ana paula baltazar - além da representação

Upload: estevamquintino

Post on 11-Feb-2018

230 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/23/2019 Ana Paula Baltazar - alm da representao

    1/16

    Alm da representao: possibilidades das novas mdias na arquitetura1

    Ana Paula Baltazar

    Resumo

    Este artigo comea por uma leitura da representao no contexto da arquitetura distinguindo entrerepresentao na arquitetura (arquitetura que representa significados) e representao da arquitetura

    (concepo do projeto separado do trabalho de construo e do uso). Em seguida mostra como o paradigma

    perspectvico, fundado no Renascimento, foi se consolidando na era moderna, consolidando tambm a

    prevalncia do espao concebido sobre o espao vivido. Com a revoluo informacional espera-se a

    superao do paradigma perspectvico, que no acontece por no haver mudana no modo de produo

    capitalista do espao. Ou seja, ainda que fosse possvel reverter a perda de dimenses advinda com a

    representao, a mudana de paradigma s aconteceria se houvesse uma mudana de fato no modo deproduo. Assim, a promessa de superao do paradigma perspectvico com o paradigma informacional

    discutida a partir de trs tendncias atuais do uso de computadores na arquitetura, enfocando a

    predominncia da lgica da representao em detrimento de um real desenvolvimento do processo de

    produo da arquitetura. O artigo conclui apontando a possibilidade da arquitetura como interface superar o

    paradigma perspectvico, mudando o foco da representao para a interatividade.

    Palavras chave

    representao; arquitetura; novas mdias; interatividade; interface.

    Sobre a representao na e da arquitetura

    Segundo Roland Barthes (1991,p.228), podemos considerar dois significados da palavra representao. (...)

    Representao designa uma cpia, uma iluso, uma figura anloga, um produto-semelhana; mas no sentido

    etimolgico, representao meramente o retorno do que j foi apresentado. Representao pode ser lida

    assim, em seu sentido misto, como o que presenta o objeto novamente atravs de seu produto-semelhana,

    no apenas presentando o prprio objeto de novo, mas presentando-o atravs de outro meio. Assim, tem-se a

    representao na arquitetura e a representao da arquitetura.

    1 Esse artigo foi elaborado a partir de dois trabalhos ainda no publicados. A parte inicial foi compilada na pesquisa de mestrado daautora (Baltazar, 1989) e o argumento sobre a as novas mdias na arquitetura e a falsa mudana de paradigma foi elaborado paraprova escrita do concurso para professor do departamento de arquitetura e urbanismo e artes aplicadas da Universidade Federal deSo Joo del Rei, em julho de 2009.

  • 7/23/2019 Ana Paula Baltazar - alm da representao

    2/16

    No caso da representao na arquitetura, a arquitetura que deve representar. Numa analogia com a

    linguagem, a arquitetura seria o discurso, o habitar que depende da representao. Para Alberto Prez-

    Gmez e Louise Pelletier (1992, s.p.), uma arquitetura simblica aquela que representa, aquela que pode

    ser reconhecida como parte de nossos sonhos coletivos, como um lugar de pleno habitar. (...) Assim, a

    criao enquanto representao deve ser o objetivo fim do trabalho arquitetnico se que a nossa profissotem algum significado social. Na viso desses autores, os elementos da arquitetura devem expressar o

    simbolismo que representam. A arquitetura carregada de significao por representar uma inteno, um

    carter, alm das referncias scio culturais. A arquitetura ento o meio atravs do qual diversas relaes

    so representadas simbolicamente. A arquitetura tradicional constri a representao (Peixoto, 1993, p.362).

    Na passagem do Medievo para o Renascimento, com o advento da imprensa de Gutenberg, foi pela primeira

    vez questionado o papel da arquitetura como meio para representar significado. Victor Hugo escreve que olivro mataria o edifcio (Hugo, 1993 [1831], p.148). Contudo, o questionamento provou-se vo, pois o livro no

    s no matou o edifcio, como o edifco vem reinventando ao longo da idade moderna diferentes formas de

    representar significado. No ps-modernismo, por exemplo, Robert Venturi chega ao limite de exaltar edifcios

    comerciais que representam literalmente os produtos que vendem, como o quiosque de cachorro quente que

    reproduz inclusive a mostarda em sua aparncia (fig.1).

