no castelo dos ventos · 9 — Ó chico, para ti é sempre tudo tão simples! — e para vocês...
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no castelo dos ventos
3.a ediçã
o
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Capítulo 1
Na serra dos moinhos
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— Eu vou sair desta maldita camioneta e é já — disse o Chico, levantando-se do assento para puxar a mochila da prateleira onde iam as baga-gens. — Não aguento mais...
— Espera aí — pediram as gémeas. — Ainda estamos longe.
— Não estamos, não. Espreitem pela janela, olhem ali para cima.
O grupo virou-se na direcção que ele apontava e todos viram uma leira de moinhos no alto do monte coberto de verdura que se estendia paralelo à estrada. Uma tabuleta indicava estarem no Vale dos Barris.
— Se sairmos aqui e escalarmos o monte a cor-ta-mato chegamos muito mais depressa ao moinho de S. Pedro.
— Lá isso é verdade. Mas ninguém nos garan-te que o moinho de S. Pedro seja um daqueles!
— É de certeza.— Porquê?— Porque já quase não há moinhos em parte
nenhuma. Se estão ali tantos, um deles tem que ser o nosso, não acham?
Os outros riram-se.
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— Ó Chico, para ti é sempre tudo tão simples!— E para vocês muito complicado!A impaciência começava a transformar-se em
irritação. Chico precisava de descarregar energias, mas a camioneta continuava parada no mesmo lu-gar, porque tinha havido um desastre lá mais à fren-te. A la de trânsito crescia, crescia, e ele fervia.
— Daqui a nada rebento! Ou começo a deitar fumo pelo nariz.
— Não admira — disse a Teresa. — Com este pivete a gasóleo...
A encosta do monte, com seu ar meio selva-gem, atraía-os. O espaço apertado onde se encon-travam repelia-os. Não foi preciso Chico insistir muito mais para aceitarem segui-lo. João ergueu--se e avançou pela coxia. Levava o Faial na fren-te, o Caracol debaixo do braço e a mochila às costas.
— Venham! — chamou, também já impacien-te. — Despachem-se.
Os outros passageiros não zeram comentá-rios, só trocaram olhares de grande alívio. Eram todos bastante mais velhos, não lhes passava pela cabeça apearem-se e seguir a pé com as malas às costas, mas caram radiantes por se verem livres daquele grupo de rapazes e raparigas que falavam pelos cotovelos. Alguns tinham feito toda a via-gem encolhidos com medo do Faial, porque um pastor alemão, mesmo quietinho, mete respeito. E as mulheres que iam de saias estavam fartíssi-mas do Caracol, que não parava de lhes lamber os tornozelos. O pior é que o motorista não queria abrir a porta. Era um homem bochechudo, ao falar
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trincava as bordas da língua e as palavras saíam--lhe mastigadas:
— Aqui não há paragem e ainda faltam uns quilómetros para chegarmos a Palmela. Querem car no meio do campo?
— Queremos — respondeu o grupo em coro.— Querem, querem — responderam também
em coro os outros passageiros. — Deixe-os sair!O homem encolheu os ombros, accionou o co-
mando, a porta abriu-se com um psss e eles salta-ram um por um, primeiro os cães, atrás os donos, igualmente satisfeitos.
Na beira da estrada havia erva, uma erva ver-de e rija, levemente húmida porque chovera de manhã. Àquela hora, porém, o céu estava limpo e bem bonito, com um sol simpático, de m de tarde.
— Ainda vamos ter de subir bastante.— Pois é. Visto da camioneta, o monte parecia
mais baixo.— Não é muito alto.Chico assobiava contente da vida e os cães acom-
panhavam-no de língua de fora, a dar ao rabo. Não se viam por ali nem casas nem pessoas. Só os moi-nhos no topo do monte.
— Nunca estive dentro de um moinho.— Nem eu, deve ser giríssimo.— Arranjar um para ns-de-semana é uma
ideia gozada.— Pois é. Equivale aos abrigos de desenho
animado, género árvore oca ou cabana de troncos.Galgando sem grande esforço uma zona da en-
costa suavemente inclinada, conversavam e riam,
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convencidíssimos de que faltava pouco para che-garem ao seu destino. E a vontade de descobrir que soluções é que os donos tinham arranjado para transformar um espaço pequeno e redondo em casa de habitação redobrava-lhes a elastici dade das pernas.
— Como é que serão os quartos?— Redondos.— E as camas, também serão redondas?— Hum... Acho que não. Talvez sejam arre-
dondadas.— Haverá cozinha?— Claro, tem de haver.— Mas não vejo chaminés.— Se calhar são pequenas e estão atrás dos
paus que seguram as velas.Pararam um instante a tomar fôlego, sempre de
olhos postos no alto do monte.— Foi uma sorte a minha mãe ter alugado este
moinho para uma semana de férias — comentou o Pedro.
— E maior sorte ainda não poder vir e dizer--te para nos convidares!
Os outros riram-se da franqueza do Chico, e as gémeas começaram a imaginar pormenores que tornariam a estadia ainda mais agradável:
— Talvez cheire a farinha.— E talvez os donos tenham deixado pão
fresco.— De côdea estaladiça.— Com um pacote de manteiga ao lado.— E tigelas de marmelada, tudo incluído no
preço.
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— Hum... Que fome!Já estavam perto. Antes de atingirem o to-
po foram envolvidos por um vento de Abril fresco e forte que cheirava a plantas e a mar. Logo que venceram o último rebordo estacaram maravilha-dos.
