessante conhecê-las, isto é, aprender a ler

(BRASIL/PROFA, M1U7T8, 2001a, p. 1).

Desse modo, a equipe pedagógica do programa defende que o trabalho nas classes de

alfabetização deve ter como centro organizador uma diversidade textual. Ao analisarmos as

Coletâneas de Textos (Módulos 1, 2 e 3) do PROFA, a fim de identificar quais gêneros

textuais as crianças deveriam ler, na fase inicial de aprendizagem da leitura, podemos

constatar que não são quaisquer textos, pois o PROFA estabeleceu alguns critérios que devem

ser observados pelo professor para uma escolha “adequada” dos textos a serem utilizados,

conforme pode ser constatado no enunciado que se segue:

[...] a complexidade do texto, o nível de dificuldade da atividade em relação

ao texto escolhido, a familiaridade dos alunos com o tipo de texto, a

adequação do conteúdo à faixa etária e a adequação dos textos selecionados

e da proposta de atividade às necessidades de aprendizagem dos alunos

(BRASIL/PROFA, M2UET6, 2002, p. 10).

Tomando por base esses critérios, o PROFA ainda explicita que os textos “mais adequados”

para o trabalho, nas classes de alfabetização, são aqueles que mantêm certa proximidade com

o cotidiano da criança. Tal é o caso das

[...] listas, canções, poesias, receitas, parlendas, provérbios, adivinhas,

piadas, trava-língua, regras de instrução. Geralmente são textos curtos, em

que os alunos têm possibilidades de antecipar o escrito (receitas conhecidas,

regras de instruções, listas...), ou que sabem de cor (poesias, canções,

provérbios, parlendas...). No caso dos textos poéticos, a organização em

versos, a presença de rimas e os ritmos que animam cada um deles

colaboram para que as crianças, embora não saibam ler no sentido

convencional, possam ler esses textos (BRASIL/PROFA, M1U5T4, 2001a,

p. 3).

É importante ressaltar que, apesar de pontuar que o professor alfabetizador deve trabalhar

com uma diversidade textual, a equipe pedagógica do programa estabelece um conjunto

fechado de textos que são referenciados como “mais adequados” para organizar o trabalho

com textos na fase inicial de alfabetização.

Além de apontar o uso de tais textos para o desenvolvimento das atividades, a equipe

pedagógica do PROFA propôs que o professor alfabetizador organize os agrupamentos

produtivos a fim de que as crianças confrontem suas idéias com a dos colegas, ofereçam e

recebam informações. Por outras palavras, o docente deve organizar os alunos, geralmente,

em duplas para a realização das atividades que objetivam, por exemplo, a localização de

determinadas palavras em textos conhecidos. Contudo, para que tais parcerias sejam de fato

produtivas, faz-se necessário que o professor leve em consideração

[...] os objetivos da atividade proposta, o conhecimento que os alunos

possuem e a natureza da atividade. „As interações, os agrupamentos, devem

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ser pensados tanto do ponto de vista do que se pode aprender durante a

atividade como do ponto de vista das questões que cada aluno pode „levar‟

para pensar. Um outro fator importante a considerar, além do conhecimento

que os alunos possuem, são suas características pessoais: seus traços de

personalidade, por um lado, e a disposição de realizar atividades em parceria

com um determinado colega, por outro. Às vezes, a tomar pelo nível de

conhecimento, a dupla poderia ser perfeita, mas o estilo pessoal de cada um

dos alunos indica que é melhor não juntá-los, pois o trabalho tenderia a ser

improdutivo‟ (BRASIL/PROFA, M2UET6, 2002, p. 17).

