ana vidigal. casa dos segredos
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Ensaio de catálogo para a exposição da Ana Vidigal no Instituto Superior Técnico, a inaugurar no dia 23 de Março, 2012TRANSCRIPT
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A Casa dos Segredos de Ana Vidigal
Às vezes, a melhor forma de esconder uma coisa é à vista de toda a gente.
Beatriz Colomina, Privacy and Publicity: Modern Architecture as Mass
Media
Esta cidade que nunca se apaga da mente é como uma armação ou um
reticulado em cujas casas cada um pode dispor as coisas que lhe aprouverrecordar.
Italo Calvino, Cidades Invisíveis
Em vez de se seguirem caminhos sinuosos, vai-se diretamente ao âmago da
questão: quando é que um labirinto é também uma casa? Ou talvez se deva
inverter a pergunta: quando não é uma casa? Este é um dos conjuntos de ideias
que a Casa dos Segredos de Ana Vidigal explora e nos leva a explorar de umaforma provocatória. Simultaneamente uma obra arquitetónica e escultural,
readymade monumental e instalação, contentor e conteúdo, este trabalho foi
concebido para o enorme átrio do Pavilhão Central do Instituto Superior
Técnico (IST) em Lisboa. Escrevo «foi» como uma ficção criada pelos
calendários da produção de catálogos: na altura em que estou a escrever este
texto, a peça está ainda a ser feita e existe somente como uma série de
investigações cada vez mais refinadas, propostas, fotografias e maquetas.
Pergunto-me até que ponto este texto consegue acompanhar o ritmo da obraque aborda e que, por sua vez se dirige ao texto.
Portanto, imaginem comigo o seguinte: estamos em pé num dos quatro lados
do gigantesco primeiro andar do majestoso Pavilhão Central do IST, com o seu
design panótico e centralizado, um tipo de organização espacial favorecido
pelos regimes autoritários. Os nossos corpos encontram-se miniaturizados e
intimidados pela escala do edifício e, simultaneamente, desmaterializados num
dramático chiaroscuro da luz do dia filtrada pela magnífica clarabóia art deco. O
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que vemos, ao espreitar por cima do corrimão no átrio central são as formas
bem definidas de um labirinto cujas paredes exteriores formam um retângulo.
O retângulo ecoa o enquadramento arquitetónico mais vasto do átrio, um
retângulo dentro do outro. Desenhado com um padrão simples de linhas em
arranjos geométricos, o labirinto em si é simultaneamente plano e volume,
sólido e evanescente, pois a superfície para a qual olhamos a partir de cima (o
teto do labirinto) está forrada por espelhos. Olhamos então de cima para o teto
banhado de luz, duplicando o teto sobre as nossas cabeças em fragmentos
geométricos luminosos e conferindo ao labirinto um opulento trompe l’oeil ,
dissolvendo-se ao mesmo tempo a certeza dos seus contornos.
Tomando as escadas que descem para o rés-do-chão, é-nos apresentada, claro,
uma vista totalmente diferente. Na realidade, a palavra «vista» não descreve
adequadamente a vista, pois em vez da perspetiva totalizante que se tinha de
cima – um panorama de algo que conseguimos controlar com o nosso olhar, um
cenário que apresenta o espaço mais abaixo como uma figura ou um mapa –
aqui somos convidados a participar: o nosso olhar é substituído pela imersão
física. Por definição, é-nos impossível captar o todo do trabalho com um único
olhar; de facto, não conseguimos de forma alguma contemplá-lo apenas através
do nosso olhar. Pelo contrário, o nosso acesso é ativado pelo efeitofenomenológico de caminharmos através do seu espaço.1 Aqui, os nossos
caminhos usuais – travessias múltiplas do espaço vasto enclausurado por uma
orla exterior de pilares posicionados a intervalos regulares – são imediatamente
anulados pelas paredes do labirinto, apresentando uma espécie de fortificação
tanto para o nosso olhar como para o nosso corpo. Estes bastiões são
interrompidos apenas em dois pontos de entrada, localizados simetricamente
em cada um dos lados menores do retângulo. Estas entradas convidam-nos e ao
mesmo tempo guiam-nos: somos imediatamente confrontados com a
possibilidade, e com a necessidade (se atravessarmos o átrio sem termos que
andar à volta da sua periferia) de ocuparmos fisicamente o labirinto, invadindo-
o fisicamente e seguindo o seu curso até um coração, ou casa, colocado
assimetricamente numa posição quase central. Aqui, depois de entrarmos,
1 Muito se tem escrito sobre as diferentes dimensões políticas oferecidas pelas perspetivas de
cima e de baixo. Ver em particular o ensaio de Michel de Certeau, ‘Marches dans la ville’, emL’Invention du quotidien: arts de faire , Paris: Gallimard, 1980.