    Fig. 1. Tail o the Pup, quiosque de cachorro quente construdo originalmente em 1945 no Beverly Boulevardem Hollywood. Projeto do arquiteto Milton Black em 1938. Fonte: blog do Los Angeles Times -

  • 7/23/2019 Ana Paula Baltazar - alm da representao

    3/16

    http://latimesblogs.latimes.com/lanow/2010/04/tail-o-the-pup-the-landmark-la-hot-dog-stand-still-

    homeless-.html

    Contudo, prevalece na discusso sobre representao e arquitetura a representao da arquitetura, ou seja,

    a maneira como o objeto arquitetnico reduzido em sua dimenso perceptiva e dado leitura. Os desenhosda arquitetura sero considerados sua representao, como tambm o sero a fotografia, o vdeo, os

    modelos, enfim, tudo que guarde uma relao de aparncia com o objeto, mas que no faa ver o objeto

    enquanto fenmeno, seno representao do fenmeno (Heidegger, 1990).

    Numa analogia da arquitetura com a linguagem, a representao da arquitetura sua escrita, e sua lngua,

    seu cdigo, funda-se no paradigma perspectvico, como aponta Jos dos Santos Cabral Filho (1996, p.26):

    A perspectiva no influenciou apenas a arquitetura e as disciplinas artsticas, mas tambm deuorigem ao pensamento cientfico moderno. A tcnica perspectvica foi um instrumento conceitual

    para abordar o mundo. O aparato perspectvico estrutura o mundo e torna-o um ambiente passivo,

    de uma descrio precisa, uma representao verdadeira e portanto aberta anlise cientfica. A

    perspectiva torna-se um paradigma para a certeza, racionalidade e conhecimento objetivo.

    Podemos encarar a perspectiva como o paradigma da representao desde o Renascimento, quando do

    comeo de sua utilizao. A perspectiva surge historicamente no Renascimento, embora diversos autores

    defendam que Vitruvius j apresentava os princpios da perspectiva em seu tratado sobre arquitetura (Prez-

    Gmez e Pelletier, 1992 e 1997).2 Mas no Renascimento que comea a ser discutida a questo da

    representao da arquitetura, e tambm levantadas as questes relacionadas s dificuldades envolvidas na

    concepo da arquitetura em termos de um conjunto de projees bidimensionais (Prez-Gmez e Pelletier,

    1992, s.p.). A alterao do processo de produo da arquitetura tem incio com a possibilidade de

    representao e a criao da profisso do arquiteto para isso. Assim, a prtica arquitetnica comea a sofrer

    modificao a partir do estabelecimento do paradigma perspectvico, no Renascimento.

    A arquitetura medieval no lidava com desenhos da forma como fazemos hoje, e os construtores no

    concebiam o edifcio como um todo, era um processo coletivo in loco que geralmente durava mais que uma

    gerao, ou seja, quem comeava a obra no estava mais vivo quando de seu trmino. Antes do

    Renascimento, a arquitetura desconhecia a escala grfica, que s ganhou importncia quando da

    possibilidade de representao, devido necessidade de preciso na reduo, para a projetao da

    arquitetura.

    2 Prez-Gmez e Pelletier (1997) apontam a polmica em torno das tradues de Vitruvius, concluindo que ele no se referia perspectiva em seu tratado.

  • 7/23/2019 Ana Paula Baltazar - alm da representao

    4/16

    Ainda que o Renascimento seja o grande marco histrico da alterao do modo de produo da arquitetura,

    caracteriza-se como transio entre as solues arquitetnicas pr-renascentistas e a arquitetura a partir do

    modernismo. A arquitetura renascentista em si no expressa grande parte das vantagens da representao

    arquitetnica sobre o modo de produo in loco. A perspectiva era ainda entendida como a cincia tica,

    como transmisso de raios de luz.

    A pirmide de viso, noo na qual se baseava a ideia renascentista da imagem como uma janela

    no mundo, foi herdada da noo euclidiana do cone de viso. (...) Era impossvel para o arquiteto

    renascentista conceber que a verdade do mundo pudesse ser reduzida a sua representao visual,

    uma seo bidimensional da pirmide de viso (Prez-Gmez e Pelletier, 1992, s.p.).

    Fig. 2. Parte do mural A Santssima Trindade, a Virgem, So Joo e os doadores, Masaccio, Santa Maria

    Novella, Florena, pintado por volta de 1427. Fonte: arquivo pessoal.