Além desses critérios, é preciso que o professor alfabetizador realize diagnósticos dos níveis

de escrita das crianças, porque os agrupamentos, segundo a equipe pedagógica do PROFA,

devem ser planejados a partir dos níveis de evolução da escrita dos alunos. Desse modo,

torna-se necessário ressaltar que o fato de uma criança apresentar, por exemplo, uma hipótese

de escrita alfabética, num determinado momento do processo ensino aprendizagem da

linguagem escrita, não pressupõe, necessariamente, que ela possa ler um texto, visto que

Ferreiro e Teberosky (1999) investigaram como as crianças, ao longo do seu desenvolvimento

cognitivo, relacionavam as dimensões oral e escrita. Para tal, realizaram entrevistas

individuais em que as crianças eram levadas a escrever e ler palavras e/ou frases, pois os

níveis de evolução da escrita não podiam ser evidenciados de outra forma.

De acordo com as orientações materializadas na Coletânea de Textos (Módulo 2), os

agrupamentos produtivos deveriam ser formados seguindo o modelo abaixo descrito:

a) as de hipótese de escrita pré-silábica com as de hipótese de escrita silábica

sem valor sonoro;

b) as de hipótese de escrita silábica sem valor sonoro com as de hipótese de

escrita pré-silábica ou com as de hipótese de escrita silábica com valor

sonoro;

c) as de hipótese de escrita silábica com valor sonoro com as de hipótese de

escrita silábica sem valor sonoro ou com as de hipótese de escrita silábico-

alfabética;

d) as de hipótese de escrita silábico-alfabética com as de hipótese de escrita

silábica com valor sonoro ou com as de hipótese de escrita alfabética;

e) as de hipótese de escrita alfabética com as de hipótese de escrita silábico-

alfabética.

Diante do modelo de agrupamentos das crianças, sugerido pelo PROFA, para subsidiar o

trabalho do professor nas classes de alfabetização, precisamos tecer algumas considerações.

Primeiro, é importante dizer que as classificações das hipóteses de escrita citadas

anteriormente se distinguem do modo apresentado por Ferreiro (1995), pois a autora aponta

que, no terceiro nível, quando se inicia o processo de fonetização da escrita, às crianças

constroem três hipóteses: silábica, silábico-alfabética e alfabética.

Segundo, é preciso deixar claro que o nível silábico, conforme Ferreiro (1995), se caracteriza

justamente pelo fato de as crianças atribuírem valores sonoros as letras. Portanto

consideramos que há um problema conceitual no termo “escrita silábica sem valor sonoro”

empregado pela supervisora do programa. Nesse contexto, também se faz necessário

esclarecer que apesar do PROFA se assentar teoricamente no construtivismo de Ferreiro e

Teberosky (1999), há uma apropriação e reelaboração realizada por Weisz.

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Terceiro, questionamos se esse modelo de agrupamento produtivo que determina os sujeitos

por suas capacidades psicolinguísticas para a execução das atividades não serviu apenas para

substituir uma classificação dos alunos que vinha sendo legitimada por uma prática

pedagógica tradicional, ao instituir o lugar dos “fortes” ou dos “alfabéticos” e dos “fracos” ou

dos “pré-silábicos”. Quarto, é necessário pontuar que a visão de interação que perpassa tais

agrupamentos se estabelece a partir de referências predefinidas pelo professor, logo, há um

enquadramento das crianças.

Na tentativa de “[...] instrumentalizar o professor para que possa organizar boas situações de

aprendizagem a partir de textos como parlendas, canções, poesias etc.” (BRASIL/PROFA,

2002a, p. 49) bem como formar os agrupamentos produtivos, a equipe pedagógica do PROFA

planejou modelos de atividades para que os professores cursistas as analisassem e, em

seguida, as vivenciassem no contexto da sala de alfabetização. Dentre essas, tomamos para

análise a leitura da parlenda “Cadê o toucinho...” que ilustra o modelo de atividade priorizada

pelo PROFA para melhorar a prática do professor no que diz respeito ao trabalho com textos

nas salas de alfabetização.

O encaminhamento dessa atividade foi planejado da seguinte maneira: em primeiro lugar, o

professor formador distribuiria o texto Alfabetização (M1U7T7) e informaria aos professores

cursistas que esse “[...] texto possibilita a compreensão dos procedimentos que permitem ler

sem saber ler e, consequentemente, aprender a ler lendo” (BRASIL/PROFA, 2001b, p. 95) e

que a leitura do texto deveria ser realizada com o objetivo de buscar resposta para a seguinte

questão: “Como é possível que os alunos não-alfabetizados realizem atividades de leitura?”