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vemos que o labirinto é constituído por filas de cacifos metálicos de dois pisos,
um género de compartimentos pequenos que se fecham com cadeados, que
habitualmente se utilizam em instituições e lugares públicos para salvaguarda
de bens pessoais.
As especificações que acompanhavam o convite para produzir uma
exposição/instalação que coincidisse com as comemorações do centenário do
IST não continham quaisquer restrições em forma ou conteúdo, mas exigiam
que alguns aspetos do instituto fossem utilizados, consultados, abordados ou
referenciados. Fundado em 1911 por Alfredo Bensaude, reformador da
educação científica e engenheiro, o IST foi posteriormente albergado sob a égide
de um outro engenheiro famoso e antigo aluno do próprio instituto, Duarte
Pacheco. Em 1932 foi nomeado Ministro das Obras Públicas no governo de
Salazar e mais tarde, em 1938, tornou-se famoso, entre outras coisas, por um
projecto ambicioso lançado para promover monumentos, pontes e escolas como
parte integrante da promoção do orgulho nacional (senão mesmo de
consciência imperial). Duarte Pacheco supervisionou a construção do edifício
que acolhe o IST numa das melhores zonas de Lisboa, adotando para o primeiro
campus português uma visão utópica de inspiração autoritária. O arquiteto das
novas instalações desta universidade especializada em ciência e tecnologia,construída entre 1929 e 1942 foi Porfírio Pardal Monteiro, cuja tarefa era imensa
e complexa, e constrangida por financiamentos. 2
Em termos ideológicos e institucionais existe muito que Vidigal poderia ter
explorado, uma vez que nas interligações de memórias públicas e privadas que
são tão centrais na sua obra, mais do que uma vez tocou na história do
Salazarismo e do seu impacto nas vidas das pessoas, tanto da metrópole como
das colónias. Em particular, as instalações Penelope (2000) e Void (2007), bemcomo o projeto ainda a decorrer Memento Mori
(http://anavidigal.blogspot.com/2011/08/projecto-memento-mori.html ),
abordam questões relacionadas com os efeitos da Guerra Colonial Portuguesa
2 Para uma excelente discussão e perspetiva geral do projeto no contexto da carreira de Duarte
Pacheco, ver o catálogo Duarte Pacheco – Do Técnico ao Terreiro do Paço publicado como parte dascelebrações centenárias, Lisboa: Instituto Superior Técnico, 2011.
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no domínio do privado, «trazendo a guerra para casa» por assim dizer. 3
Contudo, no IST ela não optou por nada tão simplista como a exploração dos
fundamentos ideológicos sobre os quais se estruturou o projeto arquitetónico,
mas sim pelas formas como uma instituição vai além da sua concha física; a
forma como é definida pela sua história e trajetória, os diferentes
posicionamentos ideológicos ao longo do tempo e, com significado especial, os
processos e as práticas que promove e, assim, os seus diferentes usos e
finalidades.
