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1 Grupo de Trabalho VII – Direito à cidade e Direitos Humanos PREVISÃO CONSTITUCIONAL DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NOS PAÍSES MEMBROS DA UNASUL Constitutional Provision of the Social Function of Property in the UNASUR member countries. Celso Maran de Oliveira; Isabela Battistello Espindola; Isabel Cristina Nunes de Sousa; Andrea Pereira Honda de Moraes RESUMO O presente artigo versa sobre a função social da propriedade nos países membros da União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), percorrendo os conceitos de função social da cidade na América do Sul e a função social da propriedade nas previsões constitucionais dos Estados membros da União, no sentido de contribuir para uma futura harmonização das normas urbanísticas no âmbito sul-americano. Palavras-chave: Função Social da Propriedade; Direito de Propriedade; UNASUL. ABSTRACT This article approaches the social function of property in the members of UNASUR (Union of South American Nations), presenting the concepts of the social function of the city in South America, as well as the social function of property in the constitutional provisions of the members of UNASUR in order to contribute to a further harmonization of city planning legislation in the South America. Key-words: Social Function of Property; Property Rights; UNASUR. INTRODUÇÃO Muitos são os debates acerca dos processos de integração que ocorrem ao redor no mundo. Na América do Sul, esses processos se refletem no acirramento das tentativas de integração na região, sendo que uma das mais recentes é a UNASUL (União das Nações Sul-Americanas). Caracterizada por anseios democráticos, sociais, igualitários, culturais, políticos e econômicos, a UNASUL vem se apresentando como âmbito promissor para a discussão e repercussão de temas globais, regionais e até mesmo locais. Nesse sentido, a União possibilita a inserção de temas antes não amplamente englobados nas agendas de desenvolvimento e crescimento de seus países membros (OLIVEIRA, QUINELATTO, GRANADO, 2015). A UNASUL é um espaço para a proteção e o desenvolvimento dos interesses sul-americanos, trazendo consigo o ideal regional de integração que envolve democracia, justiça social, reparação de dificuldades características de cada nação

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Grupo de Trabalho VII – Direito à cidade e Direitos Humanos

PREVISÃO CONSTITUCIONAL DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NOSPAÍSES MEMBROS DA UNASUL

Constitutional Provision of the Social Function of Property in the UNASURmember countries.

Celso Maran de Oliveira; Isabela Battistello Espindola; Isabel Cristina Nunes deSousa; Andrea Pereira Honda de Moraes

RESUMOO presente artigo versa sobre a função social da propriedade nos países membrosda União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), percorrendo os conceitos defunção social da cidade na América do Sul e a função social da propriedade nasprevisões constitucionais dos Estados membros da União, no sentido de contribuirpara uma futura harmonização das normas urbanísticas no âmbito sul-americano. Palavras-chave: Função Social da Propriedade; Direito de Propriedade; UNASUL.ABSTRACT This article approaches the social function of property in the members of UNASUR(Union of South American Nations), presenting the concepts of the social function ofthe city in South America, as well as the social function of property in theconstitutional provisions of the members of UNASUR in order to contribute to afurther harmonization of city planning legislation in the South America. Key-words: Social Function of Property; Property Rights; UNASUR.

INTRODUÇÃO

Muitos são os debates acerca dos processos de integração que ocorrem ao

redor no mundo. Na América do Sul, esses processos se refletem no acirramento

das tentativas de integração na região, sendo que uma das mais recentes é a

UNASUL (União das Nações Sul-Americanas). Caracterizada por anseios

democráticos, sociais, igualitários, culturais, políticos e econômicos, a UNASUL vem

se apresentando como âmbito promissor para a discussão e repercussão de temas

globais, regionais e até mesmo locais. Nesse sentido, a União possibilita a inserção

de temas antes não amplamente englobados nas agendas de desenvolvimento e

crescimento de seus países membros (OLIVEIRA, QUINELATTO, GRANADO,

2015).

A UNASUL é um espaço para a proteção e o desenvolvimento dos interesses

sul-americanos, trazendo consigo o ideal regional de integração que envolve

democracia, justiça social, reparação de dificuldades características de cada nação

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sul-americana, tratamento igualitário aos membros, integração cultural, política,

econômica, infraestrutura para a região, política ambiental dentre outros aspectos.