(BRASIL/PROFA, 2001, p. 95). No Guia do Formador (Módulo 1) o professor formador

encontrava a resposta do questionamento, a saber: “[...] Participando de situações didáticas

em que é preciso ler e pensar sobre como a escrita convencional funciona” (BRASIL/PROFA,

2001, p. 201).

Em segundo lugar, os professores iriam assistir ao Programa de Vídeo nº. 8 (parte 3) – Como

ler sem saber ler que tem por objetivo abordar “[...] a alfabetização como um processo de

reflexão sobre as regularidades do sistema alfabético. E apresenta uma série de atividades

para alfabetizar pela leitura de textos” (BRASIL/PROFA, 2001, p. 201). No que se refere à

atividade de leitura da parlenda “Cadê o toucinho...”, os conteúdos abordados foram: como é

possível ler um texto quando não se sabe ler convencionalmente; importância de alguns tipos

de texto no processo de alfabetização; o trabalho com textos desde o início da alfabetização; a

alfabetização inserida na metodologia de resolução de problemas; ordenação de textos

conhecidos, do repertório dos alunos; o papel da intervenção pedagógica.

Em terceiro lugar, como Trabalho Pessoal, os professores deveriam ler o texto Para ensinar a

ler (M1U7T8) que “[...] organiza os conteúdos fundamentais, para que um professor

compreenda os processos envolvidos na leitura e possa planejar boas intervenções didáticas

considerando esses conhecimentos” (BRASIL/PROFA, 2001, p. 96).

A atividade analisada, neste trabalho, tinha como objetivo a leitura pelas crianças, em fase de

alfabetização, da parlenda “Cadê o toucinho...”, como pode ser visualizado nas orientações a

seguir:

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Leitura de poemas e parlendas No Programa 8, serão apresentadas as seguintes atividades com poemas e parlendas: • Leitura do poema "A foca" de Vinícius de Moraes. • Leitura da parlenda "Cadê o toucinho…". • Leitura da parlenda "Um, dois, feijão com arroz…". Tipo de atividade: Leitura Duração aproximada: 30 minutos Desafios colocados aos alunos • Tentar ler antes de saber ler convencionalmente. • Estabelecer correspondência entre partes do oral e partes do escrito, ajustando o que sabem de cor à escrita convencional. • Utilizar o conhecimento sobre o valor sonoro convencional das letras (quando já sabem), ou trabalhar em parceria com alunos que fazem uso do valor sonoro (quando não sabem). • Acionar estratégias de leitura que permitam descobrir o que está escrito e onde. Procedimentos didáticos específicos desse tipo de atividade O Professor precisa: • Garantir que os alunos saibam de cor o texto (não a sua escrita, mas sua forma oral); • Se os alunos tiverem acesso ao texto escrito, certificar-se de que não o consultem nesse momento, pois assim a atividade se transformaria em uma situação de cópia, o que não é a proposta nesse caso. • Sempre que possível, é importante levar para a classe os livros de onde transcreveu os textos utilizados, para que os alunos conheçam seus portadores. Procedimentos dos alunos Os alunos precisam: • Saber o texto de cor; • Ordenar as partes do texto, ajustando o falado ao escrito; • Discutir suas hipóteses com os colegas; • Socializar os resultados de seu trabalho. Adequação da atividade considerando o conhecimento dos alunos Alunos com escrita não-alfabética : Realizam a atividade tal como está proposta, observando-se o seguinte: os alunos com escrita silábica, que já conhecem o valor sonoro convencional das letras (e fazem uso desse conhecimento, ainda que parcialmente), podem ser agrupados com alunos com escrita silábica que desconhecem o valor sonoro convencional das letras e/ou fazem pouco uso desse conhecimento. Podem trabalhar também com alunos com escrita silábico-alfabética, ou escrita pré-silábica. Alunos com escrita alfabética: • Podem escrever o texto no caderno. • Podem receber letras soltas para escrever o texto (ou trechos dele, se for longo): nesse caso, o professor deve informá-los que estão recebendo a quantidade exata de letras; portanto, no final da atividade, não podem faltar nem sobrar letras. Muitas questões interessantes podem surgir nesse momento, especialmente em relação à ortografia de algumas palavras: quando os alunos escrevem as palavras de forma errada, depois não conseguem trabalhar com as letras disponíveis, pois utilizaram letras que seriam necessárias, mas não as têm. Se, por exemplo, escreveram palavras que levam SS e RR com R e S, certamente sobrarão letras no final da montagem, obrigando-os a pensar nas razões disso.

