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Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011 Organização: Prof. Renato Mendes Rocha Anais da III Semana Acadêmica do Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz

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Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Organização: Prof. Renato Mendes Rocha

Anais da III Semana Acadêmica do Instituto de Filosofia e Teologia Santa

Cruz

Ficha técnica

Esta é uma publicação do

Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz

Grão-Chanceler

Dom Washington Cruz, CP

Diretor Geral

Mons. Luiz Gonzaga Lobo

Diretor Acadêmico

Pe. David Pereira de Jesus

Endereço Av. Anápolis, 2020 - Jardim das Aroeiras 74770495 Goiânia - GO

Tel: (62) 3567-9060 e-mail: [email protected]

Organização e diagramação

Renato Mendes Rocha

Distribuição digital

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Sumário

Apresentação ..................................................................................................... 4

Palestras

A literatura e o ser da linguagem .................................................................... 8  Denis Borges Diniz  

A metafísica como disposição natural do ser humano ................................ 13  Pe. Edmar José da Silva  

A Liturgia como Epifania do Mistério Trirrelacional ................................. 30  Pe. Joaquim Cavalcante  

Metafísica na Ciência da Lógica de Hegel ..................................................... 36  Júlia Sebba Ramalho de Morais  

Questões metafísicas na fenomenologia de Husserl ..................................... 48  Martina Korelc  

Comunicações

A compreensão de pessoa humana em Karol Wojtyla ................................ 65  Arpuim Aguiar de Araujo  

Religião Católica e Ciência: União versus Rivalidade ................................. 72  Cláudio José De Carvalho  

O homem: um ser composto de corpo e alma, segundo T. de Aquino ....... 78  Divino Eterno  

A Beleza como manifestação da Verdade nos Ensinamentos de Bento XVI .......................................................................................................................... 86  

Mário Correia  A relação entre o ser e o ente no poema “Da natureza”, de Parmênides, e no ensaio “Do ente e da essência”, de Santo Tomás de Aquino .................. 95  

Pedro Mendonça Curado Fleury  Os Sacramentos da Vida através dos Mistérios ......................................... 106  

Ueslei Vaz Aredes  

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Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Apresentação

Este trabalho que o leitor tem em mãos só foi possível graças ao esforço

conjunto de coordenadores, professores, funcionários e acadêmicos do Instituto de

Filosofia e Teologia Santa Cruz (IFTSC). Trata-se de um registro em texto de temas que

foram apresentados e discutidos no âmbito da terceira edição da Semana Acadêmica que

aconteceu de 12 a 16 de Setembro de 2011 nas dependências do Instituto de Filosofia e

Teologia Santa Cruz, local de formação que acolhe seminaristas em busca da sua

confirmação vocacional e formação sacerdotal.

Estes Anais foram compostos a partir de textos de alunos e professores que

apresentam o trabalho de suas pesquisas durante o nosso evento. Elegeu-se a metafísica

como tema para esta semana acadêmica. A metafísica é uma das área mais fundamentais

da Filosofia, pois seus temas permeiam todas às demais áreas da Filosofia. Ainda que

implicitamente, toda posição filosófica, seja ela em ética, epistemologia, lógica, ou

filosofia política estão assentadas em uma certa visão concepção da realidade. Este modo

de conceber a realidade é metafísica. Até mesmo as ditas posturas antimetafísica são, em

algum sentido, metafísica. De um modo mais amplo, podemos compreender a metafísica

como uma tentativa filosófica de revelar a realidade última das coisas. Em outras palavras,

sobre o quê está por trás da mera aparência das coisas. Partindo desse ponto de vista,

podemos formular três questões básicas, a partir das quais podemos compreender melhor a

natureza das questões metafísica: a) quais são as características gerais do mundo e que

tipo de coisas existem no mundo? Como o mundo é?; b) Por que o mundo existe, e mais

especificamente, por que o mundo existe com as características descritas na resposta à 1?;

c) Qual é o nosso lugar no mundo? Como nós, seres humanos, nos encaixamos no mundo?

De alguma forma, os textos reunidos nesse volume constituem tocam em

alguma destas questões, alguns mais diretamente e outros apenas de modo tangencial.

Portanto, a riqueza deste volume está em apresentar um mesmo tema, sendo abordado por

diferentes maneiras de se fazer filosofia. Os textos destes anais foram divididos em duas

partes, sendo que, em cada uma destas partes os textos foram dispostos a partir da ordem

alfabética do primeiro nome do autor. Na primeira parte dos anais publicamos texto das

palestras dos professores e na segunda parte estão os textos das comunicações dos alunos.

5 A parte relativa aos textos dos professores inicia-se com trabalho do prof. Denis Borges

Diniz em que ele apresenta uma abordagem do ser na literatura tal como interpretada pelos

filósofos franceses. Na sequência temos o texto da palestra Pe. Edmar José da Silva,

professor convidado da Faculdade Arquidiocesana de Mariana de Minas Gerais, em que

ele apresenta a metafísica como disposição natural do ser humano e defende essa posição a

partir dos escritos de Pe. Henrique Lima Vaz. No texto seguinte, o leitor poderá

acompanhar no texto do Pe. Joaquim Cavalcante uma apresentação da liturgia como

epifania do mistério trirrelacional e compreender cada um dos termos dessa definição. Os

dois derradeiros textos dessa edição são os mais extensos e densos desse volume. O

primeiro é da profª. Júlia Sebba Ramalho de Morais e ela apresenta aspectos da metafísica

de G. F. Hegel comparando-a com aspectos da metafísica de Immanuel Kant, ambos

filósofos alemães que viveram na passagem do século XVIII ao XIX. O segundo texto é da

profª. Martina Korelc que escreve sobre a metafísica por via da fenomenologia husserliana.

Esse é um texto muito importante pois resulta de pesquisa bibliográfica que a pesquisadora

realizou em seu estágio pós-doutoral onde pôde entrar em contato com manuscritos de

Edmund Husserl.

Na segunda parte desta publicação encontram-se textos escritos pelos

acadêmicos do Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz. No primeiro texto, Arpuim

Aguiar de Araújo expõe sobre a fenomenologia personalista de Karol Wojtyla e a partir

desta perspectiva aborda o conceito de pessoa humana. No segundo texto, Cláudio José de

Carvalho defende uma visão conciliadora entre a prática religiosa e a prática científica,

argumentando que mesmo teorias controversas como o darwinismo não contradizem as

verdades reveladas do cristianismo. Em seguida, Divino Eterno apresenta a importante

teoria hilemórfica de Tomas de Aquino que consiste na fundamentação filosófica da

concepção de que o homem é um ser composto de corpo e alma. Mário Correia é o autor

do próximo texto que versa sobre a importância de valores estéticos como a beleza para

manifestação da verdade, a partir dos escritos do Papa Bento XVI. No texto seguinte,

Pedro Mendonça Curado Fleury faz uma aproximação entre os pensamentos de

Parmênides e Santo Tomás de Aquino procurando mostrar semelhanças entre a relação

entre o ser e o ente nesses dois autores pertencentes à duas épocas históricas distintas. Por

fim, no último texto desta segunda parte Ueslei Vaz Aredes aborda a realidade

transcendental do sacramento e o apresenta como símbolo do sinal da vida do homem em

comunhão com a Igreja.

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Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Não poderia deixar de lembrar e agradecer às pessoas e instituições que

tornaram a realização da III Semana Acadêmica do Instituto Santa Cruz. Em primeiro lugar

ao trabalho dos membros da comissão organizadora: Mons. Luiz Gonzaga Lobo, Pe. David

Pereira Jesus e aos acadêmicos Arpuim Araújo, Jefferson Tomaz, Mário Correia, Ronaldo

Rangel, Washington Uberaba. Em especial aos acadêmicos que verdadeiramente

“carregaram o piano” da organização, se ocupando de todos os detalhes para garantir o

sucesso do evento. Do lado institucional é importante lembrar e agradecer à Fundação

Aroeira, à Catedral Metropolitana de Goiânia e às Paróquias São Nicolau, Aux. Cristãos,

Imaculado Coração de Maria, São José, São Pio X, Rainha da Paz e Bom Jesus que

contribuíram financeiramente para a realização do evento.

Para concluir, este trabalho pode ser visto como uma pequena amostra do

pensamento das pessoas que estudam e trabalham no IFTSC. Faço votos de que este

continue sendo um espaço propício ao ensino, estudo, pesquisa e divulgação do

pensamento filosófico e teológico na cidade de Goiânia. Desse modo, espero que a leitura

destes textos aqui apresentados possa ser além de um registro material da atividades do

nosso Instituto, também um instrumento para o desenvolvimento intelectual e

aprendizado filosófico de seus leitores.

Renato Mendes Rocha,

Florianópolis, 08 Junho de 2012

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Palestras

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

A literatura e o ser da linguagem

Denis Borges Diniz1

Em As palavras e as coisas, livro publicado em 1966, Foucault descreve a

ruptura epistemológica ocorrida na virada do século XVIII para o século XIX. Segundo

ele, naquele momento uma nova ordenação dos saberes estaria em curso na cultura

ocidental impondo a destruição da Representação como tarefa fundamental desses saberes.

A partir daí, novos objetos, conceitos e saberes iriam se configurar constituindo assim o

que ele denomina de modernidade. A linguagem surge neste momento de um modo

inteiramente novo. Surge como objeto bastante definido e no entanto bastante complexo

devido ao fato de ser irredutível à representação. Ao contrário do que era para os clássicos,

não se trata mais para os modernos de conduzir a palavra, o signo à ideia; ou dito de outro

modo, de conceber a linguagem nesta sua função puramente representativa. Isso porque

este novo objeto aparece aos novos saberes como que dotado de uma historicidade, de

regras e de leis que lhes são próprios e que, por isso mesmo não se deixam atualizar

plenamente pelas regras de um pensamento que se dá apenas como representação.

Entretanto, e em função mesma de sua irredutibilidade ao cogito, essa novidade ocorre

segundo uma dispersão que é assim anunciada por Foucault:

Destacada da representação, a linguagem doravante não mais existe, e até hoje ainda, senão de um modo disperso: para os filólogos, as palavras são como tantos objetos constituídos e depositados pela história; para os que querem formalizar, a linguagem deve despojar-se de seu conteúdo concreto e só deixar aparecer as formas universalmente válidas do discurso; se se quer interpretar, então as palavras tornam-se texto a ser fraturado para que se possa ver emergir, em plena luz, esse outro sentido que ocultam; ocorre enfim à linguagem surgir por si mesma num ato de escrever que não designa nada mais que ele próprio. (FOUCAULT, 1995, p. 320)

A literatura, porém, é onde a linguagem aparece como compensação a toda

objetividade que qualquer daquelas análises possa se configurar, onde, de modo

absolutamente autônomo, além - ou aquém - de todo significado prévio ou conteúdo

designativo a lhe emprestar alguma substância, a linguagem manifesta seu ser bruto.

1 Professor de Filosofia Contemporânea e Estética do Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz.

A literatura e o ser na linguagem 9

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

A princípio, a linguagem na sua modalidade literária se desenvolve num duplo

movimento que manifestaria assim a dinâmica de seu ser. Por um lado é de uma

incomunicabilidade absoluta com quaisquer valores exteriores a ela (FOUCAULT, 1995,

p. 316); estes nascem de seu próprio espaço e vem assinalar o sentido de sua pura

existência, posto que irredutível às formas exteriores: “[...] nessas condições, não lhe resta

senão recurvar-se num perpétuo retorno sobre si, como se seu discurso não pudesse ter por

conteúdo senão dizer sua própria forma [...]” (FOUCAULT, 1995, p. 317). De fato, vê-se

que a literatura aí é a manifestação de uma linguagem que não tem por lei outra coisa que

não a afirmação de si mesma. Nada mais distante portanto, da linguagem como

funcionamento representativo, posto que, na idade clássica o que o ser afirmava era a ideia.

Agora na literatura moderna a linguagem desenvolve-se sobre si mesma formando ela

própria seu espaço, seu tecido, onde a singularidade dos pontos de sua trama é constituída

a partir desse “[...] espaço que os contém e os separa ao mesmo tempo.” (FOUCAULT,

1990, p. 14). Muito semelhante, sem dúvida, à concepção que Foucault constrói acerca da

formação discursiva quando se refere à disposição manifesta dos elementos que a compõe:

estes são formados a partir de um agrupamento heterogêneo que ganha sentido pela sua

coexistência regrada definindo um espaço comum e que é irredutível a toda interioridade,

como que resistindo a ela.

A trama na qual a palavra se desenvolve mantém a partir de si mesma suas

relações de identidade e não-identidade. Não é o caso de vislumbrar nesse

desenvolvimento um contexto, do qual o sentido poderia então ser produzido2. Se assim

fosse, tal contexto designaria uma linguagem que se interioriza numa auto-identificação

consigo mantendo-se ao nível do significante. Ao contrário, e aí se manifesta a outra face

do ser da linguagem, na literatura, diz Foucault, ela se distancia “[...] o mais possível de si

mesma; e se este colocar-se “fora de si mesma” põe em evidência seu próprio ser, esta

claridade repentina revela uma distância mais do que um sinal, uma dispersão mais do que

um retorno dos signos sobre si mesmos.” (FOUCAULT, 1990, p. 14). O que nosso autor

coloca é uma contraposição à concepção, superficial segundo ele, de que a literatura

moderna designaria apenas a si mesma: auto-referência. Ao contrário, sua posição é de que

o “sujeito” da literatura (aquele que fala dela, ou aquele de quem ela fala) está na verdade

evidenciando um vazio, apenas uma função gramatical que se deixa enunciar no “falo”. É

2 Foucault também refuta o recurso ao contexto para explicar o modo de existência dos enunciados que comporiam o domínio discursivo distinguindo os enunciados das unidades linguísticas habituais. Cf. FOUCAULT, 1997, 111-114.

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Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

esse vazio que seria, para nosso autor, o traço distintivo da moderna literatura ocidental.

Essa posição de Foucault é importante, pois a lacuna deixada pelo sujeito ausente nos

propõe a um certo abandono do exercício do “pensamento do pensamento” – herança

cartesiana do “Penso” – e nos conduz ao exercício da “palavra da palavra”: nessa

experiência nua da linguagem a evidência do “existo” pode ser posta em questão.

Essencial dissimulação portanto: nesse retorno sobre si, desenvolve-se, porém,

rumo a um exterior3 o mais longínquo possível. E tal movimento encontra-se somente

numa linguagem que não funciona mais como discurso representativo, que readquire sua

existência selvagem onde a significação do signo está ausente; onde o significante, face

neutra, é surdo às interrogações sobre sua existência enigmática. Essa existência reaparece

na experiência cultural do Ocidente quando no final do século XVIII, o sujeito deixa de

conduzir a linguagem à sua função primeira de desdobrar as séries de representações e de

erguer como sua morada a interiorização do pensamento.

O distanciamento que a literatura assume em relação à idade clássica a

reaproxima, por outro lado, da Renascença ainda que por uma diferença fundamental. Tal

como naquele período, as palavras como que se adensam e seu poder encerra-se naquilo

que permite o movimento de um discurso indefinido. Foucault aponta entretanto, que no

Renascimento aquilo que ao mesmo tempo fundava esse movimento e o limitava era

“aquela palavra primeira, absolutamente inicial” (FOUCAULT, 1995, p. 60) que fazia de

todo discurso, divinatio. Na modernidade esse movimento assume sua radicalidade pela

ausência absoluta de um fundamento, de uma anterioridade: “[...] doravante a linguagem

vai crescer sem começo, sem termo e sem promessa. É o percurso desse espaço vão e

fundamental que traça, dia a dia, o texto da literatura.” (FOUCAULT, 1995, p. 60).

A literatura moderna está assim a marcar um triplo e radical afastamento

das experiências com a linguagem ao longo desses séculos: do Renascimento, como foi

visto, mas também do classicismo e da modernidade, como resume Roberto Machado:

Na modernidade, a literatura é um “contra-discurso”, no sentido do que compensa, e não do que confirma, a forma significante, o funcionamento significativo da linguagem. Ou de modo mais explícito: a literatura é o que contesta o estatuto da linguagem tal como ela existia na época

3 Esse termo se refere àquele mesmo utilizado na tradução brasileira de La pensée du dehors (O

pensamento do exterior). Seu sentido parece ser melhor preservado pela tradução por “de fora” ficando então O pensamento do de-fora ou do lado de fora. De fato, essa expressão foi utilizada na tradução do livro de Deleuze, Foucault, onde ele faz a distinção entre exterior ou exterioridade e o lado-de-fora. Com essa ressalva, mantém-se aqui a opção por “exterior” em função de que aquela tradução é a referência para este trabalho.

A literatura e o ser na linguagem 11

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

clássica reduzida a discurso [...]; mas a literatura é também o que contesta o estatuto da linguagem tal como ela existe na modernidade com sua relação significante, em que a significação é considerada como determinada na consciência [...] que se torna, portanto, o fundamento, a condição, o ato constituinte da significação. (MACHADO, 2000, p. 18)

Daí, na ausência da anterioridade divina [Renascimento] e de um espaço

interior que a conduzam, a linguagem aparece como “trânsito ao exterior” onde o sujeito é

apenas um “vínculo gramatical” evanescente a ser requerido ao sabor de algo que não mais

lhe pertence. É nesse ponto, da destruição do sujeito como lugar de origem, que Foucault

identifica o perigo da literatura: “Sem dúvida é por esta razão pela qual a reflexão

ocidental não se decidiu durante tanto tempo em pensar o ser da linguagem: como se

pressentira o perigo que faria correr a evidência do ‘existo’ a experiência nua da

linguagem.” (FOUCAULT, 1990, p. 15).

Ora, nessa brusca autonomia com que o ser da linguagem se manifesta ele

rompe com uma dimensão fundamental da nossa experiência: a memória, que se forma a

partir de representações sedimentadas na consciência e, consequentemente, com a

linguagem instituída e com o tempo como ordenação dos fenômenos. Essa manifestação

num “não-tempo” não permite, pois, que se a imobilize em nenhuma forma. De fato, toda

formalização se dá conforme regras - lógicas ou gramaticais - e supõe pontos de origem e

término, axiomas, demonstrações e, enfim, uma verdade, ainda que imanente ao campo

semântico. Ao contrário, afirma Foucault, a linguagem não tem amparo na memória e suas

palavras não se dirigem a conteúdos que lhe precedem, (FOUCAULT, 1990, p. 72) no seu

ser ela é amparada pelo esquecimento atento da espera:

É no esquecimento que a espera se mantém como uma espera: atenção aguda àquilo que seria radicalmente novo, sem ponto de comparação nem de continuidade com nada (novidade da espera exterior a si e livre de todo o passado) e atenção àquele que seria o mais profundamente velho (posto que nas profundidades de si mesma a espera não deixou nunca de esperar). (FOUCAULT, 1990, p. 74)

Daí, a origem e a morte achatam-se no instante de um esquecimento, e é

nisso em que consiste a experiência nua da linguagem, que conserva sua força e sua ação

“no rumor informe e fluido”4. É uma situação paradoxal esta que Foucault assinala à

linguagem. Ao invés de ser a morada da verdade, e ter daí inferida a sua força, a linguagem

4 Idem, p. 71. Em outras ocasiões, como já observou Deleuze, Foucault vai desejar estabelecer-se nesse murmúrio da linguagem, como por exemplo, quando do discurso da aula inaugural no Collège de France. Cf. FOUCAULT, 1998, p. 5. Quanto a análise que Deleuze faz do “murmúrio anônimo” Cf. DELEUZE, op. cit., p. 19, 64, 65.

Denis Borges Diniz 12

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

tem sua existência na precariedade, na limitação, vale dizer, na ausência de um poder que

designa, que aponta, e é neste momento que reside sua força. Aquele exterior - aberto pelo

vazio da ausência do sujeito - que anuncia a brusca oscilação da linguagem na morte e na

origem, “não estabelece jamais o limite a partir do qual se delinearia finalmente a verdade.

[...] a origem tem a transparência que não tem fim, a morte dá acesso indefinidamente à

repetição do começo.” (FOUCAULT, 1990, p. 73). Surge aí a interessante ideia da verdade

como invenção da linguagem, ideia de inspiração nietzscheana e que permeia as análises

arqueológicas de Foucault.

Estes são alguns dos aspectos pelos quais a literatura como “palavra da

palavra” funciona ao revés do “pensamento do pensamento” (FOUCAULT, 1990, p. 15).

Decorre daí, do apagamento do sujeito, do discurso e da verdade a necessidade de se

pensar a ficção como lugar manifesto do impensado.

Referências Bibliográficas

DELEUZE, Gilles. Foucault. Trad. Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Brasiliense, 1988.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

_______. As palavras e as coisas. Trad. Salma Tannus Muchail. 7ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

_______. Nietzsche, Freud e Marx. Trad. Jorge Lima Barreto. São Paulo: Princípio, 1997.

_______. O pensamento do exterior. Trad. Nurimar Falci. São Paulo: Princípio, 1990.

MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

TERNES, José. Michel Foucault e a idade do homem. Goiânia: Ed. UFG, 1998.

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

A metafísica como disposição natural do ser humano

Pe. Edmar José da Silva1

Resumo: Podemos refletir sobre a metafísica a partir de duas óticas ou perspectivas: 1ª) Compreendendo-a como investigação sistemática e crítica do sentido último da realidade (sentido próprio da tradição filosófica ocidental); 2ª) Compreendendo-a como disposição natural do ser humano.

O objetivo da palestra é debruçar sobre a segunda perspectiva. Valendo-me do arcabouço teórico da antropologia do grande filósofo brasileiro, jesuíta, Henrique Cláudio de Lima Vaz, pretendo mostrar que o ser humano é essencialmente metafísico e que esta é uma exigência que nasce da sua complexa e nobre estrutura constitutiva.

Partindo da afirmação de que o ser humano é um animal metafísico (Schopenhauer), pretendo apresentar e aprofundar as categorias antropológicas estruturais de Lima Vaz que permitem tal afirmação, a saber: corpo próprio, psiquismo e espírito. No ápice do discurso antropológico, concluiremos que o homem é um ser espiritual (categoria do espírito) e que, portanto, possui um excesso ontológico que o abre para o relacionamento com as coisas, com os outros e com a transcendência (realidades metafísicas).

Introdução

A interrogação do homem sobre si mesmo sempre constituiu parte essencial do

discurso filosófico. A pergunta “quem é o homem?” sempre ocupou a centralidade das

buscas mais profundas do ser humano porque a resposta a esta interrogação não é

secundária e não se refere a um objeto que está fora de si, mas esclarece o seu próprio ser e

agir. Como afirma o filósofo jesuíta Lima Vaz:

Desde a aurora da cultura ocidental (cujos começos se situam convencionalmente em torno do século VIII a. C, na Grécia), a reflexão sobre o homem, aguilhoada pela interrogação fundamental “o que é o homem?” permanece no centro das mais variadas expressões da cultura: mito, ciência, filosofia, ethos e política. Nela emerge com fulgurante evidência essa singularidade própria do homem que é a de ser interrogador de si mesmo (LIMA VAZ, 1993, p. 09).

Agostinho afirma que mais cedo ou mais tarde, o ser humano acaba

descobrindo que é um problema para si mesmo: “Factus eram ipse mihi magna questio”

(AGOSTINHO, 1964, p. 113). O homem é o único ente existente no cosmos que interroga

sobre sua própria existência, busca a sua razão de ser, deseja entender o sentido do seu agir

no mundo e indaga sobre a real possibilidade de ser para além da realidade física.

1 Professor na FAM (Faculdade Arquidiocesana de Mariana), Mariana – MG.

Pe. Edmar José da Silva 14

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

No percurso da antropologia filosófica, encontramos diversas definições de ser

humano que não se excluem, mas colocam em relevo aspectos importantes e distintivos

deste ente especial, o ente humano: zoon logikón, zoon politikón, Imago Dei (Patrística),

homo faber, homo loquens, home ludens, etc. Schopenhauer o define como “animal

metafísico”. É baseado na afirmação deste renomado filósofo contemporâneo, que desejo

colocar em relevo a disposição natural e estrutural que existe em todo indivíduo humano

para a busca das realidades metafísicas. Meu objetivo não é aprofundar a afirmação a partir

da doutrina de Schopenhauer, mas da teoria antropológica do grande filósofo brasileiro,

Henrique Cláudio de Lima Vaz.

Aristóteles, no início da sua obra denominada Metafísica, afirma que “todos os

homens, por natureza, aspiram ao saber” (ARISTÓTELES, Met. I, 980 a 21). Para ele, há

uma hierarquização das ciências e o topo mais alto é reservado às ciências teoréticas,

dentre elas, a metafísica. Para ele, as ciências se dividem em poéticas, práticas e teoréticas.

As ciências poéticas estão ligadas ao conhecimento produtivo e visam a fabricação de

algum utensílio (Ex.: o homem que aprende a fazer uma mesa, roupas, vasos, etc.). As

ciências práticas estão ligadas ao uso do saber com finalidade moral (ética e política). As

ciências teoréticas, por sua vez, buscam o saber pelo saber, não têm finalidade prática ou

utilidade imediata. Segundo ele, a metafísica (física primeira) está no topo hierárquico de

qualquer conhecimento, por isso é a ciência mais elevada e mais nobre. O estudo da

metafísica faz com que os homens se assemelhem a deus, objeto da metafísica e o

metafísico por excelência. A metafísica (ciência primeira) à qual se refere Aristóteles é a

ciência mais elevada. Mas todo ser humano, ainda que não seja iniciado à ciência

metafísica, pelo simples fato de ser humano, tende a este conhecimento mais elevado,

porque possui racionalidade (Cf. ARISTÓTELES, Met. VI, 1025 b).

Ao elaborar a sua antropologia, Lima Vaz mostra que o homem não está

confinado nos limites e determinismos do material, biológico ou psíquico (apesar de

constituírem categorias essenciais do ser humano), mas ele é um ser espiritual e isso

significa que é um ser que possui uma abertura constitutiva que o torna um eterno fatigador

do infinito, um aspirador das realidades metafísicas, um possuidor de marcas da

eternidade, apesar de estar no tempo e no espaço. A abertura constitutiva do ser humano

nasce do seu excesso ontológico, da sua superabundância de ser, do “mais” que emerge da

sua estrutura constitutiva e que o impulsiona para o transcendente, seja ele real ou formal.

A metafísica como disposição natural do ser humano 15

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Afirmar que o homem possui uma exigência estrutural que conduz a buscas

metafísicas, não significa afirmar que todo homem precisa ter contato direto com esta área

do conhecimento filosófico. Assim, a exigência que nasce de sua estrutura humana é de

uma metafísica natural e não tanto acadêmica (como ciência).

Podemos entender o termo ‘metafísica’ de dois modos: como disposição

natural do ser humano ou como reflexão crítica e sistemática a respeito do fundamento

último das diversas realidades existentes. Valho-me de um precioso artigo do prof. Dr.

João Macdowell para clarear esta dupla possibilidade de compreensão do termo. Segundo

o professor Macdowell, pode-se afirmar que a metafísica, no sentido amplo e fundamental,

constitui uma disposição natural do ser humano, na medida “em que o ser humano,

enquanto dotado de razão, tende a buscar o sentido da existência e da realidade como um

todo” (MACDOWELL, 2002, p. 10). Ele afirma ainda que “a necessidade de motivar de

algum modo a própria compreensão da existência como um todo, é a expressão daquilo

que se pode chamar de constituição metafísica do espírito humano. Ser humano consiste

em abrir-se para a totalidade e entender-se a partir dela como horizonte da própria

existência” (MACDOWELL, 2002, pp. 10-11). A metafísica como foi entendida na

tradição ocidental, diferentemente da primeira perspectiva apresentada, é a interrogação

crítica sobre o sentido último da realidade, é a investigação sistemática e crítica do

movimento ascensional do espírito humano em busca do sentido global da realidade:

O mundo das coisas materiais, temporais e sujeitas à mudança e ao desaparecimento, é ultrapassado em direção ao seu fundamento, captado não pelos sentidos, mas pela inteligência, e concebido negativamente como imaterial, intemporal, imutável, por contraste com o que é percebido imediatamente (MACDOWEL, 2002, p.12).

Esta é a metafísica entendida como a ciência mais elevada, o conhecimento

filosófico por excelência. Esta metafísica é a busca acadêmica logicamente organizada dos

fundamentos, das causas ou dos princípios da realidade sensível. É uma importante área do

conhecimento da tradição filosófica ocidental, que ocupou a centralidade do pensamento

antigo e medieval, até perder espaço para o antropocentrismo (sujeito) moderno e sofrer

duras críticas da filosofia contemporânea. É esta compreensão de metafísica que vai

marcar decisivamente toda a história da civilização ocidental.

Clareados os dois sentidos do termo “metafísica”, resta afirmar que minha

reflexão não pretende discutir sobre os diversos problemas levantados pela metafísica

ocidental, na sua vertente sistemática e crítica, nem apresentar historicamente as diversas

Pe. Edmar José da Silva 16

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

afirmações ou negações do ser2, mas meu enfoque se direciona para o primeiro aspecto da

compreensão de metafísica, entendida como exigência natural e constitutiva da estrutura do

ser humano. Entendo que esta reflexão que ora apresentamos antecede a apresentação da

metafísica como área do conhecimento filosófico, visto que sem a disposição natural e

estrutural do ser humano, a metafísica enquanto ciência do ser não existiria. Neste discurso

que ora apresentamos, se entrelaçarão duas importantes áreas do saber filosófico: a

antropologia e a metafísica.

1. Categorias estruturais do ser humano

Filosoficamente, o termo categoria significa modos de ser3. Em Aristóteles, por

exemplo, a tábua das categorias quer revelar os diversos modos de ser que constituem o

ser. Nenhuma categoria isoladamente pode ser identificada com o ser. Assim também

acontece na antropologia filosófica de Lima Vaz. Ao tratar das categorias estruturais do ser

humano (corpo próprio, psiquismo e espírito), ele vai mostrar que cada uma delas é parte

constitutiva da estrutura humana, mas o ser humano na sua totalidade constitutiva não se

resume a nenhuma delas isoladamente. O ser humano é a totalização de todas as categorias.

A divisão da estrutura humana em categorias é apenas de ordem metodológica e

sistemática, para facilitar o discurso filosófico. No nível metafísico e existencial, o ser

humano é unidade estrutural e é compreendido como totalidade das categorias estruturais.

Portanto, o ser humano é uno no seu existir e todas as suas ações são praticadas com a

totalidade do seu ser. Neste sentido, podemos afirmar que é o ser humano todo que chora e

não somente o corpo humano, é o ser humano todo que sente e não somente o psiquismo

humano, é o ser humano todo que se abre à verdade e ao bem e não somente o espírito

humano. Baseado na dialética hegeliana, Lima Vaz retoma o conceito de Aufhebung

(suprassunção dialética: assumir elevando), para mostrar que cada categoria separadamente

não responde plenamente à pergunta “o que é o homem?”, mas depende das outras para

compreendê-lo. As categorias estão em íntima relação e uma suprassume a outra dada

imediatamente anterior a ela.

Ao tratar dos temas das categorias estruturais ou constitutivas do ser humano,

Lima Vaz vai mostrar que pelo corpo próprio o homem se abre para o contato imediato

2 Para quem desejar um aprofundamento maior da história da metafísica ocidental, conferir a obra:

MOLINARO, Aniceto. Metafísica: curso sistemático. São Paulo: Paulus, 2002. Nesta obra, o autor apresenta a história da metafísica na perspectiva da sua construção, desconstrução e reconstrução.

3 Sobre o sentido do termo categoria, conferir: VAZ, 2003, nota de rodapé 21, p. 171.

A metafísica como disposição natural do ser humano 17

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com o mundo das coisas; pelo psiquismo, o homem se abre para o relacionamento

propriamente humano e pelo espírito, o homem se abre para a relação de transcendência. É

na abertura constitutiva para a transcendência que podemos constatar a vocação metafísica

de todo ser humano:

Em cada esfera das relações, observa-se a primazia de uma das estruturas que integram a totalidade do ser-homem: na relação de objetividade a primazia é dada ao corpo próprio, na relação de intersubjetividade é dada ao psiquismo, e na relação de transcendência a primazia é dada ao espírito. [...] A primazia à qual nos referimos significa que o corpo próprio é a condição primeira de possibilidade da nossa presença à realidade na forma de uma abertura constitutiva ao mundo, o psiquismo é a condição primeira de possibilidade da nossa presença à realidade na forma de abertura constitutiva ao outro (ou à história), o espírito é a condição primeira de possibilidade de nossa presença é realidade na forma de uma abertura constitutiva ao Absoluto. O homem é, pois, ser-em-relação, segundo a totalidade estrutural que o constitui como corpo, psiquismo e espírito. (VAZ, 1995, p. 14).

Esta abertura do ser humano possui níveis diferenciados, de acordo com as

categorias estruturais preponderantemente envolvidas: “Desta sorte, o ser humano pode

abrir-se ao mundo, num primeiro nível relacional [...] pode abrir-se ao outro e à história,

num segundo nível relacional [...] pode abrir-se ao Absoluto, num terceiro e mais elevado

nível relacional que se exprime pela categoria de transcendência” (VAZ, 2000, p. 24).

