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Produto: Quem acendeu o céu
EDUCAÇÃO NA LIBERDADE:
K A N TE A
FUNDAMENTAÇÃODA PEDAGOGIA
REGINA COELIBARBOSA PEREIRA
Regina Coeli Barbosa Pereira
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Liberdade e moralidade
Kant concebe o homem em uma nova dimensão, com a afirmação de sua liberdade, fundamento da moralidade. O homem é um ser livre que se sustenta por si mesmo na existência. É natureza, animalidade mas, além disso, é razão. E como ser racional não é apenas sujeito cognoscente, mas fundamentalmente sujeito moral, pois enquanto consciência estabelece sentidos à liberdade.
A liberdade é uma qualidade essencial do sujeito filosófico. É fio con-dutor e fundamento de possibilidade das ações humanas no pensamento kantiano. É por meio dessa liberdade que o sujeito afirma-se como total-mente independente, fundamento máximo de seu próprio ser. A liberda-de, na existência do sujeito, e a possibilidade dessa liberdade na essência desse sujeito, apoiam-se mutuamente. Assim, só posso colocar-me como sujeito porque sou livre.
É no campo da liberdade que o homem se realiza e se mostra como infinita possibilidade de transcendência, isto é, de ultrapassagem dos obs-táculos que o limitam e o aprisionam à finitude de seu horizonte animal.
O homem é, fundamentalmente, possibilidade de transcendência, possibilidade de ir além, de ruptura com as amarras, de busca infinita de realização no mundo da cultura, com o extraordinário privilégio de com-preender a natureza a partir da compreensão de si mesmo.1
A ideia de liberdade está associada à ideia de transcendência pois ela permite ao homem a busca de novas possibilidades de existência.
1 GUIMARÃES, Pequena Introdução à filosofia política, p. 38.
para a pedagogia moderna reside no fato de que o filósofo alemão consi-dera que a tarefa essencial da educação e da pedagogia não é apenas uma formação técnico-científica, mas também uma formação ético-política, ou seja, uma educação para um agir universal.
O retorno a Kant como destino da educação no século XXI expressa a tentativa de considerar a cidadania como fundamento para a moraliza-ção da sociedade e a possibilidade de utilização da tecnologia como ins-trumento de desenvolvimento e progresso social. Pretende-se mostrar a necessidade de se resgatar a educação ético-moral e política na formação do homem para que possa apresentar um pensar e um agir com base na universalidade.
A filosofia kantiana mostra-se como um saber da consciência e, ainda mais especificamente, uma reflexão sobre a liberdade enquanto essa ideia pode ser pensada a partir de determinadas condições históricas concretas. Ao se perceber a preocupação filosófica contemporânea, cada vez mais centrada na liberdade, torna-se patente salientar as grandes influências que se detectam no pensamento de Kant e problematizar a atualidade de suas ideias, o que justifica uma reflexão sobre a educação fundamentada na liberdade, moralidade e racionalidade.
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objetividade, a autêntica verdade. E, o princípio da veracidade tem que ser o princípio supremo da moral.
A lei moral supõe um sujeito livre, e, somente através dela toma cons-ciência de si como livre. O dever é agir por puro respeito à lei moral e remete para um poder: se devo é porque posso, posso porque sou livre. Simultaneamente acontecem experiências do dever, da lei e da liberdade para que o homem possa agir ou não por obediência à lei. Não pode existir dever se a lei moral não for a própria emanação da vontade no sentido de sua autonomia. Mas, só se constitui dever aquilo que deriva da lei univer-sal, produto da razão pura prática.
A lei moral é dada ao homem como um fato (faktum) da razão pura de que é consciente a priori e que é apoditicamente certo. Isso garante a realidade objetiva da lei moral.
O respeito pela lei moral é o único sentimento que conhecemos ple-namente a priori e cuja necessidade podemos discernir porque é produzi-do por uma causa intelectual. Tal respeito
não é móbil da moralidade, mas é a própria moralidade, subjeti-
vamente considerada como móbil, ao passo que a razão pura prá-
tica, ao recusar, na oposição ao amor de si todas as suas preten-
sões, confere autoridade à lei, que é a única a ter agora influência.
(Kant, Crítica da razão prática, p. 91).
A moralidade não se julga de fora e é por esse motivo que o conceito do dever não pode ser tirado da experiência. A ação moral não tira o seu valor do fim que se lhe propõe. A obediência à lei deve independer do conteúdo da lei.