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Saiba que • Como a atividade deve sempre ser planejada e proposta considerando a possibilidade de realização dos alunos, o seu formato pode variar em função disso: os que ainda não escrevem alfabeticamente podem, por exemplo, ordenar os versos ou então as palavras do texto, a depender do conhecimento que já possuem – ordenar versos é mais fácil do que ordenar palavras. • No caso da alfabetização de jovens e adultos, é preciso selecionar textos adequados à faixa etária. No lugar de parlendas, por exemplo, pode-se optar por poemas, provérbios ou canções. Intervenção do professor Nessa atividade, o professor pode levantar questões do seguinte tipo: solicitar que alguns alunos encontrem e apontem onde estão trechos do texto, como, por exemplo, "nariz" (do poema "A foca"); ou "toucinho" (da parlenda "Cadê o toucinho") etc. É interessante também, quando o aluno já localizou os substantivos e adjetivos, perguntar pelo verbo, advérbio e, quando todos estes elementos estiverem identificados, perguntar o que pode estar escrito nos pequenos fragmentos de poucas letras (artigos, pronomes, conectivos).

Figura 2: Atividade de Leitura dirigida

Fonte: BRASIL/PROFA, M1U7T3, 2001a, p. 6-8.

Para o desenvolvimento dessa atividade, o professor deveria organizar o texto em filipetas,

nesse caso, cada verso ou palavra ficaria em uma tira de papel que seriam entregues para cada

dupla de crianças: “[...] os que ainda não escrevem alfabeticamente podem, por exemplo,

ordenar os versos ou então as palavras do texto, a depender do conhecimento que já possuem

– ordenar versos é mais fácil que ordenar palavras” (BRASIL/PROFA, 2001a, p. 201). Assim,

os alunos teriam que estabelecer relações entre o oral e o escrito para descobrir o que estava

escrito em cada filipeta e, assim, organizar a parlenda na ordem em que se canta (UM, DOIS,

FEIJÃO COM ARROZ; TRÊS, QUATRO, FEIJÃO NO PRATO; CINCO, SEIS, FALAR

INGLÊS; SETE, OITO, COMER BISCOITO; NOVE, DEZ, COMER PASTÉIS),

Constatamos, então, que a atividade de leitura do texto foi utilizada para desencadear a

apropriação de aspectos fonéticos e fonológicos da língua em detrimento de sua natureza

discursiva, logo, a adoção do texto pelo PROFA como unidade básica de ensino

aprendizagem da leitura esteve sustentada numa concepção de língua como um sistema de

formas que remetem fundamentalmente a uma norma que, segundo Bakhtin (2004, p. 108),

[...] não passa de uma abstração, que só pode ser demonstrada no plano

teórico e prático do ponto de vista do deciframento de uma língua morta e do

seu ensino. Esse sistema não pode servir de base para a compreensão e

explicação dos fatos lingüísticos enquanto fatos vivos e em evolução. Ao

contrário, ele nos distancia da realidade evolutiva e viva da língua e de suas

funções sociais [...].