1.1 Corpo próprio

Para Lima Vaz, todo discurso antropológico-filosófico sério deve iniciar

analisando o tema do corpo, visto que o somático é o dado mais evidente no ser humano e

o situa de maneira imediata no mundo sensível. O corpo é o ponto de partida para se

compreender o homem e a sua presença no mundo:

O problema do corpo próprio ou, em termos filosóficos, o problema da categoria da corporalidade é não somente um problema fundamental para a Antropologia Filosófica, mas é o seu ponto de partida, pois a autocompreensão do homem encontra seu núcleo germinal na compreensão de sua condição corporal (VAZ, 1993, p.175).

Segundo o nosso filósofo brasileiro, o corpo humano pode ser pensado como

corpo físico, biológico ou corpo próprio.

Corpo físico é tudo aquilo que é constituído de matéria e ocupa espaço. Neste

sentido, o corpo humano possui esta dimensão material e, por isso, é também corpo físico e

está sujeito a todas as leis da física ou da química (Ex.: lei da gravidade). O corpo

Pe. Edmar José da Silva 18

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

biológico é o corpo entendido como organismo vivo, com todas as suas funções e

organicidade. Como qualquer corpo biológico, está sujeito às leis da biologia (Ex.: comer,

beber, dormir, necessidades fisiológicas). Estes dois primeiros sentidos apresentam o corpo

humano na sua dimensão natural. Enquanto corpo físico, ele é semelhante ao corpo de

uma pedra ou de um artefato qualquer. Enquanto corpo biológico, ele se identifica com o

funcionamento dos corpos de qualquer ser vivo, qualquer animal. Mas o corpo humano é

mais do que isso! É corpo vivo (não no sentido biológico, mas intencional), é corpo

próprio (Cf. VAZ, 2003, p.176). O corpo próprio4 é o corpo que tem consciência da sua

própria corporalidade, é o corpo que não somente sente, mas se sente, não somente

percebe, mas se percebe, não somente toca, mas é tocado e se toca. Como afirma o filósofo

contemporâneo Merleau-Ponty: “O corpo é um visível que se vê, um tocado que se toca,

um sentido que se sente. O corpo é instrumento de percepção, e consciência perceptiva é

consciência existencial” (PONTY, 1999, p. 19).

O corpo é uma dimensão constitutiva do ser humano. Para ser humano é

necessário ter corpo. O homem não somente tem corpo, mas é corpo, ou seja, este faz parte

da sua constituição ontológica: “No discurso antropológico, a realidade do corpo enquanto

humano é afirmada como constitutiva da essência do homem, isto é, como afirmável do

seu ser” (VAZ, 1993, p.182). O homem é ser humano também por causa da corporalidade.

Como ser composto, a dimensão corpórea é essencial para a sua existência:

A importância capital de que a dimensão se reveste para o homem: a somaticidade é um componente essencial do ser do homem. Sem corporeidade o homem não é mais homem, porque não pode mais realizar muitas atividades que são tipicamente suas, como o sentir, o falar, o cantar, o jogar, o trabalhar, etc. (MONDIN, 1983, p. 38)

Dentre as diversas funções do corpo humano, podemos ressaltar a sua

importância para situar o homem no mundo, historicizar sua existência, individualizar a

sua presença no mundo, possibilitar um contato imediato e originário com o mundo:

Graças à minha somaticidade, eu estou situado em uma determinada posição, estou fechado dentro de certos confins, sou diferente dos outros seres: sou eu mesmo e não outras coisas; eu tenho a minha personalidade (MONDIN, 1983, p. 38)

4 O termo corpo próprio é específico da filosofia contemporânea e o autor o toma emprestado para

explicitar a categoria do corpo no seu aspecto propriamente humano (Cf. VAZ, 2033, nota de rodapé nº 2, p. 184)

A metafísica como disposição natural do ser humano 19

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Os alemães usam a expressão korper para falar do corpo físico-biológico e Leib

para retratar o corpo propriamente humano (VAZ, 1993, p. 176). O corpo humano

enquanto corpo natural (aspecto físico-biológico) está sujeito às determinações e limitações

próprias de sua realidade, mas por estar inserido numa realidade estrutural mais ampla, tem

capacidade de transcender os limites impostos pelo aspecto físico-biológico até certo

ponto. Por exemplo: um atleta pode conseguir, por causa da sua determinação e força de

vontade, superar os limites do próprio corpo. Neste sentido, até a dimensão corporal do ser

humano possui algo de metafísico. O ser humano é capaz de dar intencionalidade ao seu

corpo e transcender o nível físico. O corpo é para o homem um corpo vivido. Por meio do

corpo próprio, o estar-no-mundo se estrutura em níveis: nível físico-biológico (corpo

natural); nível psíquico (sexualidade), nível social (simbólica do corpo); nível cultural

(adestramento e cuidado estético do corpo). (Cf. VAZ, 1993, p. 177-178).

O corpo é também uma dimensão expressiva do ser humano. Pelo corpo o ser

humano pode revelar-se ou esconder-se:

Nós sabemos que o homem pode esconder-se atrás do próprio rosto, pode colocar uma máscara e representar um papel que não lhe é próprio: com as suas palavras ele pode não só manifestar, mas também ocultar as próprias ideias e intenções. A corporeidade do homem atesta-nos que ele pode distanciar-se de si mesmo, fechar-se, recusar-se ao outro. (W. KASPERS, 1975, p. 279)

A somaticidade humana é “epifania” de algo mais profundo, é expressão e

manifestação de alguma coisa que ultrapassa a própria dimensão corporal. Pode-se

conhecer muito do íntimo do ser humano através da sua corporalidade: “Assim o corpo é

condição de possibilidade da manifestação humana. A pessoa expressa e manifesta sua

intimidade precisamente através do corpo” (STORK et. Ali, 2005, p. 88). O rosto e o

conjunto de ações corporais revelam que há algo a mais no ser humano, além da própria

somaticidade:

A cara representa a pessoa externamente. Costuma-se dizer que ‘a cara é espelho da alma’: o homem não se limita a ter cara, mas tem rosto. O rosto humano, especialmente o olhar, é tremendamente interpelante e significativo. A intimidade é expressa também através de um conjunto de ações expressivas. Através delas, o homem fala a linguagem dos gestos: expressões faciais (desprezo, alegria), das mãos (cumprimento, ameaça, ternura), etc. Através dos gestos o homem expressa o seu interior. (STORK et ali, 2005, 88).

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A dimensão somática do ser humano, ao mesmo tempo em que está marcada

pelos limites próprios da matéria, está impregnada de elementos psíquicos e espirituais que

a fazem transcender os seus próprios limites. Por que não afirmar que já na corporeidade

há sinais visíveis da abertura constitutiva do ser humano para as realidades metafísicas?

A somaticidade em si mesma parece inexoravelmente bloqueada entre certos confins e exposta à corrupção. Mas, ao mesmo tempo, a somaticidade humana leva consigo alguns sinais que contrastam com estas misérias. É uma somaticidade cheia de consciência, aberta no ser, estendida para a felicidade mais completa. É uma somaticidade que transcende a própria natureza da somaticidade e se transforma em epifania do espírito (MONDIN, 1983, p. 41)

No final do discurso antropológico sobre o corpo próprio, Lima Vaz afirma que

o homem é e não é seu corpo. Este é não significa que ele se reduz á corporalidade, mas

que a dimensão somática é parte essencial da estrutura humana. Ou se tem corpo e é ser

humano, ou não se é ser humano. O corpo faz parte da sua essência composta. Não é seu

corpo porque a compreensão do ser humano na sua totalidade, impele o discurso

antropológico para outra categoria importante: o psiquismo (Cf. AF I, PP. 182-183). Aliás,

a própria compreensão do corpo humano como corpo próprio (pleno de intencionalidade e

autoexpressão do sujeito) já nos impele para o estudo de outra categoria antropológica

estrutural que coloque em evidência a dimensão da interioridade do ser humano no seu

aspecto psíquico.

A categoria do corpo próprio coloca o ser humano em contato imediato com as

realidades do mundo externo (realidade das coisas). Como o ser humano não é somente

corpo, ele dá um sentido propriamente humano ao mundo que o cerca.

1.2. Psiquismo

O psiquismo é definido por Lima Vaz como primeiro estágio de

interiorização do mundo, como captação do mundo exterior e tradução ou reconstrução no

mundo interior (VAZ, 1993, p. 188). Se a categoria do corpo próprio coloca o homem em

contato imediato com o mundo exterior, a categoria do psiquismo tem um aspecto

egocêntrico, porque está intimamente ligado ao modo como o sujeito internaliza todas as

experiências do mundo externo. Este caráter egocêntrico será superado somente no plano

A metafísica como disposição natural do ser humano 21

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noético espiritual5. Há nesta categoria uma dialeticidade antropológica entre interioridade

e exterioridade. O mundo interior do sujeito é construído a partir de todas as suas

experiências vividas desde o seio materno e, ao mesmo tempo, estas experiências

internalizadas filtram o modo como ele lida com os acontecimentos do mundo exterior.

Esta categoria está situada numa posição mediadora entre a exterioridade do corpo próprio

e a absoluta interioridade do espírito. Está numa posição intermediária entre a experiência

corporal e a experiência espiritual.

Desde o ponto de vista filosófico, o eidos do psiquismo se define por esta posição mediadora entre a presença imediata no mundo pelo “corpo próprio” e a interioridade absoluta (ou a presença de si a si mesmo) pelo espírito. O psíquico se organiza segundo um espaço-tempo que não coincide com o espaço-tempo físico-biológico, ao qual está ligado o corpo, mas tem suas dimensões e seus ritmos próprios. Ele ordena o fluxo da vida psíquica em termos de percepção, representação, memória, emoções, pulsões. (VAZ, 1993, p. 193)

O estar-no-mundo através do psiquismo não denota mais presença imediata,

como acontecia com o corpo próprio, mas presença mediatizada pela percepção e pelo

desejo. Há uma passagem do estar-no-mundo para o ser-no-mundo via interiorização do

mundo ou construção do mundo interior. O psiquismo se dá em torno de dois eixos que são

a imaginação, que trabalha com as representações e o afetivo que está ligado às pulsões

psíquicas. “É o sujeito exprimindo-se fundamentalmente no “sentimento de si” e que se

consumará na unidade espiritual do eu inteligível” (VAZ, 1993, p.190).

O ser humano percebe o mundo exterior e se relaciona com ele a partir das

representações, imaginações, pulsões, desejos, memórias, emoções, etc. Nem sempre ele se

relaciona com as realidades externas (coisas ou pessoas) a partir do que elas realmente são,

mas a partir do que sente, imagina, representa, deseja, lembra ou projeta delas. É a

interferência do psiquismo no modo de internalizar as experiências do mundo externo:

A sensação só nos faz tomar consciência do próprio corpo. O sentimento, ao contrário, nos abre à apreciação do que nos rodeia. Além disso, os sentimentos geram uma conduta, enquanto que a sensação termina no senti-la. [...] Os sentimentos e as paixões são um mundo muito complexo, no qual intervém como em tudo, o psiquismo humano, a razão e a vontade. (STOCK, 2005, 61- 62)

5 Próxima categoria a ser estudada. A mais fundamental do discurso antropológico de Lima Vaz.

Pe. Edmar José da Silva 22

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O psiquismo abre o ser humano para o relacionamento propriamente humano,

chamado por Lima Vaz, de relacionamento entre duas totalidades intencionais. Apesar da

tendência egocêntrica do psiquismo, ele se abre ao relacionamento com o outro humano:

a reciprocidade constitutiva da relação com o outro mostra, assim, a impossibilidade do solipsismo. [...] Ora no termo da relação intersubjetiva, o sujeito tem diante de si um outro sujeito e deve assumi-lo no discurso de autoafirmação de si mesmo: vale dizer, tem diante de si uma outra infinidade intencional. (VAZ, 1995, 65)

Percebemos, portanto, que até na dimensão psíquica o ser humano manifesta

uma abertura para as realidades metafísicas. O psiquismo lida com realidades que não são

físicas: sentimentos, desejos, imaginação, aspirações (são todas realidades propriamente

metafísicas). Schopenhauer considera a vontade (realidade psíquica) como o aspecto mais

metafísico do ser humano. Isso nos leva a concluir que até no aspecto psíquico, o ser

humano é um animal metafísico. O seu psiquismo não está apenas ligado ao aspecto físico-

biológico, mas ao transcende.

No final do discurso sobre o psiquismo, Lima Vaz afirma que o homem é e não

é seu psiquismo. É seu psiquismo, porque este faz parte da sua essência. O homem não é

seu psiquismo porque a autoafirmação do sujeito na amplitude transcendental ultrapassa o

eidos do psiquismo, ou seja, é impossível esgotar no psiquismo o movimento dialético de

autoafirmação do sujeito. O discurso antropológico é impelido para além da fronteira do

somático e do psíquico e reclama outra categoria: o espírito (VAZ, 1993, p. 195).

1.3 Espírito (noético-pneumática)

A categoria do espírito constitui o ápice do discurso sobre a unidade estrutural

do ser humano6. Sem esta categoria, a compreensão do ser humano ficaria fragmentada e o

discurso antropológico ficaria incompleto: “Com a categoria do espírito ou com o nível

estrutural aqui designado como noético-pneumático, atingimos o ápice da unidade do ser

humano” (VAZ, 1993, 201).

O termo espírito é herdado da teologia e aplicado ao ser humano por analogia.

Não é um termo univocamente antropológico. Aplica-se ao ser humano por analogia de

atribuição: o análogo superior é o espírito infinito ou o absoluto. Neste sentido, pelo

6 Na nota de rodapé nº 1, p. 226, vasta bibliografia sobre o tema do espírito: cf. VAZ, 1993.

A metafísica como disposição natural do ser humano 23

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espírito o ser humano tem marcas do infinito, supera as determinações e as contingências

da sua realidade física e psíquica.

Lima Vaz chama a categoria do espírito de dimensão noético-pneumática do

ser humano. O termo noético (noésis em grego) revela que o ser humano é pensamento,

inteligência ou razão. O termo pneumático (pneuma em grego) revela que o ser humano é

espírito, é sopro, é liberdade. Segundo o autor, pela razão o ser humano se abre à verdade e

pela liberdade se abre ao bem. Em poucas palavras: a categoria do espírito faz com que o

ser humano se abra ao ser, ao transcendente, aos transcendentais do ser que, em última

análise, se correlacionam perfeitamente com o ser. É esta dimensão que mostra que o ser

humano é realmente um ser metafísico. Nela fica evidente que há no ser humano uma

abertura constitutiva para a busca e o acolhimento do ser. Aqui se dá o encontro frutuoso,

mas rechaçado por alguns modernos, entre metafísica e antropologia.

Ao nos elevarmos, no homem, ao nível do espírito, vemos anunciar-se a noção de espírito como coextensiva à noção de ser entendida segundo as suas propriedades transcendentais de unidade, verdade e bondade. Ela constitui, portanto, o elo conceptual entre a Antropologia Filosófica e a metafísica. Com efeito, na sua estrutura espiritual ou noético-pneumática, o homem se abre, enquanto inteligência (nous), à amplitude transcendental da verdade, e enquanto liberdade (pneuma), à amplitude transcendental do bem: como espírito ele é, pois, o lugar do acolhimento e da manifestação do ser e do consentimento ao ser: capax entis (VAZ, 1993, p. 202)

Dentro da tradição histórica, o termo espírito foi entendido de vários modos.

Inicialmente foi entendido como pneuma, ou seja, como princípio interno ou forma

superior de vida. Isso revela que no ser humano, vida não é apenas bios (vida natural), mas

zoé (vida com qualidades humanas). Espírito foi compreendido também como nous, ou

seja, como forma mais alta de conhecimento. Neste sentido, o ser humano possui não

somente o conhecimento empírico, mas se abre também para a contemplação, considerada

pelos gregos o mais alto grau de conhecimento. Espírito foi entendido também como logos.

Somente no ser humano a palavra inteligível é manifestação do pensamento. A linguagem

humana revela a dimensão espiritual do ser humano. O espírito foi compreendido também

como synesis, capacidade que o ser humano tem não somente de conhecer, mas conhecer

que conhece ou conhecer a si mesmo. Estes cinco tipos de compreensão do espírito

unificam os traços fundamentais da experiência espiritual (Cf. VAZ, 1993, p. 203- 204).

Para Lima Vaz, o espírito suprassume o somático e o psíquico. Suprassumir

não é suprimir, mas assumir elevando a uma condição mais elevada. Existe no espírito

Pe. Edmar José da Silva 24

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humano um duplo movimento: movimento ascendente, em que o espírito suprassume

elevando o somático e o psíquico e o movimento descendente, em que o espírito se

rebaixa, indo ao encontro do psíquico e do somático. É este movimento dialético do

espírito que confere ao corpo e ao psiquismo um estatuto verdadeiramente humano. É ele

quem os eleva a uma condição superior (Cf. VAZ, 1993, p. 221- 22).

Não podemos conhecer o espírito humano, mas sabemos que o ser humano é

espiritual por causa das diversas atividades que revelam que há algo superior nele. Pelo

espírito o mundo é compreendido e significado pelo homem, tornando-se mundo humano.

É o mundo da linguagem e das formas simbólicas. A cultura, nas suas diversas facetas, é

manifestação da dimensão espiritual do ser humano: linguagem, religião, política, ética,

arte, vida social. São manifestações espirituais, por isso, a cultura é chamada de totalidade

espiritual. O homem possui uma vida segundo o espírito e isso se manifesta através dos

atos espirituais:

A vida segundo o espírito será, portanto, para o homem, o exercício dos atos que manifestam o espírito como o princípio mais profundo e essencial da vida humana. [...] O ato espiritual é o ato pelo qual se exerce e se manifesta no homem a vida do espírito. Como tal ele é, por excelência, o ato humano, e seu fundamento é a estrutura ontológica total do ser humano. (VAZ, 1993, pp. 240-241)

Se o corpo coloca o homem em contato imediato com o mundo e o psiquismo

está ligado às dimensões das sensações e do instinto no ser humano, o espírito o abre para

os transcendentais do ser: verdade, unidade, bondade e beleza. O espírito aponta para o que

existe de mais específico na estrutura humana, aponta para a sua dimensão de abertura

constitutiva para as diversas realidades: coisas, pessoas e o absoluto. Pelo espírito, o

homem se abre ao transcendente formal (verdade) ou real (Deus):

A vida segundo o espírito manifesta-se como vida propriamente humana. Ela o é justamente em virtude da correspondência transcendental entre o espírito e o ser. E como o homem existe na sua abertura transcendental para a universalidade do ser ou na sua adequação ativa com o ser, o homem existe verdadeiramente enquanto espírito, ou a vida propriamente humana é a vida segundo o espírito. (VAZ, 1993, p. 239)

Descobrir a estrutura espiritual do ser humano é descobrir as reais condições de

possibilidade do seu agir, é perceber que ele é um ser estruturalmente aberto. O espírito,

apesar de ser a interioridade absoluta do sujeito, ao invés de circunscrevê-lo

egoisticamente em si mesmo, o abre para o Outro absoluto:

A metafísica como disposição natural do ser humano 25

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É nesse nível que o ser do homem abre-se necessariamente para a transcendência: trata-se de uma abertura propriamente transcendental, seja no sentido clássico, seja no sentido kantiano-moderno, que faz do homem nesse cimo do seu ser que é também, para usar outra metáfora, o âmago mais profundo da sua unidade, um ser estruturalmente aberto para o Outro. No horizonte do espírito, o Outro desenha necessariamente seu perfil como outro relativo na relação intersubjetiva, e se anuncia misteriosamente como Outro absoluto na relação que deverá ser dita propriamente relação de transcendência. (AF I, 201)

No final do discurso antropológico, podemos afirmar que o homem é

estruturalmente um ser espiritual, ou seja, um ser metafísico. Aqui não há a negação das

categorias do corpo e do psiquismo, visto que o espírito é aquela dimensão mais própria e

mais específica do ser humano e é ele quem salvaguarda a unidade das categorias

estruturais.

Podemos concluir afirmando que a vida propriamente humana é a vida segundo

o espírito. Todas as vezes que o homem age envolvendo a sua razão e liberdade, ele está

agindo de modo propriamente humano. Joseph de Finance (filósofo francês, neotomista)

distingue ações do homem e ações humanas. As ações do homem são todas as ações feitas

pelo ser humano, inclusive aquelas que são ditadas pelos instintos. As ações humanas, ao

contrário, são somente aquelas ações espirituais em que concorrem a razão e a liberdade.

Do ponto de vista ético, somente as ações humanas podem ser julgadas, porque o resto é

instintivo.

O espírito é interioridade absoluta que ao invés de fechar o ser humano em si

mesmo, pelo contrário, gera abertura não somente para as coisas e os demais seres

humanos, mas uma abertura radical para o ser, para o sentido. A categoria do espírito

permite a unidade do ser humano. Nela há a superação da pura exterioridade e

imediaticidade do corpo próprio e a interioridade egocêntrica do espírito. Pelo espírito o

homem se torna capax Dei, capax entis. O espírito revela o excesso ontológico que existe

na estrutura humana. E é por causa deste excesso ou superabundância de ser que o ser

humano se apresenta como sempre inquieto e sempre aberto a um “mais”. Ele nunca se

realiza somente nas coisas físicas ou nos relacionamentos meramente humanos, mas aspira

e busca o transcendente.

É justamente no encaminhar-se para a transcendência que o itinerário perfaz a reflexão total do espírito sobre si mesmo e o sujeito pode reencontrar-se no nível mais profundo do seu ser, onde, enquanto espírito, acolhe o Absoluto presente como verdade, como bem e como ser a todo ato de inteligência e liberdade. (VAZ, 1995, p. 96)

Pe. Edmar José da Silva 26

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A estrutura constitutiva do ser humano o abre para realidades metafísicas. Pelo

fato de ser um ser espiritual, o ser humano está sempre em busca do absoluto sentido de

valor do seu ser e agir, bem como do ser das outras realidades que o cercam:

É desse excesso ou dessa superabundância do espírito que procede, de resto, o dinamismo mais profundo da história e a inexaurível gestação de formas de busca ou expressão do absoluto que acompanha o curso história e que é a atestação mais evidente da presença da relação de transcendência na constituição ontológica do sujeito. (VAZ, 1995, p. 93)

O espírito é inteligência e amor. Como inteligência o ser humano acolhe o ser e

como amor ele vê o ser como dom.

Segundo Lima Vaz, nem a ideologia própria da razão técnico-cientifica pode

anular a dimensão metafísica do ser humano:

O ato de julgar algo ou alguma coisa (o juízo), ato banal e infinitamente grave, permite entrever na alma do homo technicus a subsistência do homo metaphysicus. Afinal o universo técnico-científico não consegue deixar de revelar uma dimensão inequivocamente metafísica, exatamente ao pretender substituir a própria metafísica, a qual por sua vez aponta para o problema da existência na verdade o mais metafísico dos problemas. (VAZ, 1997, p. 118)

Conclusão

Como se percebe, a metafísica é uma disposição natural do ser humano. Todo

ser humano, pelo simples fato de ser humano, já possui na sua própria estrutura

constitutiva uma abertura para um “mais”, possui um desejo metafísico, para usar a

linguagem de Lévinas:

O Outro metafisicamente desejado não é «outro» como o pão que como, como o país em que habito, como a paisagem que contemplo, como, por vezes, eu para mim próprio, este «eu», esse «outro». Dessas realidades, posso «alimentar-me» e, em grande medida, satisfazer-me, como se elas simplesmente me tivessem faltado. Por isso mesmo, a sua alteridade incorpora-se na minha identidade de pensante ou de possuidor. O desejo metafísico tende para uma coisa inteiramente diversa, para o absolutamente outro. (LEVINAS, 1988, p. 21)

Ser metafísico não é luxo ou privilégio intelectual de um grupo que dispõe de

tempo e recurso financeiro para propor interrogações a respeito do fundamento último das

realidades diversas. No sentido mais amplo e fundamental, podemos afirmar com o prof.

A metafísica como disposição natural do ser humano 27

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Macdowell, que “o ser humano é essencialmente metafísico: a metafísica é consequência

necessária da sua racionalidade.” (MACDOWELL, 2002, p. 11). Ao descobrir o seu

próprio ser, o homem desvela sua ordenação essencial e natural ao absoluto ou às

realidades metafísicas: “no manifestar-se a si mesmo ou na reflexão sobre si mesmo, o ser

humano desvela sua ordenação essencial ao absoluto” (VAZ, 2000, p. 24).

Dentro desta perspectiva, podemos afirmar que o homem é um cidadão de dois

mundos, como afirmava o filósofo moderno Kant. Ele habita o mundo sensível do

conhecimento natural e o mundo suprassensível da liberdade (cuja lei é ditada pela razão).

Na perspectiva de Lima Vaz, o homem habita o mundo sensível da matéria, mas pelo fato

de ser espiritual, transcende os limites da própria materialidade. Está sujeito às limitações

impostas pelo mundo físico-material, mas tem condições de transcender este mundo pela

sua capacidade racional. Ele eleva a matéria a uma dignidade maior e reduz o espírito,

porque nele o metafísico toca o físico. Aproveitando ainda as palavras de Giordano Bruno,

o homem se situa no limite entre o tempo e a eternidade, participando de ambos. Ouso

acrescentar ainda mais: o homem se situa entre o as realidades contingentes, mas

procurando o necessário que dê sentido à sua existência e à suas ações; se situa entre o que

é relativo, procurando o absoluto; se situa entre o efêmero, procurando o estático. Há no

ser humano um desejo de permanência e de eternidade que nasce da sua própria estrutura

ontológica.

Para Lima Vaz, a experiência mística, compreendida no sentido mais amplo

como “forma superior de experiência de natureza religiosa, ou filosófico-religiosa” (VAZ,

2000, p. 9), seja ela especulativa (mística como prolongamento da experiência metafísica)

ou mistérica (mística como experiência do divino), se funda inconfundivelmente na

estrutura espiritual do ser humano: “A experiência mística deve ser reconhecida como fato

antropológico singular, cuja singularidade só pode ser reconhecida e interpretada nos

quadros de uma adequada filosofia do ser humano” (VAZ, 2000, 27). Isso quer dizer que

toda experiência mística, que por si mesma é de cunho metafísico, só é possível por causa

da estrutura constitutiva do ser humano que o habilita para tal. É na categoria espiritual do

ser humano que reside a abertura para qualquer tipo de experiência metafísica.

O discurso que ora apresentamos constitui a base e fundamento da realização

da metafísica ocidental. Nenhum outro ser no mundo faz metafísica, somente o ser

humano. Isso porque somente ele possui disposição estrutural e natural para tal. Portanto,

pode-se questionar a respeito da validade do discurso metafísico, mas não da disposição

Pe. Edmar José da Silva 28

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

natural que o homem possui para fazê-la. Pode-se questionar a respeito do valor do

discurso metafísico, considerando-o um discurso violento e totalizante, mas não sobre a

capacidade natural que o ser humano tem de buscar o sentido das diversas realidades. Os

questionamentos dirigidos à metafísica enquanto ciência ou ao discurso sobre o ser, não

invalidam a reflexão feita, pelo contrário, somente atestam a capacidade que o ser humano

tem, pelo fato de ser um ente espiritual, de estar sempre revendo os seus conceitos e o seu

modo de interpretar as diversas realidades e a si mesmo.

Concluímos esta conferência afirmando:

a metafísica não somente é importante, como também é uma necessidade. Para o homem, a metafísica é uma exigência biológica, ou seja, é uma exigência conatural, primária e fundamental, como a necessidade do comer, do dormir e do vestir-se. O homem é naturalmente metafísico, um animal metaphysicum, como o chama Schopenhauer, porque é dotado além do corpo também de psiquismo e espírito. Ora, o espírito o direciona necessariamente para além do físico, da matéria, do natural, o faz superar as barreiras espaço-temporal e penetrar no transcendente (MONDIN, 1999, p. 12, tradução nossa).

Como afirma Cornélio Fabro, o homem que renuncia à metafísica recai na

animalidade (cf. FABRO, 1967, p. 130). Fazer metafísica, ainda que não de forma

acadêmica, é atividade própria, específica e primária do ser humano. O homem não é

somente um registrador dos eventos que o circundam ou um potentíssimo computador, ele

não é somente memória ou fantasia, ele é antes e sobretudo, razão e esta capacidade o leva

a levantar interrogativos, a por questões, a buscar o porque de sua existência e de tudo

aquilo que lhe acontece (Cf. MONDIN, 1999, p. 13).

O próprio Kant admitia que a metafísica não é uma invenção arbitrária de uma

época particular da humanidade, mas uma exigência fundamental da razão humana:

é uma disposição natural da nossa razão que tem gerado a metafísica como a sua filha predileta: geração que como qualquer outra geração do mundo, não é devida ao capricho do acaso, mas a um germe originário, que está pré-formado sabiamente para altíssimos fins. A metafísica é talvez, mais do que qualquer outra ciência, já predisposta em nós, nos seus traços principais (KANT, 1988, p. 130-131).

Portanto, “viva” a metafísica! Viva a metafísica porque ela merece louvor,

aplausos e aclamações e viva a metafísica porque é algo tão enraizado na estrutura humana

que é impossível o vivente humano abdicar-se dela.

A metafísica como disposição natural do ser humano 29

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Bibliografia

AGOSTINHO. Confissões. SP: Martin Claret, 2002.

ARISTÓTELES. Metafísica. SP: Editora Abril, 1973.

FABRO, Cornélio. L’uomo e Il rischio di Dio, Roma: ESD,1967.

FINANCE, Joseph de. Cittadino di due mondi. Vaticano: editrice vaticana, 1993.

KANT. Prolegômenos a toda metafísica futura: que queira apresentar-se como ciência. Lisboa: Edições 70, 1988.

KASPERS, K. Gesú Il Cristo, Queriniana: Brescia, 1975.

LEVINAS, E. Totalidade e infinito. Trad. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988.

MACDOWELL, João Augusto A. “O fim do fim da metafísica”. Revista Reflexões, Mariana, vol. 01, nº 01, 2002.

MONDIN, Battista. O homem quem é ele? SP: Paulinas, 1983.

___________. Ontologia e metafísica. Bologna: ESD, 1999.

PONTY, Merleau. Fenomenologia da percepção. 2ª ed. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. SP: Martins Fontes, 1999.

SAMPAIO, Rubens Godoy. Metafísica e modernidade: método e estrutura, temas e sistemas em Henrique Cláudio de Lima Vaz. SP: Loyola, 2006.

STORK, Ricardo e ECHEVARRÍA, Javier. Fundamentos de Antropologia. Um ideal de excelência humana. Trad. Patrícia Carol Dwyer. SP: Instituto brasileiro de Filosofia e ciência. Raimundo Lulio, 2005.

VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Antropologia Filosófica I, SP: Loyola, 3ª ed., 1993.

___________. Antropologia Filosófica II, 2ª ed.,1995.

____________. Escritos de Filosofia III: filosofia e cultura. SP: Loyola, 1997.

____________. Experiência mística e filosofia na tradição Ocidental. SP: Loyola, 2000.

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

A Liturgia como Epifania do Mistério Trirrelacional

Pe. Joaquim Cavalcante1

Introdução

Gostaria de iniciar minha fala agradecendo a Equipe Organizadora desta

Semana Acadêmica, pela delicadeza do convite que me oferece a oportunidade deste

fidalgo e fraterno convívio. Promover eventos como este enobrece, fecunda e agiganta este

Instituto, cujo nome é uma perene proclamação da vitória de Cristo que por amor nos

salvou na cruz do Calvário. Os protagonistas não são os que sabem mais, são os que mais

se empenham por isso eles marcam a história por onde passam. Foi me pedido que falasse

algo sobre a Divina Liturgia. E, sem nenhuma pretensão, eu aceitei expor algo sobre “A

liturgia como epifania do mistério trirrelacional”. Falo sobre a liturgia em um lugar

privilegiado e em um momento especial, pois estamos celebrando os 50 anos da

Sacrosanctum Concilium, o maior documento da história sobre a liturgia. Falo em um

momento singular da minha vida, pois este ano, estou celebrando meus 25 anos de

ministério sacerdotal. Boa parte desse tempo foi dedicada ao estudo e ao ensino da liturgia.

Desenvolvimento

Para entrar no assunto, tomo a compreensão teológica arquetípica da liturgia

como mistério. Isto é, a liturgia, antes de tudo, é uma ação teândrica-eclesio-trinitária. Por

isso mesmo pode ser pensada como epifania do mistério trirrelacional. O mistério

trirrelacional é o mistério trinitário, é o mistério de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. É o

mistério da fé que professamos como mistério trinitário e celebramos como mistério

trirrelacional.

A Trindade é a íntima constituição de Deus em si mesmo. Deus é

absolutamente Uno e relacionalmente trino. Isto é em uma só natureza ou essência

subsistem três Pessoas distintas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. O mistério trirrelacional

é o mistério da Trindade pensada na teologia como Trindade imanente e econômica e

celebrado, na liturgia, como Trindade litúrgica. A trirrelacionalidade se afirma na

1 Professor, Escritor e Doutor em Teologia pela PUG-Roma

A Liturgia como Epifania do Mistério Trirrelacional 31

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

indivisível consubstancialidade e a distinção de pessoas e se dá na mais absoluta e

indivisível comunhão.

Reportemo-nos para o Monte Tabor. Tomo o evento da transfiguração para

pensar a liturgia na perspectiva da fenomenologia do mistério. A celebração litúrgica é

locus fenomenológico da economia do mistério. Nesse sentido a liturgia é uma realidade

que pode ser pensada também na ótica da metafísica. Antes de tudo, a liturgia é uma ação

simbólica apontando para além de. E na economia liturtico-sacramental o simbólico fala,

comunica e remete para outra realidade sempre maior do o que vemos e tocamos.