Em resumo, a crítica institucional – o desiderato de certas práticas de instalação
em incorporarem a desconstrução de ideologias subjacentes à instituição na
qual a própria obra está a ser exibida ou se encontra albergada – não é central
da prática de Vidigal. Para ela isto seria demasiado pomposo, demasiado linear,
demasiado orientado por ideias. Não que o trabalho dela desdenhe ideias:
fervilha com elas. Mas as ideias de Vidigal não são nada senão lhes for dado
corpo, forma e cor; produzidas, ancoradas e reveladas por reviravoltas verbais e
apimentadas com um humor conhecedor. Portanto, a arte dela não é uma arte
de orientação concetual, se por «concetual» entendermos uma formulação
esqueleto da qual foi removida a carne das aparências visuais. Pelo contrário, o
trabalho dela é estimulado pela visão, por reflexos de perspetivas quecombinam diferentes níveis de significado com as nuances de veículos de
significado sempre em movimento: imagens, motivos, frases. Por outras
palavras: a sua visão não é desconstrutiva mas sim reconstrutiva, procurando
não tanto dissecar noções abstratas mas sim mobilizar formas em que o mundo
fenomenológico se tenha idealizado: um mundo percetual recheado de ideias e
gerador de pensamentos. Em suma: as suas ideias não são descarnadas mas
sim, muito literalmente, substanciadas. Com o seu sentido apurado do grau em
que os substratos das ideologias se encontram firmemente alojados na cultura
material, Ana Vidigal sempre gostou de explorar no mundo cultural as
graduações de significado dos seus signos e símbolos e, sempre que necessário,
subverter os seus pressupostos com tiradas astutas, contundentes, tanto verbais
como visuais.
3 Bringing the War Home (trazendo a guerra para casa) foi o título dado pala artista americana
Martha Rosler, muito admirada por Vidigal, a uma série de obras fotográficas feitas na altura daGuerra do Vietname e retomada durante a Guerra do Iraque em 2004 e 2008.
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Ciente de que qualquer peça que produzisse teria que ser específica para o local
e, por virtude do local, monumental em escala, Vidigal começou a sua pesquisa
com a sua máquina fotográfica, visitando diversos departamentos e centros do
IST: física nuclear, engenharia biológica e química, química e física molecular,
engenharia e tecnologia marinha, engenharia mecânica e elétrica, química
estrutural, etc. Visitou estes locais armada com um sentido inato do seu próprio
leque de possibilidades – uma vasta paleta de perícias e metodologias –
mantendo intacta a fronteira entre estas áreas de pesquisa e a sua própria
pesquisa, sem se deixar tentar pela presunção pretensiosa de adotar uma
linguagem pseudo-científica. A sua missão era encontrar algo que pudesse
utilizar aqui, algo adequado de forma a ser consistente com os seus próprios
interesses e procedimentos de trabalho, honesto, perante as limitações de umapossível conversa entre a sua arte e as ciências e, contudo, algo que falasse
também sobre a instituição e com a instituição em que se intervém.
Um plano inicial implicava o uso de enormes contentores utilizados em obras
de construção no campus e dos detritos produzidos por estas obras, como se
perguntassem: o que é que tem que ser eliminado, deitado fora, de maneira a
que se possa construir, conceber, criar. Esta pergunta é tão importante para a
arte como o é para a ciência: o que é que constitui o lixo. Foram concebidasoutras possibilidades durante as visitas aos departamentos individuais. Vale a
pena mencionar aqui o Departamento de Engenharia de Minas, cujos arquivos
fizeram ecoar o fascínio de Vidigal tanto com noções como com formas de
arquivo: por outras palavras, o arquivo tanto enquanto método como enquanto
estética. Mas trabalhar com material de arquivo acarretaria imensas questões de
segurança, burocracia e autorizações. No entanto, a noção desencadeou uma
série de associações. Como é geralmente o caso com o seu procedimento de
trabalho, o projeto foi redirecionado pelo acaso e pelo coincidente até chegar
aos cacifos dos estudantes do IST.