Por essas peculiaridades, a UNASUL pode ser o local adequado para se discutir e

viabilizar o cumprimento das funções sociais das cidades, por meio do cumprimento

da função social da propriedade, alcançando-se assim os objetivos da União.

O presente trabalho discute a função social das cidades, além da

investigação, nos textos constitucionais, da função social da propriedade nos países

que integram a UNASUL, a exemplo do previsto no artigo 182 da Constituição

brasileira. A pesquisa poderá contribuir para uma futura harmonização das normas

urbanísticas no âmbito sul-americano, cumprindo assim com o objetivo específico da

União em promover o desenvolvimento social e humano com equidade e inclusão.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A histórica artificialização do ambiente natural caracteriza o surgimento das

cidades, com a urbanização alterando as características naturais das áreas onde se

desenvolve. A cidade tornou-se o espaço ideal não somente para a proteção, mas

também para as trocas, atividades sociais, artísticas e religiosas, e compete a ela os

trabalhos de organização política, econômica, cultural e militar (GOUVÊA, 2008). As

cidades são “fruto e reflexo das relações sociais que nelas se manifestam” (FIORI,

2009, p. 19), sendo espaços sociais antes mesmo de serem espaços físicos

(GARCIAS; BERNARDI, 2008), assim como espaços políticos.

Logo, enquanto a cidade “é um objeto espacial que ocupa um lugar e uma

situação” (LÉFÈBVRE, 1972, p. 65), infere-se também que ela “é compreendida

como produto coletivo” (RODRIGUES, 2004, p. 12), fruto da “projeção da sociedade

sobre um local” (LÉFÈBVRE, 2001, p. 56), e de seus constantes ajustes e

adequações às necessidades humanas, pautada na busca por melhores condições

de vida para seus habitantes, e em contraposição aos inerentes conflitos urbanos

relacionados às disfunções da cidade, que ocorrem “quando a cidade cumpre

deficientemente suas funções, não as cumpre ou as implemente de forma negativa”

(FIORI, 2009, p. 31).

A urbanização da população, apesar dos esforços dos países para que ela

ocorresse de modo controlado e igualitário, tornou-se um processo caracterizado

por desigualdades e pela proliferação de problemas urbanos, uma disfunção. Caso

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das cidades sul-americanas, caracterizadas por precárias condições de vida, e por

um crescimento urbano pautado em altas taxas de exclusão socioespacial, que

resultaram nas imensas lacunas sociais ainda vigentes, sobretudo em decorrência

da adoção de padrões internacionais de industrialização incompatíveis e

incoerentes com as necessidades e potencialidades internas da América Latina

(FAJNZYLBER, 1983; FAJNZYLBER, 1990).

Fica evidente, portanto, que o planejamento, antes um simples instrumento,

tornou-se imprescindível nas cidades, sendo seu dever instruir o uso adequado do

território, a fim de coordenar o pleno desenvolvimento e assegurar o bem-estar

daqueles que residem na cidade. Independente da localização, as políticas públicas

necessitam de um posicionamento em relação aos impactos que as transformações

no meio urbano acarretam para a população (MARTINS, 2007). Em consonância,

emerge o princípio da função social da cidade, conceito que pode contribuir para

evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos.

Da função social da propriedade nos países membros da UNASUL

-República Argentina

O direito de propriedade encontra respaldo no primeiro capítulo do texto

constitucional, o qual trata das Declarações, Direitos e Garantias, dispondo no

artigo 17 que a propriedade é inviolável, e nenhum habitante da nação pode ser

privado dela, senão em virtude de sentença fundada em lei.

Nota-se que, embora esteja previsto no texto constitucional a possibilidade

de intervenção do Estado na propriedade, por meio da desapropriação em caso de

utilidade pública desde que previamente indenizada, não há qualquer menção

atinente à necessidade dessa propriedade cumprir sua função social. Ainda que

exista autonomia legislativa das províncias em ditar suas próprias Constituições,

não há legislação paradigma ao Estatuto da Cidade no status de lei federal.

-República Bolivariana da Venezuela

No Estado venezuelano, é possível encontrar disciplina sobre o direito de

propriedade, disposta no artigo 115 do texto constitucional de forma muito

semelhante ao contido na legislação brasileira, com exceção ao tratamento na

esfera dos direitos econômicos, e não dos direitos e garantias fundamentais. Esse

mesmo dispositivo prevê que a propriedade está sujeita a contribuições, restrições e

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obrigações estabelecidas em lei, e em atendimento à utilidade pública e ao

interesse geral.