O símbolo quer sempre unir o real ao que lhe transcende. A simbologia é a

gramática da celebração. É, também, a linguagem do amor. A linguagem do amor tem

necessidade da ritualidade simbólica para que o amante expresse à amada seu real

sentimento e vice e versa. Por meio da fenomenologia da linguagem dos signos o amado se

dá, se explica e se comunica com a sua amada e a amada com seu amado. Cada elemento e

gesto simbólico traz, em si, a força do fascínio que transcende o efêmero e enche o

transitório de sentido infinito. É nesse sentido que entendo a divina liturgia como evento

metafísico e mistagógico2.

Enquanto a semiótica “é ciência que investiga os mecanismos mentais que

conduzem ao entendimento dos signos e sua significação”, a liturgia é ciência que, por

meio da ritualidade, signos e linguagem introduz no mistério e expressa o mistério. Essa

ação é fenomenológica físico-real marcada pela ótica dos sinais e da significação da

linguagem da transcendência. Celebrar é transcender. É pregustar na terra o sabor do céu.

Celebrar é mergulhar no transcendente fascinante presente na imanência transitória.

Com essas premissas, pode-se entender melhor o ser humano na sua

multidimensionalidade. Pois, enquanto celebra, ele vai se afirmando, também, como ser

lúdico, religioso, pensante e transcendente.

O homem não nasceu para ser enquadrado em nenhum esquema porque, ele

transcende todas as estruturas. Custei compreender o significado do verbo transcender. Foi

o grande baluarte do martírio moral, Cardeal François van Tuan, em meio às atrocidades

do comunismo selvagem do Vietnã, a quem tive a graça de ouvi-lo algumas vezes na

cidade de Pedro, que me fez compreender melhor o que quer dizer transcender. Para mim,

ele foi o ícone do homem que soube transcender estruturas de confinamento. Pela força da

2 Mistagogia é uma palavra composta de duas partes: mist’ + agogia. Mist’ vem de mistério e agogia tem a ver com ‘conduzir’, ‘guiar’... Podemos traduzir mistagogia como a ação de guiar para dentro do mistério.

Pe. Joaquim Cavalcante 32

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

fé, ele transcendia as paredes gélidas daquela cela escura e, por mais de nove anos, com

um fragmento de pão e umas gotas de vinho, ele fazia da sua mão trêmula o altar, a patena

e o cálice da oblação. E aquele cárcere, palco de tortura, enchia-se daquela glória do Tabor.

Por isso transcender é ir além de todos os limites.

O homem, animado pelo fenômeno da fé, irrompe todas as grades e

experimenta na história e no mundo o que ele espera em definitivo. Tomemos outro

exemplo simples que emana da celebração eucarística. No diálogo inicial da proclamação

da Anáfora, o Hierarca (para ser fiel à linguagem de Dionísio Areopagita), nos convida a

elevar o nosso coração ao alto. Segundo Cirilo de Jerusalém, elevar o coração ao alto é ter

o coração em Deus3. Pergunto: pode haver experiência de transcendência maior e melhor

que essa, está na terra com o coração em Deus?

Também na celebração eucarística somos convidados a unir nossa voz à voz

dos anjos e dos santos e na intimidade de filhos e filhas entoamos com as cortes celestes,

sem diafonia, o triaghion dos anjos narrado por Isaias 6,3. Cantar a sinfonia dos anjos já é

uma grande coisa. Cantar com os anjos e santos, não é uma esplêndida experiência de

transcendência? Qual outra ciência possibilita tamanha experiência metafísica?

A liturgia como epifania do mistério de Deus nos faz sair do íntimo e secreto

invólucro útero da história e nos insere no sacrário do amor que é o coração de Deus. Ao

mesmo tempo, “o poder transformador do Espírito Santo na liturgia apressa a vinda do

reino e a consumação do mistério da salvação4”.

Liturgia, epifania do mistério de Deus. Deus, palavra que evoca adoração na

experiência da fé e negação frequente no palco dos ditadores do império relativista e

agnóstico. Com frequência, proclamam, sem escrúpulo, em muitas universidades e centros

acadêmicos que Deus não existe. Outros ridicularizam a Igreja numa orquestra de ruídos

estridentes com a intenção de torná-la refém de um silêncio obsequioso e covarde. Para

isso, alguns se referem à Igreja de Cristo como uma simples instituição responsável pelo

atraso histórico e as tragédias da humanidade. Tal discurso é falso e injusto.

Penso que, tais vozes usam essa orquestra dissonante, para afirmar duas coisas:

que o mundo criado por Deus não tem mais lugar para ele e que a Igreja de Deus não é

lugar para o homem. Tais afirmações parecem-me carentes de sentido histórico e espiritual.

Por isso celebrar é afirmar a primazia de Deus no mundo. A liturgia como epifania do

3 Cirilo de Jerusalém, quinta catequese mistagógica, 4. 4 Catecismo da Igreja Católica, n° 1107.

A Liturgia como Epifania do Mistério Trirrelacional 33

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

mistério, é o momento singular da afirmação da fé eclesial no Deus Uno e trirrelacional. É

nesse sentido que a Igreja opera com a Trindade, na liturgia, atualizando a mistério da

salvação.

Por esse razão, Andronikof, um grande teólogo oriental, fala da liturgia como

evento teofânico. Para ele “a vida litúrgica transfigura o mundo em reino de Deus por

antecipação profética” (ANDRONIKOF apud MALDONADO, 1997, p. 46). Sim, a

liturgia é epifania porque por meio dela “realiza-se a cooperação mais íntima entre o

Espírito Santo e a Igreja”. A celebração litúrgica revela e presentifica a vida eclesial e faz

nela aparecer a epifania do reino e o sabor de Deus. Até o pão singelo fala do inefável é

mistério. Como diz o poeta italiano Bruno Ferrero: “o pão é um mistério. Comer o pão é

degustar Deus, é saborear Deus, o pão não é só pão, ele tem o gosto de Deus”.

A liturgia é a hora tabórica da Igreja. Celebrar é subir ao Monte Tabor e, por

força da grave responsabilidade do oficio de pastor, devemos também, descer entre as

palafitas e subir os morros dos favelados. Quando entramos nos presídios, asilos e

assentamentos. Também quando celebramos nas casas de formação. Qualquer lugar onde

celebramos, seja um leprosário ou uma majestosa catedral, ali é a hora tabórica da Igreja,

porque ali se dá a teofania de Deus.

Assim, podemos dizer que o evento do Tabor é o paradigma da liturgia da

Igreja. Por isso nossas celebrações devem suscitar o desejo de prolongar o tempo na

presença do cordeiro ressuscitando e glorificado. Nossa liturgia deve levar à participação

ativa e frutuosa, não ao ruído dispersivo e irritante. A epifania do mistério é alteridade que

evoca continuidade, intimidade e intensidade na contemplação.

O Tabor e o paradigma da transfiguração devem ser refigurados nas nossas

celebrações. Pedro e seus companheiros nos ensinam que diante da epifania do mistério

devemos construir tendas. As tendas expressam o desejo de intensificar a experiência e

eternizar o tempo diante da epifania do mistério.

Compreendemos, assim, que o tempo não se conta, quando somos envolvidos

e tocados pelo esplendor da glória. A liturgia não é o Sinai da Torá, é o Tabor, onde o

Verbo que se fez homem fala pelo esplendor da sua glória. Da nuvem a voz retumbante do

Pai proclama na ação do Paráclito, o principio sem princípio daquela divina filiação. Em

meio às tendas que Pedro idealizava, o Filho, Shekinah de Deus, se manifestou como o

Senhor daquela glória da qual estão cheios o céu e a terra. Que estupendo convívio!

Pe. Joaquim Cavalcante 34

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

É nesse sentido que entendemos a liturgia como epifania do mistério, porque

compreendemos que a liturgia é o mistério em ação. Que mistério? O mistério trinitário, o

mistério pascal e eclesial, o mistério da fé.

A celebração litúrgica não pode não ser compreendida senão como iconografia

do mistério. Mistério que se dá na economia da ritualidade, na sinfonia das vozes e no

silêncio apofático da contemplação. O silêncio pode ser paradoxalmente compreendido,

como o estrondo do mistério.

Quando falo mistério eclesial, estou proclamando que a Igreja é mistério de fé.

Assim professamos na Regula Fidei: “creio na Igreja una, santa, católica e apostólica”.

Tudo isso constitui o arsenal basilar das verdades da nossa fé. Fé professada no rito

batismal, no testemunho dos santos e mártires, pensada pela teologia, sistematizada no

dogma e celebrada na liturgia. A fé vê além do que não se ver. Como diz Adélia Prado:

“ninguém vê o cordeiro degolado na mesa, o sangue sobre as toalhas, seu lancinante grito,

ninguém”.

Mas é ao redor da mesa do Cordeiro que a Igreja dança na liturgia. Também

Santo Atanásio, Patriarca de Alexandria, falava sobre o mistério da liturgia como a dança

da Igreja ao redor do seu Senhor.

Todo o mistério da fé aparece no mistério da transfiguração. O Pai proclama a

primazia do seu amor para com o seu unigênito Filho. A nuvem é configuração da presença

do próprio Deus. E sobre aquele monte, a Igreja, no Espírito, contempla por Cristo, a glória

escatológica. Pois, na pessoa dos discípulos estava toda a comunidade eclesial. O mistério

da transfiguração é o paradigma antecipado da liturgia compreendida como graça

concedida aos descendentes de Abraão (C. Andronikof, 47). O evento do Tabor congregou

os filhos do antigo pacto (Moises e Elias) e evidencia as testemunhas da nova e eterna

aliança, Pedro, Tiago e João.

A glória do Tabor é teofania da tríade divina. Glória manifestada aos discípulos

que espasmodicamente, ali queriam permanecer. “Eles experimentaram, assim, a parusia

antecipada; eles são, dessa forma, lentamente introduzidos em toda a profundidade do

mistério de Jesus” (BENTO XIV, 2007, p. 270). O mistério de Jesus é o mistério de Deus é

o mistério de amor. O amor pede aproximação e continuidade até chegar à plenitude da

comunhão. A comunhão é o êxtase da fé que nos faz cantar como os bizantinos cantam no

tropário das vésperas de Pentecostes e depois do rito da comunhão: “vimos a luz

A Liturgia como Epifania do Mistério Trirrelacional 35

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

verdadeira, recebemos o Espírito celeste, encontramos a verdadeira fé, adoramos a

Trindade indivisível, que nos salvou”.

Conclusão

Gostaria de concluir esta reflexão com três provocações:

1. Pensar a liturgia como epifania do mistério trirrelacional, impõe-se a

necessidade de aprofundar a semiótica litúrgica para favorecer o desvelamento reflexivo

da ontologia trinitária.

2. Nosso modo de celebrar o mistério da fé que é o mistério trirrelacional, ou

seja, o mistério de Deus em si mesmo, nos leva à contemplação ou à dispersão?

Certamente urge resgatar o verdadeiro sentido do mistério da liturgia para que nossas

missas não sejam nem ritos frios, nem diversão religiosa?

3. Que o primado do mistério trirrelacional, mistério indivisível e

consubstancial, que opera com a Igreja na divina liturgia possa ser adorado e glorificado

como Trindade que nos salvou. Tudo isso seja para glória do Pai que nos criou, para o

louvor do Filho que nos redimiu e a adoração do Santo Paráclito que nos santifica com o

Pai e o Filho na santa Igreja, tabernáculo e santuário de Deus.

Muito obrigado!

Referências Bibliográficas

BENTO XVI. Jesus de Nazaré. São Paulo: Planeta, 2007.

MALDONADO, L. Sacramentalità, sacramenti e azione litúrgica. Milano: San

Paolo, 1997, 46.

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Metafísica na Ciênc ia da Lógica de Hegel

Júlia Sebba Ramalho de Morais1

Resumo: O presente trabalho pretende apresentar a concepção de Hegel acerca do conceito de Metafísica como ciência de apreensão do verdadeiro e do conhecimento de Deus – tal como Hegel o expõe na Lógica da Enciclopédia. Para tanto, discutir-se-á, antes, as críticas de Hegel ao método trabalhado pela Metafísica anterior que, segundo o autor, segue a linha do que ele chama de “objetividade metafísica”. Conforme Hegel, tal método baseava-se, fundamentalmente, na compreensão do verdadeiro e das essências segundo um conhecimento apenas representativo e segundo simples atribuição de predicações aos objetos investigados. Na perspectiva hegeliana, tal metodologia é equivocada, pois não trata os sujeitos e os objetos em questão segundo a lógica interna ao conceito, que, para Hegel, abarca uma profunda unidade entre subjetividade e objetividade.

Esta antiga Metafísica supunha de antemão a existência dos objetos que pretendia investigar, atribuindo aos mesmos predicados e características segundo abstratos raciocínios proposicionais, sem investigar a configuração complexa e determinações internas aos mesmos. Diferentemente, para Hegel, deve-se investigar o movimento do conceito que se autodesenvolve autonomamente abarcando diversas determinações e momentos; somente, assim, diz ele, atinge-se a autoafirmação do saber absoluto acerca do real. Com base nesta discussão, as questões centrais tratadas pela antiga Metafísica – alma, mundo e Deus – assumem uma perspectiva diferente de tratamento, sendo concebidas, segundo o método hegeliano, no interior do auto-movimento absoluto do conceito subjetivo que encontra-se presente na realidade do objeto – e não como simples ideias mentais abstratas. O presente trabalho, portanto, se dividirá em duas partes: primeiramente procurará apresentar as teses críticas de Hegel a respeito do método da “objetividade metafísica” e, sem segundo lugar, procurará delinear, em linhas gerais, como Hegel compreende o verdadeiro auto-movimento conceitual para a apreensão da essência de Deus e das demais questões metafísicas, tal como expõe na Introdução de sua Lógica da Enciclopédia.

Palavras-chave: Metafísica, Conceito, Conhecimento Verdadeiro, Método, Deus.

Falar do conceito de Metafísica na Lógica hegeliana parece ser uma tarefa

muito ampla, dado que podemos entender, de certo modo, toda a obra de Hegel como uma

discussão com temas metafísicos da tradição filosófica. Além disso, Hegel não delimita

aquilo que seria a perspectiva metafísica tradicional de seu sistema, ou mesmo a esfera que

poderia ser intitulada propriamente como a ciência Metafísica de sua filosofia. De outro

modo, encontramos dissolvidas em seus textos questões metafísicas de variadas espécies

abordadas segundo um novo método de apreensão e afirmação, que é aquele do saber

absoluto. Nesta perspectiva, podemos afirmar que Hegel se sente tocado pelas velhas

indagações filosóficas acerca de Deus, da alma, da infinitude. No entanto, o modo como as

aborda não se enquadra no interior do procedimento investigativo da antiga Metafísica

escolástica e também da Metafísica do início da Idade Moderna; antes, parte de uma

1 Professora Assistente no curso de Filosofia do Campus Cidade de Goiás da UFG.

Metafísica na Ciência da Lógica de Hegel 37

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

atitude crítica perante as mesmas. Com efeito, os fundamentos, propósitos e o método de

investigação da verdade operado pela ciência Metafísica como um todo já foram criticados

por Kant logo antes de Hegel. Nesta medida, a fim de melhor circunscrever a crítica de

Hegel ao antigo método da Metafísica e, ainda, sua nova postura frente aos conteúdos desta

ciência, buscando encontrar o viés metafísico de sua filosofia, convém rapidamente

retomarmos a perspectiva crítica de Kant a respeito do saber metafísico. Isso porque, de

certo modo, o argumento kantiano influenciou os termos das reflexões filosóficas

posteriores a ele, sobretudo daquelas empreendidas pelo Idealismo Alemão, incluindo

Hegel.

1.

Em sua Crítica da Razão Pura, Kant buscou verificar a possibilidade da

Metafísica como uma ciência dos conhecimentos puros; em termos mais amplos, procurou

inquirir acerca da possibilidade de um conhecimento que tivesse sua origem

fundamentalmente nos dados a priori da razão independentemente de toda experiência

empírica. Nesta medida, conforme Kant, o verdadeiro problema de toda a história da

faculdade da razão está em se pesquisar sobre quais princípios e até que limites se pode

aspirar conhecer para além de toda experiência sensível. Segundo afirma, dentre as

ciências puramente teóricas, apenas a Matemática e a Física obtiveram visível progresso e

extensão de seus conhecimentos em relação à sua parte pura (Cf. KANT, 2010, p. 50).

Enquanto a Metafísica, sustenta Kant, até agora parece não ter alcançado seu propósito

inicial – que é aquele de conhecer a verdade das coisas em si mesmas e dos entes

sobrenaturais – e, além disso, encontra-se mergulhada em um teatro confuso de disputas

infindáveis (Cf. KANT, 2010, p. 3).

Isso se deve, de modo geral, a dois fatores: primeiro, a Metafísica buscava e

acreditava conhecer os objetos ultrapassando completamente o nível da experiência

sensível, sem poder reconhecer nesta qualquer pedra de toque. Em segundo lugar, em sua

busca pela verdade, a Metafísica guiava-se pelas representações dos objetos que procurava

investigar; estes, já eram de antemão estabelecidos pela representação e, por consequência,

regulavam e determinavam a postura investigativa da razão.

Estas duas posições abarcavam a raiz do confuso procedimento da Metafísica

e, ademais, de suas afirmações ilusórias. No que tange ao segundo ponto, deve-se ter claro

que, para Kant, o método do conhecer tem, na verdade, seu ponto de partida no sujeito, de

Júlia Sebba Ramaho de Morais 38

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

maneira que é o objeto que tem de se submeter e guiar-se pelas faculdades e princípios

cognitivos do eu pensante – e não, como concebia a Metafísica tradicional, o sujeito guiar-

se pela representação dos objetos. Em relação ao primeiro ponto, devemos salientar que

extrapolar o âmbito da experiência sensível, para Kant, significa desconsiderar uma das

duas grandes e indispensáveis fontes dos princípios do conhecimento humano, que é

aquela da sensibilidade (Cf. KANT, 2010, p. 88). Com efeito, conforme Kant, o

conhecimento provém da unidade das formas a priori do espaço e do tempo, pertencentes à

sensibilidade, em conjunto com os conceitos puros de nosso entendimento. Juntos,

sensibilidade e entendimento organizam o dado empírico bruto que nos afeta externamente.

Nesta perspectiva, o conhecimento é apenas um saber fenomenal, que apreende somente os

objetos sensíveis tais como aparecem a nós, se adequando ao nosso aparelho cognitivo – e

não um conhecimento objetivo das coisas em si mesmas, ou de suas essências.

Portanto, no interior deste panorama da Crítica da Razão Pura, a Metafísica,

tal como era empreendida até então, não poderia produzir conhecimentos verdadeiros

acerca de seus objetos suprassensíveis, uma vez que alargava-se completamente para além

do terreno da experiência. Na linha deste argumento, Kant reserva uma parte significativa

de sua obra – a “Dialética Transcendental” – para criticar os objetos particulares clássicos

da Metafísica: o conceito de alma, pertencente à antiga “Psicologia Racional”, em seguida

o conceito de mundo e liberdade, pertencente à velha “Cosmologia” e, por fim, o conceito

de Deus, da chamada “Teologia Racional”. O que é preciso destacar, no entanto, é que,

segundo Kant, apesar de a Metafísica não ser possível como ciência dos conhecimentos

puros, permanecerá, todavia, sempre, como disposição natural de nosso espírito.

Diferentemente de Kant, no entanto, as antigas questões metafísicas tocam as

especulações de Hegel, de modo que podemos afirmar que subsiste um viés fortemente

transcendente em sua filosofia. No entanto, o que pretendo mostrar no presente trabalho é

que além de tais questões mergulharem-se na filosofia hegeliana sob o paradigma de um

novo método de investigação e adquirirem, destarte, uma nova face, a análise de Hegel

sobre as essências, sobre Deus, alma e liberdade, é precedida por uma crítica radical, com

certo viés kantiano, ao antigo procedimento metafísico. Com base nestas considerações

introdutórias, dividirei o texto que se segue em duas partes: primeiramente, pretendo

delinear os principais aspectos da crítica de Hegel ao que ele chama de “objetividade

metafísica”, que consiste na posição ingênua desta ciência em face do saber. Nesta análise,

procurarei apontar para possíveis aproximações com a perspectiva crítica de Kant que

Metafísica na Ciência da Lógica de Hegel 39

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

vimos acima resumidamente. Em seguida, procurarei expor o que poderíamos conceber

como ciência Metafísica em Hegel, segundo o ponto de vista do método do saber absoluto

trabalhado na Lógica da Enciclopédia.

2.

No “Conceito Preliminar” da Lógica da Enciclopédia, Hegel disserta sobre o

objeto da Lógica e sobre a natureza de seu conhecimento científico. No interior desta

discussão, aborda a posição inquiridora do saber a respeito da objetividade elaborado pela

Antiga Metafísica. Esta Antiga Metafísica corresponde, para Hegel, à filosofia Escolástica

da Idade Média que permanecera, de certo modo, nos primeiros sistemas filosóficos

modernos anteriores a Kant. Hegel qualifica o procedimento de tal filosofia de ingênuo,

uma vez que este, segundo ele, contém “a crença de que mediante a reflexão é conhecida a

verdade, a saber, que se apresenta ante a consciência o que os objetos verdadeiramente

são” (Hegel a, 1995, p. 89). Acreditar simplesmente que porque nós refletimos tal coisa de

determinado modo significa que a coisa seja realmente assim é, conforme Hegel afirma,

uma crença ingênua que partilhava a Antiga Metafísica juntamente com a mais comum

consciência ordinária e cotidiana (Cf. HEGEL a, 1995, p. 44). O maior problema de fundo

concernente a este tipo de operação cognitiva é não elaborar uma autoanálise de seus

próprios procedimentos, de seu próprio atuar, permanecendo e reforçando, assim, a simples

e natural visão da razão a respeito da relação entre o seu pensar e os objetos que se pensa.

No interior deste pano de fundo, Hegel destaca três principais pontos passíveis

de contestação no método operado pela Antiga Metafísica. Abordemos os três.

O primeiro deles, Hegel trata nos parágrafos 28 e 29 da Enciclopédia e afirma:

“Essa ciência (a Antiga Metafísica) considerava as determinações do pensamento como as

determinações fundamentais das coisas” (Hegel a, 1995, p. 90). Entendamos

primeiramente o que Hegel concebe por determinação (Bestimmung) em um sentido

amplo. Por determinações, podemos compreender aquelas características, ou momentos

constitutivos do objeto ou da coisa em questão. Cada determinação é limitada no sentido

de que é ela mesma, por exclusão de qualquer outra. Possui, pois, uma finitude, algo que a

limita e a encerra, fazendo-a afirmar-se como si mesma. Por exemplo, quando afirmo que

“esta cadeira é marrom”, estou determinando-a, estou caracterizando-a pela cor marrom e

limitando sua cor dentro de um vasto mar de possibilidades de cores; portanto, ela é

determinadamente marrom e não preta, azul etc.

Júlia Sebba Ramaho de Morais 40

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Hegel afirma que a Antiga Metafísica concebia as determinações do

pensamento como determinações fundamentais das coisas mesmas. Portanto, neste sentido,

quando determinava pelo pensamento, pela reflexão, um certo objeto, este antigo

procedimento ingênuo acreditava que estava ao mesmo tempo e necessariamente

encontrando a determinação e qualificação da própria coisa investigada. Em outros termos,

ao determinar pelo pensamento o objeto em questão, a Antiga Metafísica acreditava estar

conhecendo o mesmo tal como ele é. Assim, quando apenas pensava “Deus existe”, “Deus

é infinito”, “A alma é simples”, “A alma é imortal”, acreditava estar versando

verdadeiramente sobre as determinações destas coisas mesmas.

Ora, é preciso salientar que, para Hegel, o problema não é supor que o

pensamento possa abarcar a verdade em si dos objetos. Antes, será esta tese mesma que

Hegel irá desenvolver de um modo muito original em toda a sua Ciência da Lógica. Desse

modo, Hegel não concorda com Kant que nós só podemos conhecer algo quando

inevitavelmente recebemos dele dados sensíveis por meio de nossa experiência empírica.

Nesta medida, Hegel afirma que a filosofia da Antiga Metafísica situava-se muito mais

profundamente e muito mais além em sua busca pela verdade do que a perspectiva

fenomenal e empirista, diz Hegel, da filosofia crítica kantiana. Nestes termos, podemos nos

perguntar: se Hegel concorda com o antigo procedimento metafísico no que tange à

suposição da conquista da verdade dos objetos por meio da atividade do pensamento, então

qual o verdadeiro motivo da crítica hegeliana à problemática inscrita na Antiga Metafísica

a respeito da identidade das determinações de pensamento com as determinações reais dos

objetos? Em linhas gerais, o problema que temos de destacar neste ponto da crítica

hegeliana é o seguinte: simplesmente acreditar que determinar um conceito pelo

pensamento significa conhecer a determinação real e essencial do objeto em questão – tal

como acreditava a Antiga Metafísica – é não se dar conta, afirma Hegel, da totalidade

fecunda e especulativa que é o pensamento em seu processo de conhecimento da verdade.

Desse modo, Hegel afirma que o método da Antiga Metafísica correspondia tão somente

ao método de investigação representacional e predicativo do entendimento finito.

Segundo Hegel, há uma significativa diferença entre o conhecimento de nosso

entendimento intelectivo e aquele da razão (Cf. HEGEL a, 1995, p. 159-162). O primeiro

só conhece as coisas finitamente, atribuindo às mesmas predicações e determinações

limitadas que não possuem correspondência entre si; antes, mutuamente se excluem. Na

linha deste raciocínio, eu simplesmente vou agregando predicados e determinações ao

Metafísica na Ciência da Lógica de Hegel 41

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

objeto pensado sem observar a íntima conexão e necessidade de suas características umas

em relação às outras. Assim, por exemplo, quando o nosso raciocínio de entendimento

investiga a natureza da alma, ele atribui a esta os predicados e determinações de

simplicidade, unicidade, identidade, imortalidade. Tudo isso, no interior de uma reflexão

puramente exterior e passiva diante do objeto pesquisado, sem se dar conta de que a alma

mesma possui uma articulação interna orgânica que não pode ser concebida somente por

atribuições de predicados determinados, mas como um todo especulativo e estruturado no

qual cada parte depende, pressupõe e influencia a outra2. Por meio do raciocínio do

entendimento, operamos nosso processo de conhecimento usando categorias que

possuímos em nossa mente e referindo-as, umas ao lado das outras, de modo externo, aos

objetos pensados. Raciocinando assim, nunca poderíamos, segundo Hegel, conceber, por

exemplo, a infinitude da essência de Deus, que não meramente agrega diversas

determinações e predicados, mas abarca em sua interioridade totalizante diversos aspectos

e características que se inter-relacionam a fim de se afirmar como a infinidade suprema.

Portanto, nos dizeres de Hegel, somente o conhecimento da razão, do logos, ou do nous no

sentido grego – e não do entendimento – é que totaliza as diversas determinações que cada

objeto possui no interior de uma essência orgânica articulada, podendo, pois, conceber,

pelo pensamento mesmo, o verdadeiro presente na realidade.

O segundo ponto destacado por Hegel como passível de contestação no

contexto do procedimento investigativo da Antiga Metafísica aproxima-se

significativamente da crítica kantiana que vimos ao início. Nos parágrafos 30 e 31 da

Enciclopédia, Hegel atesta que, sem dúvida, os objetos que esta Metafísica investigava

eram, propriamente, objetos da razão humana: Deus, liberdade, mundo, alma. No entanto,

o problema é que concebia-nos como sujeitos dados já prontos à nossa representação. Ao

investigar, por exemplo, o conceito de mundo, o antigo método metafísico já supunha

representacional e definidamente o que vem a ser o universo para depois verificar quais

determinações cabiam à sua representação. Afirma Hegel:

2 A concepção hegeliana da alma é radicalmente distinta daquela sustentada pela Metafísica Escolástica e Moderna. Hegel alude constantemente a Aristóteles, afirmando: “Os livros aristotélicos sobre a alma, com seus tratados sobre os aspectos e os estados particulares da alma, são por esse motivo ainda sempre a mais notável ou a única obra de interesse especulativo sobre esse objeto. O fim essencial de uma filosofia do espírito só pode ser reintroduzir o conceito no conhecimento do espírito; e, com isso, reabrir também o sentido daqueles livros aristotélicos” (Hegel b, 1995, p. 9). Na “Antropologia”, onde Hegel trata especificamente sobre a alma (Seele), critica a concepção cartesiana, de Malebranche, Espinoza e Leibniz sobre a distinção entre alma e corpo, afirmando a unidade imediata entre os dois termos com o predomínio da alma sobre o corpo. Na perspectiva hegeliana, não se pode tratar a alma no sentido de sua exclusão do corpo, mas, sim como uma unidade orgânica totalizante que abrange seus estados e modos em íntima conexão.

Júlia Sebba Ramaho de Morais 42

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

A Antiga Metafísica se comportou com estes conceitos [o conceito de liberdade e o de determinismo causal], como com os outros; por uma parte pressupôs uma representação do universo e se preocupou em demonstrar como um ou outro conceito [o de liberdade ou de causalidade] se adaptavam a tal representação e que o conceito oposto era defeituoso, porque esta representação não se deixava explicar por meio dele (Hegel, 1982, p. 445).

Nesta linha, o entendimento se indagava, então, se tais e tais determinações e

predicações se enquadravam ou não à representação já dada. Não se investigava, afirma

Hegel, pelo pensamento, a necessidade de concebermos deste exato modo a representação

que fazíamos do objeto. Tal tipo de raciocínio se mostrava, assevera Hegel, como

profundamente insuficiente e escasso. Não fazia, tal como é tarefa própria da filosofia, a

dedução e justificação necessárias de cada representação e conceito com que lida a razão;

apenas supunha e recolhia de modo habitual e empírico as representações simples e pobres

que se pretendia determinar.

Este ponto da crítica tem em comum com a kantiana, tal como vimos atrás, que

um problema central do antigo método da Metafísica é supor como dados de antemão os

objetos a serem investigados. Ora, afirma Kant, neste procedimento são os objetos, ou

melhor, as representações que deles temos que nos guiam na busca pela verdade. Mas, o

correto não seria justamente o contrário, ou seja, procurar investigar a própria validade

destas representações dos objetos em nosso conhecimento e não supô-las já de antemão

como verdadeiras? Kant afirma no “Prefácio” à segunda edição da Crítica da Razão Pura:

Até agora se supôs que todo nosso conhecimento tinha de se regular pelos objetos; porém, todas as tentativas de mediante conceitos estabelecer algo a priori sobre os mesmos, através do que o nosso conhecimento seria ampliado, fracassaram sob esta pressuposição. Por isso, tente-se ver uma vez se não progredimos melhor nas tarefas da Metafísica admitindo que os objetos têm que se regular pelo nosso conhecimento, o que assim já concorda melhor com a requerida possibilidade de um conhecimento a priori dos mesmos que se deve estabelecer algo sobre os objetos antes de nos serem dados. O mesmo aconteceu com os primeiros pensamentos de Copérnico que, depois das coisas não quererem andar muito bem com a explicação dos movimentos celestes admitindo-se que todo o exército de astros girava em torno do espectador, tentou ver se não seria mais bem sucedido se deixasse o espectador mover-se e, em contrapartida, os astros em repouso (Kant, 2000, p. 39).

Esta famosa passagem da Crítica contém a alusão ao célebre giro copernicano

que Kant operara na Filosofia. Mas, especificamente, importa-nos observar que Kant

sugere que talvez progrediríamos melhor nas tarefas da Metafísica se fundamentássemos

Metafísica na Ciência da Lógica de Hegel 43

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

nossos conhecimentos em nossas próprias estruturas e operações mentais subjetivas e não

nos objetos dados a nós de antemão. Ora, na perspectiva de Kant, a contradição inscrita no

centro da objetividade ingênua da Metafísica é que ao querer saber puramente pelo

pensamento as características distintivas de seus objetos, este pretenso saber não percebe

que, na verdade, recolhe os objetos daquela representação mais simples que possuímos,

contraditoriamente, da representação sensível. Para Kant, toda proposta de conhecimento e

inclusive, aquela da Metafísica, deve se fundamentar nos elementos e operações a priori

do sujeito que conhece, e não tomar os objetos como prontos – tal é a proposta de seu giro

copernicano.

Ocorre que a crítica de Hegel a este ponto do procedimento metafísico tem

ainda uma faceta própria e distinta desta perspectiva subjetiva da filosofia kantiana. Hegel

afirma que simplesmente pressupor o objeto dado como uma representação é tomá-lo como

sujeito de uma proposição, ou de um juízo; por exemplo, a representação de Deus seria o

sujeito do juízo que elaboraríamos para predicar e determinar Deus com qualificações.

Assim, tomamos o sujeito Deus e a partir daí predicamos, na forma do juízo, as

determinações “onipotente”, “soberano”, “onisciente” etc. Mas, assevera Hegel, a forma de

conhecimento por meio de juízos – que, mais uma vez, é própria do entendimento

intelectivo – não abarca a concretude conceitual da ideia mesma de Deus, ou de qualquer

que seja o objeto em questão (Cf. HEGEL a, 1995, p. 93-94). Assim, simplesmente judicar

sobre uma representação apenas afirma uma característica específica da mesma, jamais

exprime a complexidade e a intrincada teia de relações que subjazem aos objetos e que a

forma lógica do juízo jamais poderia dar conta.