Os cacifos! Num instante ela percebeu que, mesmo sem qualquer intervenção,
estes apresentavam possibilidades e significados deliciosos. O seu aspeto usado
e maltratado situavam-nos se não na história, então pelo menos em duração, no
tempo. Sendo diminutos espaços privados para uso dos estudantes – para o uso
potencial de todo e qualquer estudante – eles congregam o colectivo dainstituição e a colónia prodigiosa de abelhas trabalhadoras individuais que a
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constituem. Assim, os cacifos representam para Vidigal a fronteira entre a
instituição educativa e de investigação que, coletivamente, constituem o núcleo
que irá produzir os cientistas das gerações futuras. Na sua articulação deste
patamar, o trabalho da artista inspira-se num corpo de crescimento incremental
de obras internacionais, que se infiltram nos espaços públicos e mediáticos,
ancoradas por um vasto leque de disciplinas que escorrem para os interstícios
da cultura e se relacionam de uma forma muito dinâmica com a sua
contemplação. Estas obras diversificam o próprio local, também com a
esperança de fazer com que nós (contempladores, espectadores, público)
olhemos para o local de uma forma diferente, mesmo depois de o trabalho ter
sido removido ou desinstalado. «A característica que distingue a arte
contemporânea orientada para o local (site specific)», escreve Miwon Kwon, «é aforma como a relação da obra de arte com a atualidade do sítio (local) e com as
condições sociais do enquadramento institucional (como local) se encontra
subordinada a um local discursivo determinado, que é delineado como um
campo de conhecimento, intercâmbio intelectual, ou debate cultural».4 Por
outras palavras, o «local» que tal obra ocupa é mais alargado do que a sua
simples localização física, ocupando também um espaço no discurso.
Mas havia mais coisas que atraíam Ana Vidigal para os cacifos. Conjuntamente,estes cacifos, com a sua aparência de fileiras cerradas de contentores metálicos
verticais, ombreando não somente numa fila horizontal potencialmente infinita,
mas empilhados também verticalmente, têm afinidades com a aparência de um
arquivo à moda antiga. Assim, eles sugerem coincidências com a promessa do
arquivo em termos de organização e de totalidade integral. (Ao longo do último
século, houve muitos artistas que trabalharam com ideias deste género de
objetivo do arquivo e a concomitante e necessária «devastação de tal
promessa»5 de infinita possibilidade.) Os cacifos também apresentavam
4 Miwon Kwon, One Place After Another: Site-Specific Art and Locational Identity , Cambridge MA.e Londres: The MIT Press, p. 26.
5 Lynne Cooke, Introdução a Gerhard Richter. Atlas , Dia Foundation, Nova Iorque, 27 Abril 1995– 25 Fevereiro 1996, texto disponível online:
http://www.diaart.org/exhibitions/introduction/54 . Além de Richter, outros artistas atrabalhar com um material tão abundante e quase de arquivo, incluem nomes como HanneDarboven, Mark Dion, Craigie Horsfield, Roni Horn e Christian Boltanski. Ver RuthRosengarten, Entre Memória e Documento: A viragem arquivística na Arte Contemporânea , Lisboa:Museu Colecção Berardo, 2012.
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possibilidades formais e iconográficas pujantes, pois são simultaneamente
práticos e carregados de peso metafórico. Enquanto indiciam histórias pessoais
e a redução de objectos e pertences à categoria de «estritamente necessário»,
eles falam também sobre a articulação ambígua entre aquilo que se guarda na
memória e aquilo que é relegado para esquecimento. Vidigal observou
percetivamente: «Esses mesmos espaços que guardam coisas que não queremos
esquecer são também espaços onde guardamos o que queremos esquecer. Isto é
uma coisa óbvia, que fazemos todos os dias: guardar bem guardado o que não
queremos guardar, mas é por vezes tão automático que nem reparamos ou não
queremos reparar».6
Na segunda metade do século XX, a arte dos memoriais públicos e o seu estudo
recordaram-nos o terreno ambivalente ocupado pela – bem como da dinâmica
complexa entre – memória e esquecimento. De menção especial neste contexto é
o trabalho de Jochen Gertz, cujo monumento contra o fascismo era uma coluna
feita de forma a desaparecer gradual e completamente de vista.7 Da mesma
forma, os projetos do arquiteto de origem polaca Daniel Libeskind dão
prioridade ao vazio não somente como espaço entre formas, mas como uma
lacuna significante e significativa, reencenando simbolicamente os buracos na
memória histórica alemã. Assim, no seu melhor, o discurso do memorial naúltima parte do século XX explorou a dialética entre amnésia e anamnésia,
reconhecendo que pela sua natureza estática e imutável, as formas mais fixas e
monumentais tendem a desencadear a obliteração da memória, ao mesmo que
tempo que aquilo que é mais efémero e evanescente ou intangível captura a
imaginação coletiva como uma assombração e pode desencadear as formas
mais emotivas de memória.
