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Ana Júlia Maurício
DIREITO CONSTITUCIONAL II
PARTE II
HISTÓRIA CONSTITUCIONAL PORTUGUESA
Capítulo I
História pré-constitucional
Sempre que há um Estado, há poder político. Sempre que há poder político, há
regras de organização e funcionamento do poder político e sempre que há essas regras
há uma Constituição.
O fenómeno constitucional português tem início com a criação de Portugal. A
História Constitucional portuguesa começa com a fundação da nacionalidade.
Até 1820, não há uma Constituição em sentido formal.
Depois de 1820, há já uma Constituição em sentido formal.
§1. Principais momentos político-contitucionais
Período 1128 a 1820.
Há 15 momentos com relevância constitucional.
1. Proclamação e reconhecimento da independência (1128 a 1179)
1128- D. Afonso Henriques (Batalha de S. Mamede)
1179- Papa Alexandre III reconhece a independência portuguesa
Relevância constitucional deste momento:
- Momento de clara afirmação do Estado do Condado Portucalense
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- Génese de uma consciência de nação
D. Afonso Henriques enfrenta duas frentes de luta: Leão e Castela e a afirmação
em relação ao Papa. D. Afonso Henriques estabelece uma ligação directa entre o Rei e a
Santa Sé para superar a ligação política com o Imperador de Leão e Castela. O Papa
reconhece a independência portuguesa no âmbito da Respublica Christiana (comunidade
europeia da época).
Este momento marca a transição em Portugal de um governo de facto para um
governo de direito. Reconhecimento jurídico de um governo de direito que já o era de
facto.
2. D. Afonso II (1211 a 1223) e a edificação do Estado
É D. Afonso II que produz pela primeira vez as Leis Gerais do Reino (veja-se o
paralelo com a Inglaterra – Magna Carta data de 1215). Há uma clara extensão e
afirmação do poder do Rei prevalecente perante os direitos costumeiros e locais.
Ideia de centralização do poder real.
Supremacia do poder real latente:
- Cúria de Coimbra de 1211: produção das Leis Gerais do Reino
- Rei nomeia juízes que aplicam as suas leis. O último recurso era dirigido ao
Rei, que era juiz supremo.
Clara edificação do Estado:
- Preocupação de defesa do património público
- Defesa dos mais fracos face aos abusos dos mais poderes
- Responsabilidade civil do Estado que quando causa prejuízos deve indemnizar.
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3. Deposição de D. Sancho II (1245)
É deposto pelo Papa pois D. Sancho II não garantia a Justiça no Reino.
(Concretização dos ensinamentos de Santo Agostinho. “O que diferencia um rei de uma
quadrilha de ladrões? A Justiça.”
Subordinação do poder temporal ao poder espiritual do Papa, o poder que vem
de Deus por intermédio do Papa.
O Papa depõe D. Sancho II e chama à governação o irmão do Rei deposto, o
Infante D. Afonso (Conde de Bolonha).
Juramento de Paris: Acto pelo qual D. Afonso aceita as reivindicações do Papa.
Assume uma auto-vinculação à Igreja e assume garantir a Justiça de acordo com os
ditames da Igreja.
4. Cortes de Leiria de 1254
Pela primeira vez há a participação da III Ordem (povo) nas Cortes. Povo tem
assento nas Cortes. Deste modo, passam a existir 3 Ordens: o Rei e a nobreza, o clero e
o povo.
Com a participação do povo nas Cortes passa a existir uma componente
democrática dentro da ordem portuguesa.
Surgem queixas/reivindicações que são levadas à Corte. Queixas contra os
abusos da nobreza e do clero.
O povo participa numa aliança estratégica com o Rei. O Rei encontra no povo o
principal aliado na supressão do poder da nobreza e do clero.
5. Tratado de Alcanizes em 1297
Neste Tratado, Portugal e Castela definem as linhas de fronteira entre os dois
estados. Ou seja, este Tratado fixa a fronteira terrestre de Portugal.
Portugal tem das fronteiras mais antigas e estáveis do Mundo (desde 1297).
Olivença foi o único desvio ao acordado em Alcanizes.
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Toda a Europa enfrenta, até hoje, problemas de fronteiras, como é o caso do
Kosovo, que recentemente auto proclamou a sua independência. O território, como
elemento integrante e definidor de um Estado, é muito importante a nível da projecção
constitucional.
6. Sucessão de D. Fernando e Cortes de Coimbra de 1385
Contextualização: D. Fernando tinha uma filha casada com o Rei de Castela.
Nos termos do contrato de casamento, eram fixadas regras de sucessão que apontavam
para que, por morte do Rei, a Coroa passaria para a sua filha e, consequentemente, para
Castela.
Acontecimentos: Deposição de D. Leonor Telles, regente. Aclamação do Mestre
de Avis. Cortes de Coimbra de 1385.
Relevância constitucional das Cortes de Coimbra de 1385:
- Cortes reivindicam o direito a escolher o Rei, podendo afastar o herdeiro e
outros filhos legítimos.
- Reivindicam poder afastar da linha sucessória certos herdeiros.
- Afirmação da legitimidade democrática na escolha do Rei. O Rei é escolhido
pela colectividade.
- inversão da ideia do fundamento do poder real: poder vem de Deus mediado
pelo povo (Marsílio de Pádua, séc. XIII).
Há, assim, um novo posicionamento do Rei e das Ordens. O Rei passa a dever a
coroa ao povo com D. João I (legitimação popular do poder do Rei).
7. Conquista de Ceuta em 1415 (Reinado de D. João I)
Porquê da escolha deste momento:
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- Afirmação de um projecto de expansão. Portugal deixa de ser um território
dentro do contexto europeu. Projecção da politica portuguesa é feita em função do
Ultramar, da expansão.
O projecto de expansão do Ultramar só finda com o 25 de Abril d 1974 e
posterior libertação das colónias. Toda a politica portuguesa guiou-se pelos objectivos
expansionistas, até ao 25 de Abril.
Tal política explica a presença da GNR em Timor-Leste no presente.
Reflexo constitucional da política expansionista: tratamento diferenciado dos
PALOP (art. 15.º da CRP).
8. Regimento do Reino aprovado nas Cortes de Torres Novas em 1438
Contextualização do cenário político em causa: Morre o Rei D. Duarte e o seu
filho, D. Afonso V é menor. Punha-se a questão de saber a quem competia exercer as
funções de chefe de estado durante a menoridade do Rei.
Possibilidades:
1.Testamento de D. Duarte indica a esposa, a Rainha D. Leonor (de Castela),
como regente.
2. Reivindicação por parte das Cortes que afirma que a regência deve competir
ao irmão do pai do Rei, que era, neste caso, o Infante D. Pedro.
Para resolver este problema político foram convocadas as Cortes. As Cortes vão
resolver esse problema.
Regimento do Reino: definição de áreas de competência da Rainha viúva e mãe,
de áreas de competência do irmão do Rei falecido e tio do Rei menor e da necessidade
de auxílio das Cortes em determinadas matérias.
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O Regimento do Reino foi o esboço do primeiro texto constitucional português
em termos formais.
Na prática, as coisas não correram bem. O Infante D. Pedro é morto na Batalha
de Alfarrobeira. Porém, Afonso V atinge, entretanto, a maioridade.
Problema de definição da política externa: duas linhas de orientação:
- Expansão marítima, dando relevo ao comércio a às aspirações da burguesia
- Expansão por terra, no interesse da velha nobreza, fiel ao espírito das Cruzadas e com
propósitos de expansão da fé. Defendem a conquista de praças-forte em África.
Com a vitória de D. Afonso V (Batalha de Alfarrobeira), desenvolve-se uma
política ultramarina baseada na conquista de praças-forte em África.
Com D. João II e D. Manuel passa a haver a defesa de uma política de
descobertas e não de conquistas. D. João III chega mesmo a abandonar algumas praças-
forte devido à impossibilidade de as controlar.
Com D. Sebastião dá-se o desastre de Alcácer Quibir, que representa o insucesso
da política de expansão terrestre.
9. Estabelecimento da Inquisição em Portugal em 1536 (Reinado de D. João
III)
Qual a sua relevância constitucional?
- Forma de centralização do poder do Rei com o poder real a controlar a
liberdade religiosa.
- Forma de negação da liberdade religiosa.
A Inquisição foi pensada com um propósito patrimonial. Aqueles que
cometessem determinado crime e fossem considerados culpados, para além das penas
corporais, ficavam sem os seus bens que revertiam para aumentar a riqueza do Estado e
do Rei.
Com a Inquisição, deu-se a afirmação da limitação das liberdades fundamentais,
em nome de uma razão religiosa e patrimonial. A Inquisição constitui uma clara
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contradição entre o afirmar de uma crença religiosa e a prática oposta à religião vigente.
As normas estão em contradição com a ideologia proclamada nas palavras.
Êxito da Inquisição deve-se à fortificação do poder real. A Inquisição só foi
abolida com a Revolução Liberal em 1828.
10. Sucessão do Cardeal D. Henrique e Cortes de Tomar de 1580
Contextualização: D. Sebastião morre em Alcácer Quibir em 1578, sem deixar
herdeiros. Sucede-lhe o Cardeal D. Henrique, seu tio, que morre dois anos depois, não
deixando sucessores.
Problema: saber quem vai ocupar a coroa.
Convocam-se as Cortes (precedente constitucional - Cortes de Coimbra de 1385:
afirmação de um poder divido com mediação do povo). Felipe II de Espanha é
escolhido nas Cortes de Tomar como Rei de Portugal.
Aspectos de relevância constitucional das Cortes de Tomar:
- Afirmação de uma união pessoal. Juridicamente, os estados mantém a
independência mas têm em comum o titular da coroa. Duas coroas distintas, um só
titular.
- Felipe II compromete-se a respeitar as tradições do Direito português. Esta auto
vinculação do Rei foi progressivamente esquecida pelos seus sucessores.
Prós e contras:
- Expectativa de ampliação de riqueza à custa da prata que vinha do Peru (levou
à votação de Felipe II nas Cortes).
- Ataques nas concessões espanholas e portuguesas pelos ingleses e pelos
espanhóis (frutos negativos da união ibérica).
Caso do Brasil: Brasil resulta do Tratado de Tordesilhas, que atribui parte da
costa da América do Sul a Portugal, e do reino dos Felipes, pois houve uma expansão
progressiva do interior do Brasil.
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11. Restauração da independência (1 de Dezembro de 1640) e aclamação de D.
João IV nas Cortes de Lisboa de 1641
Elementos de relevância constitucional:
- Cortes reivindicam o poder de destituir um Rei que se torne usurpador do
poder, que não cumpre as promessas feitas nas Cortes, neste caso nas de Tomar de
1580. Ou seja, reivindicam não só o poder de escolher, como também o de destituir o
Rei.
- Escolha do Duque de Bragança: elemento hereditário e legitimidade da sua
escolha nas cortes (legitimidade democrática do poder do Rei).
12. Deposição de D. Afonso VI em 1667
Contextualização: D. Afonso VI é filho de D. João IV. D. Afonso VI enfrenta a
guerra da Restauração travada entre Portugal e Espanha. Ganhou todas as batalhas
contra os espanhóis.
Rei era acusado de ter perturbações mentais. Rei casa-se, mas havia sérias
dúvidas em relação ao seu matrimónio. O seu irmão, o Infante D. Pedro, procura afastar
o Rei. O Rei é posto em prisão domiciliária.
Termo do casamento do Rei e o Infante D. Pedro casa com a mulher do irmão.
D. Pedro ganha a coroa e a esposa de D. Afonso VI.
Aspectos constitucionais a reter:
- Lei sobre a tutória e regência do Reino (lei materialmente constitucional):
Sempre que o Rei seja menor ou incapaz, quem deve assumir o poder, sendo maior, é o
irmão mais velho.
Esta lei legitima a posteriori o golpe de Estado que esteve na base da deposição
de D. Afonso VI e da aclamação de D. Pedro.
Outro caso em que tal lei foi aplicada, foi com a loucura de D. Maria I. Nesse
caso, na falta de um irmão, foi o seu filho que a sucedeu.
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13. Questão do Novo Código em 1778 (Reinado de D. Maria I)
Pensa-se, pela primeira vez, compilar as normas constitucionais do Reino. Foi a
primeira tentativa de codificação do Direito Constitucional vigente, apesar de frustrada.
Importante debate em torno do modelo monárquico a adoptar: Monarquia mais
tradicionalista ou mais Iluminista?
A figura cimeira do Direito português do séc. XVIII foi Pascoal de Melo Freire,
com obras publicadas nas áreas de Direito Civil e Direito Criminal.
14. Fuga da família real para o Brasil em 1808
Importância constitucional da presença da família real no Brasil:
- Família real vai para o Brasil de modo a impedir a sua captura pelo invasor
francês.
- O governo de um estado europeu desloca a sua sede da Europa para o
Ultramar, pela primeira vez.
- Brasil é elevado à categoria de Reino em 1815. Portugal, que até essa data era
um estado unitário, passa a ser uma união real do Reino de Portugal, Algarve e
Além Mar e do Reino do Brasil.
Em Portugal, sente-se que se passou de metrópole a colónia, já que o Rei estava
no Brasil.
Uma das principais preocupações da Revolução Liberal de 1820 era exigir o
regresso da família real. Porém, o príncipe herdeiro, D. Pedro, decide ficar no Brasil. É
sucessivamente intimado pelas Cortes a regressar, sendo mesmo ultimado. No
seguimento do ultimato, proclama a independência do Brasil, no célebre grito do
Ipiranga, “Independência ou morte”. O seu objectivo era, porém, reunir as duas coroas
quando subisse ao trono de Portugal.
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Graças a este episódio, a preocupação de localizar o chefe de estado mantém-se.
Esta preocupação está latente no Direito Constitucional português. O PR só se pode
ausentar do país com a autorização da AR (art. 129.º da CRP).
15. Súplica de Constituição em 1808
Contextualização: Portugal está ocupado pelos franceses (I Invasão. Invasão de
Junot).
Petição a pedir a Napoleão uma Constituição.
Duas interpretações face à petição:
- “Eis os traidores”
- “Eis os patriotas que tentam evitar que Napoleão seja Rei ou Imperador de
Portugal e que tentam convencer Napoleão a reconhecer como Rei um
descendente da casa de Bragança”
§ 2. Ordenamento Jurídico anterior a 1820
2.1 Fontes Constitucionais
Não existia uma Constituição em sentido formal antes de 1820. Apesar disso,
havia uma Constituição em sentido histórico. Na acepção de que não há Estado sem
regras reguladoras do poder político, também Portugal tinha uma Constituição em
sentido material.
Designa-se Constituição histórica o que existia antes de 1820, previamente ao
movimento liberal português do séc. XIX (em França este iniciou-se no séc. XVIII).
Quais eram as fontes do Direito Constitucional: Leis fundamentais do Reino,
Actos jurídicos unilaterais do Rei, Assentos em Cortes e Costume.
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1. Leis fundamentais do Reino: conjunto de normas que correspondem à síntese
da Constituição antes de 1820. Integravam um conjunto de normas:
- Actas das Cortes de Lamego. Importa primeiro referir que é duvidosa a
existência destas Cortes. De qualquer modo, reza a História que D. Afonso Henriques,
após a Batalha de Ourique, reuniu Cortes para confirmar a formalizar a sua aclamação.
O seu propósito era também determinar as regras de sucessão do trono. As Actas das
Cortes de Lamego foram oficializadas e passaram a fazer parte das Leis fundamentais
do Reino desde 1640/1641, aquando das Cortes de Lisboa, que legitimaram a
restauração e aclamaram D. João IV Rei de Portugal.
- Todas as leis aprovadas em Cortes com o propósito de derrogar ou modificar as
Actas das Cortes de Lamego.
- Lei de 1674 sobre a regência do Reino, em caso de menoridade ou
incapacidade mental do Rei. Esta Lei fundamentou a posteriori o sucedido com D.
Afonso VI.
Quando em 1823 (Vila Francada) e em 1824 (Abrilada) um movimento político
pôs termo à vigência da Constituição de 1922, esse movimento político (os miguelistas)
tentava repor as Leis fundamentais do Reino.
2. Actos Jurídicos Unilaterais do Rei. Não são leis mas têm função de fonte de
Direito Constitucional.
- Testamentos de D. Afonso Henriques a D. Afonso III. Tinham como objectivo
garantir a natureza hereditária da Coroa. Defendia-se o princípio hereditário, por
oposição ao princípio electivo. Na Península Ibérica, havia duas tradições distintas. A
tradição visigótica de matriz electiva. A tradição Leonesa (de Leão e Castela) de matriz
hereditária. O testamento podia também conter a indicação expressa do sucessor. Assim,
garantia-se que a Coroa era transmitida ao filho mais velho nascido na vigência do
casamento (filho legítimo).
- Cartas de Regência. Exemplo destas foi a de D. Afonso V durante as Cruzadas
em África. Os propósitos das Cartas de Regência eram: indicar o regente que substituía
o Rei na sua ausência, que poderes cabiam ao regente (exercia todos os poderes do Rei
ou só alguns)
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- Declarações unilaterais. Exemplo destas foi o Juramento de Paris, no qual o
Conde de Bolonha se auto vinculou unilateralmente.
- Cartas de Foral/Forais: actos do Rei pelos quais reconhece ou atribui
determinados direitos, prerrogativas, imunidades, isenções a certas localidades. Essas
localidades deixam de estar na dependência da nobreza ou do clero e passam a depender
directamente do Rei. Normalmente, eram concedidos privilégios em matéria de
julgamento, de isenção tributária. Eram uma forma do Rei, unilateralmente, conceder
uma situação jurídica ou um estatuto especial a certas localidades.
3. Assentos em Cortes: decisões tomadas nas Cortes independentemente da
vontade do Rei. Eram casos em que as Cortes tinham o poder de definir o Direito,
independentemente da vontade do Rei; ao contrário das Leis fundamentais do Reino,
que pressupunham a conjugação de duas vontades, a do Rei e a das Cortes. Nos
Assentos o Rei não era chamado a emitir opinião.
Exemplos: Cortes de Coimbra de 1385 e Cortes de Tomar de 1580, que,
unilateralmente, definiram quem era o Rei.
4. Costume constituía também uma, senão a mais importante, das fontes de
Direito.
Havia, ainda, outras fontes de menor importância.
Fontes Secundárias de Direito Constitucional:
- Cláusulas Contratuais funcionaram como fontes de Direito Constitucional.
Exemplo: O contrato de casamento celebrado entre D. Fernando e o Rei de Castela, D.