Para finalizar, o último ponto que Hegel destaca em sua crítica é aquele que

afirma ser o procedimento da Antiga Metafísica um procedimento metodológico de tipo

dogmático. O dogmatismo estrito, nos dizeres de Hegel, é aquele que investiga duas

afirmações aparentemente contrárias a fim de atestar qual das duas seria verdadeira em

relação ao objeto pesquisado, à representação já dada. Assim, por exemplo, na pesquisa

metafísica sobre a representação do mundo que vimos atrás, investiga-se – segundo os

raciocínios antinômicos da razão – se a afirmação de que tudo no mundo segue leis

deterministas causais é mais pertinente à representação do cosmos do que aquela

proposição que assevera que o mundo, na verdade, abarca um primeiro começo espontâneo

Júlia Sebba Ramaho de Morais 44

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

e livre3. A pesquisa do entendimento procura saber qual das duas teses conforma-se melhor

à representação do mundo como algo finito, criado e dado no tempo. Ora, diz Hegel, o que

o método da Antiga Metafísica não percebe é que muitas vezes podemos conceber duas

proposições aparentemente opostas fazendo parte do mesmo objeto em questão. Assim, sua

filosofia especulativa procura unificar negações opostas e contraditórias afirmando, por

exemplo, que o mundo tanto é completamente sujeito às leis deterministas e mecânicas de

causa e efeito, quanto, por outro lado, abarca continuamente inícios livres e espontâneos

por meio da ação humana. Nesse caso, é preciso conciliar duas teses aparentemente

opostas no interior de um conhecimento muito mais amplo e profundo sobre a realidade

mundana. A razão, o logos, tem de procurar unificar e harmonizar teses opostas e não

simplesmente excluí-las segundo uma atitude dogmática extremista.

Como podemos perceber, os diversos pontos da crítica de Hegel à Antiga

Metafísica podem ser concebidos, todos, como pertinentes a problemas de metodologia na

investigação sobre as essências dos objetos e sobre os conceitos suprassensíveis de Deus,

alma, cosmos, liberdade. Hegel discordava da forma como se investigava os objetos

metafísicos, não afirmando, como Kant, que estes não podem ser conhecidos em si

mesmos, pois não passam pelo crivo da experiência sensível. Mas, podemos dizer, que a

concordância fundamental destes dois filósofos em relação a esta temática é que Hegel, tal

como Kant, observa a Antiga Metafísica como um conhecimento dogmático. Isso porque

este antigo saber não elabora a autorreflexão crítica de seus próprios procedimentos, não

opera a justificação metodológica essencial a toda e qualquer ciência4. Na concepção de

Hegel e de Kant, é isso que fazem ao criticarem a Antiga Metafísica, ajustando as contas

dela consigo mesma e, cada um ao seu modo, salvando-a de crenças injustificadas e

improcedentes.

Vejamos agora, em linhas gerais, como podemos conceber a Metafísica, ou a

pesquisa hegeliana acerca das essências verdadeiras no interior de sua Ciência da Lógica.

3 Este problema corresponde a uma das clássicas antinomias da razão. Kant já abordara e criticara

este problema na “Dialética da Razão Pura”, mais especificamente na Terceira Antinomia (Cf. KANT, 2010, p. 406-407). Segundo Kant, é impossível saber qual das duas proposições é verdadeira, pois a razão não consegue conhecer a totalidade do mundo a fim de saber se ele tem um primeiro começo ou uma espontaneidade inicial que abarcasse a liberdade. No entanto, afirma Kant, a razão prática transcende este conflito e deve supor a existência da liberdade para a realização de uma ação correta. Hegel afirma não ser de acordo com a razão raciocinar em termos antinômicos, pois não é o caso que o mundo possa ser pensado, dogmaticamente, em termos excludentes: de um lado, segundo uma proposição que o afirme como determinado causalmente; e, de outro lado, como livremente originado (Cf. HEGEL, 1982, p. 446).

4 Ver Crítica da Razão Pura, 2010, p. 30.

Metafísica na Ciência da Lógica de Hegel 45

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

3.

A Ciência da Lógica de Hegel pode ser entendida, conforme Vittorio Hösle

(2007), segundo uma quádrupla significação. Antes de tudo, podemos entendê-la como

Lógica mesmo, na medida em que investiga as formas e regras pertinentes ao pensamento

em geral. No entanto, sua significação lógica possui um sentido muito preciso, na medida

em que Hegel acredita tematizar não tão somente as regras formais de todo pensamento,

mas também as categorias que necessariamente completam o conteúdo dos objetos

existentes. Dessa maneira, juntamente com sua significação lógica, pode-se ler a Ciência

da Lógica de Hegel segundo sua perspectiva ontológica, ou seja, como uma ciência dos

objetos, ou dos seres enquanto seres. Dada a proposta do idealismo absoluto de sua

filosofia, há, segundo Hegel, uma unidade imanente entre o pensamento e a coisa existente

e, por isso, devemos pensar Lógica e Ontologia sob o prisma de uma única ciência. Com

efeito, uma vez que a filosofia hegeliana está igualmente interessada em pesquisar a

subjetividade cognoscente que conhece a si mesma e procura a validade conceitual de seu

conhecimento acerca dos objetos, sua teoria possui também uma significação

transcendental, como uma teoria do conhecimento de influência kantiana. Assim, segundo

o que temos visto, a Ciência da Lógica de Hegel possui um significado lógico, ontológico

e epistemológico.

Mas, o que nos interessa propriamente nesta gama de classificações da Lógica

hegeliana é que ela possui um traço eminentemente metafísico. Assim, para Hegel, a

Lógica nada mais é do que a exposição do pensamento de Deus em seu desenvolvimento.

Tal afirmação pode parecer estranha à primeira vista, mas o que Hegel quer dizer com isso

é que todo o seu tratado da Ciência da Lógica sobre as diversas categorias e momentos

concernentes tanto ao pensamento enquanto pensamento, quanto ao ser enquanto ser,

dizem respeito, em última instância, à essência mesma absoluta de Deus que subjaz a toda

realidade. Dessa maneira, dizer sobre quantidade, qualidade, modo, relação, essência,

aparência, efetividade, juízo, silogismo (que são os objetos de pesquisa de sua Lógica-

Ontológica) não é algo definitivamente externo ao conhecimento do absoluto que significa,

para Hegel, exatamente o conhecimento de Deus.

Para melhor entendermos esta posição de Hegel, é preciso esclarecer que,

segundo a compreensão hegeliana, a filosofia elabora e desenvolve afirmativamente o

método verdadeiro de conhecimento e este método, segundo Hegel, diz respeito tanto ao

Júlia Sebba Ramaho de Morais 46

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

sujeito que conhece, quanto aos objetos investigados; por isso, há, em sua filosofia, como

afirmamos acima, uma unidade íntima entre ser e pensar. No entanto, deve haver um

fundamento desta realidade absoluta, que é a plena união entre ser e conhecer – e este

fundamento absoluto é, justamente, Deus. Portanto, Deus, para Hegel, é a absoluta unidade

entre subjetividade e objetividade, entre as categorias lógicas do pensamento e as

categorias ontológicas do ser; sua essência é, desse modo, explicitada pelo

desenvolvimento e acabamento do método hegeliano da Ciência da Lógica. Segundo

Vittorio Hösle, a ontologia lógica hegeliana é, pois, fundada em sua teologia, ou seja, no

conhecimento de Deus como uma essência que se fundamenta a si mesma e fundamenta

absolutamente toda a realidade (Cf. HÖSLE, 2007, p. 84).

A perspectiva metafísica da filosofia de Hegel, consequentemente, é

sumamente teológica. As questões relativas à alma, à liberdade e ao cosmos permanecem

dispersas em vários momentos do sistema, nas partes pertinentes à Filosofia do Real5.

Nestes momentos, Hegel aborda o conceito de alma e de liberdade de um modo claramente

distinto das propostas da Antiga Metafísica sobre tais temas. Sua tematização em torno do

conceito de Deus, de outro modo, encontra-se de modo imanente na auto-exposição do

método em todo o seu sistema filosófico. O método possui fundamentalmente como objeto

a apreensão das essências verdadeiras compreendidas, todas elas, na natureza infinita de

Deus. Assim, Hegel procurar desenvolver, na Lógica, as determinações e relações abstratas

da essência de Deus, segundo as categorias do “Ser”, da “Essência” e do “Conceito”, que

são as três grandes partes da obra. Na Filosofia do Real, por outro lado, podemos encontrar

a manifestação da essência divina, quando Hegel trata da natureza e do mundo espiritual

do homem, abordando questões concernentes à religião, arte e filosofia.

A infinidade divina não poderia, desse modo, na perspectiva hegeliana, ser

compreendida como um estado para além da finitude do mundo e da existência em geral.

Isso significa que na tematização dialético-especulativa de seu sistema, uma infinidade ao

lado do finito seria também finita, limitada por um outro que ela mesma. Por isso, para

Hegel, o infinito engloba em si mesmo o momento do finito, negando-o e dissolvendo-o

em sua grandeza suprema. Em outras palavras, Deus é, para Hegel, a infinidade que possui

em seu interior, como negada, o momento da finitude; é, portanto, tanto transcendência

pura e abstrata, quanto imanência concreta e, somente assim, pode-se compreender sua

5 A Filosofia da Realidade corresponde à parte do sistema de Hegel que engloba a Filosofia da Natureza e Filosofia do Espírito. Nesta última, Hegel trata da religião cristã, como manifestação do Absoluto.

Metafísica na Ciência da Lógica de Hegel 47

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

infinidade. Esta proposta hegeliana convida-nos, assim, a pensar a existência de Deus sob

um ponto de vista especulativo: pensar Deus como aquela infinidade que pode ser

compreendida tanto sob seu ponto de vista abstrato, em sua Ciência da Lógica, quanto sob

seu ponto de vista concreto e imanente, quando Hegel aborda Deus como manifestado na

natureza e na existência humana.

Segundo Hegel, esta exposição que faz da essência divina é a racionalização,

pelo pensamento, do conteúdo da fé cristã. Para ele, a religião cristã é a única que possui

esta compreensão especulativa da infinidade divina, pois pensa a grandeza de Deus

manifestada na existência finita terrestre na figura de Cristo. O momento preciso,

entretanto, em que Hegel racionaliza e reflete sobre o conteúdo da fé cristã presente em nós

pelo sentimento pertence à sua Filosofia da Religião. Investigar este ponto, entretanto, já

seria assunto para outro trabalho. Mas, o que pudemos, em linhas gerais, observar neste

trabalho é que a proposta de Hegel de uma nova Metafísica baseia-se em uma compreensão

muito diferente sobre a relação entre pensamento e ser, sobre infinidade e finitude e, ainda,

sobre Lógica, Ontologia e existência de Deus. Apesar de Hegel criticar o procedimento

investigativo da Antiga Metafísica, não descarta, entretanto, sua especulação filosófica

acerca das essências.

Referências Bibliográficas

HEGEL, G.W.F. Ciencia de la Logica. 3ª edição. Buenos Aires: Ediciones Solar, 1982.

_____. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830). Volume I. Lógica. São Paulo: Edições Loyola, 1995 a.

_____. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830). Volume III. A Filosofia do Espírito. São Paulo: Edições Loyola, 1995 b.

HÖSLE, V. O Sistema de Hegel: o Idealismo da Subjetividade e o Problema da Intersubjetividade. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

KANT, I. Crítica da Razão Pura. 7ª edição. Lisboa: Edições 70, 2010.

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Questões metafísicas na fenomenologia de Husserl

Martina Korelc1

Resumo: A partir da consciência da crise das ciências no início do século XX, Husserl se preocupou em renovar as ciências, de modo que estas pudessem novamente possibilitar aos homens o acesso ao sentido do ser. Fenomenologia assim deve ser em primeiro lugar um método de acesso “às coisas mesmas”, e este método implica a suspensão de todo saber não esclarecido e a elucidação do que é dado com evidência; isto significa a análise daquilo que é dado enquanto pensado na consciência da subjetividade transcendental. Com isto a subjetividade transcendental é compreendida como um primeiro absoluto necessariamente pressuposto em todo o sentido do ser do mundo, e o ser da subjetividade na sua relação essencial ao mundo é o campo de todo o interesse fenomenológico. Ao analisar o ser da subjetividade, Husserl descobre uma orientação para um telos final, uma teleologia, que ele descreve como a forma do ser da subjetividade ou intersubjetividade na sua totalidade. Como origem desta teleologia pode ser pensado Deus. De fato Husserl afirmou que a fenomenologia é um caminho não confessional a Deus. Mas, no interior do campo originário da fenomenologia, a transcendência de Deus pode ser analisada unicamente na sua relação necessária com a subjetividade transcendental; isto é: Deus se mostra na subjetividade como a ideia da perfeição absoluta, à qual todo o devir histórico do mundo e da humanidade aspira e que permanece de algum modo transcendente a todas as realizações históricas, com pólo ideal idealmente transcendente à consciência fática. Ora, a sua transcendência não convence, por permanecer essencialmente dependente da subjetividade transcendental; este Deus é um Deus pensado, isto em, um Deus filosófico, racional. Seria possível fenomenologicamente esclarecer o ser de Deus enquanto fundamentando o próprio ser fático da subjetividade? Husserl pensou que a fenomenologia como ciência das essências deveria ser uma propedêutica para a metafísica científica, isto é, uma ciência primeira do ser fático. A ela Husserl apenas indica como a meta última das suas investigações, sem contudo conseguir a desenvolver. Seria possível por esta metafísica fenomenológica esclarecer suficientemente o ser não apenas enquanto sentido, mas enquanto ser, e com isto esclarecer também Deus como origem do ser? A presente comunicação pretende levantar estas questões, isto é, apresentar brevemente como Husserl pensa Deus e metafísica e refletir sobre as possibilidades e os limites do seu pensamento.

I.

No pensamento de Husserl é possível relacionar a metafísica e a questão de

Deus; é o que pretendo fazer brevemente nesta palestra. Em primeiro lugar é preciso

esclarecer o que seria metafísica para Husserl. Na obra Meditações cartesianas, Husserl

afirma que a fenomenologia pretende eliminar ou pôr em questão apenas uma metafísica

ingênua, um saber suposto, mas não esclarecido, e não a metafísica em si, que abordaria as

“últimas e mais elevadas questões” postas à razão humana (HUSSERL, s.d., p. 196-197),

entre elas, a do ser, da possibilidade da vida autenticamente humana, do sentido da

existência e da história, da morte e destino, problemas éticos e religiosos... A metafísica

1 Professora Adjunta na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Goiás.

Questões metafísicas na fenomenologia de Husserl 49

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

seria para Husserl uma ciência rigorosa e fundamentada, universal, a primeira entre as

ciências que tratam a realidade fatual. Ora, a fenomenologia tal como Husserl a

desenvolveu, não é ainda esta metafísica; Husserl ocupou-se por toda a vida com aquela

ciência fundamental que seria preparatória para a ciência universal dos fatos; a ela ele

chamou de filosofia primeira, por ser a primeira a ser elaborada e neste sentido

fundamental. Preocupou-se com o método e com o conhecimento eidético, isto é, das

essências a priori de todo o ser possível, não real. Pretendeu esclarecer assim o único

caminho possível para qualquer ciência ou saber fundamentado; este caminho é a radical

tomada de consciência de si mesmo. Neste sentido, Husserl renova a convicção que

animou Santo Agostinho, citado por ele várias vezes: “Não queiras ir para fora, volta em ti,

no interior do homem habita a verdade” (De vera religione, 39, 72). Penso que seja ainda

necessário refletir sobre o que isto significa, para não cairmos no idealismo com o qual

fenomenologia de Husserl constantemente é tentada; e sobretudo, talvez não seja ainda

claro como seria a metafísica que Husserl pretendeu desenvolver. O que apresento aqui,

portanto, não é definitivo, não são teses da metafísica, são apenas questões metafísicas a

partir de escritos de Husserl.

II.

Segundo as palavras de Husserl numa carta, a leitura do Novo Testamento teve

um enorme efeito sobre ele, quando jovem de 23 anos, efeito que resultou na aspiração de

encontrar o caminho para Deus e para uma vida autêntica por meio da rigorosa ciência

filosófica.2 A procura da fundamentação ou justificação absoluta, última, do saber, a meta

que move toda a sua rica e árdua pesquisa filosófica, é concebida por ele também como a

meta de toda a vida humana autêntica e encerra em si o ideal de ser humano verdadeiro, da

razão definitivamente autônoma e da liberdade plenamente responsável, capaz de

responder por si. Neste contexto, a pergunta sobre Deus para Husserl não é uma pergunta

lateral, mas muito importante, ou até a pergunta mais importante da filosofia. Segundo as

suas palavras, “toda a filosofia autônoma, como foi a aristotélica e como ela permanece

uma exigência eterna, chega necessariamente a uma teleologia e a uma teologia filosófica –

como o caminho (não-confessional) para Deus” (E III 10, 14a). Husserl mesmo

compreendeu como a sua missão pessoal a de levar os homens, que não têm o consolo e a

2 AVÉ-LALLEMANT, 1994, p. 85.

Martina Korelc 50

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

segurança da fé religiosa, a Deus – pretendeu “chegar a Deus sem Deus”3. O fato de não

obstante disso Husserl não ter dedicado a esta questão nenhum estudo sistemático, mas

apenas apontou para este problema em vários escritos, deixa se explicar pela convicção de

Husserl, de não ter ainda desenvolvido suficientemente a fenomenologia como ciência

fundamental.

A tomada radical de consciência de si significa para Husserl em primeiro lugar

suspender a validade de tudo o que presumimos saber, todos os pressupostos, entre eles o

pressuposto mais natural da transcendência do mundo em relação à consciência que o

pensa, e até do meu ser psicofísico no mundo, para poder obter o acesso ao domínio mais

originário da realidade, onde a realidade se dá a pensar originariamente; este domínio

originário é a minha subjetividade transcendental e na compreensão do seu ser e operar é

possível recuperar o sentido do ser, que nas ciências e na filosofia se perdeu. A atitude

fenomenológica significa reorientar o olhar, do mundo para a própria subjetividade. A

subjetividade transcendental é portanto o absoluto a partir do qual todo o ser do mundo – o

objeto das ciências empíricas – pode ser explicado. A fenomenologia pretende descrever e

explicar como o mundo, e tudo o que este implica, vem a ser pensado originariamente, com

sentido, pela subjetividade, na consciência transcendental.

A subjetividade transcendental, ou seja, o meu próprio ser transcendental com

a sua extraordinária ordem imanente, é contudo também um fato, um fato último,

implicando com isto uma ineliminável contingência. Uma pergunta ulterior é, portanto,

ainda possível e até necessária a partir da procura pela fundamentação radical: esta

facticidade da subjetividade transcendental não exige ainda uma ulterior justificação ou

fundamentação? Nas Ideias I, Husserl levanta tal questão, sublinhando que é sobretudo a

ordem encontrada na consciência, a teleologia, que exige a pergunta pelo fundamento.

Como fundamento da ordem ou racionalidade encontrada na consciência, e da teleologia

que explica esta ordem, deve ser suposto um princípio teológico, um princípio ordenador

do absoluto; deste modo Husserl introduz claramente a questão de Deus na pergunta

fenomenológica sobre o fundamento da facticidade da subjetividade transcendental. Como

Deus é pensado? Nos parágrafos 51 e 58 das Ideias I, mencionados aqui, Husserl traz

3 “A vida do homem não é nada outro do que um caminho para Deus. Eu procuro alcançar esta meta

sem as provas, método e pontos de apoio teológicos, nomeadamente, chegar a Deus sem Deus. Eu devo, por assim dizer, até eliminar Deus da minha existência científica, para preparar um caminho até Deus para os homens que não têm a certeza da fé através da Igreja, assim como a possui a senhora. Eu sei que este meu procedimento poderia ser perigoso para mim mesmo, se eu mesmo não fosse um homem profundamente ligado com Deus e profundamente crente em Cristo” (JÄGERSCHMIDT, 1981, p. 56).

Questões metafísicas na fenomenologia de Husserl 51

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

alguns elementos importantes, essenciais, para a compreensão da questão de Deus. O

“princípio teológico” que deve ser suposto implica uma transcendência de tipo novo em

relação à transcendência do mundo, cujo sentido e validade natural foram suspendidas

precisamente por precisarem da fundamentação. E, Deus não é apenas transcendente de

modo diferente do mundo e em relação ao mundo, mas também em relação à consciência

absoluta, afirma Husserl enfaticamente no mesmo texto. A transcendência de Deus se

anuncia na consciência de modo diferente também da do próprio Eu, cuja transcendência

em relação à corrente de vivências é chamada de “transcendência imanente”; esta

diferença, segundo Husserl nas Ideias, implica que ele, Deus, não é dado de modo imediato

à consciência, mas é conhecido de modo mediato, precisamente através da pergunta pelo

fundamento da facticidade da ordem teleológica na consciência. A conclusão importante

de Husserl é: “Ele seria, portanto, um ‘absoluto’ num sentido totalmente diferente do

absoluto da consciência, assim como, por outro lado, um transcendente num sentido

totalmente diferente do transcendente no sentido do mundo” (Hua III, p. 140; 134).

Antes de tentar iluminar esta problemática a partir de outros textos de Husserl e

de seus comentadores, deve contudo ser pontuada a decisão metodológica que guia as

pesquisas de Husserl e que é anunciada um pouco adiante do texto citado: por ser Deus

uma transcendência em relação à subjetividade transcendental, embora radicalmente

diferente da transcendência do mundo, ele deve ser posto entre parênteses para se poder

manter o estatuto absoluto da subjetividade transcendental e a partir dela esclarecer o ser

do mundo.

“Naturalmente nossa redução fenomenológica é extensiva a esse ‘absoluto’ e a esse ‘transcendente’. Ele deve permanecer fora de circuito no novo campo de investigação a ser estabelecido, uma vez que este deve ser um campo da própria consciência pura” (Hua III, p. 140; 134).

Por princípio, portanto, a fenomenologia não pode sem mais – sem a devida

clarificação e justificação a partir da subjetividade transcendental absoluta – manter a

validade de nenhuma transcendência, nem sequer da transcendência de um fundamento

último que suporta o próprio ser da subjetividade. Mas, é a partir do ser da subjetividade

transcendental enquanto absoluto que será possível voltar à pergunta sobre Deus como o

princípio ordenador do absoluto, numa consideração absoluta, como lemos, isto é,

submetida ao rigor da redução transcendental. Se contudo nos deparamos com a sua

Martina Korelc 52

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

transcendência, diz Husserl, e se o seu ser não é simplesmente o ser do vivido, já que ele é

diferente da consciência, isto significa que

“tem de haver no fluxo absoluto da consciência e em suas infinitudes outros modos de anunciar transcendências, diferentes da constituição de realidades de coisas [...]; e, finalmente, é preciso que haja também modos intuitivos de anunciar transcendências aos quais o pensamento teórico se amolde e possa, seguindo-o racionalmente, trazer à compreensão a atuação coerente do suposto princípio teológico” (Hua III, p. 121-122;119).

Esclarecer como na imanência da consciência se anuncia e manifesta a

transcendência de Deus, e por meio disso esclarecer racionalmente a própria ideia de Deus,

é talvez aquele saber final ao qual toda a filosofia autônoma e consistente deve conduzir,

como afirma Husserl, mas para o qual talvez ele mesmo se reconhecia ainda não

suficientemente preparado, ainda a caminho. Contudo, é possível a partir de poucas

afirmações nos escritos publicados e nos manuscritos de pesquisa compreender algo do seu

pensamento a respeito.

A meu ver, contudo esta redução da transcendência de Deus é problemática,

não poderá ser recuperada racionalmente, porque implica uma decisão, uma posição diante

deste problema. Husserl decidiu pessoalmente não considerar previamente a existência de

Deus, embora tivesse fé, e não considerar aquilo que sabia sobre Deus pela fé. Isto o

distingue de Santo Agostinho.

III.

O ser do mundo é relativo ao ser da consciência transcendental, onde ele é

dado, constituído enquanto válido para mim – e isto significa, no pensamento de Husserl,

válido para a humanidade, já que o sentido objetivo e verdadeiro, do ser do mundo implica

confirmação intersubjetiva. Ora, que a consciência transcendental constitui de fato o

mundo com sentido, isto é, um mundo que pode ser racionalmente compreendido, que

segue leis que podem por sua vez ser estudadas pelas ciências naturais... – isto é um fato

que não pode ser explicado unicamente pela própria subjetividade transcendental. Pois, já

nas Ideias I é claro para Husserl que do fato da existência do mundo tal como é constituído

pela consciência transcendental, do fato da própria constituição, não se conclui nenhuma

necessidade desta constituição. Pode, pois, ser pensada também a possibilidade de o

Questões metafísicas na fenomenologia de Husserl 53

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

mundo não ser constituído, isto é, de não haver nenhuma coerência nas vivências que nos

fazem perceber o mundo enquanto realmente existente.

Esta facticidade da constituição do mundo é, portanto, em si surpreendente,

“milagre”, nas palavras de Husserl, ou um fato transcendental “irracional” que está nos

limites da explicação da fenomenologia.

Esta facticidade não é o campo da fenomenologia e da lógica, mas o da metafísica. O milagre [Wunder] é aqui a racionalidade, que se mostra na consciência absoluta, não por nela se constituir qualquer coisa em geral, mas por se constituir uma natureza que é o correlato das ciências naturais exatas. Que racionalidade é esta? Ela consiste, poderíamos dizer, [...] no existir de uma correlação entre a consciência fática e ciência empírica (Hua VII, p. 394). Por trás abre-se uma problemática que não pode mais ser interpretada adiante no solo fenomenológico: a da irracionalidade do fato transcendental, que se pronuncia na constituição do mundo fático e da vida espiritual fática: portanto, a metafísica num sentido novo (Hua VII, p. 188, nota 1).

Uma entre as perguntas últimas ou definitivas no aspirar à clarificação e

fundamentação da ciência, para Husserl parece ser a facticidade da racionalidade do

mundo para a consciência, o fato de o mundo poder ser compreendido cientificamente, de

ter portanto nele uma ordem sensata, um sentido. Este fato não tem fundamento suficiente

ou justificação última no interior da consciência ou em geral no próprio fato absoluto de

haver consciência constituinte. Ou seja, a constituição, através de atos e operações que são

a própria vida da subjetividade na qual o mundo é produzido, não significa “criação” do

mundo. Para a própria subjetividade transcendental, esta constituição é algo radicalmente

dado, ou seja recebido, um fato admirável, uma “graça”, que pode porém também ser

retirada, pois a subjetividade não garante a partir de si que o mundo ordenado não se

desfaça em caos de sensações e o Eu unitário, enquanto possuindo o mundo, não se

dissolva. O mundo mantém, portanto, por causa disso um caráter de estranheza, de

alteridade – assim como o próprio Eu permanece no seu núcleo mais originário obscuro

para si mesmo, anônimo. A subjetividade transcendental, se quer esclarecer a sua própria

vida constitutiva, deve voltar-se reflexivamente sobre si mesma, debruçar-se na medida do

possível para o que está “escondido”, “anônimo” na sua própria vida do Eu, e perguntar

pelo princípio ordenador diferente dela mesma, que Husserl sem escrúpulos nomeia de

Deus.

Antes de passar para as considerações de Husserl sobre Deus, é preciso

elucidar ainda o segundo elemento da facticidade, mencionado por Husserl na passagem

Martina Korelc 54

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

das Ideias I citada acima, nomeadamente a questão da teleologia. Pois não é o mero fato da

constituição de qualquer coisa – não o mero fato de haver qualquer coisa, poderíamos dizer

– que exige a pergunta por um fundamento transcendente à subjetividade transcendental,

mas o fato de ser constituído o mundo com sentido, o fato de haver racionalidade, lemos;

talvez se possa dizer que é a questão da origem do sentido que abre Husserl ulteriormente

às questões metafísicas, e certamente a pergunta sobre Deus está ligada para Husserl

estreitamente ao esclarecimento da teleologia. Na Erste Philosophie Husserl afirma a

respeito do fato do ser do mundo: “Já o ser do mundo enquanto fato encerra uma

teleologia” (Hua VIII, p. 258). O sentido do mundo, a sua verdade e a ciência na qual ele

se exprime, são o telos que Husserl descobre no fato do ser do mundo. Mas a teleologia

não diz respeito em primeiro lugar e originariamente ao ser do mundo, mas ao ser da

subjetividade transcendental, a partir da qual o sentido do mundo se explica, como

sabemos. É, pois, voltando-se na consideração fenomenológica transcendental radical

sobre o ser da subjetividade transcendental, que no seu próprio caráter absoluto não deixa

de ser um fato, um fato último e absoluto, como diz Husserl, que o fenomenólogo

desencobre uma aspiração necessária ao sentido, isto é, uma teleologia escondida.

Husserl descobre a teleologia, isto é, a aspiração a uma meta, em todos os

níveis da vida da subjetividade, ele a chama de forma ontológica do ser da subjetividade

transcendental (Hua XV, p. 378). Em primeiro lugar, para Husserl, o ser da subjetividade

transcendental é um devir constante, o ser está num processo temporal de constituição que

é orientado para uma meta. Num primeiro nível de reflexão, Husserl analisa a consciência

cognitiva; a característica essencial da consciência é a intencionalidade, que significa o ser

orientado da consciência para um objeto intencional e por si já é um processo teleológico.

Neste sentido, Husserl descobre na consciência uma aspiração ao conhecimento, ao ser

auto-dado, à verificação e à realização da posse intencional sempre mais perfeita do ser do

objeto; em última instância, trata-se da aspiração à evidência, à verdade e à autonomia da

subjetividade através da ciência. Esta aspiração, contudo, – que se realiza plenamente na

decisão e na realização do conhecimento científico, na ciência definitivamente justificada,

que pode ser por um lado chamada o telos da vida da subjetividade – é detectada por

Husserl já na passividade da consciência, na dimensão anterior à atividade de

conhecimento, por exemplo na consciência do tempo. Segundo ele, também os instintos, as

kinestesias, os sentimentos, as tendências mais primitivas no ser da subjetividade, que lhe

pertencem na sua facticidade, são teleologicamente orientadas para a constituição, como a

Questões metafísicas na fenomenologia de Husserl 55

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

base irracional da atividade racional, porque os atos livres e conscientes do conhecimento

se constroem sobre elas e há nelas e em toda a vida da consciência um entrelaçamento de

todos os níveis. Que na subjetividade se deva constituir o mundo cientificamente

conhecível na sua verdade, está portanto escrito de algum modo na estrutura da consciência

como o seu telos, como a orientação do seu devir, e que a subjetividade realize a ciência é

o telos escondido que aponta a vocação da humanidade enquanto racional. Isto não pode

ser compreendido no sentido de que a realização da constituição e ulteriormente da ciência

seja algo instintivo; antes, a estrutura da consciência, já a partir dos seus níveis mais

elementares, nos quais ainda não se pode sequer falar da consciência intencional e

objetivante, é tal que torna possível a realização da meta mais alta, o conhecimento, o

esclarecimento do sentido do mundo, que é a vocação do homem. E isto é algo que pode

causar admiração e que precisa ser filosoficamente elucidado, fundamentado.

A orientação para a constituição do mundo, e para a ciência sempre mais certa,

contudo, ainda não é todo o sentido da teleologia do ser; ou seja, a meta para a qual todo o

processo do ser da subjetividade, como telos, é orientado, não se compreende unicamente

pela aspiração ao ser verdadeiro do mundo, embora isto seja importante. A subjetividade,

pela sua operação constitutiva, não constitui apenas o mundo, mas sobretudo a si mesma, e

o processo do devir é o processo da formação do ser da própria subjetividade, do seu ser

verdadeiro. Para compreender isto, devemos levar em consideração que a vida da

consciência, para Husserl, não é apenas teórica, mas sempre também prática; o conceito da

vontade por causa disto se torna fundamental também para compreender a noção do ser da

subjetividade e a sua teleologia. A vontade é principalmente a faculdade da subjetividade

de pôr as metas e se orientar conscientemente para elas; ela é criativa, porque abre a

subjetividade para o futuro ao antecipar as metas, mas sobretudo porque cada decisão

determina o próprio ser do Eu, pelo que o Eu se torna pessoal, ganha habitualidades que

ulteriormente orientam o seu ser. A escolha e a decisão pelas metas autênticas, que

realizem a aspiração profunda do homem, é um tema importante da ética husserliana que

abre a reflexão sobre os valores que motivam a vontade. É no interior da sua

fenomenologia da vontade que Husserl ulteriormente aprofunda a questão da teleologia.

Refletindo fenomenologicamente sobre o seu próprio ser, pondo em parênteses as

múltiplas metas particulares que a pessoa assume irrefletidamente, a partir da tradição ou

como habitualidades pessoais, ou até como respostas imediatas a múltiplos impulsos, o Eu

pode descobrir em si, como horizonte latente da sua própria vontade, uma aspiração mais

Martina Korelc 56

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

fundamental. Ela é primeiramente uma aspiração à concordância e à unificação, na qual as

contradições consigo mesmo – e com os outros, como poderemos ver adiante – sejam

superadas. Assim como no campo do conhecimento, a aspiração de fundo é a de chegar à

coisa mesma, na qual todos os aspectos da coisa, e em última instância do mundo, sejam

unificados e as contradições superadas na evidência do ser da coisa, na verdade – assim

também do ponto da vista da vida da vontade há um aspirar à unificação do próprio Eu que

por meio de todos os atos determina a si mesmo e não pode ser em contradição consigo

mesmo, nas suas múltiplas metas e tarefas. A unidade do mundo é na verdade fundada na

unidade do Eu. E o Eu é unificado pela vontade unificada, pela posição e decisão da meta

mais autêntica, que realize o seu ser autêntico. O que orienta a vontade é um tender ao fim

que realize todas as aspirações e metas, que realize o Eu e lhe confira a unidade definitiva e

que possa manter-se definitivamente. Este fim é o telos que de modo primeiramente latente

motiva a vontade, mas deve tornar-se consciente e pessoalmente assumido. A unidade que

ele realiza é uma unidade teleológica.