Contudo, numa perspectiva dialógica de linguagem, pressuposto deste estudo, que concebe a

língua como “[...] um processo de evolução ininterrupto, que se realiza através da interação

verbal dos interlocutores” (BAKHTIN, 2004, p. 123, grifo do autor), compreende-se que o

processo de produção de sentidos na leitura se realiza num processo dialógico entre autor-

texto-leitor e, portanto, não se resume a atividade de decomposição e composição do texto, tal

como propôs o PROFA em um dos modelos de boas situações de aprendizagem.

Cabe-nos destacar ainda que o texto foi tomado como pretexto para o estabelecimento das

relações entre sons e letras e, assim, a leitura foi compreendida como um processo de

decodificação, pois coube aos alunos estabelecer correspondência entre partes do oral e partes

do escrito, ajustando o que sabiam de cor à escrita convencional para descobrir o que estava

escrito e, assim, organizar a sequência em que as filipetas deveriam ser ordenadas.

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Entendemos que uma prática alfabetizadora que trabalhe as unidades menores da língua

isoladas do seu contexto e não favorece com isso que as crianças explorem e reconstruam

todas as possibilidades de sentidos dessas unidades, cerceia a oportunidade de construção e

reconstrução de diálogos entre as crianças e a produção da própria cultura, pois é no texto que

as unidades menores da língua encontram seu significado mais pleno.

No entanto, em hipótese alguma, queremos dizer que o professor alfabetizador não deve

trabalhar as relações entre sons e letras, até porque, como aponta Gontijo (2005), no sistema

de escrita do português, existem mais irregularidades do que regularidades nas relações entre

sons e letras. Contudo, o trabalho com textos nas classes de alfabetização não pode

circunscrever-se preponderantemente a essa finalidade. Faz-se necessário que, a partir do

trabalho com textos de diferentes gêneros que circulam na sociedade, as crianças possam

apresentar as suas contrapalavras para, assim, se assumirem como sujeitos no processo. Não

basta assumir o texto como unidade de ensino aprendizagem da leitura para que se dê a

formação de leitores críticos e participativos, é preciso um “[...] redimensionamento de

concepções de sujeito, do processo de ensino aprendizagem para que a sala de aula se torne

efetivamente espaço de diálogo” (GONTIJO, 2005, p. 43) e a leitura se concretize como uma

atividade dialógica de produção de sentidos.

Esse modelo de trabalho com textos, portanto, é preocupante porque se, por um lado, no

discurso da equipe pedagógica do PROFA apregoa-se um “novo” modo de ensinar as crianças

a ler e escrever, por outro, essas atividades propostas como “boas” situações de aprendizagem

ainda reproduzem o que está posto nas “antigas” cartilhas de alfabetização, como veremos a

seguir com a análise da cartilha O Livro de Lili.

O trabalho com textos na cartilha O Livro de Lili

De acordo com algumas das pesquisadoras que analisaram O Livro de Lili em tese de

Doutorado (MACIEL, 2001) e em dissertações de Mestrado (PORTO, 2005; CAMPOS,

2008), podemos afirmar que esse material foi resultado de um concurso realizado na

disciplina de Metodologia da Língua Pátria no Curso Geral da Escola de Aperfeiçoamento de

Minas Gerais, no ano letivo de 1932, sob a coordenação da professora Lúcia Casasanta. O

objetivo do concurso era que as alunas produzissem um material destinado ao ensino da

leitura e da escrita que estivesse fundamentado no “novo” método global de contos em

contraposição ao “velho” método sintético. Maciel (2001, p.121) nos informa que:

[...] o Método Global de Contos tem como principal característica iniciar o

processo de alfabetização por textos com sentido completo, por um todo, isto

é, por frases ligadas pelo sentido, formando um enredo, constituindo uma

unidade de leitura. Para atender a essa característica, a historieta ou conto

deveria ser sobre um tema estimulador e de acordo com interesses infantis:

vida familiar, brinquedos, aventuras reais e maravilhosas com outras

crianças.