Não existe anteriormente no sujeito nenhum sentimento que se
incline para a moralidade. Isto é, de fato, impossível, porque todo
somente do princípio do querer segundo o qual a ação, abstraindo
de todos os objetos da faculdade de desejar, foi praticada (Kant,
Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 208).
Para Kant, as ações praticadas por dever são morais e as ações prati-cadas conforme o dever são legais. Para se ter verdadeiro valor moral não basta que ela seja conforme ao dever, mas é imprescindível que seja execu-tada por dever. Esta é, portanto, a origem da ação. Evidencia-se a oposição entre o ponto de vista da autêntica moralidade que reside na natureza da intenção. O critério da moralidade não reside no sucesso ou no propósito da ação, mas na natureza do querer. O que faz a vontade ser boa não é o propósito da ação, mas sua própria forma.
Uma ação realizada por dever deve eliminar totalmente a influência da inclinação e com ela todo o objeto da vontade. Por isso,
nada mais resta à vontade que a possa determinar do que a lei ob-
jetivamente, e, subjetivamente, o puro respeito por esta lei prática,
e por conseguinte a máxima que manda obedecer a essa lei, mes-
mo com prejuízo de todas as minhas inclinações (Kant, Funda-
mentação da metafísica dos costumes, p. 209).
É da maior importância em todos os juízos morais atender, com a mais extrema precisão, ao princípio subjetivo de todas as máximas, a fim de se colocar toda a moralidade das ações na necessidade de agir por de-ver e por respeito pela lei, não por amor e por inclinação relativamente ao que as ações devem produzir.
A necessidade moral é constrangimento, e toda a ação nela instalada deve ser representada como um dever e não como um modo de procedi-mento que agrada ou pode agradar por si mesmo. Portanto, nossa rela-ção com a lei moral é de dever e obrigação porque ela significa a própria
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progresso moral e o progresso da civilização dependem das limitações das inclinações naturais e com ela tudo aquilo que o mal gera de simplesmen-te destrutivo, no interior do homem.
É necessária uma constituição civil capaz de estabelecer possibilida-des e gerar uma vida harmoniosa entre os homens na convivência do bem e do mal. Diz Kant que um homem mau pode ser um bom cidadão em um bom Estado, mas é preciso educá-lo para o exercício da moralidade. A liberdade sem lei não é liberdade, é estado selvagem, estado de natureza. Da mesma maneira, a liberdade individual não pode firmar-se fora de um quadro de alteridade, porque a humanidade se faz na relação entre os ho-mens. É no quadro da alteridade que surge o conflito que permite o desen-volvimento das capacidades e aptidões individuais. Nele também surge a possibilidade do bem se desabrochar, estabelecer o seu espaço e o mal se transformar em obra geradora de progresso na sociedade. Os vícios e os males realizados pelos homens têm um papel positivo no processo histó-rico onde, muitas vezes, a imoralidade conduz ao avanço da moralidade, o mal gera o bem e a humanidade perpetua-se transformadora, evoluída. Talvez o mundo fosse menos perfeito sem o mal que ele comporta. Para realizar em si toda perfeição de que é capaz o homem, precisa ser também considerado em sua singularidade o que, muitas vezes, consiste em sub-trair a universalidade da lei moral. Ao mesmo tempo em que Kant aponta um marasmo antropológico, estabelecido constantemente pelo conflito entre natureza e liberdade, inclinações e razão, ele deixa claro um otimis-mo histórico, expresso pela crença no progresso moral da humanidade. A espécie humana tem o poder de se desalienar, libertar-se das amarras, do domínio humano e divino. O homem pode, por si, buscar o caminho da perfeição moral em benefício da sociedade.
Sobre os fundamentos da educação em Kant
2.1 — Liberdade e educação
O homem não deve somente ser livre, mas também tornar-se livre,
quer dizer, entrar na posse de sua liberdade
Immanuel Kant
A realização da liberdade se dá na moralidade, por meio da educação. A educação afirma-se como o lugar do nascimento do homem e a possibilidade do reflorescimento da liberdade. Sem educação não é possível falar de liberdade; esta é simultaneamente fim e meio do proces-so educativo. Kant afirma que tudo o que não temos ao nascer e de que precisamos para sermos “homens” nos é dado pela educação.
Kant trata a questão da educação em grande estilo. Para ele,
o homem não pode se tornar um verdadeiro homem senão pela
educação. Ele é aquilo que a educação faz dele (KANT, Sobre a
pedagogia, p. 15).
Ao definir filosoficamente o homem pela necessidade metafísica de educação, Kant apresenta uma definição humana do homem. Para que essa criatura, única entre todas, seja homem é preciso adquirir exatamente
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