A meta derradeira ou o telos pode ser apenas o ser autêntico da pessoa, a

perfeição do ser no sentido ético, isto é, o ideal de uma existência pessoal autêntica e

verdadeira. E por o homem ser necessariamente intencionalmente ligado a todos os outros

com os quais intersubjetivamente constitui o mundo comum, o telos da perfeição do ser

implica a perfeição da comunidade, da humanidade, isto é, uma unificação ética de homens

numa comunidade eticamente perfeita. Isto significa que o telos é uma ideia infinita,

realizável apenas num progresso infinito que implica renovação e aproximação sempre

maior.

A realização da comunidade perfeita, à qual a subjetividade transcendental está

teleologicamente orientada, implica também a constituição ou realização de um mundo no

qual este ideal ético possa ser realizado. Que isto seja de fato a aspiração dos homens no

mundo e que a sua realização seja possível – assim Husserl afirma em Erste Philosophie –,

é o fato admirável da teleologia que obriga a perguntar pela sua origem ulterior. Que o fato

da aspiração ao valor ou dever absoluto, e a possibilidade da sua realização num mundo

que os homens possam formar, pelo menos no infinito, tenha a fundamentação em Deus –

que é de fato Deus quem orienta o curso do ser dos homens e do mundo por meio dos

homens – Husserl o afirma claramente em Erste Philosophie:

Cada homem está sob um dever absoluto, que é dirigido a ele individualmente; e de novo o homem na comunidade. Este dever absoluto

Questões metafísicas na fenomenologia de Husserl 57

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

está em referência aos valores, o homem se satisfaz, quando segue estes. Mas o mundo é de tal modo, que não é um mundo sem sentido que não se ocuparia da realização do dever absoluto. Mesmo que em particular alguma meta absolutamente devida não seja realizada, a vida no todo contudo é traçada de tal modo, que a vida no Bem absoluto pode realizar-se. Nenhum destino cego – um Deus “rege” o mundo. O mundo “tende” a metas, valores absolutos, ele lhes prepara o caminho nos corações dos homens, os homens poderiam realizar na sua liberdade um mundo de Deus – sem dúvida mesmo através da graça divina, pela qual devem ser motivados e predispostos a aspirar a tal na plena consciência e força de vontade (Hua VIII, p. 258).

Esta teleologia é a forma ontológica do ser, isto é, a forma do processo do devir

da subjetividade transcendental. A fenomenologia, que pretende ser a elucidação radical da

subjetividade transcendental, deve portanto trazer à luz esta teleologia escondida do ser. E

isto implica, em última instância, também elucidar o seu fundamento.

Um último elemento ainda deve ser acrescentado a esta primeira parte. Alguns

anos depois da Erste Philosophie, no manuscrito E III 9 de 1931, Husserl não diz mais a

que a realização da ideia infinita da perfeição, da forma do ser da subjetividade

transcendental, seja possível ou possa ser real. A idéia da perfeição infinita é possível

apenas na forma da vontade, isto, da decisão; o ser da subjetividade é neste sentido ser da

vontade, e Husserl fala da decisão para a eternidade, que seria a vontade no sentido

próprio. No outro manuscrito afirma: “Eu posso apenas tornar-me bom, e não ser bom, mas

somente posso tornar-me bom no querer-tornar-me-bom” (Ms. E III 1, 3b). A partir da

reflexão sempre mais urgente no tempo de Husserl sobre a irracionalidade aparente do

acontecer histórico, sobre a não-aproximação da vida dos homens ao ideal teleológico,

sobre o destino e o sofrimento, sobre o mal fazendo parte da vida dos homens e da

humanidade, Husserl deve perguntar-se se de fato este telos conduz o desenvolvimento de

mundo e da história, pois pelos fatos históricos este não parece ser o caso; neste sentido, a

teleologia seria o fato enquanto aspiração e não enquanto realização. Husserl chega então à

compreensão que a fé no sentido, a fé na teleologia e no conduzir divino da história da

humanidade para o bem, não obstante o mal atual, é a condição de possibilidade da

realização da teleologia, da unificação definitiva da pessoa, a condição da possibilidade da

vida ética no mundo. A fé é a condição de possibilidade da racionalidade e

significabilidade da vida humana, a fé – o irracional – é a condição de possibilidade do

racional, e neste sentido, por tornar possível o racional, ela se torna racionalmente exigida,

segundo Husserl.

Martina Korelc 58

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

IV.

O passo seguinte nesta exposição consiste em mostrar, como segundo Husserl

Deus pode ser pensado ou conceituado, ou seja, o que Husserl diz sobre Deus.

Por um lado, para explicar a constituição do mundo que não pode ser apenas a

operação de uma consciência singular, Husserl pensa uma subjetividade superior, como um

Eu da unidade das subjetividades que abarcaria todos os Eus e todos os fluxos de

consciência singulares e abarcaria tudo o que é temporalmente constituído. Deus seria este

Eu superior e poderia ser pensado como aquele que motivaria a constituição do mundo

como um todo, por meio da sua relação intencional especial com as consciências

singulares, operando em tudo ou criando o mundo no sentido da ‘Ideia do Bem’ (Hua XV,

p. 301-302). Husserl o define como “vida infinita, infinito amor, infinita vontade, sua vida

infinita uma única atividade” (Ms. B II 2, 27a). Ele não é pensável como a própria

totalidade de subjetividades, mas diferente delas, portanto um Absoluto num sentido

último, para o qual deve haver um caminho a partir do absoluto da totalidade de

subjetividades. Husserl diz:

Deus não é a própria totalidade das mônadas, mas a Entelequeia nela existente, a Ideia do desenvolvimento infinito, do da ‘humanidade’ a partir da razão absoluta, como ordenando necessariamente o ser monádico, e ordenando-o a partir da própria livre decisão (Hua XV, p. 610).

A constituição do mundo pode ser explicada, por outro lado, pela presença de

Ideia, ou telos, na subjetividade, enquanto aquilo que motiva a constituição. E esta

presença de telos não se explica pelo mero fato da subjetividade, nem pelo mero fato da

totalidade de mônadas. Na sua origem Husserl também pensa Deus, como sendo ele a

própria Ideia da teleologia ou de telos que motiva a constituição na vida das subjetividades

transcendentais. Isto tudo, porém, deve ser ainda melhor elucidado. Para compreender a

relação entre Deus e a teleologia, Husserl refere-se de algum modo a Platão, à ideia de

Deus como ideia mais alta, Ideia do Bem, segundo a qual o mundo é ordenado e a qual

todo ser aspira. Husserl de fato define em vários textos Deus claramente como a Ideia da

perfeição do ser, da vida, a partir da qual a ideia do mundo perfeito pode ser concebida, ou

como a entelequeia de todo o desenvolvimento: “Deus como Ideia, como Ideia do ser mais

perfeito; como Ideia da vida mais perfeita, na qual se constitui o ‘mundo’ mais perfeito,

que a partir de si desenvolve criativamente o mundo espiritual mais perfeito em relação a

Questões metafísicas na fenomenologia de Husserl 59

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

uma natureza mais perfeita” (Hua XXVIII, p. 225-226). Esta Ideia enquanto telos não pode

ser presente na consciência como outras ideias ou formas, mas é o pólo final a qual tudo

aspira, e Husserl a chama também de “Ideia-pólo absoluto ideal”, que coincide com a razão

ou Logos absoluto e assim também com a verdade absoluta, como se exprime Husserl:

“Logos absoluto, a Verdade absoluta em sentido pleno e total, o unum, verum, bonum, aos

quais é dirigido todo o ente finito na unidade do aspirar que abarca cada ente finito” (E III

4, 36b). Enquanto Logos ou razão, Deus pode bem ser pensado como origem da ordenação

e legalidade do mundo. Relacionada a isto aparece por vezes em Husserl também uma

concepção de Deus como o ser-em-si que possui a totalidade de ciência, ou seja, como o

sujeito do saber total, da ciência absoluta, que é por sua vez também pensada em alguns

textos como o telos que dirige a história da humanidade. E de modo semelhante, a filosofia

pode também ser definida como ciência absoluta do ser absoluto, isto é, de Deus: “A

filosofia como ideia, como correlato da ideia de Deus, como ciência absoluta do ser

absoluto, como ciência da ideia pura da divindade e como ciência do ser absolutamente

existente” (Hua XXVIII, p. 226). Se Deus é pensado como Ideia da perfeição, do Bem,

pode se tornar compreensível como ele pode ser também o telos do desenvolvimento ético,

portanto o ideal do ser verdadeiro e da comunidade verdadeira e perfeita no sentido ético.

Para esclarecer este último aspecto, a dimensão ética da teleologia, precisamos entender a

relação entre a teleologia da vontade da subjetividade transcendental e Deus.

Anteriormente mencionei que é no âmbito da sua fenomenologia da vontade que Husserl

desenvolve os últimos aspectos da teleologia do ser da subjetividade transcendental,

precisamente através da noção da vontade como ato de decisão livre e refletida para o fim

mais autêntico da vida, para o ser verdadeiro e autêntico, e através da noção da vontade

como o horizonte latente, no qual opera uma aspiração teleológica, uma vontade

transcendental universal que move em direção ao telos, que move a vontade pessoal para a

escolha consciente do telos, na qual este assume a forma explícita da meta pessoal, unindo

na totalidade todos os objetivos. Ora, sobre esta vontade transcendental universal, Husserl

diz que é a vontade divina que vive em todos os sujeitos individuais. E num manuscrito

não publicado ele fala explicitamente da omni-consciência como vontade, que está sobre as

mônadas individuais e as orienta para os valores absolutos, para o Bem e Belo absolutos,

para o amor infinito: “Tudo o que é belo e bom, toda a vontade finita orientada para o bem

é um raio da vontade divina” (Ms. B II 2, 27a-27b). A vontade divina deve significar a

vontade da realização da teleologia, na medida em que Husserl identifica Deus com a

Martina Korelc 60

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

própria Ideia da teleologia. Assim é possível pensar que seja esta vontade a motivar a

constituição do mundo e todo o processo do desenvolvimento do ser da subjetividade

transcendental, como que a partir do horizonte da vontade monâdica.

Até aqui já se tornou mais claro, como a partir da procura do esclarecimento

radical dos nexos de motivação da auto-constituição e da constituição do mundo na

subjetividade transcendental, Husserl responde à questão do fundamento último do fato da

constituição, identificando o fundamento com Deus. Encontramos a caracterização de Deus

como Ideia absoluta da teleologia, isto é, do Bem e da Verdade absolutos, ou também o

amor infinito; por outro lado, Deus é nomeado também o Logos absoluto e a sua vontade

como aquela que vive em todos os sujeitos e os move para os valores absolutos, isto é, para

o próprio Deus e a realização da ideia da humanidade e do mundo infinitamente perfeitos.

Tudo isto pode parecer correspondente à noção cristã de Deus. Mas, devem ser

levantadas algumas questões a respeito desta concepção de Deus. Muitos comentadores

levantaram o problema da imanência ou transcendência de Deus em relação à subjetividade

transcendental. Deus é pensado por Husserl por um lado como Ideia, e assim como um

pólo infinito transcendendo o processo do ser ou do devir da subjetividade e da

intersubjetividade, mas por outro lado é identificado com este próprio processo, como o

processo da vontade, o que certamente é problemático e não pode ser aceito na

compreensão cristã de Deus. Quando Husserl fala, por exemplo, sobre o ser como processo

de devir, fala deste ser como ser divino:

Todo o ser absoluto [é] um fluxo de um devir que se harmoniza teleologicamente e está orientado para as metas ideais (devir não no sentido empírico), o fluxo uno de ser ‘divino’ e Deus é a entelequeia, ou seja, forma pura, à qual o desenvolvimento do ser no impulso do έρωϛ aspira. Mas, esta forma pura é uma ideia e contudo a ‘força eficaz’ omnipresente em todo o ser (Ms. B I 4, 55).

E definindo Deus como Ideia, procura descrevê-lo como uma Ideia

absolutamente única, com uma unicidade ontológica, mas sem deixar de ser ideia, isto é,

ser pensado. Esta ideia

traz em si unicidade ontológica, um ser, que não é Eidos, mas enquanto ser na verdade absoluta, enquanto ser em nenhuma relatividade de situação, em nenhum horizonte, mas como ente que trazendo em si tudo o que é verdadeiramente na verdade absoluta, é anuncio e realidade na necessidade absoluta – realidade no sentido de uma supra-realidade, que traz sentido, fundamenta e possibilita toda a realidade de tudo o que é relativo, de tudo o que é finito” (Ms. E III 4, 37a).

Questões metafísicas na fenomenologia de Husserl 61

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Pensar Deus como Ideia e como o processo do ser enquanto vontade, significa

esclarecer suficientemente o seu ser absolutamente transcendente à consciência? Seria

possível esclarecer satisfatoriamente a transcendência de Deus a partir do pressuposto

metodológico de fenomenologia de Husserl que põe a subjetividade transcendental como o

absoluto?

O pressuposto metodológico de considerar todo o ser e todo o sentido do ser a

partir da subjetividade leva Husserl a pensar também Deus, na sua transcendência, nos

limites da constituição da subjetividade transcendental.

“O apriori subjetivo é aquilo que precede o ser de Deus e do mundo e de tudo o que é para mim, que penso. Também Deus é para mim, o que ele é, a partir de minhas próprias operações de consciência [...]. Também aqui, como em relação ao Alterego, a operação da consciência certamente não significará que eu invento e faço esta transcendência mais alta” (Hua XVII, p. 258).

Num outro texto, Husserl parece indicar uma dependência da vontade divina

em relação à subjetividade ou intersubjetividade transcendental: a vontade divina

pressupõe a intersubjetividade para ser concreta.

A vontade absoluta universal, que vive em todos os sujeitos transcendentais e que torna possível o ser individual-concreto da omnisubjetividade [Allsubjektivität] transcendental, é a vontade divina, que pressupõe, porém, a intersubjetividade inteira, não como se esta a precedesse, como possível sem ela (também não como a alma pressupõe o corpo [Leib-körper]), mas como o estrato estrutural, sem o qual esta vontade não pode ser concreta (Hua XV, p. 381).

Todas estas afirmações são muito ambíguas e de difícil interpretação; apontam

assim para a dificuldade de Husserl de chegar a uma compreensão satisfatória deste

problema. O que se compreende, por exemplo, destas afirmações é que para Husserl a

operação da vontade universal de ser não é criação do mundo do nada, em sentido

absoluto, ou seja, não explica em absoluto a aparição do mundo na consciência, mas

apenas o seu progresso através dos graus do ser relativo. O que, por exemplo, não está

explicado é a origem do material que vem a ser “sempre melhor” ordenado no processo do

desenvolvimento em direção à Ideia infinita do ser perfeitamente realizado. Isto talvez seja

também uma consequência da decisão metodológica de ficar com o absoluto da

consciência transcendental. Por isso Deus parece não poder ter nenhuma realidade

independentemente da consciência e do seu processo de ser. A ideia de Deus é o Telos

infinito ideal, que aparece no fluxo infinito do ser apenas como valor infinito. Seu ser,

Martina Korelc 62

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

portanto, é o ser de ideia; por mais que esta seja absoluta e diferente de outras ideias,

superando todas como ideia de perfeição, é contudo apenas uma ideia, um ser pensado.

V.

Infelizmente, não consegui ainda apresentar algo mais definitivo e completo

sobre a metafísica a partir da fenomenologia. Além da falta de conclusões mais

sistemáticas do próprio Husserl, que não se deu por satisfeito com nada do que foi

apresentado aqui – reconhecia-se de fato ainda não preparado para falar de Deus – também

eu mesma não cheguei ainda a conclusões satisfatórias. No fim posso propor apenas

algumas questões.

1. Se a fenomenologia pretende esclarecer o sentido do ser, mas não consegue

elucidar suficientemente o sentido do ser de Deus e da sua transcendência, que é o

fundamento e a justificação última do ser da subjetividade, será que poderá em absoluto

esclarecer o sentido? O sentido do ser não se fundamenta ultimamente no próprio ser? É

justo considerar o ser da subjetividade, que pode ser legítimo ponto de partida, apenas

como o processo de consciência? Mas, será que Husserl também se deu conta disso e por

isso projetou uma ciência metafísica que não seria idêntica à fenomenologia, não trataria

do ser enquanto pensado, enquanto possível, mas do ser fático, real? Talvez as questões

metafísicas não possam ser definitivamente resolvidas pela própria fenomenologia, mas

pela metafísica que esta torna possível? Deveria se pensar melhor sobre o ser da

subjetividade e da intersubjetividade.

2.Para poder avaliar a proposta filosófica de Husserl, a sua proposta de voltar a

si mesmo para esclarecer o sentido, é confortador lembrar de Santo Agostinho que propôs

o caminho semelhante: a verdade não se encontra fora do homem, no mundo, mas no

interior, no coração do homem. Ali Agostinho encontra Deus como Verdade que habita na

alma, mas que lhe é ao mesmo tempo absolutamente exterior e infinitamente superior.

Deus de Agostinho não depende do ser do homem. Porque Husserl não chega à mesma

conclusão? A diferença talvez esteja na decisão de Husserl, por um lado, de suspender o

saber sobre Deus adquirido pela tradição, pela fé religiosa. A sua pretensão é a de chegar a

Deus sem Deus, isto é racionalmente, sem a ajuda da revelação. Na verdade, esta pretensão

impressiona. A fé que ele defende é uma fé racional, e Deus não consegue ser

compreendido desvinculado dos limites do pensamento humano. Agostinho, por outro

lado, afirma que a razão apenas faz compreender o que a fé já sabe, por acolher a Verdade

do Mestre divino que habita o coração. O que a fé sabe pela revelação divina não precisa

Questões metafísicas na fenomenologia de Husserl 63

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

nem deve ser suspenso, apenas é esclarecido pela razão. A razão humana, de fato, sozinha

não chega a Deus, porque ele se comunica e precisa simplesmente ser escutado e acolhido.

Pensemos ainda sobre isto. Ao voltar-se para o próprio interior, o filósofo pela

reflexão talvez encontre o que há nele. Agostinho dedicou o seu ser inteiro, a sua vida, a

Deus na Igreja. Husserl, por outro lado, embora fosse cristão evangélico e se tenha

considerado como um autêntico crente em Cristo, compreendeu a sua própria missão antes

na filosofia e, segundo os testemunhos, não participava da vida cristã da sua Igreja, por

considerar que isto o desviaria da missão de filósofo. Era um sincero e incansável

procurador da verdade, mas talvez não tenha conseguido na sua alma descansar na Verdade

que é Cristo, a exemplo de Agostinho. Mas, tudo isto compreenderemos talvez melhor se

nos voltarmos nós mesmos mais radicalmente para Aquele que está no nosso interior.

Referências bibliográficas

AVÉ-LALLEMANT, Eberhard. “Edmund Husserl zu Metaphysic und Religion”, in: Gerlach, Hans-Martin, Sepp, Hans Rainer, Husserl in Halle. Spurensuche im Anfang der Phänomenologie. Frankfurt am Main: Peter Lang, 1994, p. 85-108.

HUSSERL, Edmund. Cartesianisce Meditationem und Pariser Vorträge. Hua I. Ed. S. Strasser, 1950. Meditações Cartesianas. Trad. Port. A. M. Magalhães. Porto: Rés, s.d.

____. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologische Philosophie. Erstes Buch. Hua III, IV, V. M. Biemel, 1952. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Trad. port. M. Suzuki. Aparecida, SP: Ideias& Letras, 2006.

____. Erste Philosophie (1923-24). Erster und Zweiter Teil. Hua VII, VIII. R. Boehm, 1959.

____. Zur Phänomenologie der Intersubjektivität. Texte aus dem Nachlass. (Dritter Teil). Hua XV. I. Kern, 1973.

____. Formale und Transcendentale Logic. Hua XVII, Den Haag: M. Nijhoff, 1974.

____. Vorlesungen über Ethik und Wertlehre. 1908-1914. Hua XXVIII. Ullrich Melle (Hrsg.). The Hague, Netherlands: Kluwer Academic Publishers, 1988.

____. Manuscritos inéditos: B I 4, B II 2, E III 1, E III 4, E III 9, E III 10.

JÄGERSCHMIDT, Adelgundis. “Gespräche mit Edmund Husserl 1931-1936”, em Stimmen der Zeit, 199, Freiburg: Verlag Herder, 1981.

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Comunicações

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A compreensão de pessoa humana em Karol Wojtyla1

Arpuim Aguiar de Araujo2

Resumo: Karol Wojtyla busca definir o ser humano seguindo um fundamento: pessoa humana. Sua é influenciada por pensadores como Max Scheler, Emmanuel Mounier e Tomás de Aquino; por concepções fenomenológicas, personalistas e também pela questão metafísica. Tais influências acarretaram em uma filosofia própria, cujo olhar visa à compreensão do próprio homem no mundo.

Seu pensamento se interessa pela análise da integridade do próprio homem, ou seja, a pessoa humana. Para Wojtyla, é na revelação dessa pessoa humana que o próprio homem se encontra. Conceber o homem como pessoa, é dar sentido existencial a ele.

A pessoa humana tem por característica a capacidade de cognição. O seu conhecimento possibilita conhecer a verdade natural e essencial das coisas em si mesmas, captando seus fatos universais e inteligíveis. O conhecimento do homem permite a experiência humana, que por consequência acarretará em seu ato. E será por meio desses atos, que a pessoa poderá ser conhecida.

A pessoa tem por si o aspecto de destaque entre demais seres, apesar disso, não o torna isolado da relação com o mundo, da relação de vivência com os demais seres, com outros homens (o próximo) e dele com ele mesmo; pois há uma ação de experiências próprias (experiência humana) que o mantém nessa relação referida. Tal relação possibilita o homem ter acesso à sua interioridade (consciência), por meio da qual permite com que ele dê um significado e sentido determinado ao meio em que ele vive.

Wojtyla tenta assim chegar à estrutura ontológica da pessoa humana, ou seja, considerando fundamentalmente o homem em sua ação, como esta ação se manifesta imediatamente na experiência e na consciência da pessoa. Seu pensamento fundamenta a pessoa em três dimensões: a dimensão da ação; da autotranscendência e da integração. Tais dimensões impedem com que o homem seja concebido como um mero objeto.

Desta forma, a comunicação proposta terá como princípio apresentar as ideias fundamentais sobre o ser humano a partir da compreensão wojtyliana de pessoa humana, apontando para sua verdadeira posição essencial no mundo.

Palavras-chave: Pessoa humana, ato, experiência humana, conhecer, verdade e dimensões.

É um impulso próprio do homem o desejo por conhecer as coisas que o cercam

e conhecer a si mesmo. Mas por que ele conhece? Por que ele quer conhecer? Por que o

homem se atém tanto em querer conhecer o próprio homem em sua essência?

Primeiramente, o conhecer por si, está intrinsecamente relacionado à verdade,

por isso, será sempre um saber sobre a verdade daquilo que está disponível para ser

conhecido. Voltar-se para a verdade das coisas é entender a essência das mesmas, é

entender suas reais necessidades, não apenas restringindo (ou reduzindo) as coisas ao

sentido pragmático, mas compreendê-las num mundo de relações e vivências. Então, é a

1 Texto apresentado na III Semana Acadêmica do Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz, no

dia 13 de setembro de 2011. 2 Aluno do sexto semestre do curso de Filosofia do IFTSC.

Arpuim Aguiar de Araujo 66

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

busca pela verdade, o motivo principal que o homem, que conhece, busca conhecer o

próprio homem em sua essência. É nessa questão metalinguística (o de conhecer o

conhecimento e aquele que conhece) que se começará a árdua tarefa de desvelar o ser

humano.

Nessa tarefa de cognição do próprio homem, nos deparamos com algumas

formas de pensamentos diferentes, como por exemplo, a filosofia personalista que é uma

ramificação da antropologia filosófica. A respeito das formas de pensamentos diferentes

sobre o homem, o filósofo Max Scheler afirmará, na introdução de seu ensaio

antropológico “A posição do homem no cosmos” que o ser humano é concebido de muitas

formas. O filósofo, ao se questionar sobre a palavra homem, encontra três respostas que

não se relacionam, as quais pertencem a três esferas antropológicas diferentes: uma

antropológica científico-natural, uma filosófica e outra teológica. Scheler (2003) acredita

que tais pensamentos tradicionais não possuem uma ideia una de homem, onde muitas

tentativas como as das ciências especiais, por mais valiosas que possam ser devido sua

pluralidade, acabam mais obscurecendo a essência do homem do que a iluminando. Para

Scheler, a filosofia personalista tenta resolver também esse embate dos pensamentos

tradicionais sobre a ideia do homem, visando uma base ampla por meio de pontos referidos

à essência do homem em comparação com os demais seres vivos e sua posição metafísica

peculiar.

A antropologia de Karol Wojtyla é tida como personalista, cujo pensamento é

influenciado por pensadores como Max Scheler, Emmanuel Mounier e Tomás de Aquino;

por concepções fenomenológicas, personalistas e também pela questão metafísica. Tais

influências acarretaram em uma filosofia própria, cujo olhar visa à compreensão do próprio

homem no mundo.

O pensamento wojtyliano se interessa pela análise da integridade do próprio

homem, significando que, em sua maneira, Wojtyla visa compreender a criatura humana

procurando integrá-la a todos os elementos que a compõe. Sua antropologia busca definir o

homem seguindo um fundamento próprio: pessoa humana. A partir de então Wojtyla se

“apropria” da análise da pessoa humana para compreender o homem. Para Wojtyla, é na

revelação dessa pessoa humana que o próprio homem se encontra. Conceber o homem

como pessoa é inseri-lo em seu próprio mistério, é dar sentido existencial a ele. Na

definição antropológica de Karol Wojtyla, em sua filosofia personalista, há uma relação

A compreensão de pessoa humana em Karol Wojtyla 67

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

referencial entre experiência humana e consciência. A experiência humana se encontra

como fundamento incipiente na formação da consciência.

Mas, para começar a compreensão de pessoa humana, é preciso também

compreender o que vem a ser pessoa. O termo pessoa advém do grego prósopon que

significa máscara, no latim significa persona. Essa máscara, para os gregos, está

equivalente ao sentido do personagem, e seguindo este mesmo sentido o termo pessoa foi

introduzido na linguagem filosófica pelo estoicismo popular para indicar as funções que o

homem representava na vida, como podemos perceber nas funções citadas por Epiteto: “...

que tu representes a um mendigo... a pessoa de um coxo, de um magistrado, de um homem

comum” (ABBAGNANO, 1982, p. 730). Desse conceito de função, é possível apontar

para a questão da relação, pois toda a função está sempre em relação a algo, logo esse

termo pessoa passou a ter fortemente a conotação de um ser relacional (ABBAGNANO,

1982, p. 730). Na filosofia aristotélica, essa relação estava acidentalmente adicionada à

substância da coisa.

No que se refere ao pensamento cristão, a partir de 325 d.C. a fim de evitar o

significado de pessoa como máscara, e como um acidente adicionado à substância adotou-

se a palavra grega hipóstasis, ao invés de prósopon. O filósofo Plotino (ABBAGNANO,

1982, p. 475), que influenciou no pensamento cristão da época, usou o termo hipóstasis

para determinar as três substâncias principais do mundo inteligível: o Uno, a Inteligência

(nous), e a Alma. No latim, a tradução desse termo é substantia. Na discussão cristã,

hipóstasis passou então a designar a substância individual, ou seja, exatamente a própria

pessoa, não tendo o caráter relacional como um acidente, mas sim como a própria

substância.

Deste modo, é possível deduzir que o termo pessoa não está necessariamente

relacionado ao ser humano. A definição basilar sobre pessoa para a teologia escolástica

surgiu sob influência de discussões filosóficas e cristológicas do séc. IV, a qual Boécio

afirma a pessoa como “naturae racionalis individua substantia”3 por esse motivo, é

possível estar se referindo a Deus como a pessoa divina, ou seja, na pessoa do Pai, do Filho

e do Espírito Santo.

São Tomás (ABBAGNANO, 1982, p. 730), entretanto, ao elucidar o dogma

trinitário, revalida o significado do conceito da palavra pessoa como sendo de relação,

mesmo afirmando simultaneamente a substancialidade da relação do Deus Uno e Trino:

3 Tradução de minha autoria: Ser de substância individual natural e racional.

Arpuim Aguiar de Araujo 68

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Assim como a divindade é Deus, assim a paternidade divina é Deus Pai, que é pessoa divina: portanto, a pessoa Divina significa a relação enquanto subsistente; isto é, significa a relação na forma da substância, que é a hipóstase subsistente na natureza divina; não obstante que aquilo que subsiste na natureza divina outra coisa não é senão a natureza divina (ABBAGNANO, 1982, p. 731).

Assim, nessa discussão metafísica, como São Tomás, Wojtyla (apud

MONDIN, 1995, p. 25) acredita que não há um termo melhor para qualificar o ser do

homem do que concebê-lo como pessoa: “Persona significat id qoud est perfectissimum in

tota natura, scilicet subsisten in natura racionali”4. No sentido comum, para São Tomás, a

pessoa é, portanto distinção e relação.

Max Scheler (ABBAGNANO, 1982, p. 732) se vale do termo pessoa para

destacá-la, de uma forma peculiar, como um ser de relação, mais especificamente, um ser

de relação com o mundo, e será essa relação que definirá essencialmente a pessoa. Desta

essência, se verifica o eu que é definido pela relação com o mundo externo, o indivíduo

pela relação com a sociedade e o corpo pela relação com o ambiente.

Em Wojtyla a pessoa humana tem por si o aspecto de destaque entre demais

seres, apesar disso, não o torna isolado da relação com o mundo, da relação de vivência

com os demais seres, com outros homens (o próximo) e dele com ele mesmo; pois há uma

ação de experiências próprias (experiência humana) que o mantém nessa relação referida.

Tal relação possibilita o homem ter acesso à sua interioridade (consciência), por meio da

qual permite com que ele dê um significado e sentido determinado ao meio em que ele

vive.

O conhecimento da pessoa possibilita conhecer a verdade natural e essencial

das coisas em si mesmas, captando seus fatos universais e inteligíveis. O conhecimento do

homem permite a experiência humana, que por consequência acarretará em seu ato. E será

por meio desses atos, que a pessoa poderá ser conhecida.

Scheler (ABBAGNANO, 1982, p. 732) afirma que a pessoa é dada somente

onde é dado um poder fazer por intermédio do corpo e, de forma precisa, é um poder fazer

que não se fundamenta somente sobre a lembrança das sensações produzidas por meio dos

movimentos externos e por meio das experiências vividas, mas também precede o agir

efetivo.

4 Tradução de minha autoria: A pessoa significa aquilo que é perfeitíssimo em toda a natureza, a

saber, ela subsiste na natureza racional.

A compreensão de pessoa humana em Karol Wojtyla 69

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Para Wojtyla, o agir é a fonte do conhecimento da pessoa. Segundo Aristóteles

e São Thomas de Aquino (apud SILVA, 2005), o ato humano procede do entendimento

geral do ser e da teoria de potência e ato, isso quer dizer que, na ação do homem há uma

potência correspondente a ele que depende de ser atualizada por ele, tal potência compõe o

cerne da pessoa humana que é irredutível. O homem atua de forma própria pelo ato

voluntário, por meio do qual irá expressar sua liberdade. O ato voluntário é um sinal que há

consciência na pessoa.

Então, Wojtyla (apud SILVA, 2005), busca chegar à estrutura ontológica da

pessoa humana considerando o homem em sua ação, como ela se manifesta imediatamente

na experiência e na consciência da pessoa, seguindo o percurso do efeito à causa e não da

causa ao efeito que partem dos pressupostos da potência e do ato.

Há diferença entre a atuação consciente e a consciência de atuar. A primeira

está diretamente relacionada ao sentido atributivo o qual indica o dinamismo intencional

orientado para os objetos. Já a segunda, está para o sentido substantivo cuja referência se

volta para a dimensão reflexiva da consciência. Wojtyla se atém à consciência substantiva,

ao atuar consciente da pessoa humana; esta é uma característica constitutiva da estrutura da

pessoa em ação:

A consciência se faz presente na ação antes, durante e depois dela acontecer. O agir da pessoa encontra-se, desenvolve-se e completa-se na presença da consciência, o que é fundamental para que o ser humano tenha conhecimento de sua ação (SILVA, 2005, p.31).

Wojtyla tenta assim chegar à estrutura ontológica da pessoa humana, ou seja,

considerando fundamentalmente o homem em sua ação, como esta ação se manifesta

imediatamente na experiência e na consciência da pessoa. Seu pensamento fundamenta a

pessoa em três dimensões: a dimensão da ação (encarnação); da autotranscendência

(vocação) e da integração (comunhão). Essas dimensões impedem com que o homem seja

concebido como um mero objeto, como apenas um indivíduo, ou a um ser coletivista.