Anita Fonseca, seguindo todas as orientações dadas por Casasanta, foi à vencedora do

concurso com O Livro de Lili que, posteriormente, obteve sucesso editorial virando “[...]

referência nacional sobre a utilização do método global de contos” (PORTO, 2005, p. 54). Na

década de 1930, esse material foi editado pela Livraria Francisco Alves e, em seguida, pela

Editora do Brasil S.A. que o editou até o final dos anos 60.

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O exemplar da cartilha utilizado neste trabalho foi a 87ª edição publicada no ano de 1961.

Com a finalidade de mostrar como era proposto o trabalho com textos em O Livro de Lili

apresentamos a seguir as atividades da lição intitulada A cozinheira. A partir do exemplo

dessa lição, é possível visualizar que Anita Fonseca seguiu as orientações do método global

de contos que propõe como ponto de partida para o ensino da leitura o trabalho com as

unidades maiores da língua para, sequencialmente, decompô-las em unidades menores. Nesse

caso, a lição inicia com o texto para depois dividi-lo em sentenças, posteriormente decompô-

lo em palavras e, finalmente, em sílabas.

Figura 3: 3ª lição de O Livro de Lili, p. 28.

Fonte: O Livro de Lili, Anita Fonseca, 1961. Figura 4: 3ª lição de O Livro de Lili, p. 29.

Fonte: O Livro de Lili, Anita Fonseca, 1961.

No início da lição o texto era apresentado com dois tipos de letra. Maciel (2001) explica que

certamente o texto escrito com letra de imprensa era reservado para a atividade de leitura e o

segundo, escrito com uma letra que se assemelha à cursiva, era utilizado no exercício de

cópia. A autora aponta ainda que, na apresentação do texto, cabia ao professor despertar o

interesse das crianças pelo ato de ler. Para tal, mostrava um cartaz com o texto, solicitava que

as crianças observassem a figura que ilustrava o texto e conversava sobre o que elas estavam

visualizando, para, em seguida, ler o texto. Depois, alguns alunos poderiam dramatizar a

história, ler o texto e colorir a figura.

Campos (2008) chama atenção para o fato de que cada lição nessa cartilha se constitui em

uma historieta com sentido completo, pois não apresenta uma sequência cumulativa e tem

como ligação apenas a personagem Lili. Cada nova lição apresenta uma palavra-chave no

título em torno da qual gira a historieta, além de novas palavras que vão sendo inseridas. Não

existe ao longo das lições uma preocupação, por parte de Anita Fonseca, com a sistematização

dos aspectos gramaticais e sim com a leitura de cada palavra dentro do contexto da lição e, em

seguida, com a fixação das sílabas.

A sequência de atividades da lição em análise, como todas as outras da cartilha, prossegue

com fichas de sentenciação, palavração e silabação, como pode ser observado a seguir:

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Figura 5: 3ª lição de O Livro de Lili, p. 30.

Fonte: O Livro de Lili, Anita Fonseca, 1961. Figura 6: 3ª lição de O Livro de Lili, p. 31.

Fonte: O Livro de Lili, Anita Fonseca, 1961.

Figura 7: 3ª lição de O Livro de Lili, p. 93.

Fonte: O Livro de Lili, Anita Fonseca, 1961.

É importante notar que, após a leitura do texto, os alunos recebiam a Ficha da Sentenciação

(Figura 5) com a mesma lição para ser recortada e utilizada na realização de diferentes

atividades, por exemplo, decomposição e composição do texto, reconhecimento de

determinada sentença indicada pelo professor, etc. As frases eram apresentadas pela

professora por meio de faixas em tamanho grande que possibilitavam uma melhor

visualização dos alunos. O objetivo, nessa etapa do trabalho, era levar o aprendiz da língua a

“[...] perceber unidades menores de sentido, ou seja, as sentenças, e levar a criança a perceber

que as sentenças isoladas formam o conto” (MACIEL, 2001, p.26).