João I, com a Infanta portuguesa D. Beatriz. As suas cláusulas tiveram consequências
sucessórias aquando da morte do Rei, que estiveram na génese da crise de 1383 a 1385.
- Decisões de órgãos de regência ou de órgãos consultivos do monarca.
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2.2. Princípios Gerais do Direito Público (6 ideias que pautam o Direito Púbico
português anterior a 1820):
1. Princípio da origem divina do poder real. O poder real vem de Deus, sendo o
monarca o substituto terreno de Deus. A Justiça é o fim da actuação do Rei e do seu
poder. Logo, o poder não pode ser exercido para fins próprios. Deve, sim, ser exercido
ao serviço da ideia de bem comum.
2. Princípio do primado hierárquico-normativo do Direito Interno sobre os
restantes Ordenamentos Jurídicos/ Primazia hierárquica do Direito Interno.
- Lei de 1211 (Reinado de D. Afonso II). Esta Lei determina que o Direito
Português não pode contrariar o Direito Canónico. É uma Lei emanada pelo Rei
português que determina que o Direito português se submete ao Direito Canónico e não
uma lei de Direito Canónico a determinar a submissão do Direito português. Estamos
perante uma auto-vinculação.
- Beneplácito Régio de D. Pedro I, que passou a condicionar as leis da Santa Sé
a vigorarem apenas com a intervenção concordante do Rei.
3. Princípio da prevalência do Direito do Rei sobre o direito senhorial e sobre os
direitos locais, ou seja, primado do Direito do Estado sobre os direitos provenientes da
nobreza e dos concelhos.
4. Princípio da prevalência do Rei sobre a Lei Positiva. O Rei não está sujeito à
lei positiva, está acima dela. Nenhuma lei o submetia. O Rei não se submetia às leis que
criava. Nenhuma lei obrigava o Rei. No entanto:
- Nas Leis fundamentais, a sua alteração dependia da intervenção das Cortes. O
Rei não as podia alterar sozinho.
- Rei pode condicionar o exercício dos seus poderes através de compromissos,
auto-limitações.
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- Quando o Rei queria afastar uma lei tinha que cumprir certos requisitos
formais.
- Salvo em casos extraordinários, o Rei não podia modificar direitos adquiridos.
O Rei tinha que respeitar os direitos adquiridos.
5. Princípio da subordinação dos Ofícios Públicos (funcionários da
administração do Rei) à Lei.
6. Princípio da discriminação pessoal na aplicação da Lei. Havia leis apenas para
fidalgos, leis para judeus, leis para cristãos. Não havia, portanto, a igualdade de
todos perante a Lei.
§ 3. Instituições Jurídico-constitucionais anteriores a 1820
1. Poder Real
1. Fundamento do poder real
A tese dominante é a da origem divina do poder. Há duas formulações:
- Origem divina do poder com mediação entre Deus e o Rei, que pode ser uma
mediação Papal (esteve na origem da deposição de D. Sancho II) ou uma mediação
popular (Cortes de Coimbra de 1385).
- Origem divina do poder sem mediação. Defende uma ligação directa entre o
Rei e Deus. Este entendimento está na base e conduz ao absolutismo. (Idade Moderna)
2. Limites ao exercício do poder real
- Limitado pela ideia de Justiça, de bem comum, limitado por Deus. (Idade
Média)
- Rei está limitado mas ninguém o controla. Pensamento absolutista. (Idade
Moderna)
3. Formas de exercício do poder real
Exercício pessoal do poder. Em caso de menoridade ou incapacidade do Rei,
existia a figura do regente, que age em vez do monarca.
Rei concentra em si todos os poderes. Concentra o poder judicial, a última
autoridade; era autor das leis, sem a elas se submeter; e era administrador do Reino.
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2. Cortes
1. Problema da amplitude da representação das Cortes. Quem tinha assento nas
Cortes?
A partir das Cortes de Leiria há a representação do povo. Dois períodos: antes de
1254 e depois de 1254.
2. Natureza do poder das Cortes. As Cortes tinham poderes deliberativos ou
consultivos? Tinham a faculdade de decidir ou a de aconselhar o monarca?
- Em certos momentos tiveram poderes deliberativos:
. Cortes de Coimbra de 1385 (legitimam a aclamação do Mestre de Avis)
. Cortes de Tomar de 1580 (sucessão do Cardeal D. Henrique)
. Cortes de Lisboa de 1641 (legitimam a destituição de Felipe de
Espanha)
- Em certas matérias as Cortes só têm poder consultivo.
- Em certas matérias a vontade das Cortes só tinha operatividade conjugada com
a vontade do Rei. Este era o caso da modificação ou feitura de leis fundamentais.
3. Problema das matérias. Sobre quais tinham as Cortes poder de intervir
(independentemente da sua natureza ser consultiva ou deliberativa)? Sobre a feitura da
guerra. Em matérias de índole financeira ou tributária, como o lançamento de impostos
ou a quebra da moeda. Sobre o casamento com príncipe/princesa estrangeiro.
Existiam outros órgãos auxiliares do monarca no exercício do poder:
- Órgãos de matriz política
- Órgãos de matriz judicial
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Capítulo II
História Constitucional
Surge com a Revolução de 1820.
§ 4. Perspectiva geral (1820 até ao presente)
4.1. Periodificação histórico- constitucional
Será que é possível traçar períodos nestes dois séculos?
Constituições em sentido formal (critério de periodificação):
1. Constituição de 1822
2. Carta Constitucional de 1826
3. Constituição de 1838
4. Constituição de 1911
5. Constituição de 1933
6. Constituição de 1976
A Constituição de 1822 e a Carta Constitucional de 1826 não tiveram vigências
lineares. Tiveram mais do que um período de vigência. A Constituição de 1822 teve
dois períodos de vigência e a Carta Constitucional de 1826 teve três períodos de
vigência.
A Carta Constitucional é o texto constitucional que mais tempo esteve em vigor,
até hoje.
Elenco de datas relevantes:
- 1820 – Revolução Liberal
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Três propósitos:
- protesto contra a situação de colónia em que Portugal se tinha transformado
com a ida da família real para o Brasil
- oposição ao protesto contra o domínio britânico na governação do País
(marechal Beresford)
- integração de Portugal no contexto político europeu com a afirmação do
princípios da Revolução Francesa ( limitação e divisão de poderes, reconhecimento de
direitos e liberdades).
- 1821 – Aprovação das Bases da Constituição
Aprovação da essência estruturante da Constituição de 1822 ou dos fundamentos
nucleares desenvolvidos nessa Constituição.
- 1822 – Aprovação e entrada em vigor da Constituição de 1822
Duas particularidades:
- Quando entrou em vigor estava desactualizada. O Brasil já era independente
desde 7 de Setembro e a Constituição entrou em vigor a 22 de Setembro e parte da
mesma era dedicada ao Brasil.
- A Constituição teve, inicialmente, apenas um ano de vigência (demorou mais
tempo a ser elaborada do que esteve em vigor).
- 1823 – Cessação da vigência da Constituição de 1822
Golpe da Vila Francada (1823)
Golpe da Abrilada (1824)
A Rainha e D. Miguel opõem-se à Constituição. Recusaram-se a jurá-la, como
estavam vinculados.
D. João VI tem a pretensão de elaborar uma nova Constituição. No entanto, tal
texto não é concluído.
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- 1823-1826 – Primeiro interregno constitucional
- 1826 – Morte de D. João VI
A sua morte levantou o problema da sucessão ao trono, pois havia um partido
defensor de D. Pedro, que, no entanto, era acusado de ser traidor ao proclamar a
independência do Brasil. Havia outro partido defensor de D. Miguel, o protagonista dos
golpes da Vila Francada e da Abrilada.
Pacto sucessório, pacto de casamento e pacto constitucional:
D. Pedro abdicaria da Coroa a favor da sua filha D. Maria, então com 7 anos, se
esta casasse com D. Miguel.
O Rei concede um texto constitucional ao País, a Carta Constitucional de 1826
(inspirada na Constituição francesa de 1814). Esta foi outorgada pelo Rei, simbolizando
legitimidade monárquica como uma dádiva do Rei à Nação.
Particularidades da Carta Constitucional:
- Outorgada no Brasil
- Cópia adaptada da Constituição brasileira de 1824
Primeira vigência da Carta Constitucional (até 1828).
Uma irmã de D. Pedro IV assegurava a regência do Reino em nome do Rei.
- 1828 – D. Miguel, exilado na Áustria, regressa a Portugal para acertar o
respectivo casamento. No entanto, é aclamado Rei absoluto. Assim termina o pacto de
casamento e finda a primeira vigência da Carta Constitucional.
- 1828-1834 – Não há uma Constituição formal. São restabelecidas as Leis
fundamentais do Reino.
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A Guerra Civil leva a que D. Pedro e a filha regressem a Portugal (desembarque
no Mindelo).
Derrota de D. Miguel. Assinatura da Convenção de Évora-Monte em 1834,
consagrando a derrota miguelista.
Assunção do poder efectivo por D. Maria II. É restabelecida a vigência da Carta
Constitucional.
- 1834 – Segunda vigência da Carta Constitucional.
- 1836 – Revolução Setembrista pôs termo à segunda vigência da Carta
Constitucional, repondo em vigor a Constituição de 1822, mas esta podia ser afastada
por decreto ditatorial. Passava, assim, de Constituição rígida a Constituição fléxivel.
- 1837 – Eleição das Cortes Constituintes para elaborar uma nova Constituição.
Oliveira Martins resume o propósito: A Constituição de 1822 não agradava ao
Paço e à Rainha e procurava encontrar-se um texto que agradasse simultaneamente às
Cortes e à Rainha.
- 1838 – Constituição de 1838. Constituição compromissória entre a
legitimidade monárquica e a legitimidade democrática (parlamento).
A Constituição é elaborada pelas Cortes mas só entrava em vigor com a vontade
concordante do Rei (inspirada na Carta Constitucional francesa de 1830).
- 1842 – Costa Cabral desencadeia um movimento revolucionário no Porto
contra a Constituição de 1838, da qual havia sido fervoroso adepto. O movimento chega
vitorioso a Lisboa. Como consequências, cessa a vigência da Constituição de 1838 e
entra em vigor a Carta Constitucional de 1826 (terceira vigência), que se mantém em
vigor até 5 de Outubro de 1910.
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- 1910- Agosto de 1911 – Interregno constitucional
- 1911 – Aprovação da primeira Constituição republicana.
Três períodos de interregno da Constituição de 1911:
- 1915 – Ditadura de Pimenta de Castro
- 1917-1918 – Ditadura de Sidónio Pais (saudosismo)
- 1926-1933 – Ditadura militar, na sequência do golpe de 28 de Maio de 1926
- 1933 – Constituição de 1933.
É objecto de plebiscito (referendo popular). Elaborada por um comité, publicada
nos jornais e submetida a votação popular irregular, pois as abstenções eram
considerados votos a favor.
- 1974 – Revolução do 25 de Abril. A estrutura orgânica dos poderes definida na
Constituição de 1933 deixa de vigorar, mas mantém-se em vigor a parte restante dessa
Constituição, a não ser que fosse contrariada por decretos revolucionários.
- 1976 – Constituição de 1976 (actualmente em vigor)
4.2. Classificações das Constituições:
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Ana Júlia Maurício
Em relação à ideologia:
I - Constituições de tipo liberal (matriz organizativa dos poderes e de definição
de direitos): 1822, 1826, 1838 e 1911
II – Constituições de matriz pós-liberal (intervencionismo do Estado, que passa a
ter o papel de transformar a realidade): 1933 e 1976.
Em relação ao regime governativo:
I – Constituições monárquicas: 1822, 1826 e 1838
II – Constituições republicanas: 1911 (tipicamente liberal), 1933 (cariz
autoritário) e 1976 (Estado de Direito Democrático).
4.3. História de Continuidades ou de Rupturas?
JORGE MIRANDA entende que o constitucionalismo português é um
constitucionalismo de rupturas.
PAULO OTERO aceita que todas as Constituições portuguesas terminaram em
ruptura revolucionária, não havendo nenhum período de transição constitucional. Todas
resultaram de movimentos de ruptura, excepto a Carta Constitucional de 1826, que
resultou de um Pacto. Tal evidencia uma clara tendência histórica de constitucionalismo
de ruptura, como na tradição francesa e na Europa continental.
No entanto, PAULO OTERO realça que é necessário atentar no conteúdo de
cada Constituição. Neste aspecto, aquilo que predomina são linhas de continuidade
quanto ao conteúdo normativo.
Quanto à organização e distribuição dos poderes de soberania, o texto
constitucional actualmente em vigor está mais próximo do texto da Constituição de
21
Ana Júlia Maurício
1933 em vigor em Abril de 1974, do que o texto da Constituição de 1933 vigente em
1974 estava do seu texto original.
§ 5. Constituições Liberais
Constituições monárquicas: suas semelhanças e diferenças
As três Constituições monárquicas foram a Constituição de 1822, a Carta
Constitucional de 1826 e a Constituição de 1838. Estas estiveram em vigor entre 1822 e
1910.
O que há de continuidade e de ruptura nestas Constituições? Quais as fontes
destas Constituições? A principal fonte das Constituições monárquicas encontra-se na
tradição constitucional ou no texto constitucional anterior.
A Constituição de 1822 foi influenciada pelo modelo vigente até então, ou seja,
pelas Leis fundamentais do Reino.
A Carta Constitucional de 1826 foi influenciada pela Constituição de 1822.
A Constituição de 1838 foi uma síntese entre a Constituição de 1822 a Carta
Constitucional.
Fontes que influenciaram as Constituições:
- viabilidade constitucional interna
- experiências constitucionais estrangeiras: francesas, espanholas e brasileira
Quadro geral das fontes que influenciaram as Constituições monárquicas:
A Constituição de 1822 foi influenciada pelos modelos francês e espanhol
(Constituição de Cádis 1812).
A Carta Constitucional de 1826 foi influenciada pela Constituição brasileira de
1824, que, por sua vez, havia sido influenciada pela Carta Constitucional francesa de
1814.
A Constituição de 1838 foi influenciada pela Constituição espanhola de 1837 e
pela Constituição francesa de 1830 e pela Constituição belga.
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Ana Júlia Maurício
Forma de Estado:
A forma de Estado das Constituições monárquicas é a de Estado unitário. A
excepção é a Constituição de 1822 que previu a União Real com o Brasil, embora,
entretanto, este já se tivesse tornado independente. Assim, a União Real prevista na
Constituição não se chegou a verificar depois da sua entrada em vigor. Ou seja,
efectivamente a forma de Estado destas três Constituições é a de Estado Unitário.
Sistema político de governo:
O parlamento, designado Cortes, tinha, nas três Constituições a concentração do
poder legislativo. Só as Cortes podiam fazer leis. Porém, a Constituição de 1838
atribuía ao executivo e aos órgãos das colónias o poder legislativo excepcional em
matéria colonial.
O sistema oscilou entre um modelo de bicameralismo (1826 e 1838) e um
modelo de parlamento com uma única câmara (1822). O parlamento com estrutura
bicameral dominou todo o constitucionalismo monárquico. A estrutura do parlamento
com uma única câmara só vigorou durante escassos meses (Setembro de 1822 a Abril de
1823). Houve um claro domínio do parlamento de estrutura bicameral.
Direitos Fundamentais:
Estava latente a trilogia liberal: liberdade, propriedade e segurança.
A inserção sistemática não era uniforme. Nas Constituições de 1822 e de 1838
os direitos fundamentais vinham no início; na Carta Constitucional de 1826 vêm no fim.
Na Carta foram esboçados os primeiros direitos reais e consagrou-se, pela
primeira vez, o princípio da irretroactividade das leis.
A Constituição de 1838 consagra pela primeira vez a liberdade de associação e
reunião e o direito de resistência.
Modificação da Constituição:
A única Constituição que foi objecto de modificação foi a Carta Constitucional.
Das quatro principais modificações, só uma foi constitucional.
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Ana Júlia Maurício
Actos Adicionais de:
- 1852, como consequência do movimento da Regeneração de 1851. Este acto
adicional teve como objectivo democratizar a Carta, tal como foi feito na França à Carta
de 1814.
- 1885: foi o único acto conforme na sua elaboração com as regras de revisão
constitucional.
- 1895 e 1907, com o propósito de engrandecimento do poder real e
estabilização da governação.
Num artigo da Carta diz que só é constitucional o que é matéria da organização e
funcionamento do poder político. Ou seja, a Carta era rígida em relação à organização e
funcionamento do poder mas era flexível em relação às restantes matérias. Deste modo,
a própria Constituição procedeu a uma auto- desconstitucionalização.
5.1. Constituição de 1822
Estatuto do Rei: A Constituição de 1822 foi influenciada pelas Leis
fundamentais do Reino, reconhecendo a Dinastia de Bragança como herdeira da Coroa.
No entanto, o Rei surge subalternizado às Cortes. O Rei foi obrigado a jurar a
Constituição, que lhe foi imposta. As Cortes impuseram o texto constitucional ao
monarca, no exercício de uma soberania que lhes é própria.
Este estatuto enfraquecido do Rei verifica-se pois o Rei não tem o poder de
demitir as Cortes e o seu veto em relação aos diplomas das Cortes é meramente
suspensivo. Assim sendo, as Cortes podem impor a sua vontade face ao Rei.
5.2. Carta Constitucional de 1826
Domina o princípio monárquico.
O Rei é a chave de todo o poder a diversos níveis:
- Quanto à outorga ou feitura, a Carta é produto da legitimidade monárquica (a
de 1822 é produto da legitimidade democrática).
- A monarquia surge como auto-limitada pelo Rei.
- O Rei tem protagonismo constituinte e tem protagonismo a todos os níveis.
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Ana Júlia Maurício
Protagonismo do Rei:
- É instituído o 4º poder: o poder moderador, que é a chave para os conflitos dos
restantes poderes (teoria de Benjamin Constant e latente na tradição francesa). O poder
moderador está acima dos demais poderes.
- O Rei e os seus ministros são os titulares do poder executivo. Os ministros do
Rei dependem da sua confiança.
- Rei surge como interveniente no processo legislativo: tem poder de veto
absoluto. As Cortes aprovavam as leis mas estas só eram verdadeiramente leis quando o
Rei as sancionava. O Rei tinha de concordar com a lei para que esta existisse. Tinha de
haver uma confluência, uma conjugação de duas vontades: a das Cortes, que
elaboravam as leis, e a do Rei, que as sancionava.
O princípio monárquico determina que:
1. Toda a competência não atribuída especificamente a outros órgãos competia
ao Rei. O Rei é o titular da competência residual. Como era ele o titular do poder
constituinte era ele quem tinha legitimidade para ter essa competência residual.