    Na verdade, a representao perspectvica da arquitetura encontrou maior divulgao nas pinturas do sculo

    XV, que procuravam representar o ambiente com maior preciso. Embora os pintores fizessem uso da

  • 7/23/2019 Ana Paula Baltazar - alm da representao

    5/16

    perspectiva (fig.2), ainda no havia nenhuma sistematizao geomtrica. Leon Battista Alberti introduz em

    seu tratado Della Pictura a perspectiva como fundamento para o desenho artstico. O mtodo

    perspectvico comea ento a ser delimitado, reduzindo-se a viso binocular a um ponto de vista apenas, que

    por analogia, seria o vrtice do cone de viso. Um plano intersepta o cone, e tem-se assim uma projeo do

    cone num plano, mas ainda no h considerao sistemtica da profundidade, como mostra a ilustrao deAlbrecth Drer retratando o mtodo descrito por Alberti. (fig.3)

    Fig. 3. Ilustrao de Albrecht Drer retratando o mtodo de projeo cnica descrito por Alberti em De La Pictura.

    Fonte: Prez-Gmez e Pelletier, 1992.

    Apenas no sculo XVI que os tratados sobre perspectiva comeam a sistematizar o mtodo emprico.

    Vignola funda o mtodo do ponto de distncia, introduzindo como que na linha do horizonte um segundo

    observador com a mesma distncia do ponto central, que permite a representao da profundidade (Prez-

    Gmez e Pelletier, 1997); Drer faz uso de equipamentos perspectvicos que permitem um mtodo rigoroso

    para representar os objetos; Desargues estabelece o ponto no infinito como encontro de duas retas paralelas,

    ao contrrio de seus antepassados, que acreditavam que o vrtice do cone de viso era o ponto de

    convergncia de duas retas paralelas, tornando possvel a sistematizao do mtodo perspectvico enquanto

    um sistema geomtrico anlogo ao de retas concorrentes, fundando em sua teoria, as bases da geometria

    descritiva desenvolvida no fim do sculo XVIII por Gaspar Monge. Assim, a representao perspectvica foi

  • 7/23/2019 Ana Paula Baltazar - alm da representao

    6/16

    sendo sistematizada e lentamente foi se estabelecendo a possibilidade da utilizao da geometria, da

    bidimensionalidade e das projees ortogonais na concepo da arquitetura.

    Por muito tempo, podemos dizer at o Modernismo, a representao arquitetnica no foi levada ao limite,

    no foi amplamente utilizada em seu potencial.Os desenhos renascentistas no so simplesmente o mesmo que os desenhos modernos em sua

    relao com o lugar construdo. Planos e elevaes no eram ainda sistematicamente coordenados

    dentro dos padres da geometria descritiva. Estes desenhos no eram instrumentais, e mantinham

    muito mais autonomia com relao ao edifcio do que os que resultam da prtica contempornea.

    (Prez-Gmez e Pelletier, 1992).

    O Movimento Moderno, pregando racionalizao e objetividade, leva ao limite a utilizao da representaoarquitetnica, racionalizando os espaos, resolvendo em projeto as possibilidades de otimizao da

    arquitetura, muitas vezes negligenciando conhecimentos construtivos. Como apontam Prez-Gmez e

    Pelletier (1997, p.220221) a separao entre projeto e construo consagrada no sculo 18, tendo como

    referncia o arquiteto Jean-Laurent Legeay (1710-1786), que preconizava a virtuosidade de uma ideia sobre

    seu potencial construtivo (p.220). A tradio que se inicia nessa poca da predominncia da imagem global

    do edifcio para sua visualizao, permitida com a perspectiva, implicitamente sugerindo que o conhecimento

    de construo no seria responsabilidade do arquiteto (Prez-Gmez e Pelletier, 1997, p.221). O

    Modernismo, de certa forma, coroa o modo de produo da arquitetura via representao e d continuidade a

    esse processo de separao entre projeto e construo que j se encontrava incorporado na prtica

    arquitetnica.

    A grande contribuio do estabelecimento do paradigma perspectvico para a arquitetura foi a instituio da

    representao, alterando completamente o processo de produo. A representao possibilita a previso na

    arquitetura, por permitir a reduo do objeto arquitetnico bidimensionalidade do meio onde trabalhado.