Apesar disso, no Capítulo IV da Carta Magna Venezuelana, o artigo 181 que

disciplina a política urbana, semelhante ao artigo 182 do texto constitucional

brasileiro, dispõe que “as terras são inalienáveis e imprescritíveis e só podem ser

alienadas mediante prévio cumprimento das formalidades previstas nas leis

municipais, conforme a Constituição e a legislação que dita seus princípios”.

Pressupõe-se, portanto, que na República Bolivariana da Venezuela, embora seja

conceituado como um Estado democrático, o Estado exerce uma intervenção na

propriedade privada de maneira bastante arbitrária.

-República Cooperativa da Guiana

Diferentemente da maioria das Constituições dos países da América do Sul, o

direito de propriedade não é tratado como um direito inerente à pessoa – no status

de direitos e garantias fundamentais –, ou como um direito econômico. A disciplina

contida no artigo 142 do texto constitucional trata sobre a proteção à privação da

propriedade, de tal modo que a posse desta não pode ser tomada de forma

obrigatória ou ainda sofrer expropriação, exceto por lei escrita e desde que haja

compensação e seja concedido ao proprietário o direito de acesso à justiça, por

meio de recurso.

Nota-se que existe um paradoxo na questão relativa à forma de intervenção

do Estado na propriedade: ainda que existam traços semelhantes aos textos

constitucionais dos países aqui estudados; a disciplina é organizada de forma

confusa, pois discerne que a propriedade em si é tratada como uma “coisa” e não

como um direito inerente à pessoa.

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-República da Colômbia

O direito de propriedade e a respectiva forma de intervenção do Estado

encontram respaldo no Capítulo II, que trata dos Direitos Sociais, Culturais e

Econômicos, contendo em seu artigo 58 a disciplina da matéria e, por derradeiro, no

artigo 82 inserido no Capítulo III que trata dos Direitos Coletivos e do Ambiente,

encontra-se dispositivo acerca da competência para gerir ações urbanísticas e

regulamentos sobre utilização do solo em defesa do interesse comum, que no caso

da Colômbia cabe às entidades públicas – diferentemente do Brasil, cuja

competência é dos Municípios.

O texto constitucional permite a expropriação por meio de processo

administrativo, muito embora essa modalidade seja criticada no trabalho

desenvolvido por Quintero (2011), o qual acredita que o poder de expropriação pela

via administrativa deva ser considerado limitado e condicionado à análise de como

a propriedade é explorada, cenário bastante semelhante à legislação brasileira.

-República do Chile

Na Constituição do Chile há uma forte proteção aos direitos e garantias

individuais no âmbito da atividade econômica e no direito de propriedade. A

disciplina relativa a este último está contida no artigo 19, item 24 da Constituição.

Existe um rol de normas atinentes ao subtema chamado: direito à moradia.

Acredita-se que tal fato se justifique pelo exíguo papel que o Estado desenvolve na

sociedade, não sendo possível identificar sua intervenção de forma imperativa, tal

qual é tratada na legislação brasileira.

Salvo (2010) apresenta a evolução da legislação chilena acerca da

ordenação territorial, apesar da literatura jurídica não estar a par desse fenômeno.

Essa pesquisa mostra que, até o momento, o Chile ainda desenvolve estudos

acerca do direito de propriedade e sua estreita vinculação com a liberdade

individual, cujo cenário, inevitavelmente, acaba sendo uma barreira intransponível

para que o Estado possa intervir na propriedade privada.

-República do Equador

O texto constitucional é repleto de princípios e fundamentos, sendo que a

propriedade lato sensu encontra espaço no artigo 66, item 26, que trata dos Direitos

de Liberdade, garantindo aos cidadãos o direito de propriedade em todas as suas

formas, com função e responsabilidade social e ambiental, devendo o Estado

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intervir na sua forma de aquisição mediante a adoção de políticas públicas. O

Estado pode intervir, ainda, na propriedade apenas por intermédio da expropriação

por necessidade ou utilidade pública, desde que o particular seja previamente

indenizado.