2. A revisão da Constituição assenta num compromisso. Era aprovada pelas
Cortes mas não de forma linear. Ou seja, a lei de revisão passava por duas Cortes. Quer
dizer, as Cortes que propõem a lei são dissolvidas e elegem-se novas Cortes, que vão
então terminar a elaboração da lei de revisão. Esta lei só entrava em vigor se o Rei a
sancionasse.
O poder constituinte originário cabia ao monarca. O poder constituinte derivado
pertencia ao Rei e às Cortes.
O Rei tinha o poder de dissolver a Câmara Baixa. Havia um sistema partidário
de rotativismo, o que significa que os partidos se sucediam, havendo grande
instabilidade política.
As tentativas de introduzir alguma estabilidade política foram feitas de modo
inconstitucional, ou seja, à margem da Constituição.
Havia quem dissesse que:
- Na Inglaterra forma governo quem ganha as eleições.
- Em Portugal ganha as eleições que formou governo.
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Ana Júlia Maurício
A pedido do líder da oposição, o Rei demitia o presidente do ministério e
encarregava o líder da oposição de formar governo. Então, novamente a pedido do ex-
líder da oposição, o Rei dissolvia a Câmara Baixa e votava-se nova Câmara.
Durante o tempo em que a Câmara estava dissolvida e ainda não tinha sido eleita
a nova, o Governo elaborava e emitia decretos ditatoriais. Com excepção do Código
Comercial (1888) e o Código de Seabra (1867), as grandes compilações de direito e as
grandes reformas foram feitas sob forma de decretos ditatoriais. Estes decretos sofriam
de inconstitucionalidade orgânica.
O Governo formado ganhava sempre as eleições para a Câmara. Então,
decretava um bill de indemnidade (visa sanar a inconstitucionalidade orgânica) que
isentava quem tinha decretado o decreto ditatorial e sancionava o conteúdo do decreto.
Os decretos eram sancionados pelo Rei, que era irresponsável politicamente. Logo, os
tribunais não podiam pôr em causa tais decretos, o que implicaria uma
responsabilização do Rei.
5.3. Constituição de 1838 (1838-1842)
Esta Constituição esteve mais próxima da Carta que da Constituição de 1822.
Rei:
É reconhecido ao Rei o poder de dissolver as Cortes mas o poder moderador é
suprimido. Porém, o conteúdo do poder moderador é atribuído ao Rei, no âmbito de
titular do poder executivo. Assim, as faculdades do poder moderador mantiveram-se.
Em relação ao veto, havia que decidir se era de natureza absoluta ou suspensiva:
- A Constituição omitiu qualquer referência ao problema.
- Ao monarca competia sancionar as leis.
O que é que as Cortes faziam quando o Rei se recusava a sancionar as leis?
Considerava-se tal recusa de valor absoluto. Logo, era como se houvesse veto de
natureza absoluta.
A habilidade da Constituição de 1838 consistia em não tomar partido mas
proporcionar uma prática idêntica à da Carta Constitucional de 1826.
Esta Constituição também estava mais próxima da Carta em relação aos direitos
concedidos ao Rei.
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Ana Júlia Maurício
5.4. Constituição de 1911
Elaborada pela Assembleia Constituinte.
Surge no seguimento da Revolução Republicana de 1910.
Três princípios do Partido Republicano:
- laicização (separação da esfera do Estado e a esfera da Igreja)
- descentralização (valorização do municipalismo)
- princípio democrático
O Partido Republicano é herdeiro do Vintismo (Revolução de 1820) e do
Setembrismo (movimento de 1836 contra a Carta) e simboliza a esquerda liberal.
A Constituição de 1822 é conotada com a esquerda.
A Carta Constitucional é conotada com a direita.
A Constituição de 1838 tem forma de esquerda mas conteúdo de direita.
A Constituição de 1911 é conotada com a esquerda.
Fontes da Constituição de 1911:
1. Tradição constitucional portuguesa até então, através de uma sequência ou
oposição à experiência constitucional monárquica.
2. Constituição Brasileira de 1891 (influenciada pela experiência dos EUA):
- Fiscalização jurisdicional da constitucionalidade. Fiscalização difusa:
todos os tribunais têm competência para fiscalizar a constitucionalidade. »
Princípio que se manteve até hoje.
- Princípio da não tipicidade ou cláusula aberta em matéria de direitos
fundamentais, que não se esgotam nos considerados na Constituição. » Princípio
que se manteve até hoje.
- Garantia do habeas corpus. Possibilidade de exigir a averiguação junto
do tribunal da legalidade das detenções (garantia já considerada no
constitucionalismo britânico). » Princípio que se manteve até hoje.
3. Leis constitucionais francesas de 1875 ( III República):
- Relação entre o parlamento e o presidente.
- Modelo de parlamentarismo de assembleia como sistema de governo.
4. Constituição Suiça:
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Ana Júlia Maurício
- Ideia de descentralização.
- Importância do referendo como mecanismo de participação política.
- Discussão da existência ou não de presidente da república (prevaleceu a
solução contrária à da Constituição Suiça).
Inovações da Constituição de 1911:
1. Forma republicana: república democrática e laica
2. Diminuição dos poderes do chefe de Estado (estatuto de precariedade do
PR):
- PR não pode dissolver o Congresso
- PR não tem poder de veto
- É eleito por sufrágio indirecto e pode ser destituído por 2/3 do
Congresso
3. Reforço dos direitos fundamentais: habeas corpus, liberdade religiosa.
4. Fiscalização jurisdicional da constitucionalidade das normas. Os tribunais
tinham o dever de não aplicar normas inconstitucionais.
5. Primeira Constituição a admitir autorizações legislativas do Congresso
(composto por Câmara dos Deputados e Senado) ao Executivo.
Três principais alterações ou revisões constitucionais à Constituição de 1911:
- 1916: Participação de Portugal na I Guerra Mundial.
- 1918: Alteração na sequência do golpe de Sidónio Pais (1917). Introdução pela
primeira vez em Portugal e segunda na Europa do sistema presidencialista (PR eleito
por sufrágio universal e directo). Promove a introdução de uma estrutura de
representação corporativa no Estado (representação dos grupos de interesses do Estado).
» Veio a ser a política característica da Constituição de 1933.
Esta revisão constitucional cessa a sua vigência com o assassinato de Sidónio Pais em
1918.
- 1919-1921: Houve durante escassas semanas em algumas localidades do país a
reposição da Carta Constitucional (4ª vigência da Carta). Este momento ficou conhecido
como a Monarquia do Norte (1919), na sequência do assassinato de Sidónio Pais.
Propósito desta revisão foi dar ao PR, o almirante Canto e Castro, o poder de dissolução
do Congresso.
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Ana Júlia Maurício
1910 a 1926: existiram mais de 50 governos. Havia uma grande instabilidade
política fruto do multipartidarismo.
Três tentativas de pôr termo à instabilidade governativa: Pimenta de Castro,
Sidónio Pais e Ditadura Militar.
§ 6. Constituição de 1933
6.1. Da Ditadura Militar à Constituição
A Constituição de 1911 teve um período de vigência adulterada. A Constituição
estava em vigor apenas parcialmente. Tal aconteceu durante o período correspondente à
Ditadura Militar (1926-1933).
Este período teve diversos significados:
- Apesar de, formalmente, a Constituição estar em vigor, a nível de organização
do poder político, a Constituição não estava em vigor.
- Interregno constitucional mais extenso desde 1822. Em termos materiais, a
Constituição não estava em vigor, ao nível da organização do poder político.
- Relevância do período da Ditadura Militar para a compreensão/entendimento
da Constituição actual (1976).
- A ditadura Militar inaugura em 1926 algo que só em 1986 deixou de se
verificar: a existência de um Presidente da República civil e não militar (Dr. Mário
Soares). O Dr. Bernardino Machado foi o último Presidente civil durante a vigência da
Constituição de 1911.
- Durante o período da Ditadura Militar não havia parlamento. A função
legislativa estava toda concentrada no poder executivo (governo). Desde 1926,
não havia parlamento; só em 1935 é que foi eleito novo parlamento.
Na prática, o executivo tinha competência em termos normais:
- Primeiramente, era uma prática contrária ao texto inicial da
Constituição de 1933.
- A partir da revisão constitucional de 1945, o Governo passou a
ter, consagrada na Constituição, competência legislativa normal, tal como a
Assembleia Nacional.
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Ana Júlia Maurício
(Na Constituição de 1976, há competências reservadas à Assembleia da
República, mas tanto este órgão como o Governo têm competência legislativa
normal. O Governo surge como um órgão com competência legislativa normal
em concorrência com a AR, em paridade com a AR. A origem histórica desta
prática radica no período da Ditadura Militar.)
- O chefe de estado era o centro da actividade política do sistema
governativo, tinha legitimidade democrática própria, pois passou a ser eleito por
sufrágio directo.
6.2. Modelo Institucional
Particularidades da Constituição de 1933:
- Foi elaborada por uma comissão restrita, mas submetida a plebiscito
(referendo/ participação popular).
- Recebeu aquilo que correspondia aos ideais da Ditadura Militar, ainda que
devolvendo o poder aos civis, mas com uma cláusula militar implícita, que era o
Presidente da República ser um militar (cláusula também imposta em
1975/1976).
Propósitos que estiveram na base da Constituição de 1933 (raiz ideológica da
Constituição):
1. Oposição ao parlamentarismo e à prática política da Primeira República e do
fim da Monarquia Constitucional: multipartidarismo desorganizado. A
Constituição afirma-se antiparlamentar, antiliberal e antidemocrática.
(chamava-se demoliberal como democracia liberal e, também, como
demónio liberal ao sistema político da I República.)
2. Oposição à desorganização financeira da I República. Ainda durante a
Ditadura Militar, um professor de finanças foi convidado a assumir a pasta
das Finanças (Oliveira Salazar). Este, impôs, como condição para assumir o
cargo, que todas as decisões que envolvessem custos tivessem de passar por
si, o que revela uma supremacia face a todos os outros ministros. Tal
condição passou a norma constitucional em 1933. Ainda hoje, essa norma
30
Ana Júlia Maurício
está em vigor para o aumento de despesas ou diminuição de receitas
(presente dominado pelo passado).
3. Oposição católica e monárquica à I República. Havia um descontentamento
com a prática anticlerical vigente durante a I República. O sistema político
de 1933 era o de uma República, mas o Presidente foi talhado à imagem e
semelhança do rei da Carta Constitucional. Salazar nunca optou claramente
entre o regime monárquico e o regime republicano. De qualquer modo,
conseguiu a confluência de católicos e monárquicos.
Fontes da Constituição de 1933:
- Carta Constitucional de 1826;
- Constituição de 1911;
- Constituições alemãs de 1871 e de 1919 (Weimar);
- Doutrina Social da Igreja (afirmação e desenvolvimento do princípio
corporativo). A Constituição afirma procurar instituir uma República
Corporativa.
Salazar definia a Constituição como antiparlamentar, antiliberal, autoritária e
intervencionista.
A Constituição assenta em três compromissos:
- Liberalismo e autoritarismo;
- Democracia e nacionalismo;
- República e monarquia.
Principais Inovações da Constituição:
1. Ideia de criar um Estado Novo, um estado forte. Ideia de uma natureza supra
individual da Nação de forte cunho hegeliano. Ideia de que é no estado que
tudo se realiza. É na nação, como comunidade cultural, que há uma
identificação do povo português. Primeira Constituição portuguesa de matriz
de estado social, com direitos sociais, que tem como finalidade a promoção
da qualidade de vida e do bem-estar dos mais necessitados (tal ideai veio a
influenciar o art. 9º da CRP).
31
Ana Júlia Maurício
2. Princípio corporativo. A República não assenta no sufrágio liberal. O
indivíduo insere-se no seu contexto familiar e laboral. A nação fundamenta-
se nas corporações. Importância da intervenção das corporações: família,
autarquia, trabalho e religião. Corporações surgem como base da nação.
Corporativismo:
- Encarado como fim, como meta, como objectivo final. Tal explica a
existência da Câmara Corporativa, que, como órgão consultivo da
Assembleia Nacional, emitia pareceres, aconselhava-a.
- A partir doa anos 50, o corporativismo é visto como instrumento para
afirmarem um sufrágio orgânico. O corporativismo está na base do Estado
Novo. Era um corporativismo imposto de cima e não provinha das bases.
3. Sistema de Governo.
1. Desvalorização do papel do parlamento. Até aí o sistema era o de
parlamentarismo de assembleia, com preponderância do parlamento face ao executivo.
2. Reforço do papel do Governo, que identifica como órgão de soberania.
O governo tem a titularidade da competência legislativa e não é responsável
politicamente perante a Assembleia Nacional.
Como se processa a responsabilidade política do governo: o PR, eleito por
sufrágio directo, designava o Presidente do Conselho de Ministros, que só era
responsável perante o PR. O Presidente do Conselho escolhia livremente os seus
ministros e secretários de estado, que, por sua vez, só eram responsáveis politicamente
perante o Presidente do Conselho.
O sistema era o de chanceler. O PR delega no chanceler a actuação governativa.
Chanceler nomeia e destitui livremente os ministros e secretários de estado. Há um
progressivo esvaziamento do papel do chefe de estado acompanhado de uma
progressiva centralização da vida política em trono do Presidente do Conselho. Há
quem fale em presidencialismo bicéfalo, pois havia dois presidentes, o da República e o
do Conselho. Há, também, quem fale em presidencialismo de primeiro-ministro. A
figura do PR foi-se apagando para que os seus poderes fossem transferidos para o
Presidente do Conselho.
Notas sobre o sistema: na Constituição oficial, o centro do poder estava no PR
(lembre-se que este foi criado à imagem e semelhança do Rei da Carta Constitucional).
Durante a prática da vigência da Constituição, a Constituição não oficial determinou o
ascendente do Presidente do Conselho. Como é que esse ascendente se traduziu?
32
Ana Júlia Maurício
- O Ministro da Finanças era também Presidente do Conselho de Ministros.
- A Constituição foi obra de comissão ligada ao pensamento de Salazar. A
Constituição expressa o querer político de Salazar.
- O PR convidou Salazar para Presidente do Conselho. A partir daí, era Salazar
quem indicava quem iria ser PR. Tal significou que o PR passou a depender da
confiança política do Presidente do Conselho e não vice-versa.
Exemplos: Em 1958, Salazar indica outra pessoa para PR, escolheu o Almirante
Américo Tomás ao invés de Craveiro Lopes. Em 1959, o modo de designar o PR
mudou; este passou a ser eleito por um colégio eleitoral, ou seja, por sufrágio indirecto.
Garantia-se assim, depois do episódio de Humberto Delgado, a estabilidade dentro do
regime.
Exemplo de tensões entre o PR e o Presidente do Conselho: Aquando da
comemoração dos 25 anos de Salazar a exercer funções governativas, o PR queria dar-
lhe uma ordem honorífica. Salazar não queria receber essa ordem honorífica. Então,
escreve a Craveiro Lopes (PR na altura), mostrando os mecanismos que condicionavam
o PR, através da referenda ministerial. A referenda, de certo modo, tornava o PR refém
do Presidente do Conselho.
Dois períodos de vigência formal da Constituição:
- de 1933 a 1968, o período do Governo de Salazar;
- de 1968 a 1874, o período do Governo de Marcello Caetano.
Na prática, o segundo período inicia-se em 1970, com a morte de Salazar. É a
partir daí que se inicia a última revisão constitucional (1971), materializando-se o
período marcelista da Constituição.
6.3. Revisões e desenvolvimentos constitucionais
Houve nove revisões constitucionais, que podem ser agrupadas em cinco épocas:
1. De 1935 a 1938. Pequenas alterações de pormenor dentro das normas da
Constituição.
2. Em 1945 (fim da II Guerra Mundial). O Governo passa a ter competência
legislativa normal.
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Ana Júlia Maurício
3. Em 1951. Integração do Acto Colonial na Constituição em sentido
formal/instrumental. Traduzia a ideia, contrária à da ONU, que Portugal era uma
nação dividida em vários continentes.
4. Em 1959. Alteração do processo de designação do PR. Passou a ser eleito por
sufrágio indirecto, por um colégio eleitoral.
5. Em 1971. Há um reforço dos direitos e liberdades e a criação de um Estado
unitário regional. As províncias ultramarinas são elevadas à categoria de regiões
autónomas (Açores, Madeira e colónias).
3.4. Revolução de 1974 e vigência da Constituição
Caracterização do período revolucionário: corresponde a um tempo de vigência
da Constituição de 1933. Mas apenas em tudo aquilo que não fosse contrariado
pelas leis constitucionais emanadas.
A Assembleia Constituinte (25 de Abril de 1975) tinha apenas poderes
constituintes. Não podia emanar normas de direito ordinário. Tinha apenas como
fim elaborar um novo texto constitucional.
Entre 1975 e 1976 havia dois poderes constituintes:
- Assembleia Constituinte, dotada de legitimidade democrática e destinada a
elaborar uma Constituição;
- Poder constituinte de matriz revolucionária, militar, destinado a fazer leis
constitucionais de vocação transitória ou temporária.
Aspectos a reter:
1. Existência de uma pluralidade de leis constitucionais
2. Tensão permanente entre o poder militar, os autores do 25 de Abril, e o
poder civil, protagonizado pelos partidos políticos.
3. Tensão permanente entre a legitimidade revolucionária dos militares, os
protagonistas da Revolução, e a legitimidade democrática dos partidos
políticos, as estruturas representativas das grandes correntes de opinião da
sociedade.
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Ana Júlia Maurício
Principais documentos normativos/constitucionais: o programa do MFA definia
as grandes directivas subjacentes quer ao propósito revolucionário, quer ao
propósito do período transitório, quer à elaboração do texto constitucional.
Estrutura orgânica subjacente ao período transitório:
1. Criação da Junta de Salvação Nacional, presidida pelo General Spínola. A
Junta assumia poder constituinte e poder constituído. A Junta tinha o poder
de elaborar normas constitucionais e tinha competências legislativa e
administrativa.
2. Lei 3/74: Conselho de Estado, dotado de poder constituinte, e Governo
Provisório, dotado de poder legislativo e administrativo (poderes
constituídos).
3. O Conselho da Revolução foi integrado na estrutura constitucional de 1976.
Tal é exemplo do período transitório a ditar soluções para o texto
constitucional, ou melhor, do poder militar a impor uma estrutura anómala
dentro de um contexto democrático à Assembleia Constituinte.