    Assim como a perspectiva, outras formas de representar o objeto foram surgindo como a fotografia, que foi

    inventada em 1839, e posteriormente o vdeo baseadas no mesmo princpio de um ponto de vista, no

    mesmo paradigma. Quando um artista emprega a perspectiva geomtrica ele no desenha o que ele v

    ele representa sua imagem da retina (Gregory, 1990, p.174). A imagem que se forma na retina no a

    imagem interpretada pelo crebro. A retina seria o meio bidimensional onde a imagem vista representada; e

    o crebro interpreta as duas imagens das retinas, fundindo-as numa nova dimenso. A representao

    perspectvica faz com que se perca a dimenso da profundidade, que presente na imagem do mundo,

    conforme a percebemos.

  • 7/23/2019 Ana Paula Baltazar - alm da representao

    7/16

    Prez-Gmez (1994) argumenta que a profundidade era a primeira dimenso antes do domnio do paradigma

    perspectvico. Agora as outras duas dimenses comprimento e largura fazem com que a profundidade

    seja meramente uma dentre as trs dimenses. A reduo da importncia da profundidade afeta a relao

    espao/tempo por causar a perda do valor da imagem a imagem que vemos, como percebemos o mundo.

    Tanto a fotografia quanto o vdeo, considerados representao perspectvica,3

    assim como a prpriaperspectiva, no so suficientes para a experincia da arquitetura, pois abandonam a profundidade, apenas

    representando-a, e com isso contribui para que se perca a relao espao/tempo.

    Quando nos colocamos diante de uma representao perspectvica, no somos ns que vemos o mundo,

    mas os olhos de um outro. A imagem que nos chega a imagem de um dos olhos deste outro. J no temos

    mais referncia do momento enquanto possibilidade de apreenso espacial e temporal, nem mesmo somos

    capazes de dizer da durao, enquanto espao e tempo vividos. O que temos uma imagem, absoluta, quese encerra numa janela fora de seu contexto espao-temporal. Tal janela no mais se abre para o mundo,

    apenas representa um instante do mundo para o qual se abriu. Uma gravura de Drer, O pintor estudando as

    leis do esboo por meio de fios e uma moldura (Gombrich, 1988, p. 276) (fig.4), revela a simplificao que a

    perspectiva impe ao objeto. Todas as linhas de profundidade do objeto so reduzidas a um esquema de

    pontos planificado numa janela, numa moldura.

    3 Segundo Gregory (1990), a cmera reproduz o objeto como uma perspectiva geomtrica, porm ns no vemos o mundo como aimagem perspectvica, o que faz com que a fotografia ou o desenho perspectvico paream errados. Para algumas culturas que notem conhecimento da perspectiva, como os Zulus, uma perspectiva entendida como uma composio bidimensional.

  • 7/23/2019 Ana Paula Baltazar - alm da representao

    8/16

    Fig. 4. O pintor estudando as leis do esboo por meio de fios e uma moldura, Drer, 1525, xilogravura. Fonte:

    Drer, 1532.

    A perspectiva tem sido encarada como a possibilidade de representar precisamente um ambiente

    tridimensional em um plano bidimensional (Cabral Filho, 1996, p.26). Observando a gravura de Drer pode-

    se levantar dvida acerca desta dita preciso. A gravura ilustra as diversas concesses perceptivas que so

    feitas para ajustar a cena sua representao. O observador reduzido a um olho, alm de sua posio ser

    fixa e o objeto ser esttico. A preciso perspectvica a preciso da cincia, da matemtica, que transforma a

    realidade em modelos para que possa ser analisada. Cientificamente, podemos considerar essa preciso da

    perspectiva e da geometria descritiva, por permitir uma avaliao do objeto representado, visto que as

    limitaes do mtodo so conhecidas pelos cientistas. Da mesma maneira que os modelos matemticos no

    so entendidos por quem no conhece o mtodo envolvido, a representao perspectvica ou geomtrica

    tambm no entendida por quem no conhece o mtodo perspectvico. Assim, a preciso da perspectiva s

    vlida luz da capacidade de imaginar a hipottica profundidade, que se encontra desenhada em

    comprimentos e distncias.