Karol Wojtyla rejeita o individualismo, porque enclausura o ser humano em si mesmo, e o coletivismo (totalitarismo), que dilui o homem na coletividade, porque o torna impessoalizante. A pessoa humana não pode ficar perdida em sua liberdade, nem reduzida a um indivíduo coletivo. A pessoa é preservada na participação, por que essa evita a alienação. A criatura humana possui, intrínseca a sua natureza, a vocação de conviver com os outros no amor. O amor é entendido como o exercício que possibilita ao ser humano a plenificação da autopossessão, da auto-realização e do convívio humano, de fato, com o seu semelhante. A

Arpuim Aguiar de Araujo 70

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

comunidade é constituída pela comunhão de pessoas. [...] A participação, juntamente com a integração e a transcendência, evita a coisificação do ser humano. [...] Participar significa personalizar-se. (SILVA, 2005, p. 143)

A dimensão da integração é o reflexo da relação entre a ação e a

autotranscendência, isto significa, que a comunhão é o fruto da relação entre a encarnação

e a vocação. Portanto, a realização do homem está justamente na busca pela plenificação

da relação entre essas três dimensões. Na integração, o homem intensifica o conhecimento

de si. A integração revela na consciência o próximo, pois considerando a pessoa como um

ser relacional, o conhecimento do próximo possibilitará integrá-la existencialmente numa

comunidade humana.

A compreensão de pessoa humana em Karol Wojtyla 71

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Referências

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 2.ed. São Paulo, Editora Mestre Jou, 1982.

MONDIN, Battista. Definição filosófica da pessoa humana. Tradução de Ir. Jacinta Turolo Garcia. Palestra proferida na Universidade do Sagrado Coração, Bauru, EUDSC, 1998.

MOUNIER, Emmanuel. O personalismo. Tradução de Vinícius Eduardo Alves. São Paulo, Centauro, 2004.

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SCHELER, Max. A posição do homem no cosmos. Tradução Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2003.

SILVA, Paulo Cesar da. A antropologia personalista de Karol Wojtyla: pessoa e dignidade no pensamento de João Paulo II. Aparecida, SP, Idéias & Letras, 2005.

Bibliografia

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CHAIGNE, Hervé. Presença de Mounier. Organizador: Jean-Marie Domenach; tradução Maria Lúcia Moreira. São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1969.

WOJTYLA, Karol. Metafísica della persona: tutte le opere filosofiche e saggi integrativi. A cura di Giovanni Reale e Tadeusz Styczen. Vaticano, Libreria Editrice Vaticana; III edizione Bompiani il Pensiero Occidentale, 2005.

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Religião Católica e Ciência: União versus Rivalidade

Cláudio José De Carvalho

Resumo: Trata-se de um estudo sobre as relações entre a Fé e a Razão. O objetivo principal é demonstrar que a Religião Católica e a Ciência estão relacionadas e que ambas falam a mesma linguagem, porém com focos diferentes. Por muito tempo, a Religião e a Ciência se encontraram em constantes conflitos. Hoje se sabe que constitui um grande e doloroso mal entendido essa visão de incompatibilidade entre a Fé e a Razão e que ambas são como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para contemplar a verdade. O método consistiu em uma revisão bibliográfica que teve por base livros de antropologia teológica, documentos da Igreja Católica e o livro “A Origem das Espécies” de Charles Darwin. Concluiu-se que tanto a Fé como a Razão precisam uma da outra para continuar seu progresso rumo ao conhecimento da verdade e maior felicidade do próprio homem.

Palavras-chave: Religião Católica, Ciência, Fé, Razão

Introdução

Desde o início do século XVII a Ciência e a Religião Católica enfrentam

constantes conflitos (LALOUP,1960). Diferentes autores de ambas as áreas tentam

comprovar suas teorias em detrimento de seus “adversários”. Hoje se sabe que a Igreja

Católica, dentre as Religiões mais acreditadas de nosso tempo, é a que melhor acolhe a

Ciência (LALOUP,1960) e ainda a vê como cooperadora do projeto divino (TEPE, 2003).

A teoria evolucionista proposta por Charles Darwin1, em 1859, em nada ofende

a dignidade espiritual do homem e só veio confirmar o relato bíblico sobre a criação,

encontrado no livro do Gênesis, em que Deus criou de forma evolutiva, dos seres mais

“primitivos” aos mais “evoluídos” (SULDERS, 1970).

Ainda é importante o estudo de tal tema, pois a origem do homem e do mundo

sempre foi um assunto que motivou o próprio homem a formular várias hipóteses, das

quais a ciência ainda não se posicionou concretamente, e, também, percebe-se que, em

1 Quando Charles Darwin (†1882) propôs a sua teoria evolucionista, os teólogos católicos

mostraram-se contrários à mesma, pois era mecanicista ou afinalista, ateleológica; com efeito, a evolução se faria mediante a luta pela vida (struggle for life), na qual as espécies mais fracas teriam perecido, ao passo que as mais fortes terão sobrevivido. A Providência Divina ou a Sabedoria do Criador não eram devidamente consideradas. Com o tempo, porém, os pensadores católicos tomaram consciência das novas descobertas nos campos da paleontologia, da arqueologia, da biologia, e verificaram que se pode separar os dados da ciência da filosofia materialista com que Charles Darwin os interpretou. Daí a nova posição assumida oficialmente pela Igreja e formulada por Pio XII em 1950, conforme o texto da encíclica Humani Generis.

Religião Católica e Ciência: União versus Rivalidade 73

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

todas as épocas, o homem vive uma inquietação para responder a certas perguntas como:

“de onde vim?” e “para onde vou?”. Conforme João Paulo II em sua encíclica Fides et

Ratio: “O desejo de conhecer é uma característica comum a todos os homens”.

Além disso, para uma melhor convivência entre os homens, é necessário que

haja um diálogo entre a razão e a fé, uma vez que se trata de duas dimensões essenciais de

seu ser, para que o homem continue a realizar as funções que Deus lhe atribuiu no

momento da Criação: “ser senhor e imediato representante de Deus no mundo visível”

(BITTENCOURT, sem data).

Assim, o objetivo desse trabalho é demonstrar que a Religião Católica e a

Ciência estão relacionadas e que ambas falam a mesma linguagem, porém com focos

diferentes.

Desenvolvimento

Fé e Razão constituem as duas colunas pelas quais o espírito humano se eleva

para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo

de conhecer a verdade e, em última análise, de conhecer a ele, para que, conhecendo-o e

amando-o, possa chegar também a verdade plena sobre si próprio, o mundo e Deus (JOÃO

PAULO II, 2002).

A Igreja recebeu um mandato divino de sacralização do mundo e de todas as

suas atividades; ela há de estar presente a todos os momentos da história e em todos os

setores da atividade humana para fazer ouvir o apelo de Deus (LALOUP, 1960). Assim, a

Ciência deve respeitar algumas regras fundamentais: ter em conta que o caminho do

homem é um caminho que não permite descanso; não se pode percorrer tal caminho com

orgulho de quem pensa que tudo é fruto de conquista pessoal; e fundar-se no “temor de

Deus” (JOÃO PAULO II, 2002).

Hoje constitui um erro achar que o Deus dos cristãos é um grande obstáculo

para a ciência e aos progressos humanos. (LALOUP, 1960). Para o Concílio Ecumênico do

Vaticano II, a pesquisa científica metódica nunca será oposta à fé, e vai mais longe, vendo

o próprio Deus atuando com o cientista e este cooperando com o Criador no projeto divino

de recapitular tudo em Cristo (TEPE, 2003).

Diante dessa falsa visão de uma incompatibilidade, a Igreja proclama que a Fé

não é irracional. Por isso ela valoriza tantos homens e mulheres que aprenderam a ver na

Cláudio José de Carvalho 74

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

beleza da natureza os sinais do Mistério, do amor e da bondade de Deus, e que são sinais

luminosos que ajudam a compreender que o livro da natureza e da Sagrada Escritura falam

do mesmo Verbo que se fez carne (DA, 2007).

O Papa Leão XIII, na encíclica Providentissimus Deus, em 1893, escreve: “Os

escritores sagrados, ou, antes, o Espírito Santo, que pela boca deles falava, não tencionava

ensinar aos homens algo sobre a natureza das coisas visíveis” e que se o corpo humano tem

origem na matéria pré-existente, a alma espiritual é imediatamente criada por Deus.

Não há motivo para existir concorrência entre a Fé e a Razão: uma implica à

outra, e cada qual tem o seu espaço próprio de realização. Assim, em Deus reside a origem

de tudo, nele se encerra a plenitude do mistério, e isso constitui a sua glória; ao homem,

pelo contrário, compete o dever de investigar a verdade com a razão, e nisso está a sua

nobreza (JOÃO PAULO II, 2002). “A glória de Deus é ocultar uma coisa e a glória dos

reis é sondá-las” (Pr 25,2).

A Sagrada Escritura não foi redigida para ensinar o homem sobre ciências

naturais, mas tem em vista expor ao homem o sentido último e o valor das criaturas, e cabe

a ciência explorar e descrever sobre as coisas criadas e a forma de sua origem

(BITTENCOURT, sem data).

O livro do Gênesis, na Bíblia, descreve um desenvolvimento progressivo da

vida na terra, desde os mais imperfeitos (a matéria caótica desordenada), a separação da

terra da água, a criação das plantas, dos peixes, dos animais selvagens e domésticos até o

mais perfeito, o homem. Tal relato bíblico da criação foi confirmado pela ciência

(SMULDERS, 1970; BITTENCOURT, sem data). Todavia, a produção do homem não

termina como a dos animais, com a formação do corpo: o Criador ainda sopra em suas

narinas para lhe dar a vida. O “sopro de vida” significa simplesmente a vida, e esta é obra

do Criador e não da matéria (BITTENCOURT, sem data).

A vida que a ciência pesquisa faz parte da evolução do universo, de partículas à

galáxias, estrelas e planetas. Na terra, essa evolução produziu condições físicas, químicas e

térmicas que eram exatamente as condições certas para a decolagem dos estupendos

processos da evolução biológica. Tais condições só poderiam ter surgido em um universo

governado por leis e regularidades precisamente coordenadas. Essa mente misteriosa que

esta além e anterior ao próprio universo, o “bom senso” dos homens tem sempre chamado

de Deus (TEPE, 2003).

Religião Católica e Ciência: União versus Rivalidade 75

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Para a fé cristã, Deus é autor do universo, criador do mundo visível e invisível,

mas não o criou e deixou-o à autonomia total. Ao bem dizer, Ele NÃO “criou” uma só vez

no passado, pois Deus não conhece passado nem futuro, Ele vive no seu hoje eterno. Do

nosso ponto de vista temporal, devíamos dizer que ele continua a criar - meu pai trabalha

até hoje (Jo 5,17). (TEPE, 2003).

Deus, por seu Espírito, que enche o orbe da terra, sustenta o todo da criação e

todas as criaturas singulares, dando-lhe a “energia” e a “autonomia”, de forma relativa,

próprias para suas atividades (Ele sustenta o Ser) (TEPE, 2003).

Antes de aparecer o homem como observador, Deus observava e contemplava

com carinho a obra do universo – Deus via que tudo o que tinha feito era muito bom (cf.

Gn 1,10-31). Ao homem, Deus deu, além do papel divino de observador do mundo

subatômico, a atividade de intervir “criativamente” na natureza, descobrindo cada vez

melhor a realidade, sistematizando as descobertas e transformando-as. (TEPE, 2003).

Uma afirmação que provocou um grande desconforto, no início de pesquisas

paleontológicas, foi a de que o homem descende do macaco, isso deixou muitos cristãos

revoltados, pois esses se sentiam mais dignificados por uma interpretação fundamentalista

do Gênesis em que Deus mesmo forma o homem do barro, soprado nele o espírito da vida

(TEPE, 2003).

Se o corpo humano é matéria, nada impede que se admita a origem do mesmo a

partir da matéria viva pré-existente, porém, não se pode dizer que provem do macaco tal

como se conhece hoje, pois este já está de tal modo especializado que não evolui mais. O

corpo humano vem de um tronco mais primitivo dito “primata”, do qual teria originado os

macacos mais aperfeiçoados e o corpo humano organizado, apto a ser sede da vida humana

(BITTENCOURT, sem data).

Na teoria evolucionista, o barro vivificante permanece, mas já passado por

muitas transformações genealógicas, a genética vem para reforçar definitivamente tal

teoria e vai ainda mais longe, afirmando que todos os seres vivos descendem de uma única

célula viva que apareceu na terra há uns quatro bilhões de anos. (TEPE, 2003).

Charles Darwin em seu livro “A Origem das Espécies” (1859) termina com a

seguinte afirmação: “É realmente um sublime pensamento que o Criador tenha soprado o

germe da vida apenas em poucas formas, e talvez em uma só... Assim, de um início tão

singelo uma incontável série das mais belas e maravilhosas formas evoluiu e ainda evolui”.

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Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Na própria evolução se descobre a face do Criador. A teoria da evolução visa

somente ao lado exterior daquilo que o ato criador continuado de Deus realiza

sucessivamente no tempo e no espaço. (SMULDERS, 1970).

Considerações finais

A Ciência e a Religião têm uma revelação progressiva, onde no princípio um

conhecimento era suficiente para a época e com o passar dos tempos foi se tornando

obsoleto, precisando de novas pesquisas para maior clareza do assunto, é o que vemos com

a revelação do Antigo para o Novo Testamento e com as grandes descobertas feitas pela

tecnologia científica. “Tenho ainda muitas coisas a vos dizer, mas não sois capazes de

compreender agora. Quando ele vier, o Espírito da Verdade, guiar-vos-á em toda a

verdade” (Jo 16, 12-13a).

Tanto a Religião Católica quanto a Ciência falam dos mesmos assuntos, porém

com objetivos diferentes a alcançar. Em nada as explicações de uma ferem a outra, pelo

contrário, elas se apoiam para elevar o conhecimento do homem e fazê-lo descobrir o

sentido de tudo, principalmente da sua própria existência.

Há, porém, o risco de ambas se acharem independentes e percorrerem

caminhos que possam levá-las ao fanatismo, como bem nos exemplifica o mundo atual,

onde encontramos catástrofes tanto na religião, com homens explorando outros e mesmo

matando-os em nome de Deus, como na ciência, com as guerras químicas e biológicas,

abortos, aquecimento global e outros, sempre concorrendo contra a vida do próprio

homem.

Assim, a humanidade deve encontrar um equilíbrio entre o conhecimento

científico e religioso para que o mundo possa viver a verdadeira felicidade, prometida por

Jesus Cristo e que é a oferta de agradável odor (Ex 29,18) que o homem moderno pode

oferecer a Deus, seu Criador.

Religião Católica e Ciência: União versus Rivalidade 77

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Referências Bibliográficas

BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova Edição, Revista e Ampliada. 5° Impressão. Editora Paulus, São Paulo, SP. 2008

BITTENCOURT, Dom Estevão OSB. Apostila de Antropologia Teológica. Fundamentação Bíblica – Antigo Testamento. Parte I: A Criação. Disponível em: <http://diacononeves.com/documentos/Cursos/ANTROPOLOGIA.doc> acessado em: 06/04/2011

DOCUMENTO DE APARECIDA (DA). Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino Americano e do Caribe, 2007. 11° Edição. Editoras: CNBB, Brasília. Paulus, São Paulo. Paulinas, São Paulo. 2009.

DARWIN, Charles. A Origem das Espécies. 1859 . Tradução de: PAUL, Joaquim da Mesquita. Lello & Irmão – Editores. Porto, Portugal. 2003.

JOÃO PAULO II, Papa. Fides et Ratio: aos bispos da Igreja Católica sobre as relações entre fé e razão. Carta Encíclica. 6° edição. Editora Paulinas. São Paulo 2002.

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LEÃO XIII, Papa. Providentissimus Deus: Carta Encíclica. 1893. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_18111893_providentissimus-deus_en.html. Acesso em: 01/04/2011.>

TEPE, Dom Valfredo, ofm. Antropologia Cristã: Diálogo Interdisciplinar. Editora Vozes. Petrópolis, RJ. 2003.

SMULDERS, Pieter. Fé na Criação e no Evolucionismo: in A Redescoberta do Homem: do Mito à Antropologia Crítica. Traduzido por: Luiz Leal Ferreira. Editora Vozes Limitada. Petrópolis, RJ. pag 59-84. 1970.

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

O homem: um ser composto de corpo e alma, segundo Tomás de Aquino

Divino Eterno1

Resumo: O homem, para Tomás de Aquino , encontra-se na fronteira do mundo espiritual e do mundo corpóreo, ou seja, segundo o seu pensamento, o homem é concebido como uma unidade composta de dois princípios: um orgânico, princípio corpóreo; e outro inorgânico, princípio espiritual. Na ordem corpórea, o primeiro; na ordem espiritual, o último. E ,de fato essa questão da unidade do homem ou da relação da alma com o corpo é o grande problema clássico com o qual S. Tomás se defronta. Dentre as muitas teses medievais acerca do que é o homem, a tese da pluralidade das formas substanciais hierarquizadas no mesmo composto – alma e corpo como duas substâncias dotadas de ato próprio de ser – além de atrair mais simpatias, parecia ser, na Idade Média, a mais apta para preservar a natureza da alma intelectiva, que tinha a função de governar o corpo. Todavia, rejeitando a tese da pluralidade das formas, Tomás de Aquino, segundo princípios da filosofia aristotélica – a teoria hilemórfica – afirmou a unidade substancial do composto humano, desenvolvendo, assim, a sua antropologia segundo a concepção unidual do homem. Tese que além de resguardar a unidade substancial do homem, preserva a natureza intelectiva da alma. Portanto, em sua tese acerca do homem como um ser composto de corpo e alma, Tomás não só assegurou a superioridade da alma em relação ao composto humano, como também, de certa forma, colocou o homem numa situação de sublime contraste. Ele situou o no limite entre duas realidades opostas: o mundo corpóreo e o mundo espiritual. A afirmação do homem como um ser de fronteira, o coloca, assim, na ordem da criação como um ser único, totalmente singular. O homem tanto pode sentir a matéria, como também pode ascender-se ao imaterial, ao espiritual. O homem, portanto, é o ser da transcendência, ao mesmo tempo em que é o ser da imanência.

Palavras-chave: alma, corpo, hilemorfismo, unidade, substancial.

O homem, segundo Tomás de Aquino2, encontra-se na fronteira do mundo

espiritual e do mundo corpóreo, ou seja, de acordo com o seu pensamento, o homem é

concebido como uma unidade composta de dois princípios: um orgânico; e outro

inorgânico. Segundo Vaz (1991, p. 69), na perspectiva da definição clássica acerca do que

é o homem, a questão da unidade do homem ou da relação da alma com o corpo é o grande

problema com o qual S. Tomás defronta-se; problema tal “que se apresenta como um dos

temas mais vivamente polêmicos da filosofia medieval” (VAZ, 1991, p. 69). Dentre as

muitas teses medievais acerca do que é o homem, a tese da pluralidade das formas

substanciais hierarquizadas no mesmo composto – alma e corpo como duas substâncias

dotadas de ato próprio de ser – além de atrair mais simpatias, parecia ser, na Idade Média,

a mais apta para preservar a natureza da alma intelectiva, que tinha a função de governar o

1 Aluno do 3º Ano do curso de Teologia no Instituto Santa Cruz. 2 S. T. I, q. 77, a. 2, resp.

A Beleza como manifestação da Verdade nos Ensinamentos de Bento XVI 79

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

corpo. Todavia, Tomás rejeitou essa perspectiva de conceber o homem, e, a partir de

elementos da filosofia aristotélica – a teoria hilemórfica – afirmou a unidade substancial do

composto humano, desenvolvendo, assim, a sua antropologia segundo a concepção unidual

do homem. Tese que, além de resguardar a unidade substancial do homem, preserva a

natureza intelectiva da alma.

Na história do pensamento filosófico antropológico, a discussão acerca da

unicidade ou não-unicidade do homem se deu sob o signo da divergência. De acordo com

Mondin (1987, p. 272), esse problema suscitou ao longo da história da filosofia soluções

muito variadas e contrastantes. Ele afirma que de acordo com o pensamento de alguns

filósofos, a alma é uma substância, cuja substancialidade identifica-se com a do homem, ou

seja, o homem é a alma; para outros, a alma não é uma substância, mas um acidente, isto é,

mera função da matéria, para estes o homem é o corpo; e para um terceiro grupo, a alma é

uma substância completa, dotada de ato próprio de ser, mas que não se identifica com a

substancialidade do homem, pois esta compreende também o corpo.

Em Platão, por exemplo, a concepção acerca do homem se deu sob a

perspectiva dualista: corpo e alma. Na qual a alma é o princípio superior. A definição do

que seja o ser humano, o princípio que define o que é o homem. O corpo, nessa relação, é

tido apenas como o cárcere da alma. Uma barreira, um obstáculo que impede ou dificulta a

alma de atingir o seu mais alto estado de ser: a contemplação do Belo, da coisa em si. E, de

fato, Reale afirma que o corpo, no pensamento platônico, é concebido não como um

receptáculo da alma que lhe possibilidade desenvolver as suas faculdades, mas “como

‘túmulo’ e ‘cárcere’ da alma e lugar de expiação” (REALE, 1994, p. 203). O corpo é,

assim, o princípio inferior, o engano, a prisão na qual a alma deve purificar-se. Portanto,

nessa perspectiva, “enquanto temos um corpo, estamos mortos porque somos,

fundamentalmente, a nossa alma” (REALE, 1994, p. 203).

Nesse sentido dualista acerca da concepção do homem, apontamos também

Descartes, cuja antropologia se deu segundo a estrutura dualista cartesiana: res cogitans,

para designar o mundo espiritual: a alma; e res extensa, para designar o mundo corpóreo.

A única certeza imediata que Descartes tem é o cogito, o “eu penso”; ou seja, única certeza

que lhe é imediata é a consciência; isto é, a alma. Portanto, de acordo com João Ameal

(1947, p. 371), tanto para Descartes como para Platão e os idealistas que o seguiram, o

homem é identificado como a sua alma. Concepção esta que Ameal designa como ilusão.

Ilusão por duas razões principais: primeiro, a alma não é espírito puro; segundo, a alma

Divino Eterno 80

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

não é substância completa. Ela não é espírito puro “porque o seu caráter específico é o de

tender a unir-se a um corpo; não é substância completa porque não pode, por si só, realizar

todas as suas operações, como a vegetativa e a sensitiva” (AMEAL, 1947, p. 371). Para os

idealistas, portanto, o homem não era uma unidade substancial intrínseca, mas a união

entre duas substâncias completas, enquanto dotadas de ato próprio de ser, assim como o

timoneiro e o barco.

Para os materialistas, o homem é identificado como o corpo. Segundo o

materialismo, tudo é matéria, pois o ser seria o mesmo que a corporeidade, sendo, portanto,

o espírito mera função da matéria. É o mesmo princípio dos atomistas, em que toda

realidade se resume a pequenas partículas de matéria. Segundo uma afirmação do

materialista Jakob Moleschott (apud FILHO, 2004, p. 269), “o homem é aquilo que come”.

Portanto, segundo o materialismo, o princípio substancial que identifica o homem é a

matéria: o homem é o seu corpo.

Por outro lado, partindo do hilemorfismo, que segundo Selvaggi (1988, p. 399),

"é o centro não só da filosofia da natureza [...], mas também de toda a filosofia

aristotélica”, São Tomás desenvolveu a sua concepção do ser humano, definindo o homem

como uma unidade formada por dois elementos distintos: a matéria-primeira

(potencialidade) e a forma substancial (princípio realizador). Na sua concepção, a alma e o

corpo não são considerados como duas substâncias completas por si mesmas. “O homem

não é só alma, mas é algo composto de alma e corpo”.3 Não há, portanto, um ato de ser do

corpo e outro da alma. “O ato de ser é um só, o da alma, ao qual desde o primeiro instante

do seu existir dele faz participar também o corpo” (MONDIN, 1987, p. 275). Essa relação

de unidade entre a alma e o corpo não é simplesmente o encontro entre duas substâncias

completas, dotadas de um ser autônomo, mas trata-se de elementos substanciais em que

pelo menos o corpo não dispõe de um próprio ato de ser. Essa relação configura-se com a

união da forma substancial com a matéria, da qual se engendra uma substância nova.

Assim, segundo S. Tomás, a alma e o corpo formam uma única substância: o homem. Há,

portanto, um único ato de ser: o da alma, do qual o corpo participa.

Acerca do hilemorfismo, “O nome de teoria hilemórfica (de duas palavras

gregas que significam matéria e forma) foi dado à doutrina, proposta inicialmente por

ARISTÓTELES, que define a essência dos corpos como resultante da união de dois

3 S. T. I, q. 75. a. 4, resp.

A Beleza como manifestação da Verdade nos Ensinamentos de Bento XVI 81

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

princípios chamados matéria e forma” (JOLIVET, 1998, p. 112) 4. Portanto, em relação à

teoria hilemórfica, entende-se a doutrina que explica a composição última de qualquer

corpo por duas substâncias incompletas: matéria substancial e forma substancial. A matéria

constitui-se o elemento indeterminado, e a forma o elemento determinante, aquele que irá

atualizar a matéria, imprimindo nela determinada forma. Neste sentido, o corpo é a

matéria-prima, isto é, “potência e pura potência [...] capaz de converter-se em qualquer

corpo, graças a sua absoluta indeterminação original” (JOLIVET, 1998, p. 113)5; e a alma

a forma, isto é, forma substancial, pois “é por ela que a matéria se torna tal corpo. É por

isto que se diz que a forma é ato da matéria. Assim, a alma racional (forma substancial) é

o ato que faz da matéria-prima um corpo humano” (JOLIVET, 1998, p. 113). E de fato, S.

Tomás afirma o seguinte: “A alma que é princípio da vida não é corpo, mas ato do corpo,

assim como o calor, que é princípio do aquecimento, não é corpo, mas um ato do corpo”.6

Portanto, a alma é ato do corpo. Como ato, ela é o primeiro princípio vital do corpo,

enquanto este é o princípio das operações. “O primeiro [princípio] pelo qual um corpo vive

é a alma. [...] Por conseguinte, esse princípio [...] é a forma do corpo”.7 E é por esta mesma

forma que o homem é um ser em ato, um corpo, um ser vivo, um animal e um homem;

pois, a alma, como forma perfeita, contém virtualmente todas as perfeições das formas

inferiores: alma vegetativa e sensitiva.8

Na teoria hilemórfica, toda matéria-prima e forma substancial são princípios de

ser; ou seja, elas não são seres, pois a matéria-prima e a forma substancial não podem

existir como tal, com exceção da alma humana. Ela para existir necessita de um corpo, pois

a sua criação é concomitante à sua infusão no corpo, ao qual ela imprime ser.9 No entanto,

após a união com o corpo, a alma pode a qualquer momento separar-se dele. E essa

separação não implicará no seu fim, pois ela, como sendo espírito, é incorruptível. Acerca

da incorruptibilidade da alma, S. Tomás diz o seguinte:

É necessário dizer que a alma humana, que chamamos de princípio intelectivo, é incorruptível. Ora, uma coisa se corrompe de duas maneiras: por si ou por acidente. É impossível ao que é subsistente ser

4 Grifo do autor. 5 Itálico do autor. 6 S. T. I, q. 75, a. 1, resp. 7 S. T. I, q. 76, a. 1, resp. 8 Cf. S. T. I, q. 76, a. 6, quanto ao 1º. 9 Acerca da criação da alma, o Ameal pergunta: “em que momento cria Deus a alma humana?”. E,

em seqüencia, nos dá a resposta: “No memento da sua união com o corpo” (1947, p. 388). Também nessa linha, Hugon sublinha: “O momento da criação da alma é o da infusão no corpo” (1998, p. 134).

Divino Eterno 82

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

gerado ou corromper-se por acidente, isto é, por algo gerado ou corrompido. Assim compete a uma coisa ser gerada ou corrompida, como também o ser, o qual se recebe por geração e se perde por corrupção. Por isso aquilo que tem o ser por si não pode ser gerado ou corrompido por si. As coisas que não subsistem, como os acidentes e as formas materiais, são feitas ou se corrompem pela geração ou corrupção do composto. – Acima foi demonstrado que as almas dos animais não subsistem por si, mas apenas a alma humana. Portanto, as almas dos animais se corrompem quando o corpo se corrompe, e a alma humana não pode se corromper a não ser que se corrompesse por si. Que isso aconteça é absolutamente impossível, não só para a alma humana, como também para todo subsistente que é só forma10.

Em relação à unidade entre a forma e a matéria-prima, essa unidade constitui

uma única espécie. De fato, o Padre Édouard Hugon sublinha: “o corpo e alma estão entre

si como a matéria e a forma, porque da sua união resulta uma só pessoa e uma só natureza”

(1998, p. 140). Essa unidade substancial que se dá entre o corpo e a alma é tão profunda

que em todas as operações do homem há sempre uma contribuição tanto do corpo quanto

da alma. De fato, em todas as ações do homem, “o que atua não é a alma desligada do

corpo, nem o corpo desligado da alma; é o composto da alma e do corpo, o homem integro,

a pessoa” (1947, p. 383). De fato, em todas as ações humanas é o composto que atua, mas

segundo a sua forma que é a alma; pois esta, como primeiro princípio vital do composto

humano, é o princípio de todas as faculdades, embora ela seja o sujeito das faculdades

inorgânicas, enquanto o composto humano é o sujeito das faculdades orgânicas.

No homem, portanto, não há como definir, ou apontar os limites objetivos do

corpo e da alma. Ou, então, como muitos pensadores tentaram indicar no corpo humano o

lugar preciso no qual está localizado a alma. Descartes, por exemplo, dizia que a alma

estava localizada na glândula pineal. Além disso, Ameal (1947, p. 378) afirma também

que:

Certo número de antigos filósofos, [...] consideram a alma acidentalmente instalada numa determinada parte do corpo, donde dirigia as operações vitais como dum posto de comando. Platão, por exemplo, situa na cabeça; Epicuro e os Estoicos, no coração; Homero e Empédocles, no sangue; Parmênides, no peito.

Para S. Tomás, diferentemente dos filósofos que afirmavam que a alma estava

localizada em determinada parte do corpo, a alma encontra-se em todo o corpo. Segundo,

seu pensamento,

10 S. T. q. 75, a. 6, resp.

A Beleza como manifestação da Verdade nos Ensinamentos de Bento XVI 83

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

A alma encontra-se em todo o corpo que anima; nele se expande, não por difusão local, mas como atividade vivificadora; está, com efeito, presente, por inteiro, nas mais pequenas partes do corpo; [...] mas em algumas partes do organismo manifesta mais atividade e menos noutros; está inteiramente em todo o corpo e inteiramente em cada uma das suas partes11.

Além disso, para Tomás, não haverá uma única alma para vários corpos, assim

como pensava Averroes; ou várias almas em um só corpo: um princípio vegetativo, um

sensitivo e um intelectivo – os dois primeiros corruptíveis, e o último, incorruptível –

assim como afirmava Platão. Erros, aliás, combatidos por S. Tomás. Refutando Averroes,

ele afirma que “é impossível que haja uma única forma para várias realidades

numericamente distintas, como é impossível que essas realidades numericamente distintas

tenham um único ser. Pois que o princípio do ser é a forma”.12 Por outro lado, refutando

Platão, o aquinense afirma que “se aceitamos que a alma está unida ao corpo como uma

forma, é totalmente impossível que haja em um mesmo corpo várias almas essencialmente

diferentes”. Pois, “nada é absolutamente uno, a não ser por uma única forma pela a qual se

tem o ser”.13 Ou seja, o princípio que dá o ser e a unidade a uma coisa é o mesmo. Por

conseguinte, se, segundo o argumento de Platão, o homem fosse vivo graças a uma

primeira forma, a alma vegetativa; se fosse animal graças a uma segunda forma, a alma

sensitiva; e se fosse homem graças a uma terceira forma, a alma racional, então, seguir-se-

ia que o homem não possuiria unidade perfeita. No entanto, segundo Tomás, “a alma

intelectiva contém virtualmente tudo o que tem a alma sensitiva dos animais e a alma

vegetativa das plantas”14.

O homem, portanto, de acordo com a exposição do pensamento tomista, é uma

unidade perfeita, completa, composta de uma única alma e um único corpo. Mas, em

relação a essa unidade do composto humano, qual seria o momento da união substancial

entre a alma e o corpo? Esse momento se dá quando o corpo está suficientemente disposto;

ou seja, no momento da concepção. No entanto, Hugon afirma que “S. Tomás e os antigos

pensavam que tal não seria desde o instante da concepção” (HUGON, 1998, p. 135). No

entanto, se analisarmos a questão à luz da teoria hilemórfica, que é a principal base teórica

da filosofia antropológica de Tomás, concluiremos que em sua antropologia, o momento da

11 De Trinitate, lib. IV, cap. 6 Apud AMEAL, 1947, p. 380. 12 S. T. I, q. 76, a. 2, resp. 13 S. T. I, q. 76, a. 3. 14 Idem.

Divino Eterno 84

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

união substancial entre a alma e o corpo, necessariamente, se dá na concepção. Pois, de

acordo com o hilemorfismo, a matéria-prima e a forma substancial por si mesmas não

podem engendrar uma nova espécie. O engendramento de uma nova espécie se dá no ato

da forma, no qual a matéria participa como potência que recebe da forma o seu ato de ser.