Verificamos, assim, que, na etapa seguinte, os alunos recebiam a Ficha da Palavração (Figura

6) onde o texto encontrava-se separado em palavras para os alunos recortarem e recomporem

o conto e/ou identificarem palavras destacadas pelo professor dentro do texto. Já a Ficha da

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Silabação (Figura 7) era considerada a última etapa do método em que os alunos seriam

levados a compreender que as sílabas formam as palavras. Maciel (2001) chama a atenção

para o fato de que as fases anteriores deveriam ter sido muito bem trabalhadas para que os

alunos não chegassem nessa fase e retrocedessem realizando uma leitura mecânica das sílabas

que formam as palavras.

Conforme Porto (2005) e Campos (2008) ressaltam, abaixo de cada uma dessas Fichas havia a

introdução de outras palavras. Na Ficha da Sentenciação são retomadas duas palavras que

foram apresentadas na 1ª lição da cartilha – abacaxi, laranja. Na Ficha da Palavração é

introduzida a palavra uva e na Ficha da Silabação a proposta é a formação de novas palavras

com as sílabas das palavras que foram trabalhadas na historieta – aba, abacate, babado,

banheira, melado, cera, dora, lira.

Trata-se, portanto, de um trabalho que teve como ponto de partida o texto, mas não o teve

como ponto de chegada, uma vez que o mesmo foi decomposto em frases, palavras e sílabas

que formaram outras novas palavras. Certamente O Livro de Lili representou um avanço para

o ensino da leitura no contexto sócio-histórico e cultural em que foi produzido – década de

1930, tanto que, conforme salienta Maciel (2001), os alunos que foram alfabetizados com esse

material conseguiram altos índices de aprovação.

Algumas considerações finais...

A análise comparativa dos dois modelos de ensino da leitura que circularam no Brasil em

períodos distintos possibilitou demonstrar que o PROFA não apresentou um “novo” modelo

de ensino da leitura para os professores alfabetizadores no início dos anos de 2000 como foi

propagado durante toda a execução do programa, pois, como ilustram os exemplos anteriores,

o modelo de ensino de leitura seguiu a mesma proposta de trabalho com textos criada por

Anita Fonseca na década de 1930. Foi possível notar que o PROFA demonstra uma alteração

nos gêneros textuais a serem trabalhados nas classes de alfabetização, pois prioriza textos que

as crianças sabem de cor. No entanto, ainda cabe questionar se, de fato, nos anos 2001-2002,

cantigas de roda, parlendas, quadrinhas, etc., eram textos considerados como aqueles mais

fáceis de as crianças decorarem e, portanto, saberem de cor ou se esses gêneros estariam

sendo utilizados como parte de um trabalho de resgate da cultura popular brasileira.

Nesse sentido, acreditamos que ao prescrever “boas” situações de aprendizagem da leitura, o

programa retomou princípios que estavam fundamentando o ensino da leitura proposto na

cartilha O Livro de Lili, visto que o programa de formação nos anos 2001-2002 sugeriu aos

professores que recortassem o texto em frases, depois em palavras, e, posteriormente,

oferecessem o alfabeto móvel para que as crianças reconstruíssem o texto, estabelecendo

correspondência entre partes do oral e partes do escrito, ajustando o que sabem de cor à

escrita convencional. Desse modo, o texto foi compreendido em ambas as propostas (PROFA

e O Livro de Lili) como um produto da codificação de um autor a ser decodificado por um

leitor, bastando a este apreender o significante por meio do código linguístico e, assim,

entender o significado do texto lido, já que o texto uma vez codificado é totalmente explícito.

Podemos afirmar, então, que a proposta de trabalho com textos do PROFA não contribuiu

para romper com orientações metodológicas da década de 1930 no que diz respeito ao ensino

da leitura nas classes de alfabetização, nem para que o ensino da leitura assumisse a

significação de prática social que possibilita a formação da consciência crítica das crianças.

Portanto, o estudo aponta que se faz necessário um redimensionamento das concepções de

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linguagem, de texto e de leitura que subjazem as propostas de ensino aprendizagem da leitura

em fase inicial de escolarização que circulam no país até o presente momento.

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