    O processo de representao resume-se reduo do objeto tridimensional a um meio bidimensional para

    tornar possvel sua re-presentao. No caso da representao da arquitetura no se trata apenas de tornar a

    presentar um objeto tridimensional num meio bidimensional. A defasagem entre a arquitetura e sua

    representao bidimensional no apenas de uma dimenso. No podemos considerar a arquitetura um

  • 7/23/2019 Ana Paula Baltazar - alm da representao

    9/16

    objeto tridimensional, temos a certeza de pelo menos mais duas dimenses tempo e comportamento e,

    portanto, a representao perspectvica est trs dimenses aqum da arquitetura.

    A primeira dimenso que se perde na representao perspectvica a profundidade. A maneira como

    percebemos o mundo, estereoscopicamente, reduzida bidimensionalidade do comprimento e da largura. Asegunda dimenso perdida a do tempo. Assim como a escrita, a perspectiva uma busca de inscrio do

    discurso, permanecendo como um fragmento de um instante do evento (acontecimento) inscrito fora do

    tempo. A representao uma imagem absoluta que pode ser lida em qualquer tempo e no traz a

    temporalidade do objeto. Demanda um tempo para ser lida, embora no guarde nenhuma relao temporal

    com o discurso. A terceira dimenso que se perde a comportamental, que permite a interao. A

    perspectiva, por ser inscrio, j no mais um evento, e a significao da arquitetura no se revela no ato

    de habitar (fruir), mas est restrita possibilidade de interpretao do fragmento imagem absoluta quefoi inscrito. No h interao, o espao e o tempo no so vividos.

    Visando superar a defasagem entre o fenmeno e a representao do fenmeno, devemos entender a

    limitao do paradigma perspectvico e vislumbrar a possibilidade de novas alternativas.

    Embora mesmo que a maioria dos arquitetos mais bem informados reconheam as limitaes dos

    instrumentos de projeo, tais como plantas, sees e elevaes e planejamento prvio com

    relao ao significado corrente do projeto (obra), nenhuma alternativa seriamente considerada

    fora do domnio do perspectivismo moderno, que tem influenciado profundamente nossos

    conhecimento e percepo (Prez-Gmez e Pelletier, 1992, s.p.).

    Atualmente, em plena revoluo informacional, a perspectiva ainda o paradigma para a arquitetura e sua

    representao. Para que se altere o paradigma no basta recuperar as dimenses perdidas ou empreender

    qualquer outro tipo de estratgia reformista no processo de projeto. Alm dos problemas apontados acima, o

    paradigma perspectvico fundamentalmente perverso por promover o modo de produo capitalista do

    espao, que implica a reproduo das relaes sociais de produo, a separao entre trabalho intelectual e

    manual, a consequente separao entre projeto, construo e uso, e a transformao do espao em

    mercadoria com nfase no valor de troca em detrimento do valor de uso. preciso que se altere o modo de

    produo, pois, como afirma Srgio Ferro, processo de projeto baseado na representao via desenhos

    existe e nos chega pronto, porque na lgica capitalista o canteiro de obras deve ser heternomo. O desenho

    arquitetnico acaba sendo a forma obrigatria para a extrao de mais-valia, sendo assim um instrumento de

    dominao que visa a produo de mercadorias (Ferro, 2006, p.108). O uso de computadores na arquitetura

    ainda no escapou do paradigma perspectvico, em vez de promover o valor de uso com nfase no espao

  • 7/23/2019 Ana Paula Baltazar - alm da representao

    10/16

    vivido, os computadores contribuem para reforar a produo de mercadorias com nfase no espao

    concebido.

    Sobre as as novas mdias na arquitetura e a falsa mudana de paradigma

    Faz-se necessrio entender como a informtica entra na arquitetura, pela porta dos fundos, para ento

    entender o motivo de seu atrelamento quase inquestionado ao paradigma perspectvico. Segundo Robert

    Bruegmann (1989, p.139), nos anos 50 alguns escritrios de arquitetura nos Estados Unidos j usavam

    computadores para fazer planilhas e auxiliar nos clculos estruturais. Contudo, s a partir de meados dos

    anos 60 que surge uma interface grfica interativa que permite o desenho. No incio dos anos 70 o

    computador parece promissor, mas a limitao de software e a perspectiva de gerao de produtosextremamente racionais acabaram dando origem a uma crtica ferrenha racionalizao proposta pelo

    prprio modernismo que poderia ser levada ao extremo com o uso do computador. S no fim dos anos 80, j

    com CAD (projeto auxiliado pelo computador), que a arquitetura finalmente deu as boas vindas ao

    computador, que se consolida nos anos 90 como ferramenta indispensvel no processo de projeto

    convencional. Ainda nos anos 90, com a informatizao quase que global dos escritrios e escolas de

    Arquitetura, principalmente na Europa e na Amrica do Norte, comearam a surgir vrias discusses acerca

    da instaurao de um novo paradigma na arquitetura. Tal paradigma seria o informacional e, embora seja

    realmente uma promessa, ainda no se tornou realidade. interessante notar que o ttulo do artigo de

    Bruegmann The pencil and the electronic sketchboard escrito no fim dos anos 80 aponta para a

    reproduo do mesmo processo de projeto usando o meio eletrnico.