Mas havia mais. As propriedades formais dos cacifos eram ideais para osobjectivos de Vidigal: tanto divisíveis em compartimentos individuais – células
que também podem servir de expositores – como em múltiplos, unificados
6 Ana Vidigal no seu blog, http://anavidigal.blogspot.com/search?updated-max=2012-01-23T12:24:00Z&max-results=3&reverse-paginate=true
7 Gertz acredita que se use a ausência e o desaparecimento como poderosa estratégiamnemónica. Aqui estou a referir-me ao seu, e de Esther Shalev-Gertz, famoso Harburg
Monument against Fascism, War and Violence (1983) num subúrbio de Hamburgo, mas também a
outros projetos incluindo o seu monumento contra o racismo Square of the Invisible Monument (1993) em Saarbrücken, Alemanha.
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como uma colmeia num banco monumental de volumes repetidos, os cacifos
proporcionam à artista a possibilidade de combinar forma minimalista com
conteúdo maximalista. A forma minimalista desempenha um papel mais
importante que em muitos outros projetos realizados por Vidigal, não somente
por causa da escala do espaço e do trabalho, mas também porque aqui é
precisamente a simplicidade desbastada da forma que assume uma espécie de
ética de austeridade, uma seriedade moral. «Nas artes», escreve o historiador
britânico Tony Judt, «a seriedade moral remete para uma economia da forma e
contenção estética».8 Por sua vez, esta seriedade figura na escala ética da crítica
institucional com a qual alguns artistas contemporâneos procuram «subverter»
(a própria palavra tornou-se banal) as substruturas ideológicas das instituições
e das suas casas materiais (arquitetónicas). Esta austeridade formal – nãonecessariamente um termo que se associasse ao trabalho de Vidigal – garante a
esta instalação a sua seriedade. Estando ligada à memória da exploração do
espaço e do volume na arte minimalista, convida-nos a observar plenitude na
escassez e diferença na semelhança, convida-nos a prestar atenção ao intervalo e
à interrupção espacial, bem como ao volume e à forma.
Contudo, se o Minimalismo esteve, historicamente, aliado a um esvaziamento
de conteúdo na arte, ao dar à sua instalação a forma (ainda que simplificada) deum labirinto, Ana Vidigal posiciona o seu trabalho para um diálogo com uma
longa linhagem história e mítica; enche o seu trabalho com conteúdo implícito.
Desde o antigo Egipto, passando por Creta, pelas culturas indígenas americanas
e australianas, bem como pelas da Escandinávia, Rússia e América Latina, os
labirintos ocupam um lugar especial e querido nas mitologias e têm estimulado
a imaginação de artistas e arquitetos, bem como de escritores: pensem nos
labirintos que se encontram em Pylos, ou no mosaico romano de Conímbriga
em Portugal; ou nos chãos em mosaico das catedrais góticas como Chartres ou
Amiens; ou nos vários labirintos de arbustos, pedras ou sebes feitos em
diferentes períodos e em diferentes locais (Rutland, Cornwall, Hampton Court)
no Reino Unido; pensem nos labirintos descritos por Virgílio, Ovídeo e Plínio o
Velho , Dante e Borges, Jung, Octavio Paz, Gabriel Garcia Marquez, mas também
implícita e estruturalmente em Italo Calvino e Umberto Eco, W.B. Yeats e James
8 Tony Judt, O Chalet da Memória , trad. Pedro Bernardo, com revisão de Jorge Palinhos, Lisboa:Edições 70, 2011, p. 37
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Joyce.