Principais questões constitucionais colocadas no período transitório:
1. Convocação de uma Assembleia Constituinte, procurando conciliar a
legitimidade democrática, com os partidos políticos a ditar quem podia
concorrer, e a legitimidade militar, a condicionar que partidos podiam
concorrer e a condicionar o sentido das deliberações da Assembleia
Constituinte. Surgem, assim, pactos entre o MFA e os partidos políticos.
2. Processo de descolonização. A questão da descolonização marca a agenda
constituinte. Problema do cessar-fogo em Angola, Moçambique e Guiné-
Bissau. Questão da proclamação e reconhecimento da independência das
colónias.
Particularidades da descolonização:
A génese do 25 de Abril tem a ver com a situação colonial. O livro
“Portugal e o Futuro” de Spínola questionava a política militar ultramarina.
Nesse livro, Spínola defendia a solução da autodeterminação para África. A
autodeterminação tanto pode conduzir a uma situação de independência, a uma
situação de acordo entre os estados, como à ratificação da situação existente.
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Ana Júlia Maurício
Com o afastamento de Spínola, com o 11 de Março e o radicalizar do
movimento revolucionário, viu-se a independência como solução para as
colónias.
3. Questão da reestruturação económica. Com o radicalizar do movimento
revolucionário, ocorreu um surto de apropriações colectivas e de
nacionalização dos meios de produção e das terras. Hoje em dia, assiste-se a
um movimento de reprivatização de bens objecto de apropriação colectiva no
período revolucionário.
Particularidades:
- O processo de nacionalização foi levado a cabo por Governos provisórios,
que não eram dotados de legitimidade democrática.
- A Constituição consagrou uma cláusula da irreversibilidade das
nacionalizações. Era um entendimento do Tribunal Constitucional até 1989
que não era possível privatizar 51% dos bens, mas era possível privatizar
49,9% do capital social, pois tal não lesava os interesses do Estado.
- Todas as nacionalizações levadas a cabo foram anteriores à entrada em
vigor da Constituição de 1976.
§ 7. Constituição de 1976
7.1. Fontes e Projectos
A Assembleia Constituinte só tinha poder constituinte, não tinha poder
legislativo nem de controlo político. Estavam em maioria os partidos
moderados, o PS e o PPD.
Foram feitos alguns acordos entre partidos e militares:
- Plataforma de 1975, que visou permitir a eleição da Assembleia
Constituinte e condicionar a liberdade dos deputados. Foi a condição imposta
para que houvesse eleições para a Assembleia.
- Plataforma fruto do 25 de Novembro de 1875 (forças mais radicais tentam
desencadear um golpe e as forças moderadas, protagonizadas por Ramalho
Eanes, vencem). Há o deslocar para uma vertente mais moderada, que
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Ana Júlia Maurício
permite uma renegociação. São os partidos que ditam as regras da
negociação. Surge a ideia de que o PR é eleito por sufrágio universal apesar
de o candidato ter de ser um militar.
Projectos de Constituição apresentados: Três vertentes:
1. Procura determinar o modelo de Portugal dentro do modelo de
contexto europeu. Apresentado pelo PPD e pelo CDS.
2. Visa acentuar uma ideia socialista, de tipo colectivista, marxista.
Defendido pelo PCP, SDC, CDE e UDP.
3. Concilia as duas soluções, defendido pelo PS. Inclui componentes
típicas do modelo europeu em matéria de direitos humanos, acolhidas
pelos partidos à direita, e componentes tipicamente de vertente
socialista em matéria económica com alianças pontuais, acolhidas
pelos partidos de esquerda.
Fontes:
Internas: Constituição de 1933 ou por oposição ou por identificação.
Externas: - Constituição alemã de 1949 (Lei de Bona)
- Constituição italiana de 1947
- Constituição francesa de 1958 (grande influência ao nível do
sistema de governo)
- Constituição jugoslava de 1974 (influência em matéria
económica)
7.2. Modelo jurídico-político originário: princípios estruturantes
Sistematização/estrutura básica da Constituição:
- Preâmbulo
- Princípios fundamentais
- Parte I: direitos e deveres fundamentais
- Parte II: organização económica
- Parte III: organização do poder político
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Ana Júlia Maurício
- Parte IV: garantia e revisão da Constituição
- Disposições finais e transitórias
A ordem entre a Parte II e a Parte III traduz uma ideia de matriz marxista, em
que a estrutura económica condiciona a organização do poder político. Por isso,
primeiro está consagrada a parte relativa à Economia, só depois o poder político.
O Preâmbulo era uma síntese da justificação dos acontecimentos. Hoje em dia é
uma síntese histórica. Será que o Preâmbulo pode ser alterado em revisão
constitucional? Em 1976, o Preâmbulo era considerado critério interpretativo a
nível do conceito de Estado de Direito Democrático (a Constituição não o
consagrava). O Preâmbulo continua a consagrar o princípio socialista, que a
Constituição já não consagra.
Aspectos Inovadores da Constituição:
- Tensão entre a afirmação da ideia de Estado de Direito Democrático e do
princípio socialista, de cariz marxista em matéria económica. (Observável nos
termos do programa de governo, art. 185º nº2.) Ideia de Estado Democrático
consagrada no Preâmbulo mas não consagrada na Constituição apontava para
uma ideia de democracia ocidental. Havia o problema da transição para o
socialismo.
Teses de interpretação dos princípios em tensão:
1. São incompatíveis. É uma antinomia.
2. A transição para o socialismo estava condicionada à vontade popular.
Subordina a opção socialista a um modelo pluralista. Condiciona a opção
socialista ao respeito pela soberania popular (art. 1º). O pluralismo
prevalecia. A CRP fala em nacionalização mas também fala na garantia da
propriedade privada, por exemplo.
3. Procura condicionar a opção pluralista ao objectivo final: a transição para o
socialismo. O fim último não deve ser desviado pela vontade popular.
Nota: Contributo de Jorge Miranda no seu acolhimento da segunda tese, uma
posição moderada.
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Ana Júlia Maurício
» Conflito entre o princípio revolucionário, protagonismo militar, e o princípio
democrático, protagonismo partidário.
Na Constituição tal foi resolvido com a presença do Conselho da Revolução
(órgão de soberania de 1976 a 1982). O Conselho da Revolução tinha
competência legislativa e administrativa em matéria militar, tinha competência
política, era o garante do espírito à fidelidade dos valores e princípios da
Revolução e era o órgão com competência em matéria de fiscalização da
constitucionalidade das normas. O Conselho da Revolução só estava imposto até
à I revisão constitucional (1982). O PR era o presidente do Conselho da
Revolução. Houve um tendencial apagamento do protagonismo do Conselho da
Revolução, graças à legitimidade democrática do PR.
» Constituição mais generosa em matéria de direitos fundamentais. Durante a
elaboração da Constituição (a partir de Abril de 1975), o poder revolucionário
encontrava-se numa vertente muito radical. Limitar o poder com muitas
garantias e direitos consagrados na Constituição foi a solução encontrada.
» Princípios inovadores a nível de organização política:
- Conselho da Revolução
- Criação de um mecanismo de fiscalização do conteúdo da
constitucionalidade, através da Comissão Constitucional. Acrescentou-se à
fiscalização difusa (existente desde 1911) a fiscalização concentrada,
nomeadamente preventiva.
- Elevação dos Açores e da Madeira à categoria de regiões autónomas
(recupera-se o modelo de 1971 das províncias ultramarinas).
- Autarquias locais como poder paralelo ao poder do estado.
7.3. Revisões Constitucionais (houve sete até ao momento)
I revisão (1982):
- Propósito de extinguir o Conselho da Revolução, que foi substituído pelo
Conselho de Estado com redistribuição dos poderes do Conselho da Revolução
para o Governo e a AR.
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Ana Júlia Maurício
- Criação do Tribunal Constitucional, tendo sido extinta a Comissão
Constitucional.
- Desmarxização da Constituição.
- Redução dos poderes do PR.
II revisão (1989):
- Acentua-se a desmarxização da Constituição.
- Criação do referendo nacional.
III revisão (1992):
- Primeira revisão pautada por preocupações ditadas pela Europa, relacionadas
com a Tratado de Maastricht, que criou a EU.
IV revisão (1997):
- Atribuição do direito de voto aos emigrantes para a eleição do PR.
- Redução do número de deputados.
- Reforço do poder das regiões autónomas.
V revisão (2001):
- Relaciona-se com a criação do Tribunal Penal Internacional (Estatuto de
Roma) para permitir a sua ratificação.
VI revisão (2004):
- Ditada pela integração europeia.
- Limitação de mandatos dos titulares dos órgãos políticos.
- Nova configuração e regulação da comunicação social.
- Reforço do poder das regiões autónomas, passando o Ministro da República a
ser Representante da República.
VII revisão (2005):
- Propósito de criar o referendo para a ratificação da Constituição Europeia.
(Possível erosão constitucional?)
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Ana Júlia Maurício
7.4. Erosão do texto constitucional (Constituição não-oficial)
É possível uma mudança do sentido das normas da Constituição sem ser através
do processo formal de revisão constitucional, ou seja, sem que haja uma mudança pelos
trâmites legais. Pode ser transformada através de um poder constituinte informal, o que
apela à ideia de Constituição não-oficial. Ao lado das fontes formais de Direito, existem
fontes informais. O enunciado normativo pode não sofrer alterações mas, com o decurso
do tempo, há uma aplicação diferenciada das normas. Há uma interpretação evolutiva
das normas constitucionais. Este é um fenómeno de desenvolvimento constitucional. A
norma não sofre alterações no seu elemento literal, mas na sua interpretação e aplicação.
Um exemplo de uma Constituição que tem sofrido uma mudança no sentido das normas
é a dos EUA.
Pode haver fenómenos de transição constitucional por via informal. A transição
constitucional (é a mudança da Constituição) é um fenómeno do poder constituinte
derivado formal.
Pode é mudar-se o sentido material da Constituição sem que haja uma revisão
constitucional. Este é o cerne do problema da erosão e do desenvolvimento de uma
Constituição não-oficial com normas contra constitucionem.
Três áreas nucleares ou estruturantes da Constituição que sofreram um
fenómeno de erosão constitucional:
1. Caracterização do Estado português como Estado soberano. A Constituição,
na versão de 1976, era a de um Estado que não era membro da EU. Entretanto, com a
integração na CEE que agora é a EU, houve uma limitação da soberania dos Estados-
membros. Portugal é hoje um Estado inserido num fenómeno de integração
supranacional ou de projecção com efeitos em matéria constitucional.
Efeitos:
- Há matérias em que o Estado transferiu ou delegou poderes decisórios de
Lisboa para Bruxelas, ou melhor, do Estado português para a EU.
- Há poderes partilhados com os outros Estados-membros, o que limita o poder
decisório da AR, do Governo e das Regiões Autónomas em matéria legislativa e de
convenções internacionais.
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Ana Júlia Maurício
- Há uma preclusão do sentido decisório. Há uma limitação da liberdade
conformadora do decisor nacional. Os limites são ditados pela EU, havendo uma clara
limitação da soberania do decisor nacional. Mantém-se o poder decisório mas o sentido
é ditado pela EU.
Exemplo: Mudança do escudo para o euro. Limitação da soberania em matéria
monetária, fiscal e financeira.
Houve uma erosão da ideia de soberania. Portugal é um Estado soberano mas
com soberania limitada, partilhada no contexto da EU. A modificação do Direito
Comunitário tem ainda de ser aprovada por todos os Estados-membros. Quando puder
ser aprovada por maioria e não pela totalidade dos Estados, aí os Estados perderam a
sua soberania e a Constituição portuguesa já não será a mesma.
2. Questão do sistema de governo. O sistema de governo delineado na
Constituição é um sistema semi-presidencial ou pelo menos um sistema com forte
componente parlamentar. O Governo é responsável perante a AR, mas havendo um
protagonismo do PR, caso tal seja necessário.
A prática operou duas alterações:
- Houve uma transformação das eleições parlamentares em eleição do Primeiro-
Ministro.
- O Primeiro-Ministro tornou-se o eixo do sistema de governo e da vida política.
Houve uma transformação de um sistema semi-presidencial ou parlamentar em
sistema de presidencialismo de Primeiro-Ministro. Será que esta evolução é fruto de
uma importação do modelo britânico ou a recuperação de uma prática política da
Constituição de 1933?
3. Matéria de Constituição económica e de projecto político, que consistia numa
dinamização das relações de produção socialistas e na transição para o socialismo.
Primeiro, formou-se um costume contra constitucionem que ditou a não
transição para o socialismo e a defesa de uma economia de mercado. Depois da entrada
em vigor da Constituição de 1976, não houve mais nacionalizações.
Segundo, com a integração na EU e no mercado comum europeu, houve uma
erosão de toda a matéria económica.
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Ana Júlia Maurício
Põe-se a questão: Será que ainda está em vigor a Constituição de 1976?
Em matéria dos direitos fundamentais (Parte I) e da garantia e revisão (Parte IV),
o cerne da Constituição mantém-se.
Quanto á organização económica (Parte II) houve uma clara alteração material
da Constituição, tendo já pouco em comum com a Constituição de 1976.
Cabe a cada um avaliar e ponderar esta questão.
7.5. Projecção externa da Constituição: uma matriz constitucional portuguesa?
Três áreas nucleares de projecção externa da Constituição portuguesa:
- Foi fonte inspiradora da Constituição espanhola de 1978.
- Vários aspectos da Constituição brasileira de 1988 são influenciados pela
Constituição portuguesa.
- Influenciou o constitucionalismo vigente nos PALOP (Angola, Moçambique,
Guiné-Bissau, S. Tomé e Príncipe e Cabo Verde) e em Timor-Leste.
Há uma matriz constitucional portuguesa. Quais os critérios ou aspectos que a
caracterizam?
- O relevo dado aos direitos fundamentais e um certo esquecimento dos deveres
fundamentais. Mas será que os deveres não estão inerentes aos direitos?
- O equilíbrio ou compromisso em matéria de sistema de governo. Há a eleição
por sufrágio directo do PR e eleição indirecta do Primeiro-Ministro. Em Angola e
Moçambique há, não obstante, um maior pendor presidencialista.
- A promoção da garantia da Constituição. São constituições rígidas: há limites à
revisão constitucional, há uma fiscalização judicial da constitucionalidade, há
preocupações de internacionalização dos direitos fundamentais.
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Ana Júlia Maurício
Parte III
Constituição de 1976
Capítulo I
Identidade Constitucional
Secção I
Identidade axiológica da Constituição
Qual a identidade axiológica da Constituição? Quais os seus valores nucleares?
Que identidade revela em termos estruturais?
Os valores essenciais da Constituição são a democracia humana, o Estado de
Direito Democrático, a soberania internacionalizada e europeizada e a unidade
descentralizada.
§ 8. Democracia humana
Dois postulados da democracia humana: dignidade humana e relevância da
soberania popular, condicionada/limitada/subordinada ao respeito pela dignidade da
pessoa humana.
8.1. Dignidade humana
É pressuposto de um Estado de Direitos Humanos. Não há Estado de Direitos
Humanos sem um poder político ao serviço da dignidade da pessoa humana.
Art. 1º da CRP: A base primeira da Constituição é a dignidade da pessoa humana.
A democracia humana assenta em três regras:
- O poder deve estar ao serviço da protecção dos mais fracos e doa mais débeis.
- O poder como garante da prevalência do ser sobre o ter, ou seja, das pessoas
sobre as coisas.
- O poder é exercido pelos governantes ao serviço do bem-comum dos
governados (ideia de St. Agostinho).
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Ana Júlia Maurício
8.2. Soberania popular
Pressupostos da democracia humana:
1. Relação entre pluralismo e tolerância. A CRP é uma Constituição que aposta
numa democracia pluralista. Há uma pluralidade de partidos políticos, uma
alternância governativa, existe oposição e há direitos da oposição, há um
sistema de representação proporcional, há uma natureza representativa nos
órgãos de soberania e do poder nas Regiões Autónomas, há pluralismo e
democraticidade na legitimação dos titulares dos órgãos autárquicos e
universitários.
2. Prossecução do bem comum. Ideia de que o poder é um serviço e não uma
regalia. Ideia de que há a prossecução do bem público.
3. Independência dos tribunais. Não há democracia humana sem que haja a
independência dos tribunais. Não estão sujeitos a instruções do poder
político nem a pressões da opinião pública.
4. Subordinação ao Direito/ à jurisdicidade. Como afirmou Aristóteles, “O
poder é o governo das leis” e não o governo dos homens. O poder está
limitado pelo Direito. Se não estiver, a sua conduta é ilegal. Para tais
condutas, a resposta é dada pelos tribunais.
5. Reversibilidade da auto-vinculação. Não há decisões imodificáveis, com a
excepção da sentença transitada em julgado. Podem existir ainda
circunstâncias que ponham em causa o caso julgado.
6. Legitimidade política dos titulares do poder legislativo e
executivo/administrativo. Esta legitimidade traduz o cerne da relevância da
vontade popular (art. 1º da CRP). A vontade popular é a consequência da
igual dignidade. Há uma igual dignidade na participação política.
7. Responsabilidade dos governantes perante os governados ou seus
representantes. Não há democracia humana sem responsabilidade dos
titulares dos órgãos por aquilo que fazem e aquilo que não fazem.
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Ana Júlia Maurício
8.3. Será que Portugal é um Estado de Direitos Humanos?
Sim, à luz da Constituição.
A Constituição preenche os dois critérios ou as duas condições necessárias:
- Respeito pela dignidade da pessoa humana e defesa da cultura de vida através
da inviolabilidade da vida humana consagrada no art. 24º.
Teoricamente, Portugal é um Estado de Direitos Humanos. No entanto, na
prática não é um total Estado de Direitos Humanos.
Será que ainda somos um Estado de Direitos Humanos? Há algumas dúvidas:
- No Direito Penal, se os crimes patrimoniais são mais severamente
penalizados/punidos que os crimes contra as pessoas, tal mostra que o ser não prevalece
sobre o ter, o que quer dizer que as coisas teriam maior protecção do que as pessoas. Tal
engloba o problema do aborto até às 10 semanas.
- Definição de linhas políticas em que prevalecem, por exemplo, a construção de
estádios ao invés da construção de hospitais.
- Opções orçamentais/financeiras, nomeadamente na distribuição de verbas. Por
exemplo, o privilégio de uma política de defesa em detrimento de uma política social,
principalmente quando não há qualquer ameaça real à segurança.
A matéria em torno da concretização do Estado de Direitos Humanos a nível do
direito ordenado é relevante para se avaliar da sua existência ou não, a nível material.