    Podemos identificar trs tendncias da informtica no campo da arquitetura: o uso dos tradicionais programas

    de CAD (predominantemente AUTOCAD e REVIT); a investigao e uso de inteligncia artificial e

    parametrizao para gerao de desenhos bi e tridimensionais (Shape Grammar e Genetic Algorithms) e para

    fabricao digital; e uma terceira, que pode ser chamada de ciberntica, pr-ativa, responsiva ou arquitetura

    interativa, na qual a informtica parte do espao e no apenas ferramenta de projeto.

    Na maioria dos casos prevalece o que Prez-Gmez e Pelletier (1997) chamam de paradigma perspectvico,

    e no h de fato uma mudana nem do processo de projeto convencional, nem dos produtos. Ainda que os

    produtos sejam formalmente (ou volumetricamente) distintos das arquiteturas de outros tempos, a finalidade

    do processo de projeto continua sendo, predominantemente, a produo de outros produtos acabados, ou

    como Lebbeus Woods (1996, p.279) diz, um meio de controlar o comportamento humano e de manter esse

    controle no futuro.

  • 7/23/2019 Ana Paula Baltazar - alm da representao

    11/16

    Este processo de projeto convencional adotado pelos arquitetos e ensinado nas escolas , como j dito,

    fundado no paradigma perspectvico estabelecido no Renascimento e pressupe a separao entre sujeito e

    espao (considerado um objeto a ser representado visualmente). Segundo Prez-Gmez (1983) a

    representao que se instaura no Renascimento bastante distinta da que era usada nos canteirosmedievais. Ainda que no medievo os desenhos tambm fossem usados, jamais tinham a pretenso de

    representar a totalidade do edifcio, apenas serviam para comunicar informaes relevantes do processo

    construtivo entre seus diversos participantes e para a elaborao de solues construtivas.

    A diferena fundamental dos dois processos de produo do espao pode ser resumida pela distino entre

    um processo medieval, baseado no que Henri Lefebvre (1991) chama de espao vivido e o Renascentista,

    baseado no que Lefebvre chama de espao concebido (ou representao do espao). Tal distino leva aoquestionamento do processo de produo instaurado no Renascimento. Segundo Srgio Ferro (2006, p.194

    195) Brunelleschi mudou radicalmente as relaes de produo no canteiro de obras, instaurando uma

    prtica hierarquizada, sistematizando a separao entre trabalho intelectual (projeto via desenhos

    codificados) e manual (construo via trabalho alienado), e explorando o trabalho para extrao de mais-

    valia. Alberti teorizou tal prtica em seu tratado. Obviamente que desde o Renascimento at os dias de hoje

    os processos de projeto e construo no se mantiveram inalterados, como mostram Prez-Gmez e Pelletier

    (1997). Contudo, os fundamentos se mantm preservados: processo de projeto baseado na representao e

    separao entre projeto, construo e uso.

    Tal paradigma perspectvico tambm a base das trs tendncias da informtica na arquitetura apontadas

    acima. Os programas de CAD reproduzem em sua lgica estrutural o processo de construo perspectvica

    Renascentista (fig.5). Ainda que o faam de forma muito mais rpida e permitam a manipulao em tempo

    real (como pode ser facilmente feito no Sketch Up, por exemplo), no h nenhuma mudana na lgica de

    representao. Os programas acabam sendo mais de auxlio representao (CAR - Computer Aided

    Representation) do que de auxlio ao projeto (CAD - Computer Aided Design). O projeto, em termos

    genricos, continua o mesmo, obedecendo a lgica renascentista de um processo fragmentado que tem

    como objetivo um produto acabado que ser integralmente construdo imagem e semelhana da

    representao, para ento ser usado.