Típica e formalmente, o que caracteriza um labirinto é o seu convite não
meramente para contemplação, mas sim para movimento, para atravessar
caminhando. Combinando as associações míticas com o facto de só poderem serconhecidos depois de atravessados por um corpo, os labirintos aparecem no
trabalho de artistas (concetuais e land artists) da década de 1970: exemplos
incluem o trabalho de Robert Morris, Dennis Oppenheim, Charles Simonds,
Richard Long e Richard Fleischner. Ao escrever sobre o seu famoso Maze (1972),
Alice Aycock disse o seguinte sobre a sua estrutura de madeira com doze faces
de cinco anéis concêntricos erigidos numa quinta da Pensilvânia:
«originalmente, esperava ter criado um momento de pânico absoluto – quando
a única coisa importante era sair dali».9 Pelo contrário, construído não como um
círculo mas sim como um retângulo, o labirinto de Vidigal tem uma teleologia
clara, induzindo em nós, por esta razão, não tanto pânico mas sim desassossego
conforme ele nos vai mergulhando na estrutura física da razão burocrática.
Certamente que, na sua conceção e escala, ele é imersivo, mas nos seus pontos
claros de entrada e retirada, é menos catacumba que coração de uma biblioteca
ou, na verdade, de uma casa.
Pensem em ocupar os depósitos de qualquer biblioteca antiga, em particular de
uma biblioteca académica bem fornecida: a metáfora da biblioteca enraíza o
labirinto de Vidigal na instituição de pesquisa e ensino na qual ele está
construído. No entanto, as metáforas de casa e lar enraízam-se não na
especificidade do local, mas sim na obra inteira de Vidigal. Esta associação é
explícita no título deste trabalho: Casa dos Segredos. Penso que qualquer visitante
vai sentir o labirinto de Vidigal não como o problema que Teseu teve que
resolver, mas sim como se seguisse um padrão familiar a casas históricas, sejamelas pequenas ou grandiosas (digamos palácios dos séculos XV e XVIII),
operando no princípio de ligação, com salas adjacentes que conduzem umas às
outras, permitindo que os ocupantes andem de uma para outra e, claro,
impossibilitando aquilo a que hoje chamamos de privacidade. (Temos que nos
maravilhar com a invenção brilhante do corredor ao serviço da privacidade,
algo que hoje em dia tomamos como dado adquirido nas nossas casas.)
9 Alice Aycock, «Maze», in Alan Sondheim, ed., Post-Movement Art in America , New York: E. P.Dutton, 1975, p. 105.
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Como é frequentemente hábito seu, Vidigal procura na cultura de massas o
título para o seu trabalho, neste caso um programa popular em Portugal de
televisão-realidade do canal TVI e que usava a agora bem conhecida fórmula de
um grupo de residentes num espaço fechado, um espaço de privacidade
artificial, cuja quarta parede fictícia é removida para que os telespectadores
possam ver. O uso que Vidigal faz da cultura popular e de massas no seu
trabalho é diverso e tem múltiplos níveis. Frequentemente irónico, não deve ser
subestimado como uma fonte fértil tanto em humor como em invenção formal.
Aqui, o título liga-se a duas características da instalação: por um lado, a
formação do todo que é regular, emparedada, parecida com uma casa; por
outro lado, os usos a que são postas as suas partes constituintes. Porque cada
porta de cacifo fechada oculta da nossa vista não só o retrato resumido de um
indivíduo, mas também uma colecção de objectos simultaneamente banais e
preciosos, certamente significativos, quanto mais não seja para o uso imediato e
temporário a que são postos (por exemplo, lembro-me aqui de notas tiradas
durante uma aula específica: importantes no aqui e agora mas frequentemente
dispensáveis no futuro). Guardamos a nossa propriedade privada nos nossos
cacifos, coisas que não queremos ver perdidas ou roubadas, mesmo que não nos
queiramos lembrar particularmente delas. Os cacifos hiperbolizam emminiatura a função de uma casa, desempenhando num palco diminuto a
dialética de partilha e privacidade que se desenrola nas nossas vidas
domésticas.