§ 9. Estado de Direito Democrático
9.1. Origem do Estado social em Portugal
Entre 1976 e 1982, o conceito de Estado de Direito Democrático não resultava
do texto articulado da Constituição. Resultava do preâmbulo. Com a revisão
constitucional de 1982, o art. 2º passou a consagrar a ideia de Estado de Direito
Democrático.
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Ana Júlia Maurício
Porquê não falar em Estado social na CRP?
A doutrina tinha desenvolvido, sobre a égide da Constituição de 1933, a ideia de
que essa Constituição era uma constituição de Estado social. Assim, para a
diferenciarem da de 1933, os constituintes de 1975-1976 usaram a denominação de
Estado de Direito Democrático. Uma curiosidade acerca da expressão estado social. O
seu autor foi Afonso Queiró, professor da Universidade de Coimbra, para se referir às
fontes de Direito da Constituição de 1911.
O conceito de Estado de Direito Democrático surge como forma do Estado
social mais evoluído.
Ideias nucleares na base do Estado de Direito Democrático: Pluralismo,
Jurisdicidade e Bem-estar.
9.2. Princípio pluralista
Tem diversas manifestações:
- Respeito e garantia dos direitos fundamentais.
- Legitimidade política do decisor ou dos titulares do poder
- Envolve a organização da administração pública. Não há uma administração
pública em Portugal, há várias.
- Participação de todos na decisão política. Tal não se esgota na ideia de
democracia participativa (art. 2º da CPR).
9.3. Princípio da jurisdicidade
O poder está submetido não apenas ao direito que produz através da sua
legitimidade democrática, autovinculando-se, mas está também vinculado a normas e
princípios que transcendem esse poder, sendo esta uma heterovinculação do poder. O
princípio da jurisdicidade está subjacente ao Estado de Direito material.
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Ana Júlia Maurício
Importância dos tribunais como últimos guardiães/garantes da jurisdicidade. O
art. 204º da CRP tutela a fiscalização difusa da Constituição, o que implica que os
tribunais não podem aplicar normas que infrinjam a Constituição e os princípios nela
consagrados.
9.4. Princípio do Bem-estar
O bem-estar é uma tarefa fundamental do Estado (art. 9º da CRP). Os direitos
sociais são consagrados na cláusula de bem-estar que envolve uma acção positiva por
parte do Estado, relativamente ao qual todos os órgãos estão empenhados a legislar, a
desenvolver e a aplicar a cláusula de bem-estar. Pela Administração Pública passa o
êxito da cláusula de bem-estar. O êxito ou não desta cláusula depende mais da acção da
Administração Pública do que da acção legislativa (Estado como refém da
Administração Pública). Os serviços da Administração Pública estão vinculados a um
princípio de continuidade. Enquanto os parlamentos e os tribunais encerram para férias,
os serviços administrativos não. Ao Tribunal Constitucional compete-lhe verificar a
inconstitucionalidade por omissão (falta de medidas legislativas que cumpram o
expresso na Constituição, designadamente em matéria de bem-estar).
§ 10. Soberania internacionalizada e europeizada
À luz da actual Constituição, Portugal é uma república soberana (art. 1º e art.
288º a).
10.1. Manifestações
1. Portugal não é nem pode ser um Estado submetido a outro Estado. Seria
inconstitucional que Portugal se transformasse num estado federado. Se a EU evoluir
para uma estrutura de tipo federal, qualquer alteração da Constituição portuguesa fará
nascer uma nova Constituição. Para Portugal se tornar um Estado federado no âmbito da
EU teria de se elaborar uma nova Constituição.
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Ana Júlia Maurício
Portugal é um Estado soberano limitado pelo Direito Comunitário e pelo Direito
Internacional.
Quando se transformará a UE num Estado Federal?
Para se proceder a qualquer alteração ao direito primário da EU (tratados
constitutivos ou modificativos da EU: exemplo, Tratado de Lisboa, que está agora em
discussão) tem de haver concordância de todos os países membros. Os Estados são
ainda donos dos tratados. Quando uma maioria de Estados possa aprovar alterações ao
direito primário da EU e impor essas alterações aos Estados, que não as aprovaram, a
EU passa a ser uma União Federal à semelhança dos EUA (só precisam de maioria de
3/4).
2. Porque Portugal é um Estado soberano, o seu Direito interno ou ordinário tem
primado sobre convenções internacionais, ou melhor, paridade de grau hierárquico.
Uma lei tem tanto valor quanto tem um tratado ou acordo internacional. Salvo:
- Quando esteja em causa Direito Comunitário.
- Quando a própria Constituição portuguesa reconheça uma força jurídica
especial superior a essa convenção.
3. Portugal, enquanto república soberana, rege-se, no âmbito das relações
internacionais, pelo princípio da independência nacional (art. 7º CRP).
Duas razões:
- Necessidade de subsistência do Estado. Não é possível alienar qualquer parcela
do território nacional ou dos seus direitos de soberania. Exemplo: Portugal não pode
conceder a Espanha o direito de vigiar a ZEE.
- A Constituição impõe um imperativo dinamizador do poder político, que não
pode estar condicionado, salvo quando a Constituição o permita.
10.2. Principais limitações
1. Respeito que a Constituição impões pelas normas imperativas do Direito
Internacional, ius cogens, que é direito geral imperativo para todos os Estados.
Art. 8º, nº 1, da CRP: “As normas e os princípios de Direito Internacional geral
ou comum fazem parte integrante do Direito Português.” As normas de ius cogens não
49
Ana Júlia Maurício
podem ser afastadas pelo Direito português; estão numa situação superior à
Constituição.
2. Art. 7º, nºs 5 e 6 (matéria da EU) estabelece uma cláusula de empenhamento
de Portugal na construção da EU que se explicita em três fenómenos:
- Possibilidade de poderes soberanos do Estado serem transferidos ou delegados
para a EU (limita a soberania nacional).
- Princípio de colaboração e solidariedade do Estado Português no âmbito da EU
(Portugal tem de respeitar as normas provenientes da EU, nomeadamente os seus fins e
conteúdo.).
Mesmo nos casos em que o poder de decisão pertença a Portugal, este tem de
respeitar os princípios e normas da EU. O sentido e o conteúdo da decisão não pode
contrariar o sentido geral das normas comunitárias, há um dever de execução legal.
Isto evidencia o primado do Direito Comunitário.
3. Art. 7º, nº 6. Segundo a cláusula de salvaguarda:
- Exige-se a reciprocidade.
- Exige-se o respeito pelos princípios fundamentais do Estado de Direito
Democrático.
- Exige-se o respeito pelo princípio da subsidiariedade.
§ 11. Unidade Descentralizada
Portugal é um Estado unitário e não composto (art. 6º).
11.1. Unidade, forma de Estado e princípio da constitucionalidade
A. Proibição de Portugal se tornar, unilateralmente, um Estado Federado (art.
288º a), limite material da revisão constitucional).
Há um único centro de poder político.
Os estatutos das Regiões Autónomas são uma lei da AR, não são uma
Constituição, não são um acto das Regiões Autónomas.
50
Ana Júlia Maurício
B. Princípio da constitucionalidade
A Constituição é o acto mais importante do Estado e subordina todos os demais
actos do Estado (art. 3º, nº 3).
Compete aos tribunais a fiscalização da constitucionalidade (art. 204º).
O princípio da constitucionalidade é um garante do Estado, uma garantia da
unidade do próprio Estado.
O Representante da República nas Regiões Autónomas tem o poder de solicitar
ao TC a fiscalização da constitucionalidade dos diplomas provenientes das Regiões
Autónomas (art. 281º, nº 2, g).
O PR tem o poder para desencadear a dissolução das Assembleias Legislativas
das Regiões Autónomas (art. 234º, nº1).
As autarquias locais podem, também, ser objecto de dissolução por prática de
actos inconstitucionais (art. 242º, nº 3).
Manifestações da unidade do Estado:
1. O Estado não tem criador sem ser ele próprio: tem poder originário e não
poder derivado. As Universidades, Regiões Autónomas, etc. têm poderes
delegados pelo Estado. O Estado não depende do poder de ninguém.
2. Os órgãos de soberania são únicos para todo o território (PR, AR, Governo e
tribunais).
3. Existência de interesses colectivos de toda a Nação que prevalecem face a
interesses locais, regionais ou sectoriais. O Estado tem poderes de
intervenção em todos os outros organismos públicos. O interesse estadual
prevalece face ao infra-estadual.
11.2. Unidade, interesse nacional e prevalência do Direito do Estado
Todo o fenómeno de descentralização está limitado pelo princípio da unidade, ou
seja, o princípio da unidade limita o princípio da descentralização.
A. Reserva constitucional de poderes a favor do Estado. Há poderes
que a Constituição reserva a favor do Estado. Exemplo: a função
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Ana Júlia Maurício
jurisdicional é reserva do Estado. A competência legislativa
reservada da AR e do Governo são da reserva do Estado.
B. Particularidade do Direito estadual: condiciona a autonomia das
entidades infra-estaduais. Todo o direito infra-estadual tem de
estar em concordância com o direito estadual. A prevalência do
direito do Estado faz com que as suas normas tenham uma
primazia de aplicação face às normas provenientes de entidades
infra-estaduais. As normas infra-estaduais contrárias às normas
constitucionais são inválidas. Quem as verifica? Os tribunais, que
são órgãos do Estado.
11.3. Unidade e supletividade do Direito do Estado
Há um ordenamento comum a nível nacional. O Estado tem normas para cobrir
o território nacional, todos os sectores de actividade.
Como é que isso se compatibiliza como princípio da supletividade (art. 6º)?
Princípio/cláusula da supletividade do Direito do Estado. O Estado pode sempre emanar
normas sobre sectores a cabo de entidades infra-estaduais, que não estão impedidas de
elaborar normas sobre esse sector.
Art. 227º d): há dois tipos de competência regulamentar:
- Respectiva legislação regional.
- Faculdade de regulamentar as leis da República quando essas leis não reservem
para o Governo da República esse poder de regulamentar.
O regulamento que o Governo fizer será aplicado na Região Autónoma enquanto
esta não fizer o seu regulamento (princípio da supletividade, art. 228º, nº 2). Perante as
lacunas do regulamento da Região Autónoma esta é feita pelo regulamento da
República.
Isto passa-se em relação aos demais órgãos infra-estaduais.
11.4. Unidade e subsidiariedade (patente na Doutrina Social da Igreja)
A unidade é uma unidade em respeito pelo princípio da subsidiariedade (patente
na Doutrina Social da Igreja).
52
Ana Júlia Maurício
A. Tudo o que a sociedade civil possa fazer no campo sócio-económico não
deve ser assumido pelo Estado. O Estado deve fazer tudo o que a sociedade civil não
possa ou não faça eficazmente. Tal implicará uma redução e justificação da intervenção
do Estado.
B. Relação entre o Estado e as demais entidades públicas. A Constituição (art.
6º, nº 1) consagra que respeita o princípio da subsidiariedade. O Estado só deve intervir
face àquilo que as demais entidades públicas não façam.
Pode existir a colisão do princípio da igualdade (exige a intervenção estatal) com
o princípio da subsidiariedade (autonomia própria de cada sector). O que deve
prevalecer? O princípio da igualdade é mais importante que o da autonomia.
11.5. Unidade e descentralização
A unidade é feita no âmbito da subsidiariedade, tal como a unidade e a
descentralização.
Art. 267º, nº 2: É a unidade que limita a descentralização e não a
descentralização que condiciona a unidade. O sistema português diz que a
descentralização é feita sem prejuízo da eficácia da administração pública.
Secção II
Identidade estrutural da Constituição
§ 12. Constituição compromissória
A ideia da Constituição compromissória envolve três compromissos:
1. Genético: quanto à origem, feitura da Constituição.
2. Perspectiva normativista.
3. Matéria aplicativa.
São todos consequência de um compromisso anterior. Os compromissos estão
interligados.
53
Ana Júlia Maurício
1. Compromisso genético
- A Constituição assenta num compromisso entre legitimidade revolucionária
(protagonizada pelos militares) e a legitimidade democrática (protagonizada pelo
poder civil e pelos partidos políticos). Esse compromisso é ainda hoje visível no
monopólio dos partidos políticos a apresentar candidatura para a AR (era um
modo de limitar a legitimidade revolucionária e aceder à AR).
- Compromisso entre economia de carácter marxisante e economia de mercado.
Compromisso entre dois modelos de mercado. A CRP garantia a apropriação
colectiva dos principais meios de produção e dinamização de relações de
produção socialistas, ao mesmo tempo que garantia a iniciativa económica
privada, a propriedade privada e um sector privado dos meios de produção.
- Compromisso entre Estado de Direito Democrático e Estado em transição para
o socialismo (matriz de leste). Compromisso entre uma matriz de ocidente e uma
matriz de leste.
- Compromisso entre o modelo organizativo funcional de 1933 e a ideia da
dinâmica revolucionária socialisante de 1976.
- Compromisso entre um sistema governativo parlamentar e um PR dotado de
legitimidade democrática e com poderes de intervenção em termos políticos.
2. Compromisso Normativo (compromissos entre normas)
Entre princípios concorrentes em duas ópticas:
1. Princípios concorrentes em termos alternativos (ou x ou y).
A CRP continua a consagrar o princípio de apropriação colectiva dos
meios de produção (art. 80º) e consagra também o princípio da
reprivatização dos meios de produção (art. 165º). Não é possível, ao
mesmo tempo, nacionalizar e privatizar. São princípios concorrentes
alternativos. Compromisso de passado de matriz intervencionista e
presente de matriz neoliberal, que aponta para a necessidade de
reprivatizar.
2. Concorrência de princípios coexistentes (ambos têm de coexistir, de
ser aplicados: x e y)
A CRP consagra os princípios da unidade e da descentralização. A
unidade é um elemento limitativo da subsidiariedade e da
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Ana Júlia Maurício
descentralização. Nenhum princípio suprime o outro, ambos têm de
coexistir numa medida de equilíbrio definida pelo legislador.
Interesse público e posições políticas subjectivas dos administrados.
Equilíbrio e coexistência. Nenhum pode ser prosseguido em termos
absolutos.
Matéria de direitos fundamentais: a liberdade de informação não pode
sacrificar a reserva da vida privada nem vice-versa.
Compromisso entre normatividade oficial ou formal e normatividade
não-oficial ou informal. Compromisso entre normatividade de fonte
interna ou de fonte europeia ou internacional.
Nestes casos, tem de haver um equilíbrio entre ambos os princípios.
Compromisso normativo coexistencial.
3. Compromisso Aplicativo
Necessidade, quando está em causa a aplicação de normas da CRP, de se
ponderar, em termos aplicativos, os bens, os valores, os interesses em causa e saber a
dimensão da sua tutela constitucional.
Ponderação aplicativa em concreto: saber se esses bens têm ou não tutela
constitucional. Os bens com tutela constitucional prevalecem face aos demais. No caso
de ambos terem tutela constitucional, há que ver se essa tutela é do mesmo nível. Se são
bens intimamente ligados à dignidade da pessoa humana, prevalecem. Procede-se,
assim, a uma hierarquização dos bens em questão. Se ambos os bens têm tutela
constitucional, ainda que um tenha maior tutela que o outro, há que procurar que a
aplicação de um não conduza à supressão da relevância constitucional do outro. A isto
chama-se concordância prática equitativa ou desnivelada.
Esta concordância prática equitativa ou desnivelada é fulcral na temática dos
direitos fundamentais. Cada direito fundamental produz sempre efeitos colaterais no seu
relacionamento com ou na esfera de outros direitos fundamentais. Nem a vida humana é
um direito absoluto. Veja-se o caso da legítima defesa.
A Constituição, no seu art. 282º, nº4, consagra um compromisso: uma norma
tem que ser conforme com a Constituição. O art. permita ao TC que pondere razões de
segurança, equidade, interesse público de excepcional relevo para as opor a razões de
55
Ana Júlia Maurício
constitucionalidade. Tal pode implicar que uma norma inconstitucional seja aplicada
por razões de segurança, equidade ou interesse nacional de excepcional relevo.
Interdependência de poderes através do sistema de freios e contrapesos
consagrados na Constituição é uma manifestação do compromisso orgânico. O
legislador legisla, a administração aplica a lei, aos tribunais cabe fiscalizar o modo
como o legislador e a administração aplicam a respectiva lei.
§ 13. Constituição aberta
Pode-se dizer que a Constituição é aberta em quatro acepções. Aberta em
termos:
- estruturais,
- normativos,
- políticos,
- interpretativos.
13.1. Abertura estrutural
A Constituição tem um carácter falível e reversível, na medida em que não é um
produto histórico fechado, é, sim, um projecto se sociedade dinâmico. A Constituição
está aberta à modificação.
No interior da Constituição (art. 1º), é apontada uma meta que revela a sua
abertura. Essa meta, reveladora de dinamismo, é a construção de uma sociedade mais
justa, mais livre e mais solidária.
A Constituição é sempre um projecto incompleto, pois está sujeito aos resultados
do exercício da autonomia política. A Constituição não é um conjunto de normas
fechadas. São normas abertas à autonomia política de concretização das normas
constitucionais.
56
Ana Júlia Maurício
Há uma constante procura de legitimação da Constituição pelas gerações futuras.
Será que os limites materiais à revisão da Constituição não são uma imposição das
gerações do passado às gerações do futuro?
13.2. Abertura normativa
A Constituição demonstra a possibilidade de estar aberta à recepção de outras
normas. A Constituição recepciona, acolhe e integra:
- Uma cláusula de recepção do Direito Internacional Público Comum (art. 8º, nº
1 e 29º, nº2).
- Uma cláusula de recepção do Direito Comunitário da EU (art. 8º, nº 4).
- Uma cláusula habilitante da recepção do Estatuto de Roma, que instituiu o
Tribunal Penal Internacional (art. 7º, nº 7).
- Uma cláusula de abertura em matéria de direitos fundamentais ao ius cogens,
especificamente à DUDH (art. 16º).
- Uma cláusula de recepção dos princípios cooperativos (art. 61º, nº2).
- Uma cláusula da normatividade informal, relevância autónoma da
normatividade não-oficial que pode inverter o sentido das normas.
13.3. Abertura política
A abertura política da Constituição apresenta várias manifestações:
A. Através da alternância democrática (manifestação do princípio republicano,
que implica o fim da hereditariedade).
A alternância democrática manifesta-se:
- na realização periódica de eleições.
- na limitação dos mandatos ( O PR não pode ser reeleito mais do que uma vez
em termos sucessivos.). A acumulação de mandatos sucessivos condiciona a
alternatividade democrática e pode conduzir à distorção do princípio republicano.