  • 7/23/2019 Ana Paula Baltazar - alm da representao

    12/16

    Fig. 5. Perspectiva de um clice, Paolo Uccello, 1450-1465, contraposta a modelamento do mesmo cliceusando Form.Z ,1997. Fonte: arquivo do Lagear.

    Ainda que aplicativos como o REVIT permitam a parametrizao e apontem possibilidades alm da

    reproduo da lgica convencional de projeto, seu uso ainda restringe-se a auxiliar a representao

    convencional. Ampliam-se as possibilidades de compatibilizao de projetos complementares, por exemplo,

    mas no altera-se em nada a separao renascentista entre projeto, construo e uso. No caso da

    parametrizao para fabricao digital, h certamente um avano na direo de estreitar a relao entre

    projeto e construo, principalmente no que diz respeito s propriedades dos materiais e possibilidades

    formais. Contudo, o foco na representao formal acaba mantendo a separao entre projeto, construo e

    uso, ainda que de maneira distinta dos processos convencionais. Na maioria das vezes tira-se partido da

    parametrizao para precisar o potencial do material numa forma predeterminada, mas a sua construo

    acaba sendo um processo industrializado talvez ainda mais alienado que o da construo convencional.

    Quem trabalha na construo (ou montagem) tem ainda menos possibilidade de intervir criativamente no

    processo do que em uma obra convencional. Ainda que haja um grande potencial para produo de

    estruturas mveis, flexveis e adaptveis usando parametrizao, isso muito pouco explorado e o uso

    continua apartado do processo de projeto e construo. A lgica da estruturao perspectvica prevalece.

  • 7/23/2019 Ana Paula Baltazar - alm da representao

    13/16

    Os aplicativos que usam inteligncia artificial (Shape Grammar e Genectic Algorythms, dentre outros) ainda

    que no trabalhem literalmente com a estruturao perspectvica, pois usam regras forasteiras para a

    gerao de forma, acabam tambm levando a produtos que reproduzem a mesma lgica do processo

    convencional, j que seu principal desenvolvimento tem sido exatamente reproduzir o processo decomposio formal dos arquitetos e faz-lo mais rpido e fornecendo uma gama maior de opes para

    tomada de deciso, tanto para arquitetos quanto para clientes. A separao entre projeto, construo e uso

    tambm prevalece indiscutivelmente nesses processos.

    A arquitetura interativa comea a propor algumas alteraes, ainda que modestas, no processo convencional.

    A principal delas sendo o uso da informtica ou novas mdias no mais para representar o projeto, mas

    como parte integrante do espao. Isso aponta para uma possvel mudana no processo de projeto, que no mais voltado para um produto final prescritivo e acabado, mas para um processo aberto que depende da

    interao do usurio para se completar temporariamente. A esse processo aberto chamo interface, e

    defendo que o ensino de arquitetura e urbanismo seja voltado para a produo de interfaces e no de

    espaos acabados. Vale ressaltar que nem toda a produo atual de arquiteturas interativas segue a lgica

    da produo de interfaces. Muitas vezes espaos convencionais so produzidos (com processos

    convencionais) e sobrepem-se a eles aparatos interativos para manipulao de imagens ou sons que

    prescrevem as aes dos usurios.

    Interfaces como possibilidade alm do paradigma representacional

    Ainda que a produo de interfaces possa soar como uma abordagem em substituio ao processo

    convencional, h que se ter cuidado com tal simplificao. Por serem duas lgicas distintas, no so

    anlogas. Enquanto o processo de projeto convencional baseado em delimitao e soluo de problemas, a

    abordagem da arquitetura como interface tem como objetivo a problematizao de situaes deixando-as

    abertas para que os usurios dem continuidade. No h uma clara separao entre projeto, construo e

    uso, mas a proposio de um repertrio interativo, que pode tanto ser uma combinao de peas fsicas,

    interfaces digitais ou hbridas, ou um conjunto de regras. O processo de produo das interfaces obviamente

    usa desenhos, mas h um deslocamento da representao de seu papel central, paradigmtico, e uma

    nfase na interatividade. Todavia, representao e interatividade no pertencem mesma categoria, sendo

    portanto impossvel imaginar a substituio de uma pela outra.