-República do Paraguai

O direito de propriedade é contemplado na Constituição paraguaia no

Capítulo IX, que trata somente dos Direitos Econômicos e Reforma Agrária,

havendo, inclusive, possibilidade de intervenção do Estado por meio de processo

de expropriação por utilidade pública ou interesse social.

Em consonância com a Constituição brasileira, o legislador estabelece limites

a essa propriedade privada, devendo esta atender sua função econômica e social,

de modo a ser acessível a todos. Segundo o texto, esses limites serão

estabelecidos por lei, pressupondo-se, portanto, que essa “lei” deveria ser

equivalente ao Estatuto da Cidade (Art. 109). Assim como no Brasil, o Paraguai

atribui aos Municípios a livre gestão em matéria do urbanismo (Art. 168, item 1).

-República do Peru

A disciplina do direito de propriedade insculpida no Título III, trata do Regime

Econômico, muito embora o texto do artigo 70 traga como subtítulo “inviolabilidade

do direito de propriedade”, presumindo-se que, em verdade, esse direito estaria no

status de direito fundamental, uma vez que a intervenção do Estado pode acontecer

apenas em casos de seguridade nacional ou utilidade pública declarada por lei. No

texto constitucional é possível identificar como sendo de competência dos

municípios a tarefa de programar planos de desenvolvimento urbano em suas

regiões, incluindo zoneamento, planejamento e preparação da terra (artigo 196, item

6).

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Filgueiras (2014) mostra que a realidade do Peru ainda envolve a migração

interna, de forma que a realidade urbana e social é um reflexo da demanda das

populações de origem rural para a urbana, sobretudo na região de Lima, revelando

que, neste momento, o dever do Estado é exatamente o de cumprir a disciplina do

artigo 196 da Carta Política, diante do descompasso e do crescimento populacional

desorganizado, o que justifica a não ingerência na propriedade privada.

-República do Suriname

Em seu texto constitucional, é possível identificar o direito de propriedade

delimitado no artigo 34, de forma bastante semelhante às demais legislações

estudadas, cujos elementos cingem-se ao cumprimento de sua função social e suas

limitações para os casos de necessidade ou utilidade pública.

-República Federativa do Brasil

O pressuposto constitucional da função social da cidade limita e condiciona

as liberdades individuais em prol do interesse da coletividade (bem-estar social),

conforme salienta Prieto (2006) ao afirmar que tais funções são interesses difusos,

de toda a coletividade, cujos sujeitos não são determinados, devendo o direito à

cidade ser garantido a todos os cidadãos, indistintamente, por intermédio do

cumprimento das funções sociais das cidades. Tal dispositivo legal teria sido,

inicialmente, um desdobramento do princípio da função social da propriedade, ao

adotar a mesma essência deste último conceito, ou seja, com o intuito de adaptar a

visão do pleno aproveitamento do solo urbano ao contexto da cidade.

Do princípio da função social da propriedade adveio a noção do

aproveitamento do solo em conformidade com “determinados parâmetros de

interesse geral, cujo desatendimento pode resultar na inviabilidade da construção ou

mesmo ocupação para fins não permitidos na localidade” (SALEME, 2005, p. 3).

Pode-se extrair da função social da propriedade a prerrogativa da intenção de

promover o controle do uso do solo e do desenvolvimento urbano pelo poder

público e pela sociedade civil organizada (FERNANDES, 2010).

O reconhecimento e a indicação das condições mais propícias para o pleno

desenvolvimento do município, no plano diretor, são, fundamentalmente, o que

operacionaliza o princípio da função social da cidade.

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Entende-se que “a função social da cidade deve contemplar, dentro de um

espaço físico, a manifestação social que ali se verifica” (FIORI, 2009, p. 9), o que

pressupõe o caráter variável do conceito ao longo da história, intimamente ligado à

garantia dos direitos fundamentais do cidadão (GARCIAS; BERNARDI, 2008). Tal

pressuposto se relaciona profundamente com a determinação histórica dos direitos,

que variam conforme as circunstâncias, e de acordo com o alcance e a dimensão

das lutas sociais (BOBBIO, 1992 apud TRINDADE, 2012).

Para Trindade (2012, p. 149), é essencial a defesa de uma política urbana

“rigorosamente pautada pela defesa dos interesses coletivos em detrimento dos

interesses individuais de propriedade”. Para o autor, a função social da cidade

requer a incorporação do princípio da função social da propriedade, de modo que o

“direito à cidade somente se justifica do ponto de vista jurídico na perspectiva da

função social da propriedade urbana”.