57
Ana Júlia Maurício
B. A abertura à liberdade conformadora do legislador traduz-se através
do princípio maioritário. Zagrebelski considera que um dos elementos da democracia
consiste na reversibilidade das suas decisões, tudo é objecto de crítica, de modificação.
C. Margem de liberdade da lei que não é regulada pelos tribunais, a não ser que
desrespeite a Constituição.
- O legislador tem competência dispositiva, para disciplinar as matérias, e
competência revogatória, para revogar aquilo que havia sido disciplinado.
- Temática do retrocesso jusfundamental.
D. Abertura à participação ao nível da decisão legislativa e da decisão
administrativa.
- Temática da legitimação das decisões pelo procedimento. Qual o procedimento
das decisões?
13.4. Abertura interpretativa
Há uma pluralidade de intérpretes da Constituição. Todos os tribunais
interpretam a Constituição (fiscalização difusa, art. 204º). O legislador quando faz uma
lei sabe que tem que respeitar a Constituição, isto é, também, interpreta a Constituição.
A administração tem de interpretar a Constituição para a sua aplicação (art. 18º, nº 1).
As entidades privadas também têm que interpretar a Constituição (art. 18º, nº 1). A
Doutrina ao resolver hipóteses, ao estudar, interpreta a Constituição. Assim, há uma
abertura aos intérpretes da Constituição.
Exemplo: A abertura interpretativa da Constituição manifesta-se na limitação
dos mandatos dos juízes do TC. Há uma renovação do intérprete último da Constituição
com a inerente possibilidade de alteração da jurisprudência.
Interpretação evolutiva/actualista da Constituição. A Constituição não é um
texto fechado, tem que ter em conta o tempo actual.
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Ana Júlia Maurício
Limites à abertura da Constituição:
A. A Constituição não é flexível, logo, não está sujeita a lei ordinária que
modifique a Constituição. Há limites de revisão constitucional.
B. Fiscalização da Constituição. As normas que sejam elaboradas em sentido
contrário à Constituição não a revogam. São inconstitucionais tanto as
normas que violam por acção como por omissão.
C. Respeito pelos princípios de Estado de Direito Democrático quanto à
recepção do Direito Comunitário (art. 8º, nº 4). O Direito da EU, para ser
recebido na ordem jurídica portuguesa, tem que respeitar os princípios do
Estado de Direito Democrático.
D. Tutela penal/criminal dos atentados políticos contra a Constituição. Quem
comete crimes contra as instituições da Constituição cai sob a alçada do
direito penal político.
§ 14. Constituição transfigurada
Factores da transfiguração da Constituição:
1. O decurso do tempo e o surgimento de uma factualidade subversiva
(normatividade não-oficial).
2. A intervenção dos partidos políticos faz com que, em certas áreas, os
partidos políticos possam dizer que o Estado são eles.
3. A integração europeia e o seu aprofundamento.
4. O peso da herança histórica do Estado Novo.
Manifestações da transfiguração. O que é que hoje tem uma configuração
diferente da que tinha inicialmente?
1. Desactualização da Constituição económica por uma prática reiterada
contrária e pela dinâmica económica europeia depois da integração na CEE.
2. Subversão do sentido das eleições parlamentares, isto é, a escolha de um
Primeiro Ministro transformou-se na motivação principal nas eleições
legislativas, passando a escolha dos deputados para segundo lugar.
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Ana Júlia Maurício
Há um sistema de governo não oficial , o de presidencialismo de Primeiro
Ministro (Herança da Constituição de 1933 ou importação do modelo
britânico?)
3. Estado de partidos transfigurado em Estado do partido governamental.
4. Erosão da soberania e a diluição do poder constituinte no âmbito do espaço
da EU. A soberania nacional do poder constituinte é hoje condicionada pelas
decisões e evolução da EU.
Capítulo II
Organização do Poder Político
Secção I
Poder político formal: princípios fundamentais
§ 15. Princípio da separação e interdependência de poderes
- Este princípio está consagrado no art. 111º, nº1.
- A Constituição não tem visão rígida da separação de poderes. O princípio da separação
de poderes acolhe dois contributos:
- O contributo francês, separação rígida. Os tribunais não pode controlar a
constitucionalidade das leis, pois, se o fizessem, estariam a interferir na esfera do poder
legislativo.
- O contributo dos EUA, separação com interdependências. Sistema de pesos e
contrapesos. Há um pouvoir de estatuer e um pouvoir d’empêcher.
Em matéria legislativa, na Constituição:
- O poder de estatuir é confiado à AR e ao Governo.
- O poder de impedir é confiado ao PR e ao TC.
Em matéria administrativa, na Constituição:
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Ana Júlia Maurício
- O poder de estatuir é confiado ao Governo e às restantes estruturas da Administração.
- Aos tribunais administrativos e fiscais é confiado o poder de controlar a legalidade de
actuação da Administração.
Em matéria judicial, na Constituição:
- O poder de estatuir cabe aos tribunais.
- Os tribunais estão subordinados à lei. A lei define a extensão dos seus poderes. Há
uma interdependência a nível judicial, tendo os tribunais que respeitar a lei e a
Constituição. A Constituição define a estabilidade e a permanência do caso julgado.
- Princípio que proíbe a violação da separação de poderes (art. 111º) e a violação de
normas orgânicas. As normas que violassem tais princípios padeceriam do vício da
usurpação de poderes. Quando um órgão invade a competência do outro, isso
desrespeita o princípio da separação de poderes e constitui uma usurpação de poderes. A
violação do princípio da separação de poderes viola o princípio material do art. 111º e é
uma norma viciada de inconstitucionalidade orgânica.
- Não é possível delegar poderes, excepto nos casos em que uma norma o especifique. É
necessária uma norma habilitante. Só a Constituição é fonte habilitante dessa delegação
de poderes. Se o poder de um órgão provém de lei, só uma lei o habilita a delegar. O
que se aplica em matéria de delegação também se aplica em matéria de substituição (art.
111º).
- Dimensão vertical ou territorial da separação de poderes (art. 6º). Há uma aplicação
dos princípios da autonomia, da subsidiariedade e da descentralização.
§ 16. Princípio da responsabilidade
16.1. Formulação: Princípio da responsabilidade dos titulares dos cargos políticos (art.
117º, nº 1).
1. Todos os titulares dos órgãos políticos respondem pelos seus actos, ou melhor,
pelas acções e omissões que pratiquem no exercício das respectivas funções.
61
Ana Júlia Maurício
Quem exerce o poder deve prestar contas do modo como exerce esse poder. Esta
é uma exigência do princípio democrático. A democracia humana exige a
responsabilização dos titulares dos órgãos políticos. Não há democracia quando
os titulares do poder não são responsáveis.
2. Há uma limitação ao exercício do poder, que não pode ser exercido
arbitrariamente.
3. O poder é um serviço para a comunidade em benefício da comunidade. Ideia de
prestação de uma utilidade à comunidade (Concepções de Santo Agostinho:
poder como um serviço.).
16.2. Manifestações
Para além das situações tuteladas no art. 117º, nº 1:
- Responsabilidade política. É uma consequência da legitimação democrática do
respectivo titular. Excepção: os juízes não respondem politicamente.
Há dois tipos de responsabilidade política:
- Responsabilidade política concentrada: responsabilidade perante um órgão.
Exemplo: o Governo é responsável perante a AR (arts. 190º e 191º)
- Responsabilidade política difusa: responsabilidade perante a opinião pública.
Exemplo: PR, deputados perante a opinião pública, o eleitorado. Como se manifesta?
Por exemplo, o PR recandidata-se e não é reeleito. Esta é a efectivação da
responsabilidade política difusa.
- Responsabilidade civil. É uma responsabilidade patrimonial. Quando alguém age e
causa dano/prejuízo a alguém é obrigado a indemnizar o dano provocado no âmbito de
lesão patrimonial (art. 22º CRP, Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro).
Como se manifesta a ideia de responsabilidade civil (art. 22º)? Quando qualquer titular
pratica um acto/omissão e dela resultam danos, é possível pedir uma indemnização.
Essa indemnização pode ser pedida a três destinatários:
- à entidade pública que lesou a pessoa em causa » responsabilidade colectiva.
- ao titular do respectivo órgão » responsabilidade pessoal
62
Ana Júlia Maurício
- a ambos entidade pública e titular do respectivo órgão » princípio da
solidariedade da responsabilidade civil
Será que a Lei nº 67/2007 respeitou o princípio da solidariedade? Essa Lei prevê
responsabilidade no exercício da função política, administrativa e judicial por condutas
ilícitas e por danos causados, independentemente da licitude do acto.
- Responsabilidade financeira (art. 24º, nº 1 c). Esta responsabilidade efectiva-se perante
o Tribunal de Contas. Ela engloba o modo como é gerido o dinheiro público. Quem gere
o dinheiro público é responsável pela forma como o gere (Lei de enquadramento
orçamental e Lei sobre a organização e processo do Tribunal da Contas).
- Responsabilidade criminal (Lei nº 34/87, de 16 de Julho tutela a responsabilidade
criminal dos titulares de cargos políticos). Há determinado tipo de condutas dos titulares
de órgãos políticos que a Lei Penal tipifica como crimes:
- Responsabilidade criminal do PR (art. 130º da CRP): há uma diferença entre
crimes praticados no exercício das respectivas funções (exemplo: traição à pátria) e os
crimes que não são praticados no exercício das respectivas funções (responsabilidade
depois do mandato).
- Responsabilidade criminal do Governo (art. 196º da CRP).
- Responsabilidade disciplinar. Os juízes estão sujeitos a um poder disciplinar exercido
pelo Conselho Superior da Magistratura (art. 217º, nº 1).
16.3. Excepções: casos em que a Constituição afasta a responsabilidade.
1. Art. 157º: os deputados não respondem em termos civil, criminal ou
disciplinar pelas suas opiniões ou votos que emitem no exercício das suas funções.
Excepção ao art. 22º: se alguém sofre danos por causa de lei da AR não pode intentar
acção de responsabilização de quem votou essa lei. Há uma limitação do âmbito da
solidariedade da obrigação emergente do art. 22º.
2. Art. 216º: os juízes não podem ser responsabilizados pelas respectivas
decisões. Este é o princípio da irresponsabilidade dos juízes. Salvas as excepções
consignadas na lei:
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Ana Júlia Maurício
- A Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro consagra, nos arts. 12º e 13º, situações
de responsabilidade dos juízes pela prática de actos no âmbito das suas funções, quando
as decisões sejam manifestamente inconstitucionais, ilegais ou haja erro grosseiro. Será
esta uma responsabilidade de tipo pessoal ou colectivo?
§ 17. Restantes princípios constitucionais
17.1. Princípio da equiordenação dos órgãos de soberania.
Todos os órgãos de soberania estão ao mesmo nível/grau hierárquico. Não há
hierarquia entre eles. Todos os órgãos de soberania são titulares de parcelas da
soberania.
Excepções:
1. O art. 205º, nº 2, estabelece que as decisões dos tribunais prevalecem
sobre as de quaisquer outras autoridades. As decisões dos tribunais têm
prevalência face às decisões de outros órgãos de soberania. Os
tribunais têm a última palavra em termos de aplicação e interpretação
da Constituição.
2. Limitações que decorrem das regras da responsabilidade política. O
Governo é responsável politicamente perante a AR e não vice-versa. O
Governo tem responsabilidade institucional perante o PR e não o
inverso.
As regras da responsabilidade política limitam o princípio da equiordenação.
17.2. Princípio da solidariedade e cooperação institucional
Entre os órgãos de soberania existem regras de lealdade e de comportamento
interno e externo. Essas regras tornam inadmissível que, em termos públicos, um titular
de um órgão de soberania critique sem cortesia, desrespeitando as regras da
solidariedade, outros titulares de órgãos de soberania.
Entende-se que há quebra de solidariedade e de lealdade, se, por exemplo:
64
Ana Júlia Maurício
- um Ministro criticar publicamente o Primeiro-Ministro (art. 189º) ou os
respectivos colegas de Governo. Os membros do Governo são solidários.
- os Ministros e o Primeiro-Ministro criticarem publicamente o PR, pois a
responsabilidade institucional é do Governo para com o PR.
- o PR criticar publicamente as decisões dos tribunais, designadamente do TC.
Há cooperação institucional entre as regiões autónomas face ao poder central.
O princípio da solidariedade e da cooperação envolve deveres de acção e de
abstenção (comportamentos de não agir).
17.3. Princípio da renovação ou da não perpetuidade
Não há cargos vitalícios. Ninguém exerce o poder até à morte, como critério.
Todos os mandatos são limitados temporalmente. Tal enforma o princípio da renovação
dos mandatos. Exemplos:
- O PR não pode ser reeleito mais do que uma vez, em termos sucessivos.
- Juízes do TC: o seu mandato tem a duração de nove anos e não é renovável
(art. 222º, nº 3).
Excepção: os ex-PRs são titulares vitalícios do Conselho de Estado (art. 142º f).
17.4. Princípio da prossecução do interesse geral
Age-se em proveito do interesse da colectividade e não em nome do interesse
particular, individual ou partidário.
17.5. Princípio da vinculação à Constituição
Deveres:
- Não violar a Constituição, ou seja, não agir contra a Constituição.
- Defender a Constituição, ou seja, agir em defesa da Constituição.
65
Ana Júlia Maurício
- Implementar/efectivar/realizar na prática a Constituição.
Secção II
Poder político formal: estruturas organizativas da República
1ª Subsecção
Órgãos de soberania
§ 18. Presidente da República
Conceitos:
- Decreto (art. 136º) é o diploma legislativo, o acto legislativo ou acto de revisão
constitucional quando já foi aprovado pelo órgão legislativo (AR ou Governo). É o
diploma legislativo antes da promulgação, é um acto precário a promulgar.
- Legislatura é o período de funcionamento da AR entre duas eleições para o
parlamento. A sessão legislativa é o período anual de funcionamento da AR.
Nos arts. 136º e 278º são referidos prazos para a promulgação, para o veto. Como se
devem contar esses prazos? Os prazos contam-se seguidamente (incluindo os fins-de-
semana); são dias de calendário e não dias úteis.
Tal como na Constituição de 1933, na Constituição de 1976 o PR está à cabeça dos
órgãos de soberania. Porém, pelo menos a partir de 1987, o verdadeiro órgão de
soberania ou o verdadeiro órgão central do sistema é o Governo, de acordo com a
Constituição não-oficial.
A Constituição de 1976 afastou-se da de 1933 em relação à designação deste órgão de
soberania. A Constituição de 1976 chamou-o de PR e a de 1933, influenciada pelas
Constituições monárquicas, chamava-o de Chefe de Estado. De todo o modo, o PR é,
primeiramente, chefe do Estado português.
Problemas em relação ao conteúdo dos poderes do PR:
66
Ana Júlia Maurício
- O PR era presidente do Conselho da Revolução e tinha uma parcela de poder
moderador. Com a revisão constitucional de 1982, de grande importância, o Conselho
da Revolução foi extinto e os seus poderes foram distribuídos pelos diversos órgãos,
nomeadamente a AR e o Governo. O PR ficou com menos poder em relação à demissão
do Governo (art. 195º) mas, ao mesmo tempo, houve um alargamento dos seus poderes
em relação à dissolução da AR (PR pode dissolver “livremente” a AR; art. 172º).
Aquando da maioria absoluta obtida por Cavaco Silva como Primeiro-Ministro em
1987, houve uma transformação do sistema de governo em sistema parlamentar de
gabinete. Houve, assim, um apagamento dos poderes do PR que se mantém.
Há uma regularidade dos actos eleitorais, também promovida pelo PR.
18.1. Estatuto e eleição (arts. 120º a 140º)
1. Três funções do PR:
- Representa a república, a comunidade política; promove a integração política e
a unidade cultural e funcional. É chefe de estado.
- Promove a garantia da Constituição, faz cumprir a Constituição. De acordo
com Carl Schimdt, o chefe de estado é o guardião da Constituição. Na Constituição
portuguesa, o PR é um dos guardiães da Constituição, aliado aos tribunais,
nomeadamente o TC.
- Tem funções de controlo:
- O PR tem poderes de crise, exercidos em casos extremos ou situações
anómalas. São funções de reserva da República (em 2004, aquando da
dissolução da AR pelo PR, Jorge Sampaio).
- O PR não governa, não desempenha funções governativas (poder
negativo). Desempenha funções políticas mas não desenvolve funções
governativas. Alguns dos poderes do PR têm grande influência nos órgãos
governativos.
2. O PR é um órgão de soberania (art. 110º).
67
Ana Júlia Maurício
O PR é um órgão singular, é um órgão presidencial autónomo. O Governo é um órgão
colegial complexo (vários órgãos dentro de um) e a AR é um órgão colegial de tipo
assembleia.
O PR é eleito por sufrágio directo (tal como na Constituição de 1933), por sufrágio
universal e democrático. Elegem-no os cidadãos portugueses residentes em Portugal e
os cidadãos portugueses emigrantes com laços afectivos à comunidade portuguesa (Lei
25/2005, de 8 de Setembro, lei de valor reforçado). O PR é eleito por maioria absoluta
(art. 126º). Se nenhum candidato a obtiver, há uma segunda volta em que concorrem os
dois candidatos mais votados na primeira volta.
3.Os partidos foram afastados da eleição do PR. Esta é uma manifestação da função de
integração do PR (art. 124º).
4. São elegíveis os cidadãos portugueses de origem, maiores de 35 anos (art. 122º).
5. O mandato do PR é de 5 anos (art. 128º). O mandato do PR é superior ao da AR (4
anos). Tal evidencia uma interpenetração temporal, um intercontrolo e interdependência
de poderes. O PR pode ser reeleito uma vez sucessivamente (art. 123º).
6. O PR não pode ser destituído antes do final do mandato (a AR não tem poderes para
destituir o PR), a não ser que haja responsabilidade criminal (crimes graves) durante o
exercício das suas funções (art. 130º). O PR é julgado no Supremo Tribunal de Justiça
por crimes praticados no exercício das suas funções.
7. O PR é livre de renunciar ao mandato (art. 131º). Na experiência constitucional
portuguesa, só dois Presidentes renunciaram ao mandato. Tal aconteceu em 1919.
Segundo Paulo Otero, o poder de renúncia é um poder interessante. O PR tem grande
legitimidade democrática, mas muito poucos poderes efectivos, o que o pode levar a
renunciar. Essa renúncia pode ser usada para se conseguir/promover grandes mudanças
68
Ana Júlia Maurício
políticas, pode até provocar uma transição política. O poder de renúncia também pode
ser utilizado como meio de não promulgar actos legislativos.