Portanto, é impossível ao corpo humano se desenvolver por si mesmo, uma vez que a alma

é o seu princípio vital. A constituição do homem se dá no ato da alma, do qual o corpo

participa como o elemento substancial que recebe em si o ato de ser, realizado pela alma.

Assim, o momento da infusão da alma no corpo, de fato, se dá na concepção. A vida,

portanto, em seu sentido pleno de desenvolvimento inicia-se na concepção.

A originalidade de Tomás, neste sentido, segundo Ameal (1947, p. 382),

consiste no seu ato de considerar a relação entre a alma e o corpo não como problema de

união entre duas substâncias que se supõem completas, mas em considerar essa relação

como de união entre duas substâncias incompletas, para formar um ser composto. E, de

fato, Vaz (1991) sublinha que a engenhosidade de Tomás nesta tarefa se deu justamente

em ele conceber uma teoria acerca do homem, na qual assegurasse tanto a condição física

quanto a condição espiritual do homem como dimensões constituintes de um mesmo

composto, sem, todavia, ameaçar a condição superior da alma em relação ao corpo.

Portanto, em sua tese acerca do homem como um ser composto de corpo e alma, Tomás

não só assegurou a superioridade da alma em relação ao composto humano, como também,

de certa forma, colocou o homem numa situação de sublime contraste. Ele situou o homem

no limite entre duas realidades opostas: o mundo corpóreo e o mundo espiritual. A

afirmação do homem como um ser de fronteira, o coloca na ordem da criação como um ser

único, totalmente singular. O homem tanto pode sentir a matéria, como também pode

ascender-se ao imaterial, ao espiritual. O homem é o ser da transcendência, ao mesmo

tempo em que é o ser da imanência.

A Beleza como manifestação da Verdade nos Ensinamentos de Bento XVI 85

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Referências Bibliográficas

AMEAL, João. São Tomás de Aquino. 3 ed. Porto, Livraria Tavares Martins, 1947.

FILHO, Ives Gandra Martins. Manual esquemático da história da filosofia. 3 ed. rev. ampl. São Paulo, LTr, 2004. p. 269 – 270.

HUGON, Padre Édouard. Os princípios da filosofia de São Tomás de Aquino: as vinte e quatro teses fundamentais. Tradução de D. Odilão Moura O. S. B. Porto Alegre, EDIPUCRs, 1998.

JOLIVET, Régis. Curso de filosofia. Tradução de Eduardo Prado de Mendonça. 20 ed. Rio de Janeiro, Agir, 1998.

LAUAND, Luiz Jean. Tomás de Aquino: vida e pensamento – estudo introdutório geral. In: . Verdade e Conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

MONDIN, B. O homem, quem é ele? São Paulo, Paulinas, 1987.

REALE, Giovanni. História da filosofia antiga. Tradução de Henrique Cláudio de Lima Vaz; Marcelo Perine. São Paulo, Loyola, 1994. vol. II.

SELVAGGI, Filippo. Filosofia do mundo: cosmologia filosófica. Tradução de Alexander a. MacIntyre. São Paulo, Loyola, 1988.

TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica: a criação, o anjo, o homem. São Paulo, Loyola, 2002. Part. 1, v. 2.

VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Antropologia filosófica I. 3 ed. São Paulo, Loyola, 1991.

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

A Beleza como manifestação da Verdade nos Ensinamentos De Bento XVI1

Mário Correia2

Resumo: No mundo de belezas e verdades, onde Deus não é atraente, os ensinamentos do Papa Bento XVI tem sido marcados pelos temas Beleza e Verdade. Em um de seus discursos ele disse que “o mundo precisa de beleza”. Em outro afirmou: “a beleza é a grande necessidade do homem”. Que beleza o mundo precisa? Que beleza o homem necessita? São essas as perguntas que vão nortear o nosso discurso. Para tecer argumentos, recorrerei aos ensinamentos do papa, mas também farei uso de alguns de seus escritos enquanto cardeal. Feito isso, considerações serão desenvolvidas para justificar a afirmação de que a beleza, a qual o Papa se refere, é aquela que manifesta a Verdade. É uma beleza coerente, fascinante, que envolve todas as nossas realidades dando lhes sentido e significados. É uma beleza que atrai o ‘apático mundo’ à Verdade que é uma pessoa: Jesus Cristo, “o mais belo entre os filhos dos homens”, Beleza que nos salva, “que espalha a graça, o encanto”.

Palavras-chaves: Beleza, mundo, homem, Verdade.

"A humanidade pode viver sem a ciência, pode viver sem pão,

mas unicamente sem a beleza já não poderia viver, porque nada mais haveria para fazer no mundo.

Qualquer segredo consiste nisto, toda a história consiste nisto". (Dostoievsky).

No mundo de belezas e verdades, onde Deus não é atraente, os ensinamentos do

Papa Bento XVI têm sido marcados pelos temas Beleza e Verdade. Pode parecer

anacrônico falar desses temas na atualidade. No entanto, no contexto atual, o debate sobre

esses temas não é só sugerido, como tem sido necessário. Não se limitando ao campo

cultural e artístico, eles provocam discussões também no âmbito religioso-espiritual e até

na vivência cotidiana. Dessas discussões é preciso emergir a certeza de que os dois temas,

beleza e verdade, não estão desvinculados, ao contrário, a beleza mostra a verdade e a

verdade reflete a beleza. Estando desvinculados, o resultado é um esteticismo efêmero,

banal e superficial, que conduz o homem ao vazio, ao absurdo.

Essa realidade não nos parece distante. São por estas e outras razões que o papa

Bento XVI, intensificando o que disse seus predecessores, tem gastado tempo em seus

ensinamentos com esse assunto, despertando interesses, encantamento, mas também

1 Texto apresentado na III Semana Acadêmica do Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz, no dia 16. 09.2011.

2 Acadêmico do 2º ano do curso de Teologia do IFTSC.

A Beleza como manifestação da Verdade nos Ensinamentos de Bento XVI 87

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

inquietações. Sua posição é fundada na certeza de que a beleza manifesta a verdade e o seu

caminho “é um percurso privilegiado e fascinante para se aproximar do Mistério de Deus”

3. Na confusão de um mundo materialista, neo-pagão e secularizado, o papa tem insistido

na recuperação da via pulchritudinis como um dos métodos mais profícuos para o anúncio

da Verdade. Esta via – via da Beleza – é capaz de despertar o homem de seu profundo

torpor, é capaz de dar “uma saudável sacudidela que o leve a sair de si mesmo, que o

arranque da resignação, da comodidade diária”4.

A via da Beleza tem nas expressões artísticas um meio privilegiado, mas não único,

para sua instauração. No encontro que o papa teve com os artistas em novembro de 2009,

ele expressou o desejo de renovar a amizade da Igreja com o mundo da arte – com os

“guardiões da beleza” – tão necessária nos nossos dias marcados por mudanças sociais e

culturais. Naquela ocasião, analisando a crise em que o mundo se encontra em seus

diversos âmbitos, o Papa atribuiu as suas causas a um enfraquecimento da esperança e

desconfiança nas relações humanas, que manifestam sinais de resignação e, sobretudo, de

agressividade e desespero. Diante disso, “somente a beleza, diz o papa, pode oferecer

novamente, entusiasmo e confiança. A experiência do belo autêntico... leva a um confronto

cerrado com a vivência diária, para libertá-la da escuridão e para transfigurá-la, tornando-a

luminosa e bela”5. Por isso, retomando Paulo VI, o papa atualizou a veemente afirmação:

“o mundo precisa de beleza para não cair no desespero”6. Um ano depois, na dedicação do

altar da Sagrada Família em Barcelona, em um parecido discurso, fez uma constatação: “a

beleza é a grande necessidade do homem”7. Estas duas afirmações geram inquietações e

nos faz perguntar: de que beleza o mundo precisa? De que beleza o homem necessita? São

essas as perguntas que vão nortear o nosso discurso. Para tecer argumentos, recorrerei aos

ensinamentos do papa, mas também farei uso de alguns de seus escritos enquanto cardeal.

A beleza, a qual o papa se refere, é coerente. É uma coerência que se manifesta, de

modo evidente, na Criação, na Revelação e na sua Transmissão, mas, sobretudo, no

homem, enquanto receptor da Revelação. A coerência da obra criada “permite reconhecer a

face do Criador” e recorda que o “mundo não é produzido pela obscuridade e pelo absurdo.

3 BENTO XVI, Audiência geral, 18 de novembro de 2009. 4 Idem, Discurso por ocasião do Encontro com os artistas, 21 de novembro de 2009. 5 BENTO XVI, Discurso por ocasião do Encontro com os artistas, 21 de novembro de 2009. 6 Idem, ibidem. 7 Idem, Homilia da Missa dedicada ao altar e à Igreja da Sagrada Família, 7 de novembro de 2010.

Mário Correia 88

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Ele deriva de uma inteligência, de uma liberdade, deriva de uma beleza que é amor”8.

Fazendo um mundo belo e coerente, o próprio Deus se revela e a criação se torna uma

expressão, testemunha de sua beleza e plenitude coerente. É uma beleza manifestada

também na Revelação expressa na Bíblia e na Tradição, melhor, na junção delas. A

complexidade e a unidade dessas fontes são incomparavelmente belas9. Também o

Magistério, na Transmissão da Revelação, manifesta a beleza coerente em sua bela

organicidade que, nas palavras de Ratzinger, é uma “beleza que reluz o esplendor da

verdade”10. Portanto, Criação, Revelação e Magistério formam uma unidade coerente e,

por conseguinte, bela. Quem percebe essa harmonia se sente atraído, fascinado, ainda que

não consiga entender todos os seus matizes.

Mas, entre as coisas criadas, o homem é um ser particular da beleza divina: ele “é

um reflexo daquela beleza originária que é Deus”11. Recepcionando a Revelação, o homem

pode tornar-se especialmente belo em virtude da graça que daí vem e que o capacita a

reconhecer “em si o reflexo da luz divina”12. Não se trata de uma beleza puramente

estética ou heroica, mas plenamente humana e revelada por Cristo. Unido a ele, o homem

se santifica, representando assim de modo particular a beleza divina. Outro modo humano

de testemunhar a coerência da beleza cristã e potencializar a humanidade são as “obras que

nasceram da fé e que a expressam”13. Junto com a santidade, as obras inspiradas na fé são

“verdadeira apologia do Cristianismo, ou melhor, a prova mais persuasiva da sua

verdade”14. Diante disso, se a Igreja quer que a fé ainda continue crescendo, com certeza,

um meio eficaz é levar o homem de hoje a ter o contato com os santos, o contato com o

8 RATZINGER, Joseph. Apud, Charles Morerod, A beleza na Teologia de Joseph Ratzinger, in

http://www.movimentoliturgico.com.br/Portal/index.php?option=com_content&view=article&id=362%3Aliturgia-a-beleza-na-teologia-de-joseph-ratzinger&catid=42%3Acat-artigos-liturgia&Itemid=53&showall=1

9 cf. Idem. Dio e il mondo, Essere cristiani nel nuovo millennio, In colloquio con Peter Seewald, Edizioni Paoline, Cinisello Balsamo, 2000, p. 208.

10 Idem. Ibidem. 11 BENTO XVI, Audiência geral, 29 de agosto de 2007. 12 Idem, ibidem. 13 Idem. Audiência Geral, 31 de Agosto de 2011.

14 RATZINGER, Joseph. Apud, Charles Morerod, A beleza na Teologia de Joseph Ratzinger, in http://www.movimentoliturgico.com.br/Portal/index.php?option=com_content&view=article&id=362%3Aliturgia-a-beleza-na-teologia-de-joseph-ratzinger&catid=42%3Acat-artigos-liturgia&Itemid=53&showall=1

A Beleza como manifestação da Verdade nos Ensinamentos de Bento XVI 89

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

belo: “não foi porventura a beleza que a fé gerou no rosto dos santos a estimular muitos

homens e mulheres a seguir as suas pegadas?”15?

A Beleza cristã não é superficial, nem alienante. Por ser coerente, ela envolve todas

as realidades humanas, inclusive aquelas que aparentemente não nos atraem, como a dor e

o sofrimento, dando-lhes sentido, revelando sua verdade. Estamos assim diante do

paradoxo da beleza que encontramos nuanças em Cristo, “o mais belo entre os filhos dos

homens” (Sl 45,3), mas também sem “beleza nem aparência... [com] uma fisionomia

desfigurada pela dor” (Is 53,2). Como conciliar esse paradoxo? Uma questão mais

decisiva: é a beleza ou a feiura, expressa no sofrimento, que manifesta a verdade mais

profunda? A conciliação e a resposta é o próprio Cristo que, mesmo desfigurado, continua

revelando a suprema verdade de que Deus é amor. Nele “encontram-se a beleza da verdade

e a beleza do amor; mas o amor, sabemo-lo, requer também a disponibilidade para sofrer,

uma disponibilidade que pode chegar até à doação da vida por quem se ama (cf. Jo 15,

13)”16. A beleza da verdade inclui a ofensa, a dor e até a morte. Em Cristo essa realidade é

evidenciada: a beleza não recusa a dor, antes, dá-lhe sentido. Acreditar nessa verdade é

indispensável para que a beleza cristã não seja um conceito estético, indiferente à dor e ao

sofrimento humano. Portanto, a beleza cristã, a qual o papa se refere, inclui o paradoxo da

cruz, pois nela se revela a Verdade sobre o sofrimento do homem.

A autêntica beleza suscita no homem o movimento transcendental. Mas o homem

também pode encantar-se com beleza que o faz voltar para si mesmo e, ao invés de

liberdade, ela se torna uma prisão. Tal beleza, diz o papa, é

ilusória e falsa, superficial e sedutora até ao aturdimento e, em vez de fazer sair os homens de si e de os abrir a horizontes de verdadeira liberdade atraindo-os para o alto, aprisiona-os em si mesmos e torna-os ainda mais escravos, privados de esperança e de alegria. Trata-se de uma beleza sedutora, mas hipócrita [...]. Ao contrário, a autêntica beleza abre o coração humano à nostalgia, ao desejo profundo de conhecer, de amar, de ir para o Alto, para o Além de si.17

A beleza ilusória e falsa leva o homem a encurvar em si, o conduz ao absurdo, ao

vazio, ao desespero ou ao contentamento com uma beleza fugaz e limitada. Ao contrário, a

autêntica beleza suscita conversão transcendental, a abertura relacional e profunda com o

15 BENTO XVI, Mensagem aos participantes do II Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais e

das Novas Comunidades, 22 de maio 2006. 16 Idem, ibidem. 17 Idem, Discurso por ocasião do Encontro com os artistas, 21 de novembro de 2009.

Mário Correia 90

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

outro, com a criação e com Deus. Ela desperta um relacionamento cativante, fascinante e

atraente. Infelizmente, essa verdade não parece tão evidente entre os cristãos. Parece que

muitos estão cansados diante da beleza de sua fé e outros a buscam fora do cristianismo,

fora da Igreja. A realidade de cansaço, de desencanto na vida interna da Igreja, não permite

fazer vir à luz a beleza da Verdade professada e anunciada. Algo de errado acontece...

É preciso que os cristãos voltem a redescobrir o encanto, o fascínio e a atração de

sua Beleza, “tão antiga e tão nova”18, para poder mostrá-la, nos dias de hoje, aos homens

de hoje. Um dos espaços privilegiados para resplandecer essa Beleza é a Celebração

Litúrgica. Uma digna Celebração ajuda a reconhecer que a “liturgia é a mais alta expressão

da beleza da glória de Deus, e constitui de alguma maneira um debruçar-se do Céu sobre a

Terra”19. Ela, antes de tudo, não é obra humana, mas divina. É de se lamentar a situação de

muitas de nossas Celebrações. Infelizmente, a concepção utilitarista tem invadido nossas

igrejas e empobrecendo as ações Litúrgicas, diminuindo a beleza e tornando-a,

simplesmente, “útil”. O resultado é o gosto banal e medíocre que traz consigo o cansaço, o

tédio e, no extremo, o vazio. Outro inimigo tem sido a falsa simplicidade que gera

banalidade. As Celebrações Litúrgicas, lembra Ratzinger, devem ser simples: “mas simples

não significa de baixo nível. Há a simplicidade do banal e a simplicidade que é a expressão

da maturidade”20. Não é fácil organizar uma digna Celebração Litúrgica, no entanto, os

limites de tantas situações não podem ser normas para todos, nem álibi para o descuido, a

falta de decoro. Que no final das nossas celebrações, o cristão não saia da igreja com a

mesma miséria com a qual chegou. É preciso despertar nele o entusiasmo com a realidade

a que se espera, com a vida eterna já começada. As Celebrações Litúrgicas faz isso

manifestando o Belo, mas não de modo banal.

A beleza é um caminho, um dos itinerários mais atraentes e fascinantes para se

chegar a Deus, para encontrar a Verdade. Outro lugar privilegiado para resplandecer a

beleza cristã é a caridade, o amor em ato. Como a beleza, a caridade também é inseparável

da verdade. Aliás, “verdade e caridade coincidem”, encontrar a verdade é viver na

caridade. É precisamente a união das duas, “da sinfonia, da harmonia perfeita entre

18 Santo Agostinho, Confissões, X, 27. 19 BENTO XVI, Mensagem aos participantes do II Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais e

das Novas Comunidades, 22 maio de 2006. 20 RATZINGER, Joseph. Apud, Charles Morerod, A beleza na Teologia de Joseph Ratzinger, in

http://www.movimentoliturgico.com.br/Portal/index.php?option=com_content&view=article&id=362%3Aliturgia-a-beleza-na-teologia-de-joseph-ratzinger&catid=42%3Acat-artigos-liturgia&Itemid=53&showall=1

A Beleza como manifestação da Verdade nos Ensinamentos de Bento XVI 91

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

verdade e caridade, que emana a beleza autêntica, capaz de suscitar admiração, maravilha e

alegria verdadeira no coração dos homens”21. O mundo precisa da verdade que resplandece

e rompe com a mentira, com a banalidade. O homem precisa da caridade que inflame seu

coração e o liberte do orgulho, do egoísmo, de si mesmo. Diz o papa: “temos necessidade

de que a beleza da verdade e da caridade alcance o íntimo do nosso coração e o torne mais

humano”22. É o crente, o cristão, por meio de sua união com seu Mestre, o maior

responsável para manifestar e exprimir a beleza, a excelente síntese da verdade e da

caridade. Para tanto, o seu testemunho precisa ser nutrido por essa beleza, o anúncio que

ele faz precisa ser visível, entusiasmante, alegre e atraente. Sua vida precisa ser uma

eloquente transparência da beleza emanada da Verdade e da Caridade. Cabe aos cristãos,

enfatiza o papa, fazer com que a autêntica

beleza suscite no olhar e no coração de quantos as admiram o desejo e a necessidade de tornar bela e verdadeira a existência, cada existência, enriquecendo-a com aquele tesouro que nunca desfalece, que faz da vida uma obra-prima, e de cada homem um artista extraordinário: a caridade, o amor”23.

É preciso oferecer a beleza capaz de saciar a precisão do mundo e sanar a

necessidade do homem. “Este mundo no qual vivemos, retomemos o discurso inicial,

precisa de beleza para não precipitar no desespero”24. As belezas que o move fascinam,

mas são ilusórias e falsas, provindas de um esteticismo vazio e desvinculadas da Verdade.

No mundo que precisa de beleza, existe o homem necessitado da Verdade e ambos, “beleza

e verdade se tocam”25. As belezas que nos são apresentadas pela publicidade, por exemplo,

têm o intuito de despertar a cobiça, a busca de satisfação momentânea e são contraditórias

ao alto ideal de abertura, de busca por uma Ordem superior e fora de nós, de busca pela

Verdade. A Beleza sem o compromisso com a Verdade é inútil, não tem valor para o

homem. Nas palavras do Papa, “não há beleza que tenha valor se não há uma verdade a ser

21 RATZINGER, Joseph. Homilia, 18 de abril de 2005. 22 BENTO XVI, Discurso na inauguração da exposição preparada por ocasião dos sessenta anos de

sacerdócio, 4 de julho de 2011. 23 Idem, ibidem. 24 Idem, Discurso por ocasião do Encontro com os artistas, 21 de novembro de 2009. 25 Idem, Mensagem ao presidente do Pontifício Conselho para a Cultura por ocasião da 13ª sessão

púlblica dedicada ao tema: “universalidade da beleza: confronto entre estética e ética”. 24 de novembro de 2008.

Mário Correia 92

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

reconhecida e seguida, se o amor se limita a sentimento passageiro, se a felicidade se torna

miragem inalcançável, se a liberdade degenera em instintividade”26.

A Beleza “é chave do mistério e apelo ao transcendente”, dizia o João Paulo II na

Carta aos Artistas27. Se ela perde sua raiz transcendental, não se orienta mais para Deus,

não manifesta mais a Verdade. Em um mundo distraído e fechado a Deus, à Verdade, a

Beleza é um profícuo meio para chamar atenção, para acordar o homem, enchê-lo de

esperança e coragem para viver o dom único da existência. A beleza, por sua característica

de abrir e alargar os horizontes do homem, de fazê-lo sair de si, de aproximá-lo do Infinito,

é “um caminho para o Transcendente, para o Mistério último, para Deus”. Ela é um

percurso transcendental que “assimila o tudo no fragmento, o infinito no finito, Deus na

história da humanidade”28.

A beleza é a grande necessidade do homem porque o homem é necessitado da

Verdade. Se assistimos a uma grande confusão estética, no que diz respeito à beleza, não é

tão diferente também no que diz respeito à Verdade. A crise de beleza tem raízes na crise

de verdade, pois só a verdade pode orientar e livrar o mundo e o homem da confusão em

que se encontra. Sem dúvidas, “onde há a verdade deve nascer a beleza, onde o ser

humano se realiza de modo correto, bom, expressa-se na beleza. A relação entre verdade e

beleza é inseparável e por isso precisamos da beleza”29. Para o cristão, não há dúvidas,

nem devaneios quanto à Verdade: “a Verdade é divina; é o «Logos» eterno, que ganhou

expressão humana em Jesus Cristo, que pôde afirmar com objetividade: «Eu sou a

verdade» (Jo 14, 6)”30. É Cristo, a Verdade, a Beleza que salva o mundo do desespero, a

beleza que salva o homem do absurdo. O mundo precisa da beleza porque precisa de

Cristo. O homem tem necessidade da beleza porque tem necessidade de Cristo, ‘o mais

belo entre os filhos dos homens, do qual espalha a graça, o encanto’.

No início falamos que a arte é um dos modos mais privilegiados para manifestar a

beleza e os artistas são os seus guardiões. Eles são capazes de criar um espaço de beleza,

de fé e esperança que leva o homem ao encontro com Aquele que é a Verdade e a própria

26 Idem, Mensagem aos participantes do II Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais e das

Novas Comunidades, 22 maio de 2006. 27 João Paulo II. Carta aos Artistas, nº 16. 28 BENTO XVI, Discurso por ocasião do Encontro com os artistas, 21 de novembro de 2009. 29 Idem, entrevista concedida aos jornalistas durante o vôo para a Espanha, 6 de novembro de 2010. 30 Idem, Discurso no encontro com o mundo da Cultura em Portugal, 12 de maio de 2010.

A Beleza como manifestação da Verdade nos Ensinamentos de Bento XVI 93

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Beleza31. O papa lembra que precisamos dos artistas, pois eles nos recordam que a via

pulchritudinis é capaz de suscitar admiração e desejo, formar a sensibilidade das almas e

alimentar a paixão por aquilo que é autenticamente belo, expressão do gênio humano e

reflexo da Beleza divina32. Mas, também o papa recorda que cada homem pode ser um

artista capaz se fazer de sua vida um lugar onde brilhe o amor, a caridade. Portanto, que o

Espírito Santo, artífice de toda beleza existente, nos ilumine e nos oriente para a Beleza

que salva, desperte a mente e aqueça nossos corações para contemplar toda a sua plenitude.

Que ele nos ajude a ser “artistas” da caridade e nos auxilie a seguir o conselho do papa:

“fazei coisas belas, mas, sobretudo tornai as vossas vidas lugares de beleza”33. Amém!

Referências

AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Paulus, 1984.

BENTO XVI. Audiência geral, 18 de novembro de 2009.

www.vatican.va/audiências.

___________, Audiência geral, 29 de agosto de 2007. www.vatican.va/audiências.

___________, Audiência Geral, 31 de Agosto de 2011. www.vatican.va/audiências.

___________. Discurso por ocasião do Encontro com os artistas, 21 de novembro

de 2009. www.vatican.va/discursos.

___________, Discurso no encontro com o mundo da Cultura em Portugal, 12 de

maio de 2010. www.vatican.va/discursos.

___________, Discurso na inauguração da exposição preparada por ocasião dos

sessenta anos de sacerdócio, 4 de julho de 2011. www.vatican.va/discursos.

___________, Entrevista concedida aos jornalistas durante o vôo para a Espanha,

6 de novembro de 2010. www.vatican.va/viagens.

31 Cf. BENTO XVI, Homilia da Missa dedicada ao altar e à Igreja da Sagrada Família, 7 de

novembro de 2010. 32 Idem, Mensagem ao presidente do Pontifício Conselho para a Cultura por ocasião da 13ª sessão

pública dedicada ao tema: “universalidade da beleza: confronto entre estética e ética”. 24 de Novembro de 2008.

33 Idem, Discurso no encontro com o mundo da Cultura em Portugal, 12 de maio de 2010.

Mário Correia 94

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

___________. Homilia da Missa dedicada ao altar e à Igreja da Sagrada Família,

7 de novembro de 2010. www.vatican.va/homilias.

____________, Homilia da Missa dedicada ao altar e à Igreja da Sagrada

Família, 7 de novembro. www.vatican.va/homilias.

__________, Mensagem aos participantes do II Congresso Mundial dos

Movimentos Eclesiais e das Novas Comunidades, 22 de maio 2006.

www.vatican.va/mensagens.

___________, Mensagem ao presidente do Pontifício Conselho para a Cultura por

ocasião da 13ª sessão púlblica dedicada ao tema: “universalidade da beleza: confronto

entre estética e ética”. 24 de novembro de 2008. www.vatican.va/mensagens.

JOÃO PAULO II. Carta aos artistas. www.vatican.va/joãopauloii/cartas.

MOREROD, Charles. A beleza na Teologia de Joseph Ratzinger, in

http://www.movimentoliturgico.com.br/Portal/index.php?option=com_content&view=artic

le&id=362%3Aliturgia-a-beleza-na-teologia-de-joseph-ratzinger&catid=42%3Acat-

artigos-liturgia&Itemid=53&showall=1 – acessado no dia 25 de agosto de 2011.

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

A relação entre o ser e o ente no poema “Da natureza”, de Parmênides, e no ensaio “Do ente e da essência”, de Santo

Tomás de Aquino1

Pedro Mendonça Curado Fleury2

Resumo: Trata-se de um artigo sobre a proximidade entre a doutrina de Parmênides, no poema “Da Natureza”, e de Santo Tomás, no ensaio “Do ente e da essência”, acerca da relação entre o ser e o ente, mais especificamente o homem. O objetivo é verificar alguns pontos de proximidade entre os dois pensadores, bem como a tangibilidade do conhecimento de Deus e da relação fundamental entre ele e o homem tal como a doutrina cristã de Santo Tomás o concebe já no início do pensamento filosófico. O método consistiu em pesquisa de revisão bibliográfica dos textos mencionados, bem como de artigos, livros e capítulos de livros que os comentam. Observou-se que Parmênides, nos fragmentos de que se tem contato – seja pelo conteúdo, seja pela estrutura do texto e pela linguagem utilizada –, demonstra a necessidade do pensamento para se chegar ao conhecimento, bem como que aquele que pensa está enraizado no próprio Ser e, ao mesmo tempo, detém o Ser. Este fundamenta o ente, dá e permite-lhe a existência. Assim, percebendo o Ser, o homem que pensa recebe dele a sua participação nele; e, mais, através da palavra, revela-o em seu próprio corpo. Na segunda parte do trabalho, analisou-se o referido texto do Doutor Angélico, que tem sua importância não tanto por seu conteúdo, explicitado e desenvolvido em obras posteriores, mas por ser um dos primeiros textos do autor. De ente et essentia constitui, assim, um testemunho valioso do florescer intelectual e das concepções metafísicas mais pessoais e arraigadas de Santo Tomás. Nele estão as bases fundamentais de suas principais obras posteriores, notadamente das duas Sumas. Partindo de um ponto totalmente contrário ao de Parmênides, o ente e a essência – aquilo que mais facilmente se percebe com os sentidos –, Santo Tomás chega à fundamentação racional da existência do ser em si subsistente, Deus, de quem todos os entes recebem seu próprio ser, sua existência. Trata-se de semelhança patente entre os dois pensamentos. Concluiu-se, desta forma, que, por caminhos diversos e separados por cerca de dezessete séculos, ambos os pensadores consideram que o ente revela o Ser – embora da mesma maneira –, de quem fundamentam a existência pelo exercício da razão, bem como que chegam à fundamentação da existência humana, recebida do Ser em si subsistente que, para Santo Tomás, é Deus.

Palavras-chave: Ontologia; Ente; Essência; Deus; Homem.

O presente trabalho aborda o poema “Da Natureza”, de Parmênides de Eléia.

Trata-se do discurso de uma deusa, no qual são indicadas três vias para o conhecimento.

Destas, elege somente uma como válida, a da consideração de que o ser é e não pode ser

que não seja. Por meio de um caminho poético, acaba por fundamentar a existência dos

entes e do homem.

Paralelamente, aborda-se o ensaio “Do ente e da Essência”, de Santo Tomás de

Aquino, no qual o filósofo medieval traça as bases de sua teoria ontológica. Partindo do

1 Artigo apresentado na III Semana Acadêmica do Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz, no

dia 13/09/2011. 2 Seminarista da Arquidiocese de Goiânia, 1º de Filosofia, e bacharel em Direito pela UFG.

Pedro Mendonça Curado Fleury 96

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

ente e da essência, como realidades perceptíveis aos sentidos, chega à existência de Deus,

ser único e subsistente em si mesmo, que confere o ser às demais substâncias, inclusive ao

homem. Este, com efeito, possui um espaço único na ordem das criaturas.

Em uma época em que o cristianismo sofre constantes críticas e

questionamentos sobre sua própria adequação à realidade social, pode ser útil evidenciar a

relação entre um de seus pilares doutrinais (Santo Tomás) e um filósofo pré-socrático

(Parmênides), testemunha do nascimento mesmo da filosofia grega e, portanto, da cultura

ocidental (JAEGER, 1994).

O filósofo escolástico, por sua vez, possui grande importância para o

pensamento e doutrina cristãs (BENTO XVI, 2010; JOÃO PAULO II, 1998; 1992). Ele,

superando o aristotelismo, “introduziu na história uma filosofia que, por seu fundamento

mais íntimo, era irredutível a qualquer um dos sistemas do passado e, por seus princípios,

permanece perpetuamente aberta para o futuro”. (GILSON, 1998)

A presente pesquisa, ao investigar as ligações entre estes dois pensadores, quer

evidenciar como a reflexão filosófica acerca de Deus, tal como fazem os pensadores

cristãos, é tangível já a partir do início da filosofia e, assim, a proximidade entre filosofia

grega e o cristianismo.

Parmênides e o ser

Parmênides – que viveu em Eléia entre os séculos VI e V a.C. – revolucionou o

pensamento grego, passando, da consideração global acerca da natureza e de seus

princípios (filosofia da physis), para uma teoria sobre o ser (ontologia). (REALE, 1999)

Na obra de Parmênides, é significativa a sua estrutura poética. Tal aspecto –

aliado ao próprio fato de ter sido escrito em grego – já nos abre um grande leque de

significados. Heidegger ressalta este aspecto de riqueza da linguagem, pois a palavra

grega, em si, é um caminho: “o que é dito na língua grega é, de modo privilegiado,

simultaneamente aquilo que em se dizendo se nomeia” (1989; cf. JAEGER, 1994).

Não por acaso, Parmênides elege três caminhos para o conhecimento em seu

poema “Sobre a natureza”. Destas, somente uma será por ele considerada veraz. Esta via

parte do princípio “o ser é e não é possível que não seja”. Por outro lado, “o não-ser não é

e não pode ser de modo algum” (REALE, 1999).

A relação entre o ser e o ente no poema “Da natureza”, de Parmênides, e (...) 97

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

O verbo ser e seus sentidos

Na esteira da afirmação de Heidegger, é preciso verificar que o verbo ser, em

sua significação original possuía uso existencial: o significado de estar de fato presente, de

possuir realmente uma existência. E, mais, esta presença não se refere unicamente ao

presente, mas efetivamente ao passado e ao futuro. Trata-se do núcleo de significação do

verbo ser em todo o período homérico grego (MARQUES, 1990), que preparou

imediatamente o surgimento da filosofia (REALE, 1999). A utilização predicativa ou

copulativa do verbo, tal como a conhecemos nos dias atuais é fruto do enfraquecimento

progressivo de sua significação original.

Há ainda um sentido chamado “veritativo” (MARQUES, 1990; SANTOS,

2002), não menos importante, que representa um desdobramento da função sintática do

verbo. Trata-se de um uso metalinguístico, fazendo-o significar, num outro nível, a verdade

de uma proposição. Assim, “Ésti significa não somente é, mas também ‘é verdade que é’”.