Sabemos que existe um continuum entre privacidade e secretismo. A evolução
das normas de privacidade está geralmente associada a um processo
civilizador, à renúncia do instinto e às lições aprendidas com a necessária
repressão, sublimação e gratificação adiada (Freud), acompanhadas pelo baixardo patamar de nojo relativamente ao corpo e aos seus processos e funções
(Norbert Elias). 10 O continuum entre privacidade e secretismo tem sido
sublinhado na história da vida privada, acompanhando o nascimento do
indivíduo moderno. Na verdade, os historiadores da vida privada
demonstraram como a «privatização e o escondimento afetam todos os aspetos
10 Ver Sigmund Freud, O Mal-Estar na civilização [1930], trad. Isabel Castro Silva, Lisboa:
Relógio d’Agua, 2008; Norbert Elias O processo civilizador (1939) , trad. Ruy Jungmann, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.
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da existência: arquitetura, disposições para dormir e comer, relações com os
criados, educação das crianças – na realidade, a “invenção” da infância como
um estado separado de desenvolvimento, que precisa de ser separado da idade
adulta e especialmente da sexualidade adulta».11 A ligação entre secretismo e
sexualidade tem, além disto, sido amplamente explorada, inicialmente por
Freud e mais tarde na «contra-ciência» crítica de Michel Foucault que tanto
aplaudiu como se opôs a Freud. A análise de Foucault centra-se no discurso que
produz as ligações entre sexualidade, segredos e curiosidade.
Mas não são somente a sexualidade e o desejo que entraram no domínio da
privacidade e do secretismo, a dor também entrou. «O sofrimento, tal como o
desejo, transforma a privacidade em secretismo», escreve Adam Philips. «De
um ponto de vista psicanalítico, um sintoma é uma forma (secreta) de
perguntar por algo (escondido)». Mas tal como o desejo, o sofrimento é
(seguindo Phillips) «o segredo que talvez não consigamos guardar. Porque tem
o potencial para romper as nossas fantasias de auto-suficiência, pode desejar-se
e temer-se o sofrimento, como um meio legítimo de contacto e partilha entre
pessoas».12 Posto de outra forma, «eu quero estar só» pode ser uma outra
maneira de dizer «quero que traces o teu caminho através do labirinto e me
encontres». A casa – esse recetáculo do indivíduo moderno, esse contentor derelações familiares que instigam e ensaiam outras relações sociais, também o
local de segredos e vergonha inter-geracionais – é o primeiro teatro
experimental do sujeito. Aqui, as distâncias e interseções entre mostrar e
esconder – entre comunhão e separação – são experimentadas pela primeira
vez. Fechar a sua porta, talvez mesmo afixando um letreiro de PRIVADO, é a
primeira exploração da criança em querer perder-se e querer ser encontrada.
Então, a casa como lar é o contentor e o enquadramento daquilo que é mais
importante para o sujeito moderno, privado: «o alcance da infância, as
necessidades da frustração, o significado da sexualidade, os terrores e tentações
da solidão e da auto-suficiência, o apelo da violência nas relações humanas, os
11 Peter Brooks, Body Work: Objects of Desire in Modern Narrative , Cambridge, MA. e Londres:Harvard University Press, 1993, p. 15.
12 Adam Phillips, Terrors and Experts , Londres: Faber and Faber, 1995, p. 33. Eu já abordeianteriormente a relação entre segredos e sintomas no trabalho de Vidigal em Segredos e sintomas:
A produção paralela de Ana Vidigal , in Ruth Rosengarten e Luisa Soares de Oliveira, Ana Vidigal ,Lisboa: Assírio & Alvim 2003.
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segredos guardados de si mesmo e dos outros».13
Já referi que a casa e o lar são veículos poderosos de conjuntos estabelecidos de
imagens e de relações, tanto reais como simbólicas, das quais o labirinto é
somente uma e aquilo que é secreto ou está escondido é uma outra. Também járeferi que existe uma relação mais próxima entre lembrar e esquecer do que a
que é frequentemente reconhecida. Esta relação abala a própria noção de
secretismo: um segredo é algo que desejamos partilhar com um determinado
indivíduo em momentos que definem intimidade, ou algo que realmente
necessitamos guardar para nós mesmos? Será que o secretismo deseja
secretamente a indiscrição? Se o tivermos esquecido, é mais ou menos segredo?