8. O PR é substituído interinamente pelo Presidente da AR (art. 132º). Segundo Paulo
Otero, em O Poder da Substituição, esta é uma figura de suplência e não de substituição.
18.2. Competência
Os arts. 133º, 134º e 135º enumeram várias competências do PR:
- Competências quanto a outros órgãos (art. 133º).
- Competências para a prática de actos próprios; poderes discricionários, autónomos do
PR (art. 134º).
- Competências quanto a relações internacionais (art. 135º).
Os poderes do PR são poderes vastos. Para alguns professores, os poderes do PR são
mais vastos que os do Presidente francês. O Presidente francês não tem poder de veto,
só tem poder de devolver o diploma à Assembleia para que ela o reaprecie e ela pode
confirmá-lo por mera maioria simples. O veto é um grande travão político da AR e do
Governo. O veto é um poder de controlo do mérito político e material dos decretos do
Governo e dos decretos da AR. O veto de decretos da AR exige que o parlamento, para
os confirmar, tenha de conseguir maioria qualificadas.
Duberger afirma que, formalmente, na Constituição, o PR tem mais poderes que o
Presidente francês.
O PR tem competências alargadas. Nos termos do art. 133º, o PR preside ao Conselho
de Estado, marca o dia das eleições, pode convocar a AR, pode dirigir mensagens,
nomeia e pode demitir o Governo, pode presidir ao Conselho de Ministros, se lho
solicitarem, etc. O art. 134º regula as competências para actos próprios, discricionários
do PR. Em relação às competências do PR nas relações internacionais (art. 135º), a
Convenção de Viena diz que é o PR quem representa a comunidade política (art. 7º) e
quem deve tratar das relações e acordos internacionais. A Constituição travou os
69
Ana Júlia Maurício
poderes do PR pois é o Governo que tem competência para negociar tratados e
convenções internacionais.
Gomes Canotilho define os poderes do PR como sendo poderes próprios ou partilhados.
No caso dos partilhados, o PR pode precisar da iniciativa de outro órgão, pode ter de
ouvir o Conselho de Estado, pode precisar de ratificação ou autorização da AR ou de
referenda ministerial.
Para Gomes Canotilho, os poderes do PR dividem-se em:
- Poderes de direcção política (função político-conformadora), actos de direcção
política.
- Poderes de controlo.
- Poderes de exteriorização política.
Jorge Miranda (Constituição anotada, 2006), define sete grupos de competências do PR:
- Competências de conservação e dinamização do funcionamento de outros órgãos (ex.
nomear o Primeiro-Ministro, presidir ao Conselho de Estado).
- Competências de regulação e controlo (ex. dissolver a AR, demitir o Governo).
- Competências de impulso (ex. convocar a AR, dirigir-lhe mensagens, submeter a
referendo questões de interesse nacional).
- Competências de integração de procedimentos (ex. promulgação de decretos, de modo
a completar o processo legislativo, assinar decretos).
- Competências de controlo e fiscalização (ex. veto político, fiscalização da
constitucionalidade).
- Competências referentes a pessoas (ex. indultar penas, atribuir condecorações).
- Poderes em situações de emergência grave ou de excepção (ex. declarar o estado de
sítio ou de emergência; declarar a guerra ou fazer a paz).
Ainda para Jorge Miranda, as competências podem ser agrupadas naquelas que são
exercidas livremente ou obrigatoriamente. Organizadas do poder mais livre ao mais
obrigatório:
- Poderes inteiramente livres.
- Poderes dependentes de audições.
70
Ana Júlia Maurício
- Poderes dependentes de referenda obrigatória.
- Poderes dependentes de referenda livre da parte do Governo.
- Poderes dependentes de eleições (ex. nomeação do Primeiro-Ministro).
- Poderes dependentes de autorização (ex. declaração de estado de sítio ou de guerra
precisa da autorização da AR, arts. 135º e 138º).
- Poderes de prática obrigatória (art. 136º, nº3 – promulgar lei que havia sido
confirmada pela AR depois do veto político).
O PR participa na função política mas não governa.
Paulo Otero, Gomes Canotilho e Vital Moreira recusam a classificação do sistema de
governo como semi-presidencial. Defendem que é um sistema parlamentar misto ou
parlamentarismo racionalizado (Paulo Otero).
Alexandrino definiu quatro poderes, quatro deveres e oito direitos do PR.
Poderes:
- Co-definição da política geral (pode bloquear ou promover actos de definição da
política geral).
- Controlo da condução da política geral (por exemplo, através do veto).
- Convocação extraordinária da AR (influencia a condução do país).
- Mensagem (pode dirigir mensagens à AR, fundamentos do pedido de fiscalização,
promulgar com críticas).
Deveres:
- Acompanhar a condução da política geral.
- Aconselhar o Primeiro-Ministro.
- Distanciamento (PR não governa, tem o dever geral de distanciamento).
- Não ingerência nos assuntos próprios do Governo.
Direitos:
- Direito à devida consideração (Governo tem de ter consideração sobre o que o PR lhe
diz).
- Direito de pronúncia e mensagem sobre os assuntos.
71
Ana Júlia Maurício
- Direito ao contacto directo quer com os órgãos quer com os serviços.
- Direito a ser informado.
- Direito a ser ouvido.
- Direito de sugestão.
- Direito a opinião sobre assuntos particularmente complexos (ex. Reconhecimento ou
não da independência do Kosovo. PR opinou pelo não pronunciamento de Portugal.).
- Direito a impor condições à Constituição e ao Governo num cenário minoritário.
18.3. Promulgação e Veto (arts. 136º e 137º)
O que é a promulgação? É um acto do PR mediante o qual este atesta ou declara que um
determinado diploma elaborado por certo órgão constitucional pode valer como lei,
decreto-lei, decreto regulamentar ou lei de revisão constitucional. É um acto
eminentemente político.
Jorge Miranda define três momentos na promulgação:
- O conhecimento qualificado que o PR tem da prática de certo acto.
- O PR qualifica o acto com a promulgação como sendo um acto de certo tipo: lei da
AR, decreto-lei, decreto regulamentar, lei de revisão constitucional.
- Com a promulgação, o PR declara solenemente essa qualificação.
Sanção vs Promulgação. A sanção é um mecanismo em que o monarca partilha a função
legislativa, envolvendo uma co-decisão. A promulgação não envolve a co-decisão, o PR
pode promulgar contrariado ou promulgar com reservas.
A promulgação é um acto político autónomo, é um poder activo. O veto é um poder
d’empechêr, de impedir, é um travão.
Quanto à natureza da promulgação: Teorias:
- Teoria declarativa (função notarial do PR).
- Teoria legislativa (PR participaria na função legislativa).
- Teoria da administração (acto produziria efeitos com a promulgação).
72
Ana Júlia Maurício
- Teoria do controlo constitucional. Esta tende a prevalecer. É a defendida por Gomes
Canotilho, Blanco de Morais e Jorge Miranda).
Classificação da promulgação para Blanco de Morais:
- Promulgação simples.
- Promulgação com reservas. O PR promulgou com reservas a Lei 17/2007, de 17 de
Abril, dirigindo uma mensagem à AR.
Promulgação livre: é a regra (art. 136º, nºs 1 e 4).
Promulgação obrigatória: leis aprovadas na sequência de referendo obrigatório e
vinculativo (art. 136º, nºs 2 e 3, e art. 286º, nº 3).
Promulgação vedada: leis orgânicas ou lei aprovada mas desconforme ao resultado do
referendo (art. 278º, nº 4 e nº 7).
O regime da promulgação é o regime do veto. O PR promulga ou veta de acordo com os
prazos para a AR ou para o Governo.
O veto é um poder político de impedimento. O veto é um meio de controlo formal e
material, ou seja, é um meio de controlo do mérito intrínseco do diploma.
Veto:
- Veto simples: quando para o superar basta que a AR confirme o diploma por maioria
simples (Constituição francesa).
- Veto qualificado: quando para o superar é necessário que a AR confirme o diploma
por maioria qualificada (maioria absoluta, art. 136º, nº 2).
- Veto hiper-qualificado: quando para o superar é exigida a maioria de 2/3 dos
deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos deputados em
efectividade de funções (art. 136º, nº 3).
Caso o PR vete um decreto do Governo, esse processo legislativo termina.
Se o PR vetar decreto da AR, esta pode:
- Desistir do diploma e, assim, termina o processo legislativo.
73
Ana Júlia Maurício
- Confirmar o diploma, ou seja, superar o veto (art. 136º, nºs 2 e 3). Se a AR confirmar
o diploma, o PR é obrigado a promulgá-lo, no prazo de oito dias (promulgação
obrigatória).
- Alterar o diploma. O PR é livre de vetar esse novo diploma.
Será que o PR pode usar primeiro o veto político ou primeiro o veto por
inconstitucionalidade, livremente?
De acordo com a Escola de Lisboa em geral, nomeadamente Jorge Miranda e Marcelo
Rebelo de Sousa, o veto político impede um posterior veto por inconstitucionalidade.
Gomes Canotilho, Vital Moreira e Paulo Rangel têm dúvidas quanto a essa tese.
Pode o PR usar fundamentos jurídicos para o veto político?
Na opinião de Paulo Otero e de Blanco de Morais, o PR não pode usar razões jurídicas
para o veto político. Paulo Otero afirma mesmo que a admitir-se tal hipótese, isso
consubstanciaria uma fraude à Constituição.
§ 19. Assembleia da República
19.1. Estatuto
A AR é o órgão representativo de todos os cidadãos portugueses (arts. 147º a
181º). Há flexibilidade quanto à sua composição, mínimo de 180 deputados e máximo
de 230 deputados, isto há uma margem de liberdade decisória, conformadora do
legislador (art. 148º). Os deputados são eleitos por sufrágio universal e directo através
de um sistema eleitoral proporcional (art. 149º).
Particularidades:
Os partidos políticos têm a reserva de apresentação de candidaturas para a AR
(art. 151º). Os cidadãos independentes per si não podem candidatar-se. Não é possível
uma lista autónoma de cidadãos independentes.
Os deputados têm um mandato livre e não impositivo. Os deputados não
respondem a não ser perante o eleitorado. Os partidos políticos são intermediários entre
74
Ana Júlia Maurício
os cidadãos/eleitorado e os deputados. Os partidos políticos são intermediários no
sentido em que têm o monopólio da apresentação das candidaturas e, dessa forma, vão
determinar quem vão ser os candidatos a deputados. Esta é uma forma extra-
constitucional ou intra-partidária que os partidos políticos têm para exercer
influência/pressão sobre os respectivos deputados.
Dentro da AR os verdadeiros protagonistas são os partidos políticos e não os
deputados. Não obstante, os deputados têm um conjunto de poderes, imunidades,
direitos e regalias (arts. 156º a 158º).
A legislatura tem a duração de quatro anos e está dividida em quatro sessões
legislativas (art. 171º).
A AR pode ser dissolvida pelo PR nos termos do art. 172º. Há três limites
quanto à dissolução da AR pelo PR:
- A AR não pode ser dissolvida nos 6 meses subsequentes à sua eleição. Isto pode gerar
uma situação de conflito, de impasse.
- A AR não pode ser dissolvida nos últimos 6 meses do mandato do PR, pois nesses
últimos 6 meses há uma diminuição do estatuto do PR.
- A AR não pode ser dissolvida durante a vigência do estado de sítio ou do estado de
emergência.
A violação destas normas/limites determina a inexistência jurídica do decreto de
dissolução da AR (art. 172º, nº2). A inexistência jurídica é o desvalor jurídico mais
grave do Ordenamento Jurídico Português.
Não obstante a AR poder ser dissolvida, funciona uma comissão permanente da
AR (art. 179º, nº 1). Esta comissão permanente funciona durante o período em que a AR
se encontrar dissolvida, durante o intervalo entre as sessões legislativas e quando a AR
deliberar a sua suspensão (arts. 174º,nº 2 e 179º, nº 1). Para além disso, a AR não
funciona sempre em plenário. Pode também funcionar em comissões (art. 178º):
comissão permanente, comissões previstas no Regimento da AR e comissões eventuais,
criadas ad hoc.
75
Ana Júlia Maurício
19.2. Competência
As principais decisões normativas e políticas do país passam pela AR, tais como:
- A revisão da Constituição (competência exclusiva da AR).
- A aprovação dos estatutos das Regiões Autónomas (competência exclusiva da AR).
- A aprovação do orçamento de estado (competência exclusiva da AR).
- A aprovação de leis de amnistia (competência exclusiva da AR).
- A aprovação das principais convenções internacionais.
- A determinação da sorte política do governo em duplo sentido:
- É pela AR que o Governo ganha a plenitude de funções, através da
apresentação e não rejeição do programa de Governo.
- A AR pode determinar o fim do Governo, através da aprovação de moção de
censura ou através da rejeição da moção de confiança.
- Compete à AR controlar o mérito político dos actos políticos do Governo, controlar a
conveniência dos actos do Governo, salvo os actos praticados pelo Governo no âmbito
da sua reserva legislativa.
- Compete à AR apreciar em termos políticos os diplomas legislativos da Governo.
- Compete à AR designar os titulares dos órgãos constitucionais (Provedor de Justiça e a
maioria dos juízes do TC).
Duas notas a propósito da competência da AR relativas ao seu
apagamento/esvaziamento/erosão:
1. Erosão da competência da AR provocada pelos directórios dos partidos
políticos. Os partidos políticos podem transferir o centro de decisão da AR para
os directórios partidários, o que acontece ao nível das revisões constitucionais,
principalmente a partir dos anos 90. As decisões transitam da AR para os
directórios partidários. Quando as decisões chegam à AR já está tudo acordado
entre os dois partidos com maior expressão e a AR limita-se a aprovar o que foi
previamente decidido. O esvaziamento da competência da AR deve-se a este
exercício abusivo do poder por parte dos partidos políticos.
2. Erosão da competência da AR provocada pela integração no âmbito da EU, que
tem gerado, ao longo dos tempos, o esvaziamento da AR em dupla acepção:
76
Ana Júlia Maurício
- Há matérias transferidas ou cujo sentido decisório passou do Estado para a EU
(Estado expropriado de certas matérias/poderes – fenómeno de natureza
expropriativa das matérias da AR).
- Há uma governamentalização do processo de integração europeia, pois é o
Governo quem negoceia e acorda os tratados e convenções. Quando a AR é
chamada a aprovar os tratados é confrontada com a situação: ou aprova e
permanece-se no âmbito da EU ou rejeita-se e criam-se obstáculos aos
compromissos adoptados, nomeadamente no que respeita à consolidação das
instituições europeias. Os governos, no âmbito da EU, negoceiam matérias que
constitucionalmente não seria materialmente possível negociar. Exemplos: o
Banco de Portugal perdeu a categoria de emissor de moeda para o Banco
Europeu. Para aprovar este tipo de medidas a Constituição teria de ser alterada.
Inverteu-se o fenómeno de relacionamento da Constituição e do Direito
Comunitário. Ao invés do Direito da Eu ser conforme às Constituições dos
Estados-membros, as Constituições destes são alteradas, adaptadas, ou seja,
revistas para os tratados poderem ser ratificados e aprovados. Houve uma
inversão metodológica normativa entre o Direito da EU e as Constituições dos
Estados-membros. Na Constituição oficial são os deputados que promovem a
revisão constitucional (monopólio). Na Constituição não-oficial atribui-se ao
Governo um protagonismo que não está no texto escrito da Constituição, isto é,
o Governo tem uma relevância maior do que aquela que consta na Constituição
oficial.
19.3. Competência que AR tem para proceder à fiscalização política
Quatro áreas de incidência/Tipos de fiscalização política:
1. Controlo sobre a actividade do Governo. A AR fiscaliza a actuação do
Governo: a actuação política, a legislativa e a administrativa. Toda a actuação decisória
do governo está sujeita a controlo. Esse controlo é maior ou menor de acordo com o
facto do Governo ser maioritário ou minoritário. Quanto mais necessário seria o
controlo (quando o Governo é maioritário), menor ele é na prática. O parlamento é mais
débil no controlo quando o Governo é maioritário. Quando devia ser mais interventivo,
não o é; quando não era necessário que fosse tão interventivo, é quando é mais. É
77
Ana Júlia Maurício
ilusória a responsabilidade política máxima, ou seja, a aprovação de uma moção de
censura, de um Governo maioritário pela AR. Não há real efectivação da
responsabilidade política de um Governo maioritário.
2. Controlo sobre a Administração Pública. A AR tem poderes para controlar a
Administração Pública:
- A AR procede à fiscalização das contas públicas e fiscaliza a actuação não
financeira da Administração Pública. Limitação: os poderes da AR não podem
substituir o facto do Governo ser o órgão superior da Administração Pública (art.
182º). A AR não pode substituir o Governo mas pode fiscalizar a forma como o
Governo age ou não age, enquanto órgão superior da Administração Pública.
- AR pode chamar estruturas da Administração Pública/titulares dos órgãos da
Administração Pública para prestarem esclarecimentos ou abrir comissões de inquérito
(comissões ad hoc) para fiscalizar determinados assuntos governativos. Exemplo:
comissão para fiscalizar a forma como vai ser adjudicada a nova ponte sobre o Tejo.
3. Controlo sobre o PR. A AR pode controlar os actos do PR no âmbito da
aplicação da declaração de estado de sítio ou de emergência, através da aprovação do
decreto presidencial e da apreciação da necessidade dessa declaração. A AR
ouve/acolhe as mensagens que o PR lhe dirige. Esta é a forma de comunicação entre a
AR e o PR.
4. Controlo quanto ao mérito político dos decretos-leis do Governo (art. 169º).
Controlo quanto ao mérito político dos decretos legislativos regionais para efeitos de
recusa da ratificação ou de introdução de alterações (art. 227º, nº 4).
Como é que a AR fiscaliza? Quais os processos/mecanismos de fiscalização?
1. A AR pode criar inquéritos parlamentares, pode desencadear um processo de
investigação parlamentar a certos actos/comportamentos.
2. A AR pode criar comissões eventuais de inquérito. Exemplo: comissão de
inquérito criada para investigar o desastre de Camarate.
78
Ana Júlia Maurício
3. A AR pode fazer/colocar questões ao Governo por iniciativa dos próprios
deputados ou na sequência de um debate sobre uma matéria entre o Governo
e a AR (questões/interrogações ao Governo sobre matéria particular).
4. A AR pode requerer informações ao Governo ou à Administração Pública. A
AR pede esclarecimentos antes de serem criadas eventuais comissões de
inquérito.