Essa visão limitada se contrapõe à destacada por Fiori (2009, p. 8), ao

afirmar que “a função social da cidade está muito além dos deveres funcionais da

propriedade”, entendendo que são funções complementares, que se articulam sob a

égide da regulação no âmbito individual em prol do interesse coletivo, com a

conciliação e a coexistência dos interesses privados e públicos. Deve-se

compreender que, tanto a cidade quanto a propriedade, necessitam cumprir uma

função social, e que isto é requisito para orientar o caminho a ser seguido pelas

políticas públicas (MARTINS, 2007).

Percebe-se, assim, a relação intrínseca entre a garantia dos direitos sociais

no ambiente urbano – no qual direito à cidade se insere -, e o adequado

desempenho das funções sociais da cidade, conjectura que remete à ideia de

humanização da propriedade, em que há o reconhecimento de que a propriedade

vai além do simples interesse do titular e/ou da satisfação dos anseios do

proprietário (MONTEIRO; KEMPFER, 2014).

-República Oriental do Uruguai

O direito de propriedade está descrito no artigo 32, no capítulo que trata dos

‘direitos, deveres e garantias’, sendo que seu texto guarda semelhança com o

disposto no Brasil, tanto no que diz respeito à inviolabilidade, como no que tange à

forma de intervenção do Estado, por meio do procedimento de expropriação por

necessidade, ou utilidade pública.

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Não há, porém, menção à política urbana, legislação federal equivalente ao

Estatuto da Cidade, competência legislativa e fiscalizatória dos municípios. Embora

no artigo 297, item 2 – que trata dos governos e administração dos departamentos

–, há previsão expressa de incidência de imposto sobre edifícios ou construções

vagas e inadequadas nos espaços urbanos e suburbanos das cidades, vilas,

povoados e centros populacionais.

-Estado Plurinacional da Bolívia

O tratamento constitucional do direito de propriedade na Bolívia é muito

semelhante ao texto constitucional brasileiro, naquilo que diz respeito ao direito à

propriedade privada, individual ou coletiva, desde que esta cumpra sua função

social e não seja prejudicial ao interesse coletivo (Artigos 56 e 57). Curiosamente,

em seu artigo 397, item II, há definição expressa da ‘função social’

Assim como no Brasil, cabe aos Municípios a competência para controlar o

cumprimento da função social da propriedade urbana. O Capítulo VII – Das terras e

territórios – trouxe em seu artigo 397 a regra segundo a qual o descumprimento da

função econômica e social, e a tendência latifundiária da terra, serão causas de

reversão ou anulação dos direitos de uso ou aproveitamento, e a terra passará a ser

do domínio e propriedade do povo boliviano, sem disciplinar, contudo, os meios

pelos quais esses atos poderiam ocorrer – judicial ou administrativamente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Discutiu-se a previsão constitucional dos dispositivos incidentes sobre a

temática da função social da propriedade nos países da UNASUL. Embora sejam

percebidas semelhanças e aproximações ao conceito de função social nas normas

constitucionais nesses países, evidencia-se que as normativas brasileiras estão à

frente, de modo que o princípio da função social, no Brasil, assenta-se em

instrumentos para sua garantia, e que os mesmos deixam claro o que qualificaria o

descumprimento dessa função.

Assim sendo, mesmo que avanços perceptíveis na normativa legal do Brasil

ainda careçam de consagração, conclui-se que os países membros da UNASUL

poderiam se espelhar na legislação brasileira, contribuindo para uma harmonização

legal nesse domínio, e o alcance dos objetivos da União. A aproximação legislativa

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deve embasar-se nas peculiaridades de cada Estado, com respeito às

características singulares de cada país.

Pelo fato da UNASUL constituir um processo de integração regional com

objetivos inovadores, não somente econômicos mas que adentra também na

questão social, a adoção por parte dos demais Estados membros da UNASUL dos

institutos semelhantes aos descritos no artigo 182 da Constituição brasileira e em

sua regulamentação pela Lei nº 10.257/01, com as devidas e necessárias

adaptações às peculiaridades de cada Estado, poderá contribuir para avanços no

bem-estar coletivo.

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