Daqui parte o princípio básico de que “toda proposição comporta a afirmação implícita de

sua própria verdade”. (MARQUES, 1990)

Há ainda, paralelamente, um sentido nominal do verbo (como dizer: “o ser”),

ou lexical, que traz ainda mais forte a ideia de presença que perdura, de permanência, e,

portanto, oposta ao devir. (MARQUES, 1990)

Parmênides oscila entre um e outro nível de sentido do verbo na tentativa de,

pela universalidade do sentido veritativo do verbo ser, universalizar o sentido de

permanência. O ser teria, assim, presença e permanência universal, excluindo, o não-ser e o

devir do campo do logos, do universo do dizer e do pensar – que, tendo em mente a noção

grega de nomenclatura, implica exclusão do mundo do conhecimento. (MARQUES, 1990)

Desta forma, fica explícito em Parmênides que a via segundo a qual o ser é

leva à verdade. Ela constitui-se válida pelo fato de ter como sujeito um nome positivo (a

permanência, a presença que perdura – sentido lexical) em relação com um verbo também

afirmativo. Podemos dizer, então que afirmar “o ser é” seria algo como afirmar “é verdade

que o ser existe perenemente”.

Pedro Mendonça Curado Fleury 98

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

A teorização do não-ser e o esquema mental do mito

Por outro lado, tomar um termo negativo como sujeito de um verbo negativo

não passa de uma via de palavras vazias e, por isso, o não-ser é indizível e não designa

nada. Não são pertinentes, contudo, as críticas de Platão (no “Sofista”), e de Nietzsche

(1989), a Parmênides, pois não se pode estabelecer uma equivalência estrita entre um

esquema poético e proposições lógico-gramaticais. (MARQUES, 1990)

As proposições sobre o não-ser só são possíveis no contexto mítico do discurso

da deusa. Parmênides utiliza esta espécie de subterfúgio para tratar sobre a via do erro. Na

verdade, o filosofo pré-socrático tinha em mente o caminho como uma metáfora da

maneira de ser adequada ou não ao conhecimento. (MARQUES, 1990)

O mito, assim, afigura-se como “esquema mental” que viabiliza o discurso

sobre o caminho impossível do não-ser, e também permite traçar a afirmação absoluta do

ser e a exclusão radical do não-ser. Abre-se, desta maneira, à possibilidade de decisão

(krísis) pelo caminho do ser. (MARQUES, 1990)

No fragmento 7 há ainda um aspecto importante. Afirma-se: “Não é possível

que isto prevaleça, ser (o) não ente” (v. 1). Não se trata aqui do não-ser, mas daquilo que

não pode ter o estatuto pleno de ser: as coisas que nascem e morrem, aparecem e

desaparecem. Diferenciar o ser e o conjunto dos entes – a chamada terceira via, na qual

está presente a problemática da multiplicidade do real, das aparências – é bem outra coisa

que diferenciar ser e não-ser (MARQUES, 1990). Sobre isto, retomaremos infra.

A relação entre ser e pensamento como referência ao ente

No fragmento 8 vê-se um exercício concatenado de discernimento (krísis), no

qual, a cada característica afirmada sobre o ser, um aspecto contraditório do devir é

eliminado. Reale refere-se a este trecho do poema como possuidor de “uma lógica férrea” e

de “uma lucidez absolutamente surpreendente” (1999). Em Parmênides, é a krísis que

permite “a instauração do pensar, que é pensar o ser, a partir do ser”. Há uma

correspondência originária entre ser e pensar, na qual o pensar pertence ao ser. O saber

verdadeiro, único saber, é imune ao não-ser. (MARQUES, 1990; JAEGER, 1994)

Importam para nós neste momento os versos 34 a 38 deste fragmento: O mesmo é pensar em vista de que é pensamento.

A relação entre o ser e o ente no poema “Da natureza”, de Parmênides, e (...) 99

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Pois não sem o que é, no qual é revelado em palavra, Acharás o pensar: pois nem era ou é ou será Outro fora do que é ... (PARMÊNIDES, 1989)

Fica expresso aqui que ser e pensamento são uma só coisa, pois “aquele que

diz e pensa o ser o faz enraizado no próprio ser”, que não admite intervalos. Parmênides

utiliza a palavra grega noeîn (geralmente traduzido simplesmente como “pensar”), que em

seu sentido arcaico significa “uma atitude receptiva de modo a deter aquilo que aparece”.

Ou seja, o pensar é ser, é “revelação” do ser, “algo que brota” dele. (MARQUES, 1990; cf.

NIETZCHE, 1989)

Para Marques, Parmênides, ao tratar do pensamento, coloca em jogo a questão

do homem, cuja peculiaridade “surge do seu modo próprio de pertencer ao ser, isto é,

percebendo-o (pensando-o)”. Só a partir daqui pode verificar-se a separação entre o ser e o

homem (1990). Ele – o homem – é representante maior daquela categoria de coisas, os

entes, que não têm estatuto pleno de ser, mas nem por isso são igualados ao não ser.

Aqui podemos notar que, não obstante a doutrina comum, Parmênides refere o

ser ao ente. É o que afirma Marques com base na análise gramatical das diversas

utilizações do verbo ser ao longo dos fragmentos. (MARQUES, 1990)

Com efeito, é significativo que esta ontologia do ente dos fragmentos 34 a 38

apareça mesclada às características do próprio ser, do ser em si mesmo. Entende-se, então,

que os primeiros fragmentos, que tratam, grosso modo, da existência do ser, o façam em

função do ser do ente. Depois, especialmente no fragmento 8, ao tratar da relação ser-

pensamento – e, por consequência, ser-homem –, o faz para remetê-lo ao ser em si.

(MARQUES, 1990)

O fragmento apresenta o ser como fundamento do noeîn: “o pensamento será

sempre pensamento do ser e a palavra será revelação que faz aparecer o ser no seu corpo”.

Não se trata apenas de uma via para o conhecimento, de um pensamento capaz de alcançá-

lo. Trata-se aqui da primeira “fundamentação da existência humana como um todo”, de seu

ser. (MARQUES, 1990; cf. JAEGER, 1994)

Pedro Mendonça Curado Fleury 100

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

A ontologia de Santo Tomás no ensaio De ente et essentia

Cerca de dezessete séculos depois de Parmênides, Santo Tomás de Aquino

(1225-1274) erigiu em seu vasto pensamento uma ontologia própria, realizando uma

síntese original entre Platão e Aristóteles (SALLES, 2009; TORREL, 2008). Neste tema, o

ensaio “De ente et essentia” – um dos primeiros textos do autor, escrito provavelmente à

época da preparação de sua licença em teologia – constitui, assim, um testemunho valioso

do florescer intelectual e das concepções metafísicas mais pessoais e arraigadas de Santo

Tomás. Nele estão as bases fundamentais de suas principais obras posteriores, notadamente

das duas Sumas, iniciadas cerca de dez anos depois.

Santo Tomás parte já de um ponto divergente com Parmênides: inicia seu

estudo pelo ente e pela essência, por serem eles as primeiras coisas que se concebe na

inteligência, as mais acessíveis (AQUINO, 1988). Passa à análise da relação entre forma e

matéria (a substância simples), detecta a necessidade de uma substância supra-substancial,

fundante e originante de todas as demais, bem como a necessidade absoluta de a essência

desta ser idêntica a seu ser (SOUZA NETO, 2010).

Analisa, portanto, as substâncias compostas, ou seja, aquelas que possuem

“matéria e forma conhecidas” (AQUINO, 1988), como o homem, que possui alma e corpo.

Estas substâncias existem, mas por participação, pois somente Deus seria “a existência por

si subsistente” (AQUINO, 2001).

Santo Tomás afirma que existem substâncias simples, nas quais a essência

reside em sentido mais verdadeiro e elevado. Trata-se de categoria mais nobre de ser, causa

das substâncias compostas (AQUINO, 1988), que transcende a elas (JOLIVET, 1998).

Afirma o Santo, no n. 2 do capítulo segundo que “isto ocorre, pelo menos, com aquela

substância primeira e simples por excelência, que se denomina Deus”. Todavia, por serem

as substâncias simples “mais ocultas”, suspende o seu estudo por um momento. (1988)

Seguindo o caminho que partiu do ente como primeira coisa perceptível, afirma

que matéria e forma constituem sua essência (que é “aquilo segundo o que uma coisa

existe”). O ente é, portanto, uma substância composta. Os dois componentes da essência

não são, contudo, equivalentes: há um primado da forma, que é “a perfeição ou certeza de

cada coisa”. Tudo que um ente é, ele o é graças a sua forma, sem prejuízo de causas

externas. (AQUINO, 1988; SOUZA NETO, 2010)

A relação entre o ser e o ente no poema “Da natureza”, de Parmênides, e (...) 101

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Observa Aquino que a essência não pode ser só a matéria, pois ela não

determina o gênero ou a espécie dos entes, “não constitui um princípio de conhecimento”.

Também não pode ser só a forma, pois é a matéria que a individua; ela é “princípio

individualizante” que permite à essência ter uma particularidade e uma definição, o que

não é possível a algo que é universal. (AQUINO, 1988)

Por esta razão, a matéria não é mero acidente, ou seja, um elemento

dispensável à essência. É pela matéria signada – no caso do homem, o corpo determinado,

“este corpo”, e não somente um corpo em hipótese – que o indivíduo se designa da espécie,

é concreto. (AQUINO, 1988)

No capítulo quinto do ensaio, Santo Tomás passa a analisar a maneira como a

essência se encontra nas substâncias separadas, ou seja, nas que têm forma, mas não

matéria. Chega a elas partindo do primado da forma, pois é esta que dá o ser à matéria,

transforma-a em ser em ato. A forma, contudo, em si mesma não depende da matéria para

existir. (AQUINO, 1988)

A forma tem dependência em relação à matéria somente nos entes mais

distantes do primeiro princípio, que é ato primeiro e puro. Nestes entes, a forma não pode

se designar da espécie sem a matéria, permanecendo abstrata. Quanto mais próxima do

primeiro princípio, contudo, menos dependente da matéria. (AQUINO, 1988)

Chega-se, assim, à existência das substâncias simples, que não possuem

essência recebida na matéria, mas somente na forma. Além disso, se esta substância

simples fosse exclusivamente ser, ela seria subsistente: teria o ser em si mesmo, sem

dependência de qualquer outra substância. Não receberia em si, portanto, adição de

diferença (aquilo que destaca as espécies em relação ao gênero), pois, do contrário, haveria

algo na forma que a determinaria em relação a outro tipo de substância da mesma espécie,

e este algo já não seria mais ser em si mesmo. (AQUINO, 1988)

Este ponto, aliado ao fato de ela, por ser simples, não receber matéria – o que

designaria indivíduos distintos numa mesma espécie – faz com que esta substância simples

deva ser única. Consequência lógica é que todas as outras substâncias não têm a existência

coincidente com a essência. (AQUINO, 1988)

Estes demais entes possuem aspectos de sua forma que não são ser e que

devem necessariamente provir de outro princípio, extrínseco a ela. Isto pelo fato de que

estes aspectos – ao menos eles –, não existindo em si mesmos, não podem ser causados ou

Pedro Mendonça Curado Fleury 102

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

produzidos pela própria forma: “por conseguinte, é necessário que toda coisa cujo ser

difere da sua natureza tenha sua existência de outra”. (AQUINO, 1988)

Santo Tomás demonstra, assim, a necessidade da existência de uma coisa

determinada que seja a causa das demais substâncias, pelo fato de ser puro ser. Aquilo que

antes era uma hipótese é agora uma certeza filosófica:

Ora, já que tudo aquilo que existe por outro pode ser reduzido àquilo que existe por si, como à sua causa primeira, por esta razão é necessário que exista uma determinada coisa que seja a causa do ser para todas as outras coisas, pelo fato de ser puro ser [...] este ser é a causa primeira, isto é, Deus. (AQUINO, 1988)

Sintetiza-se assim, minimamente, o que em obras posteriores foi chamada de

segunda via de prova da existência de Deus: a via da causa universal absolutamente

primeira (cf. AQUINO, 2001, q. II, a. III).

A partir daqui, já no capítulo sexto do ensaio, Santo Tomás passa a uma sucinta

hierarquia das substâncias, como que recapitulando o que foi dito, a partir do modo em que

a essência se concretiza nelas. (SOUZA NETO, 2010)

Em primeiro lugar está Deus, “cuja essência é seu próprio ser ou existência”.

Ele, sendo simples, tem em si todas as perfeições como uma só coisa. Depois, há as

substâncias criadas intelectuais, que não têm matéria, mas em que o ser difere da essência:

os anjos que, quanto ao ser, são finitos, mas não limitados por nenhuma matéria. (SOUZA

NETO, 2010)

Tipo especial destas substâncias intelectuais ou simples, a alma humana é a

única a possuir multiplicidade de indivíduos na mesma espécie, graças ao fato de ser

recebida num corpo. Com efeito, ela recebe o ser individualizado no corpo, do qual é ato.

Esta individuação, este ser absoluto que ela recebe, permanece para sempre, mesmo após o

perecimento do corpo. (AQUINO, 1988)

Esta doutrina, depois aprofundada em outros escritos do autor, representa a

fundamentação da existência do homem no contexto da criação, localizando-o na

hierarquia das substâncias. Sendo ainda um ser intelectual, por sua alma, encontra-se no

último grau das criaturas inteligentes, pois ganha o ser absoluto somente uma vez unida ao

corpo. (GILSON, 1998; SALLES, 2009)

À alma “é essencial ser a forma de um corpo e constituir com ele um composto

físico da mesma natureza que todos os compostos de matéria e de forma”. Contudo,

enquanto é a forma do corpo e dá-lhe o ser, domina-o e supera-o “de tal maneira que a

A relação entre o ser e o ente no poema “Da natureza”, de Parmênides, e (...) 103

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

alma humana assinala os confins e como que a linha do horizonte entre o reino das outras

Inteligências e o domínio dos corpos”. (GILSON, 1998)

Santo Tomás demonstra, assim, a relação entre o ser em si subsistente, Deus, e

o homem. Esta criatura ímpar é substância composta, cuja essência é sua alma e seu corpo

e, ao mesmo tempo, é ser intelectual que depende da matéria para ter o ser – que recebe de

Deus –, mas que permanece ser mesmo após o perecimento da matéria.

Considerações Finais

Aproximar Parmênides e Santo Tomás é tarefa exigente. Como se pode ver,

divergem já no itinerário que seus raciocínios empreendem para chegar ao ser em si

mesmo: a questão dos sentidos como via para o conhecimento. Mas há pontos de

proximidade.

Parmênides defende que o conhecimento do ser em si subsistente se dá pela

consideração racional do próprio ser, mediante um discernimento lógico: “o ser é e não

pode não ser...” ou, como vimos, algo como “é verdade que o ser existe perenemente e o

contrário é inexistente”. Para ele, os entes não têm estatuto pleno de ser, mas pertencem ao

ser, pensando-o e percebendo-o. Fundamenta, assim, a existência humana, que também

revela e manifesta o ser pelo próprio pensamento e por sua palavra.

Santo Tomás, por sua vez, partindo do dado fático da existência dos entes e das

essências e considerando racionalmente as distinções entre existência e essência, chega à

prova (pela necessidade) da existência do ser em si subsistente, Deus. Dele, o homem e

todos os outros entes recebem o seu próprio ser.

Desta feita, podemos verificar três pontos em comum: (i) o ser que subsiste por

si mesmo é revelado/manifestado nos entes; (ii) para chegar ao conhecimento do ser em si

subsistente é necessário o exercício da racionalidade (não se dá diretamente pelos

sentidos); e (iii) os entes – o homem, especialmente – recebem daquele ser seu estatuto de

ser, embora em caráter distinto.

Pedro Mendonça Curado Fleury 104

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

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A relação entre o ser e o ente no poema “Da natureza”, de Parmênides, e (...) 105

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Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Os Sacramentos da Vida através dos Mistérios

Ueslei Vaz Aredes1

Resumo: O homem moderno apresenta fortes desconfianças em relação ao conhecimento simbólico. Inconscientemente, é levado a relegá-lo ao mundo de mentalidade pré-lógica, considerando incapaz de rigor suficiente para fundamentar o autentico conhecimento. Destarte, o uso dos símbolos é elemento constitutivo da economia bíblico-cristã e a liturgia representa este simbolismo à luz da fase atual da historia salutis. Deste modo, os sacramentos são sinais. Sinais do amor de Deus para com a humanidade. No entanto, Cristo é o sacramento do Pai. A Igreja instituída e desejada pelo Pai e concretizada por Cristo, é sacramento de Cristo. Pertencer a Igreja é pertencer a Cristo. E Jesus se faz presente na Igreja através dos sacramentos, que é seu: e a Igreja apenas os administram. Assim através dos sacramentos revelam os sinais do seu amor.

Entretanto, o sacramento não é apenas sinal, é uma realidade, é o próprio Cristo. Diante dessa realidade ao mesmo tempo cognoscível e incognoscível entra o dado da fé, pois podemos perder seu sentido, e cair num mero ritualismo. Porventura, os ritos pouco falam por si mesmo. Precisam ser explicados. Destarte, o sinal que precisar ser explicado, não é sinal. O que deve ser explicado não é o sinal, mas o mistério contido no sinal. Caso não seja cognoscível e ao mesmo tempo incognoscível pode ser tentado em cortar toda a relação com o simbólico religioso. E ao fazer isso, não corta apenas uma riqueza importante da religião: fecha-se a janela de sua própria alma, porque o simbólico e o sacramental constituem dimensões profundas da realidade humana.

Deste modo, no presente monólogo, trataremos da realidade transcendental do sacramento/símbolo/sinal na vida do homem que esta em comunhão com a Igreja e com os homens. Desta comunhão os sinais remetem um caráter ao mesmo tempo imanente que remete imediatamente ao transcendente/scalon.

Palavras-chaves: antropologia, eclesiologia, fenomenologia, símbolos/sinais e scatolon

Introdução

Atualmente os sacramentos são questionados e até mesmo negados. Para

recuperarmos o sentido originário do sacramento precisamos descer a um nível mais

profundo da reflexão e da realidade. Nesse nível, o sacramento aparece como a

corporificação de um modo de pensar numa unidade tensa, entre as realidades que tomadas

em si parecem se contraporem: o divino e o humano, o invisível e o visível, o eterno e o

temporal. O sacramento traduz a comunhão destas realidades polares; faz uma presente na

outra; encarna o divino e transfigura o humano. Neste nível, o sacramento não emerge

tanto como gestos e coisas sagradas da religião, mas como o modo pelo qual Deus se

1 Aluno do 3º ano do curso de Teologia no Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz. E-mail:

[email protected]

Os Sacramentos da Vida através dos Mistérios 107

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

comunica e se faz presente no mundo. O sacramento é a mediação pela qual e na qual

Deus, Jesus Cristo, sua Graça, a Igreja... atingem os homens.

Sacramento como mistério, mysterion do plano de salvação

Devemos iniciar nossa pesquisa com as seguintes perguntas: O que significa

sacramentum e mysterion? De que modo se terá feito a passagem de mysterion para

sacramentum? Um sentido básico de sacramentum é mysterion. 1º) Mysterion no AT tem o

seu significado com a conotação cúltica. 2º) No entanto, os mistérios cultuais, de acordo

com Odo Casel, são uma ação sagrada e cultual em que, sob o véu de um rito, um fato

salvífico se torna presente; enquanto realiza este rito, a comunidade cultual participa do

fato salvífico e desta forma adquire a salvação para si. 3º) Este significado original de

mysterion desenvolveu-se aos poucos numa concepção mais abstrata e teológica do

mysterion. Assim os mistérios foram despojados de seu caráter sacral, enquanto os cultos

foram considerados como mistérios. De acordo com Casel: Mysterion são ritos e

celebrações secretas dos mistérios; as diversas partes e elementos dos mistérios, como

symbola (fórmula) e os objetos (alimento, imagens) são visíveis e per si compreendidos,

vedados aos profanos e incompreensíveis a eles; os mistérios aparecem como os profundos

ensinamentos dos filósofos sobre o divino, ensinamentos comunicados somente a pessoas

iniciadas, pois, são inatingíveis pela pura razão. É o mistério fontal que se oculta no

silêncio; esse silenciar místico chega-se por um desvelar através dos símbolos. Deste

modo, os ritos e o culto divino são considerados como símbolos da misteriosodade divina e

de verdades ocultas: sua explicação é mística porque desvela o sentido oculto. Cabe, então,

a teológica mistagógica explicar e interpretar estes símbolos. Pois, para a teologia,

mysterion é o próprio divino e tudo quando se pode conhecer simbolicamente do divino.

Somente a partir dessas considerações pode se resultar o termo sacramentum: onde o

divino, o oculto está sempre ligado com algo visível, que é tomado como símbolo; este por

sua vez revela, comunica e conserva o mysterion.

No AT, na literatura apocalíptica e nos profetas, mysterion designa um segredo

escatológico, i.e., um anúncio revelador dos acontecimentos futuros determinados por

Deus, cuja revelação e interpretação são reservadas aos que foram por Deus inspirados.

Daí conclui-se que, o mysterion são os desígnios e decretos ocultos da vontade divina.

Revelados por Deus, estão contidos nas palavras dos profetas; são comunicados aos que

promovem a justiça. Por isso, a comunidade é a fonte do segredo guardando-o com todo

Ueslei Vaz Aredes 108

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

cuidado. Agora, no NT, Deus age na história e sua ação manifesta-se no fim dos tempos

messiânicos para realizar definitivamente seu eterno desígnio.

O que caracteriza o mysterion como segredo, está no fato do mysterion ser

inatingível e incompreensível à razão, mas que ele consiste na sua não-revelação, que está

no segredo de Deus; mas que ele vai se revelando aos poucos através da palavra e da ação,

através de órgãos humanos (Ef 3,5), pela Igreja (Ef 3,10) que destina o segredo a todos os

homens. Por isso, o plano da salvação e sua realização constituem o único mistério, a

encarnação do Verbo. Deste modo, mysterion pode significar ao mesmo tempo mysterion

de Cristo e mysterion do plano de salvação.

Mysterion de Cristo como realização do mysterion do plano da salvação

A realização do mistério, realiza-se através de Cristo, que forma o centro do

mysterion. No mysterion de Deus em Cristo são abrangidos criação e consumação, início e

fim do mundo, tirando-os do âmbito de seu próprio poder e conhecimento. Pois na

revelação do mistério divino os tempos atingem o seu fim (Ef 1,10). Em seguida, ele

aparece como o Cristo cósmico que consuma todas as coisas, sendo ele a cabeça da

totalidade; na Igreja, seu corpo e seu pléroma, ele governa de modo visível, realizando a

salvação; mostra o que significa sua condição de ser cabeça de todas as coisas. A fórmula

in christo mostra claramente que Ele é o centro do mysterion que realiza na unidade entre

cristãos, ateus, judeus e gentios. Portanto, segue que o mysterion possui uma dimensão

intra-terrestre. No mysterion uma realidade celeste invade a esfera do antigo aion.

Apresentam-se sempre uma faceta humana e outra divina. A história da salvação acontece

dentro da história no mundo. Então, o mysterion constitui a conjunção de um

acontecimento terrestre e uma ação divina.

Mysterium-sacramentum

A palavra sacramento é originariamente cristã. Descreve a palavra sacrum,

linguagem sacral, sinal sagrado. Isso explica pelo fato dos cristãos primórdios evitarem

palavras que estabelecessem uma conexão entre culto cristão e os mistérios pagãos. Por

isso foram eliminadas não só a palavra mysterion, mas as palavras correspondentes latinas

como, sacra, arcana, initia. Deste modo, sacramentum aparece como um elemento que já

pudemos constatar no mysterion, ou seja, na unidade do humano e do divino que nele se

Os Sacramentos da Vida através dos Mistérios 109

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

expressa. O sacramentum contém sempre um componente humano (juramento,

consagrado, rito) e um divino (o próprio sagrado).

Mysterium-sacramentum como fases do plano da salvação

Mysterium-sacramentum indica as diversas fases da economia da salvação: o

tempo antes de Cristo, o tempo de Jesus, da Igreja e as realidades escatológicas; o

sacramentum significa as relações entre essas fases. Para o tempo antes de Cristo, significa

a praeparatio, figura, typus, simbolum, parábola, species, praeformatio; para o tempo de

Jesus, a realização das promessas, a manifestação do próprio Deus em forma humana; para

o tempo depois de Cristo, a Igreja, sacramentum que expressa participação e realização

sacramental dos mistérios de Jesus na Liturgia.

O AT deve ser considerado como um mysterion voltado para Cristom i.é, uma

profecia dada de modo velado sobre Cristo. A vida de Jesus constitui um prelúdio,

exemplo e símbolo de uma vida que ainda há de continuar, a saber, a do Corpo Místico de

Cristo para dentro da história no mundo. A Igreja por sua vez é símbolo da realização

antecipada da Igreja na glória. Seu mysterion está aberto para o futuro; contudo, ele não é

consumado, i.e., o já e o ainda não. Deste modo, a Igreja vive do novo céu irrompido pela

ressurreição de Jesus e da nova terra; mas por enquanto esta realidade escatológica

manifesta-se apenas por sinais, símbolos e sacramentos.

Mysterium-sacramentum como signum sacrum: sacramentum mysterii – mysterium sacramenti

Definimos então que, de um lado, o mysterrium-sacramentum é aquilo que

visível e palpável, por outro lado, o signum sacrum como aquilo que é misterioso ou

oculto. Destarte, sacramentum mysteri indica o visível, o tocável, o histórico do mysterium

e o mysterium sacramentui, por sua vez, mostra o secreto, o divino, o intocável, o

sobrenatural do sacramentum.

Santo Agostinho faz a distinção entre sacramentum de mysterium.

Sacramentum significa o sinal sagrado e religioso do mysterium como tal. Apenas

posteriormente, a Agostinho, o mysterion grego é traduzido pela palavra latina: mysterium

e concorre com a palavra sacramentum. Daí em diante sacramentum assume um

significado sacramental no sentido dos nossos sete sacramentos ou em forma de ações

litúrgicas como res sacra, signum sacrum; em conseqüência disso, o mysterum adquire um

Ueslei Vaz Aredes 110

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

significado mais abstrato com res arcana divina salutaris. Deste modo, coloca-se o acento

sobre o visível, qualifica-se o mysterium como sacramentum; descolocando o acento sobre

o invisível e o divino, designa-se o sacramentum de mysterium. Assim, a ideia fundamental

subjacente ao mysterium e sacramentum é que Deus se comunica, tornando-se presente e

age espiritualmente sobre aos homens através dos elementos materiais.

Mysterium-sacramentum como os mistérios litúrgicos

Entre os signa sacra que os Padres da Igreja qualificavam de mysterium e

sacramentum encontram-se, sobretudo, os mistérios do culto e toda a Liturgia da Igreja.

Pois, de fato, o primeiro emprego de sacramentum com versão de mysterium se deu no

contexto do batismo, portanto, no contexto de uma ação litúrgica. Este conceito doutrinal

foi promulgado novamente pela Constituição Vaticano II (SC), onde Cristo é o principal e

o máximo sacramento, como ponto focal do plano salvífico de Deus que já estava oculto

nas revelações do AT, reveladas nas ações, pessoas, ritos e palavras; manifestou-se no

sacramento da sua encarnação e nas ações e palavras de sua vida (sacramenta carnis

Christi) e que agora continua vivo agindo na Igreja, visto que a Ecclesis est totus adventus

Filli Dei. Assim, deste sacramento primário origina-se Totius Ecclesiae admirabile

sacramentum. Qualquer ação da Igreja é por isso mesmo sacramental, sacramento. A Igreja

se entende como personificação de Cristo na terra, de tal sorte que qualquer ação de Cristo

significa uma ação de seu corpo. Entre todas as suas ações sacramentais algumas são

qualificadas de sacramenta e de mysteria; através deles a Igreja celebra a presença do

plano da salvação, dos mysteria carnis Christi e precisamente nas ações litúrgicas. Estes

ritos litúrgicos contêm de alguma forma a res arcana, a salvação messiânica.

Portanto, o mysterium do culto aparece como uma ação sacra, que prolonga a

ação de Deus; é realidade espiritual, que se realiza sob o véu de sinais e gestos

perceptíveis, tornando a salvação presente aos fieis. Então, passado, presente e futuro são

abrangidos na Liturgia, porque o mysterion de Cristo e sua salvação abarcam toda a

amplitude da história.

Até Agostinho os sacramentos e os mistérios (Mistério Eucarístico e as ações

litúrgicas) eram considerados como prolongamento da existência de Cristo. Sinal

sacramental e seu significado eram concebidos de tal forma que estivessem intimamente

relacionados entre si. O signum sacrum não era uma cópia fiel de Cristo, mas um reflexo

de Cristo presente no sacramentum, o aparecimento de uma realidade sagrado através do

Os Sacramentos da Vida através dos Mistérios 111

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

sinal visível. Então, a fórmula o sacramento é um sinal visível da graça invisível expressa

de maneira lapidar a mais intima união dos dois elementos, compreensível aos fieis e

incompreensível aos que não creem. Na escolástica, devida muitas controvérsias entre o

sacramentum e res sacramenti, chegam a conclusão que: o visibile signum produz um

invisibili signum, chamado sacramentum manens que por sua vez produz a graça

sacramental. No entanto, todos os sacramentos conferem um sacramentum manens (a

graça sacramental), seja um caráter sacramental indelével no Batismo, na Confirmação, e

na Ordenação, seja um ornatus animae, um adorno da alma, nos outros sacramentos.

Sob o aspecto teológico, os sacramentos significam, principalmente no

Batismo e a Eucaristia, a presença do plano salvífico de Deus e da ação salvadora de Cristo

em favor de cada indivíduo. Neles se atualiza a vontade misericordiosa de Deus instaurada

definitivamente no mundo em Cristo, na corporiedade de um sinal, o encontro com Deus, o

encontro velado no nosso caminho de Emaús para o eschatolon, a pátria definitiva.

Os sacramentos constituem corporificações encarnatórias e eclesiais da graça,

que, de acordo com a natureza humana, i.e., a graça mais o esforço humano, se cristaliza e

se manifesta em sua ação. O símbolo é como que a face visível do mistério da

comunicação do próprio Deus aos homens. Nesta economia da salvação, faz parte do

evento da graça que ela seja comunicada de modo sacramental pelo fato de o destinatário,

o homem, o constituir um ser sacramental. Em suma, o mysterium-sacramentum se revela

através do signum. Ele é a conjunção do divino e do humano, do sacramental (sinal) e do

misterioso (mistério), de tal maneira que um se torna presente no outro e se manifesta no

agir. Por isso, o determinante do sinal não é o conceito do visível, mas o sensível, que

pertence ao campo de nossas experiências e observações, entre as quais se encontra o

ouvir. Neste âmbito, o sinal nunca foi tomado como sinal vazio, mas já como participação

daquilo que ele indica. Porém, tudo é transparente diante o sagrado. E o sinal deve falar per

si, quando o sinal necessita de ser explicado deixar de ser sinal. Deste modo, diante do

sacramentum-misterium-signum deve-se silenciar os sentidos e a razão, pois, onde razão

não consegue chegar ela se cega e deve ser guiada pela voz do coração, a fé. O finito diante

do infinito, o temporal diante do eterno, o humano diante do divino, não o conhece, mas o

sente e o experimenta. Por isso, ambos se tornam dois mistérios e dois sacramentos de

salvação, na qual e da qual transcende o humano no divino, o temporal no eterno, o finito

no infinito, o início no fim.

Ueslei Vaz Aredes 112

Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Considerações Finais

Por fim, tentei demonstrar que o homem não é só manipulador do seu mundo.

É alguém capaz de ler a mensagem que o mundo carrega em si. Estas mensagens estão

escritas em todas as coisas que formam o mundo. Pois, as coisas constituem um sistema de

signos. São silabas de um grande alfabeto. E o alfabeto está a serviço de uma mensagem

escrita nas coisas, mensagens que pode ser descrita e decifradas para quem possui os olhos

abertos. Assim, o homem é o ser no mundo que é capaz de ler a mensagem do mundo. É

sempre aquele que na multiplicidade de linguagens, pode ler e interpretar. Viver, no

entanto, é ler e interpretar. No efêmero pode ler o Permanente, no temporal; o Eterno, no

mundo. Então o efêmero se transfigura em sinal da presença do Permanente; o temporal

em símbolo da realidade; o mundo em grande sacramento de Deus.

Com o pensamento sacramental quer-se expressar a convicção de que a história

de Deus com os homens acontece em eventos, em atos e encontros historicamente

constatáveis: esses se tornam sinais da proximidade de Deus. Neles Deus se mostra: aos

homens, e neles se aproxima deles, transformando-os.

A estrutura dupla (mostrar e dar-se) determina o conceito da revelação como

auto comunicação: Deus se doa a si mesmo e mostra como ele é. Pensamento sacramental

significa: Deus se comunica aos homens corporalmente, se torna experimentável

corporalmente. Todavia, o fato de ser realmente Deus que age e é experimentado não se

pode comprovar independentemente da fé: pois da experiência sempre se faz parte não

apenas o evento, mas também da sua interpretação.

Referências Bibliográficas

BOFF. L. O Sacramento da vida e a vida dos sacramentos. Paulinas. São Paulo. 1981.

BORTOLINI. J. Os Sacramentos em sua vida. Paulinas. São Paulo. 2002.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Loyola. São Paulo. 2004.

DENZINGER. H. Compêndio dos símbolos, definições e declarações da fé e moral. Loyola. 2007.

THEODOR SCHENEIDER (ORG). Manual de Dogmática Vol. II. Vozes. Petrópolis. 2002.