O cacifo, já referi também, desempenha em miniatura algumas das funções do
doméstico, aos quais se podem associar adjetivos como «em segurança» ou
«seguro». Aqui temos então, um cacifo, onde Ana Vidigal coloca alguns dos
seus pertences mais queridos, os seus livros preferidos e os diários e cadernos
de apontamentos, engrossados com colagens, que ela vem colecionando há
trinta anos.
Mas existe ainda uma outra maneira de uma casa poder ser uma «casa de
segredos», que é servindo como instrumento mnemónico. Neste sentido, a casatanto contém como liberta os significados que se encontram nela alojados, nela
projetados. Porque uma casa que nós conhecemos bem – por exemplo, o nosso
lar – pode servir como uma mnemónica espacial prototípica. Desde os tempos
antigos que se utilizou, como instrumento para melhorar a memória, um
método chamado «o palácio da memória» (mas também conhecido como loci ou
«passeio mental»). Em termos simples, o sujeito memoriza a planta de um lugar
específico, digamos uma fila de lojas numa rua familiar, ou a disposição das
salas num edifício. Tradicionalmente, este edifício é um «palácio», embora paramuitos baste algo menos imponente: para Tony Judt, é um chalet onde ele
passou temporadas em criança durante as férias de esqui com a família.14 O
13 Adam Phillips e Leo Bersani, Intimacies , Chicago: University of Chicago Press, 2008, p. i.
14 Tony Judt, 1948-2010. No final da sua vida Judt ficou paralisado do pescoço para baixodevido a uma doença neuromotora progressivamente incapacitante, de forma que o passeiopelo seu chalet mental se tornou ainda mais emotivo pois nesta altura ele mal conseguia falar,quanto mais movimentar-se. O chalet mental também se tornou para Judt, um armário , «cheio
de reminiscências utilizáveis, recicláveis e multiusos, facilmente acessíveis a uma mente dependor analítico». Ver O chalet da memória , op. cit., p. 22.
5/14/2018 Ana Vidigal. Casa Dos Segredos - slidepdf.com
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sujeito liga palavras e conceitos particulares a espaços individuais, formando
gradualmente uma memória pictórica mais elaborada, texturada e detalhada
deste enquadramento espacial. Ao descrever a cidade onírica de Zora a Kublai
Kan, o Marco Polo da ficção de Italo Calvino descreve um itinerário como está
descrito nos manuais de mnemónica: «Esta cidade que nunca se apaga da
mente é como uma armação ou um reticulado em cujas casas cada um pode
dispor as coisas que lhe aprouver recordar: nomes de homens ilustres, virtudes,
números, classificações vegetais e minerais, datas de batalhas, constelações,
partes de um discurso. Entre todas as noções e todos os pontos do itinerário
poderá estabelecer um nexo de afinidades ou de contrastes que sirva de
mnemónica, de referência instantânea para a sua memoria».15
O sistema é, tal como Judt reconhece e admite, imperfeito: sobreposições,
lacunas e identificações erróneas entre um espaço e uma memória é o mais
perto que se consegue chegar da reconstrução: o esquecimento e a lembrança
aliam-se e conspiram nesta armação, este «reticulado em cujas casas cada um
pode dispor as coisas que lhe aprouver recordar». Entre querer recordar e
recordar existe um espaço tão vasto quanto o espaço existente entre lembrar e
esquecer, uma zona completa de possibilidade mental. O que poderia descrever
melhor esse passeio mental, esse arquivo de pertences pessoais, que o labirintomnemónico de Ana Vidigal?
Ruth Rosengarten
Janeiro, 2012.
15 Italo Calvino, Cidades Invisíveis , trad. José Colaço Barreiras, Lisboa: Teorema, 1990, p. 19.