  • 7/23/2019 Ana Paula Baltazar - alm da representao

    14/16

    Retomando a discusso inicial sobre representao na arquitetura e representao da arquitetura, pode-se

    vislumbrar interfaces como possibilidade de superao dos dois processos de representao. Do ponto de

    vista da representao na arquitetura tal superao significa o que Cedric Price (1996, p.483) chama de

    arquitetura value-free, ou seja, uma arquitetura suficientemente abertura para que os usurios dem

    significado a ela enquanto a completam temporariamente. Do ponto de vista da representao da arquiteturatal superao significa a perda da nfase renascentista, ou seja, a representao deixa de ser instrumento de

    dominao, diviso do trabalho e separao entre projeto, construo e uso. Em ambos os casos no se

    pode esquecer que a representao uma ferramenta preciosa e no deve ser excluda da produo da

    arquitetura como interface, mas deve ser vista como ferramenta que , e no como paradigma.

    A produo de arquitetura como interface indica uma possvel mudana de paradigma, do perspectvico (ou

    representacional) para o informacional, potencializando no s o processo de produo baseado no espaovivido (e no no concebido) quanto o prprio desenvolvimento da informtica que, segundo John Thackara

    (2000), atualmente mais voltada para seu prprio desenvolvimento do que para acrescentar valor vida das

    pessoas.

    Referncias bibliogrficas

    Baltazar, A. P., 1989. Multimdia interativa e registro de arquitetura: a imagem da

    arquitetura alm da representao. Dissertao de mestrado no publicada, Programa de Ps-

    graduao em Arquitetura e Urbanismo (NPGAU) da Escola de Arquitetura da UFMG.

    Barthes, R., 1991.The responsibility of forms: critical essays on music, art, and

    representation. Berkeley and Los Angeles: University of California Press.

    Bruegmann, R., 1989. The pencil and the electronic sketchboard: architectural representation and the

    computer. In: Eve Blau and Edward Kaufman (eds.). Architecture and its image, Cambridge: MIT

    Press, pp. 13955.

    Cabral Filho, J. S., 1996. Formal games and interactive design. Tese de PhD no publicada,

    Sheffield University, England, UK.

    Drer, A. 1532. Institutiones geometricae. [Traduzido por Joachim Camerarius, Paris: Christian

    Wechel, 1532].

  • 7/23/2019 Ana Paula Baltazar - alm da representao

    15/16

    Ferro, S., 2006. Arquitetura e trabalho livre. So Paulo: Cosac Naify.

    Gombrich, E. H., 1988. A Histria da arte. Rio de Janeiro: Guanabara.

    Gregory, R.L., 1990. Eye and brain: the psychology of seeing. New York: Oxford University

    Press.

    Heidegger, M., 1990. Being and time. Oxford: Basil Blackwell.

    Hugo, V., 1993 [1831].The hunchback of Notre-Dame. Ware: Wordsworth.

    Lefebvre, H., 1991.The production of space. London: Blackwell.

    Peixoto, N. B., 1993. O olhar do estrangeiro. In: Novaes, A. (org.), O olhar, So Paulo: Companhia das

    Letras.

    Prez-Gmez, A., 1994. The Space of architecture: meaning as presence and representation. In:

    Questions of perception: phenomenology of architecture. Tokyo: Architectural andUrbanism. Special Issue, July 1994.

    Prez-Gmez, A., 1983. Architecture and the crisis of modern science. Cambridge and

    London: MIT Press.

    Prez-Gmez, A. & Pelletier, L., 1992. Architectural representation beyond perspectivism. In: Perspecta,

    New York: The Yale Architectural Journal Inc and Rizzoli International. n.27.

    Prez-Gmez, A. & Pelletier, L., 1997. Architectural representation and the perspective

    hinge. Cambridge: MIT Press.

    Price, C., 1996. Life-conditioning. In: Architectural Design, London: Academy Editions, vol. 36, October

    1966, p. 483.

  • 7/23/2019 Ana Paula Baltazar - alm da representao

    16/16

    Thackara, J., 2000. The design challenge of pervasive computing, a keynote lecture to the CHI Computer

    Human Interaction Congress, The Hague. Disponvel em:

    Acesso em 02/09/2012.

    Woods, L., 1996. The question of space. In: Stanley Aronowitz and others (eds.). Technoscience andcyberculture, New York: Routledge, pp. 27992.

    Agradecimentos

    Gostaria de agradecer s agncias de fomento FINEP, CNPq, CAPES e Fapemig por financiar minhas

    pesquisas, passadas e recentes, que informam esse artigo.