— Que espectáculo!— Nunca pensei, mas vê-se o mar ao longe.— E um castelo a meio caminho.— Só pode ser o castelo de Palmela. É enor-
me!— Fantástico.— Ou fantasmagórico. Aposto que se ouvem
gargalhadas misteriosas naquela torre...— E eu aposto que há um tesouro escondido
nas masmorras.— Tem masmorras?— Todos os castelos têm subterrâneos...Pedro, que se afastara ligeiramente dos ami-
gos, voltou para trás e losofou:— Isto parece ser um posto de observação
pa-ra amostras do mundo. Ouvem-se os carros lá em baixo e os pássaros cá em cima, vêem-se quin-tas espalhadas pelo vale e vilas nos montes vizi-nhos...
— E apesar disso tudo, estamos sozinhos — rematou o Chico. — O que é óptimo!
Se não fosse a alegria geral teriam sofrido tre-menda desilusão, pois o primeiro moinho aonde chegaram estava em ruínas. O seguinte andava em obras e lembrava um depósito de materiais, com tábuas, pregos, sacas de cimento e tijolos empilha-dos a um canto. Quanto ao terceiro, tinha a única
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porta fechada a sete chaves e um letreiro pintado à mão onde se lia: «Proibida a entrada.»
Todos perceberam que abandonar a camioneta sem perguntar nada a ninguém e meterem-se por atalhos tinha sido um disparate, mas não queriam acusar o Chico, e na verdade não podiam, porque a decisão fora do grupo.
— E agora? — arriscaram as gémeas.— Agora, azar. É quase noite, não sabemos
onde estamos nem para onde vamos...O Sol desaparecia no horizonte, o vento
soprava tão fresco que já se podia considerar frio, as sombras preparavam-se para ocultar a paisa-gem, e eles assustaram-se um pouco com o isola-mento.
— O melhor é voltarmos a descer e irmos para a estrada, talvez alguém nos dê boleia — sugeriu a Teresa com um arrepiozinho desagradável.
— Ora, ora... Hoje em dia ninguém dá boleia.— E se dessem, eu não aceitava, porque é pe-
rigosíssimo.— Calma. Parece-me que ali ao fundo há mais
moinhos, um deles pode chamar-se S. Pedro...— Talvez.— Então venham e deixem-se de lamúrias! Vá...Seguiram o Chico em passo acelerado mas o
caminho parecia elástico: quanto mais andavam mais comprido cava. Os cães mostravam -se va-gamente agitados; a certa altura desataram a correr e a ladrar, desaparecendo numa curva coberta de arbustos. No mesmo instante ouviu-se um grito agudo:
— Aiii!
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— Que foi isto? — perguntaram uns aos outros antes de correrem atrás dos cães, pois ao grito ini-cial seguirem-se insistentes pedidos de ajuda:
— Socorro! Socorro!Mesmo depois de contornarem os arbustos não
viram ninguém, só os cães ladrando parados à bei-ra de um barranco coberto de vegetação cerrada.
— Com certeza caiu alguém por ali abaixo!Inclinaram-se à procura de um corpo, de uma
cabeça ou pelo menos de algum movimento entre as folhas que lhes servisse de pista, mas o entrela-çado das plantas ao lusco-fusco era uma barreira impenetrável para os olhos. Os gritos, porém, con-tinuavam, e bem a itivos:
— Socorro!
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Capítulo 2
O galopador
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— Quem está aí? — berrou o Chico.— Fale! Diga qualquer coisa para a gente se
orientar — pediu o Pedro.A resposta não veio; ouviram apenas uns es-
talidos secos por baixo da verdura. Ajoelharam--se então à beira do precipício e o Chico esticou o braço na ideia de afastar as plantas e esprei-tar mas as ramagens começavam bastante mais abaixo; por muito que ele se esticasse, não lhes chegava.
— Tem cuidado, se não ainda cais também — disse a Luísa enquanto a Teresa o segurava pela camisola.
— Porque será que o tipo não responde?— Se calhar desmaiou.— Assim de repente? Estava a gritar e perdeu
o pio?— Pode ter escorregado e batido com a cabeça
numa pedra.— Ora... Isso fazia barulho.— A gente ouviu uns estalidos...— Vamos chamar outra vez.— Hei...— Fale, diga onde está!
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Calaram-se à espera de um sinal de vida, mas só o vento reagiu, soltando assobios níssimos e prolongados que sugeriam música:
Fiu... Fiuuu... Fiu uuu.A luz do dia desaparecera, as estrelas iam-se
instalando, umas isoladas, outras em grupo, pron-tas para passar a noite muito satisfeitas lá no alto. E eles especados à beira de um precipício a olhar para as plantas com cara de parvos. Por um instan-te ocorreu-lhes que os pedidos de socorro talvez tivessem vindo de longe, trazidos pelo vento. Nes-se caso não estava ali ninguém caído à espera de ajuda. Mas a ideia desvaneceu-se porque os cães continuavam agitados a ladrar e a farejar.
— Se isto não fosse tão íngreme, o Faial trata-va da busca.
— Pois tratava, mas assim nem pensem — disse o João, que o mantinha preso pela coleira, receando que os seus instintos de salvador o zes-sem lançar-se no barranco.
— Schiu... Ouçam...Não era uma voz, era um gemido ténue, abafa-
do e contínuo:— Hum...— As lanternas, depressa!Bastou o Chico falar em lanternas para provo-
car remexidas frenéticas nas bolsas das mochilas. Poucos minutos depois cinco focos de luz varriam o manto de verdura, e foi o da Teresa que se imo-bilizou.
— Encontrei! Vejam...Os focos juntaram-se e iluminaram aquilo que
só podia ser o corpo de um homem enrolado sobre
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