19.4. Competência legislativa da AR
Três ideias nucleares:
1. A AR tem competência legislativa genérica que lhe permite emanar leis sobre
todas as matérias (art. 161º c).
Limites à competência legislativa genérica da AR:
- Todas as competências reservadas pela CRP a outros órgãos. Que outros
órgãos? O Governo (art. 198º), as Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas
(arts. 226º e 227º). A AR não pode invadir as áreas de competência legislativa de outros
órgãos sob pena de inconstitucionalidade.
- Competência jurisdicional dos tribunais. A AR não pode aprovar leis que
revoguem ou modifiquem as sentenças dos tribunais. A AR não pode anular/ modificar
as sentenças judiciais ou as decisões de um tribunal. Isto decorre do princípio da
separação de poderes.
- A AR não pode invadir a esfera da Administração Pública. Há uma certa
dificuldade em saber onde começa e termina a competência administrativa e a
competência legislativa. Exemplos: pode a AR alterar o numerus clausus da entrada nas
Universidades? Ou isso é matéria administrativa excluída da intervenção legislativa da
AR? Pode a AR baixar o preço da gasolina ou do leite? Isto é matéria de natureza
administrativa excluída da intervenção legislativa ou a AR, no âmbito da sua
competência legislativa genérica, pode regular essas matérias?
Ideias sobre esse problema:
- Há, claramente, na Constituição uma reserva da Administração Pública. Se o
Governo é o órgão superior da Administração Pública e se não há hierarquia entre os
órgãos de soberania (princípio da equiordenação), a AR não pode intervir em matérias
79
Ana Júlia Maurício
da competência da Administração Pública, a não ser em matéria legislativa. O Governo
tem reserva de competência administrativa.
- Há outros órgãos que têm reserva de competência administrativa face à AR,
nomeadamente os órgãos administrativos das Regiões Autónomas (art. 231º, nº 6).
Exemplo: Se a AR fizer uma lei que funda a secretaria regional da saúde coma da
agricultura da Região Autónoma dos Açores, essa lei é organicamente inconstitucional,
pois viola o art. 231º, nº 6. Esta é uma reserva de competência que limita a intervenção
da AR. O Governo Regional é o órgão superior da Administração Pública no âmbito da
Região Autónoma.
- A AR também não se pode imiscuir na administração das Universidades
Públicas. Não pode, por exemplo, aprovar os estatutos das Universidades Públicas, pois
isso viola o art. 76º, nº 2 e o princípio da competência.
2. A Constituição cria um núcleo de matérias legislativas sobre as quais só a AR
tem competência legislativa. É a área de reserva absoluta da AR, uma área de matérias
“intocáveis” por outros órgãos.
Que matérias são de reserva absoluta da competência legislativa da AR:
- As matérias previstas no art. 164º.
- Várias matérias previstas no art. 161º, como a alteração da Constituição (al. a),
a aprovação dos estatutos político-administrativos a as leis relativas à eleição dos
deputados às Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas (al.b), conferir ao
Governo autorizações legislativas (al. d), conferir às Assembleias Legislativas das
Regiões Autónomas certas autorizações (al. e) e conceder amnistias e perdões genéricos
(al. f).
- Lei-quadro das reprivatizações (art. 293º).
3. A Constituição permite, numa determinada área, apenas nas matérias do art.
165º, a criação de uma área de condomínio de matérias da AR e do Governo e nalgumas
matérias das Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas. A AR é o órgão
competente normalmente mas pode, através de uma lei de autorização legislativa,
permitir que o Governo legisle sobre as matérias do art. 165º e que as Assembleias
Legislativas das Regiões Autónomas legislem sobre algumas matérias do art. 165º.
Estas são as matérias de reserva relativa da AR.
80
Ana Júlia Maurício
Quando o Governo é maioritário, há uma irrelevância de facto, não de direito,
das reservas da AR. O Governo quer, a AR aprova. O Governo não quer, a AR rejeita.
As reservas da AR estão dependentes do facto do Governo ter ou não ter maioria no
parlamento.
§ 20. Governo
20.1. Estatuto do Governo em termos de composição e formação
O Governo é definido como sendo o órgão superior da Administração Pública
(art. 182º). O Governo não tem apenas competência administrativa. O Governo tem três
tipos de competência: administrativa, política e legislativa.
O Governo é um órgão de soberania autónomo composto pelo Primeiro-
Ministro, pelos Ministros, pelos secretários e subsecretários de Estado (art. 183º, nº 1).
Pode haver ainda um ou vários vice-Primeiros-Ministros. Essencial ao Governo é a
existência do Primeiro-Ministro, dos Ministros, dos secretários e subsecretários de
Estado.
Particularidade: o Governo é um órgão complexo. É um órgão formado por
outros órgãos. Pode funcionar em termos colegiais, através do Governo ou do Conselho
de Ministros, ou individualmente, através de cada Ministro. Cada Ministro é um órgão e
é parte integrante do órgão Governo.
O PR pode presidir ao Conselho de Ministros a convite do Primeiro-Ministro
(art. 133º i). Todavia, não é normal que isso suceda.
A competência é de exercício individual em regra, salvo quando a Constituição
diga expressamente que certa competência é exercida, colegialmente, em Conselho de
Ministros (art. 200º). Quando a Constituição diz que compete ao Governo fazer algo,
entende-se que isso é competência do Ministro respectivo.
81
Ana Júlia Maurício
Princípio geral: princípio da igualdade dos Ministros. Não há juridicamente
hierarquia entre os Ministros. Há hierarquia jurídica e política entre o Primeiro-Ministro
e os outros Ministros, pois o Primeiro-Ministro é o primeiro dos membros do Governo.
É ele quem indica ao PR quem quer que seja nomeado ou exonerado (art. 187º).
Não obstante a igualdade entre os Ministros, há uma predominância do Ministro
das Finanças. Todos os actos do Governo que envolvam reflexos financeiros têm de ser
aprovados pelo Ministro das Finanças, como consta da Lei orgânica do Governo.
Quando existem especiais preocupações financeiras e orçamentais designadamente por
efeitos da EU acentua-se o peso decisivo da intervenção do Ministro das Finanças. Qual
é a origem histórica desta predominância do Ministro das Finanças? A sua origem
remonte a 1928, à condição imposta por Oliveira Salazar para assumir a pasta da
Finanças. Já a Constituição de 1933 incluía essa predominância como regra.
Problema possível: O que sucede quando o Ministro das Finanças recusa a
aprovação de uma lei que tenha a concordância do Primeiro-Ministro? No caso de o
Primeiro-Ministro e o Ministro das Finanças desalinharem os seus interesses:
- O Ministro das Finanças pode demitir-se.
- O Primeiro-Ministro pode tentar exonerar o Ministro das Finanças, precisando
da aceitação dessa proposta pelo PR (arts. 133º h) e186º, nº 2). E se o PR se recusar a
exonerar o Ministro das Finanças? Pode desencadear-se um conflito institucional. A
solução nesse caso para o Primeiro-Ministro seria pedir a sua demissão. Este
mecanismo jurídico assenta na igualdade de todos os Ministros.
Formação do Governo:
1. Nomeação do Primeiro-Ministro. É o início de tudo, apesar de poder existir
uma figura que não resulta da Constituição oficial: a figura da indigitação.
Indigitar é convidar alguém a tentar formar Governo. A indigitação tem vários
significados:
- Quando não há maiorias, a indigitação permite que uma pessoa consiga uma
base parlamentar que lhe permita viabilizar o respectivo Governo.
- A indigitação permite que essa pessoa componha um Governo, que encontre
pessoas para integrar o Governo.
- A indigitação também permite que o prazo limitado de 10 dias pós nomeação
para a apresentação do programa de Governo seja dilatado, aproveitando-se a
82
Ana Júlia Maurício
indigitação para essa pessoa ganhar tempo na elaboração do respectivo programa de
Governo e na constituição da equipa governamental.
A amplitude dos poderes do PR é diferente consoante exista ou não maioria
parlamentar. Quando há maioria, o PR limita-se a nomear a pessoa indicada para
Primeiro-Ministro. Quando não há maioria, o PR tem maior protagonismo na escolha da
individualidade que vai indigitar ou nomear como Primeiro-Ministro. Não obstante, o
PR não está obrigado a escolher o líder do partido mais votado ou do partido
maioritário. O PR só tem de cumprir duas formalidades: ter em conta os resultados
eleitorais e ouvir os partidos com representação parlamentar (art. 187º, nº 1). Compete
ao PR a nomeação do Primeiro-Ministro. Os outros membros são nomeados pelo PR
sob proposta/iniciativa do Primeiro-Ministro. O PR não é obrigado a nomear os nomes
que o Primeiro-Ministro lhe propõe. Mas não pode decidir quem são os membros do
Governo. É prática constitucional haver conversas internas entre o PR e o Primeiro-
Ministro.
2. Tomada de posse. Efeitos da tomada de posse:
- A data de nomeação e de tomada de posse corresponde à data da exoneração do
Governo cessante. Isto permite o princípio da continuidade das funções da
Administração Pública (art. 186º).
- A data da tomada de posse marca o início das funções dos novos membros do
Governo ou do Governo. Da data da nomeação do Primeiro-Ministro conta-se o prazo
máximo de 10 dias para a apresentação do programa de Governo (art. 192º, nº 1).
Compreende-se assim a figura da indigitação: permite que o Governo tenha mais tempo
para preparar o programa a apresentar.
Durante o período da tomada de posse até ao termo da apreciação parlamentar
do respectivo programa, o Governo não tem plenitude de funções, tem a competência
diminuída. É um governo de gestão (art. 186º, nº 5). Todos os governos são governos de
gestão no início, entre a posse e a apreciação do Governo, e no fim, após a demissão e
até à posse do novo Governo.
Governos de gestão: na experiência constitucional portuguesa houve apenas um
Governo que foi sempre Governo de gestão: o III Governo Constitucional, com o Eng.
Nobre da Costa como Primeiro-Ministro. A apreciação do programa do Governo
83
Ana Júlia Maurício
terminou com a aprovação de uma moção de censura, logo, com a demissão do
Governo.
Significado do programa de Governo (art. 188º): Concretiza um conjunto de
promessas eleitorais ou de acordos pós-eleitorais entre os partidos políticos que estão na
base da formação do Governo – exerce três funções principais:
1. Apresentar junto da AR as linhas mestras da actuação do Governo.
2. Auto-vinculação política do Governo. A AR é o órgão representativo de
todos os partidos. Os membros do Governo têm de ser solidários – princípio
da solidariedade governamental (art. 189º).
3. Heterovinculação. O Governo assume um compromisso perante a AR, no
sentido em que a AR deve fiscalizar o modo como o Governo cumpre ou não
o programa. A AR não pode censurar o Governo por estar a cumprir o
conteúdo do seu programa. A AR está vinculada ao conteúdo do programa
que deixa passar.
Não é admissível que o PR controle a execução do programa de Governo
através do veto político. O PR não é o garante da execução, do cumprimento do
programa de Governo.
O programa de Governo não é aprovado pela AR. Para o Governo continuar
em efectividade de funções a AR não pode rejeitar o programa. Basta que a AR
aprecie o programa para o Governo ter plenitude de funções. Não é necessário
que haja alguma votação no fim da apreciação. Porém, se houver uma votação,
esta pode partir da iniciativa dos deputados, através de uma moção de
censura/rejeição do programa do Governo (art. 192º, nºs 2 e 3 e art. 195º d). Essa
votação também pode partir da iniciativa do Governo, através do voto de
confiança (art. 192º, nº 3).
No sistema português, o Governo só atinge plenitude de funções depois da
apreciação do programa de Governo pela AR.
A apreciação do programa de Governo pode terminar de três formas:
- Um ou mais grupos parlamentares propõe a rejeição do programa (art. 192º,
nºs 3 e 4).
- O Governo solicita um voto de confiança (art. 192º, nº 3).
- Nada sucede e o Governo entra em efectividade de funções.
84
Ana Júlia Maurício
Tendo o Governo entrado em plenitude de funções coloca-se o problema da
responsabilidade política do Governo.
20.2. Responsabilidade
Responsabilidade política do Governo – três teses:
1. O Governo continua a ser duplamente responsável politicamente
perante a AR e o PR (art. 190º).
2. Depois da revisão constitucional de 1982, há quem defenda que o
Governo é apenas politicamente responsável perante a AR e já não é
politicamente responsável perante o PR (art. 190º, versão anterior e
posterior à revisão constitucional de 1982).
3. Há mera responsabilidade institucional do Governo perante o PR.
Paulo Otero adopta essa tese.
Em que se traduz essa responsabilidade:
Há uma responsabilidade do Primeiro-Ministro face ao PR e não dos restantes
membros do Governo face ao PR. Os membros do Governo são responsáveis perante o
Primeiro-Ministro. O Primeiro-Ministro responde por si e pelos membros do Governo
perante o PR. Daqui se retira o estatuto central do Primeiro-Ministro na respectiva
responsabilidade do Governo perante o PR. Este modelo é o mesmo modelo de
chanceler previsto na Constituição de 1933.
A responsabilidade junto da AR é a responsabilidade do Primeiro-Ministro pela
actuação do Governo e dos ministros, segundo o princípio da solidariedade
governamental. A AR não pode votar uma moção de censura individual: ao ministro x
ou y, aos membros do Governo considerados individualmente.
Responsabilidade do Governo perante a AR:
Mecanismos de fiscalização da actuação do Governo, controlo da actividade do
Governo.
A AR pode votar moções de censura, que são da iniciativa dos deputados, ou
moções de confiança, que partem da iniciativa do Governo. A moção de censura tem de
ser aprovada por maioria absoluta para provocar a demissão do Governo (art. 194º e art.
85
Ana Júlia Maurício
195º f). A moção de confiança para provocar a demissão do Governo tem de ser
rejeitada (art. 193º e art. 195º e).
Responsabilidade do Governo perante o PR:
A responsabilidade do Governo perante o PR é uma responsabilidade
institucional e não política. A falta de confiança política do PR no Primeiro-Ministro
não constitui fundamento para a demissão do Governo. O PR não pode demitir o
Governo por quebra da confiança política se o Governo tem a confiança política da AR,
a não ser que o Governo esteja a pôr em causa o regular funcionamento das instituições
democráticas (art.195º, nº 2).
O Primeiro-Ministro, no momento da nomeação, tem de ter a confiança do PR,
pois o PR não é obrigado a nomear o líder do partido mais votado.
O PR pode dificultar a vida ao Governo se não existir confiança política, através
de vários mecanismos:
- Veto político em relação aos decretos-leis e decretos regulamentares do
Governo.
- O PR pode desencadear sucessivos pedidos de fiscalização preventiva da
constitucionalidade dos decretos-leis.
- O PR pode formular críticas públicas à acção governamental.
- O PR pode recusar-se a proceder a nomeações propostas pelo Primeiro-
Ministro. Exemplos: substituir ministros ou substituir o Procurador-geral da República.
O Governo tem um conjunto de deveres face ao PR:
- Dever de informar o PR sobre os assuntos públicos.
- Dever de contenção na apreciação pública da acção presidencial.
O art. 195º, nº 2 constitui uma limitação histórica dos poderes do PR. Este art.
foi alterado na sequência da revisão constitucional de 1982, o que limitou a
possibilidade de demissão do Governo pelo PR. No entanto, esta é uma cláusula sem
controlo jurídico; o acto de demissão do Governo pelo PR não é passível de controlo
judicial.
Esta cláusula pode ser entendida em duas acepções:
86
Ana Júlia Maurício
- Se o Governo é minoritário e está a pôr em causa o regular funcionamento das
instituições democráticas, o PR não tem hipóteses de desencadear o mecanismo da
demissão pois a AR tratará de demitir o Governo, através de uma moção de censura.
- Se o Governo é maioritário, o PR não pode fazer nada contra a maioria
parlamentar que apoie o Primeiro-Ministro demitido pelo PR. A solução é a dissolução
da AR.
20.3. Competência: política, administrativa e legislativa
Competência Administrativa (art. 199º).
Competência Política (art. 197º):
- É de referir a importância da figura da referenda ministerial (art. 197º a) e art. 140º). A
falta de referenda dos actos do PR determina a inexistência jurídica do acto. Freitas do
Amaral analisou os casos em que é legítima ou não a recusa de referenda. As leis estão
sujeitas à promulgação pelo PR e a promulgação está sujeita à referenda ministerial. A
referenda incide sobre a promulgação. É um acto de validação da promulgação, é um
acto certificativo da promulgação, é um acto de autenticação da promulgação.
Competência Legislativa (art. 198º)
87
Ana Júlia Maurício
Há quatro tipos de competência legislativa do Governo. É preciso articular a
competência legislativa do Governo com a competência legislativa da AR.
Há matérias de competência legislativa de reserva absoluta da AR (arts. 164º,
161º a), b), d), e) e f) e 293º). O Governo nunca pode legislar sobre essas matérias.
Há matérias da competência legislativa da reserva absoluta do Governo. São
essas as matérias sobre a organização e o funcionamento do Governo (art. 198º, nº 2).
Se a AR violar essa reserva e legislar, tais leis serão viciadas de inconstitucionalidade.
Orgânica, exactamente como sucederia se o Governo legislasse sobre as matérias de
reserva absoluta da AR.
Há uma reserva relativa da AR, quanto à sua competência legislativa (arts. 165º
e 198º, nº 1 b). Em princípio a competência legislativa pertence à AR mas esta pode,
mediante uma lei de autorização legislativa, conferir ao Governo competência para
legislar sobre essas matérias de reserva relativa da AR.
A AR não tem o monopólio legislativo. A regra na competência legislativa é a
existência de uma área concorrencial. A competência legislativa concorrencial quer
dizer que tanto a AR como o Governo têm competência legislativa (AR: art. 161º c);
Governo: art. 198º, nº1 a). A regra é, no Direito Português, a existência de competência
legislativa concorrencial. A competência legislativa concorrencial é tudo aquilo que não
está nem na reserva absoluta da AR nem na reserva absoluta do Governo nem aquilo
que está na reserva relativa da AR. A origem deste entendimento resulta do período da
Ditadura Militar e foi acolhido na Constituição de 1933 e, posteriormente, na actual
Constituição.
Haverá ainda um quarto tipo de competência legislativa do Governo? Será
matéria de reserva do Governo o desenvolvimento de leis de bases, com base no
disposto no art. 198º, nº 1 c)? Há três teses:
1. Uns defendem que o desenvolvimento das leis de bases é matéria da
área concorrencial. Crítica: se o desenvolvimento das bases é de
competência concorrencial, qual é a razão da alínea c) do art. 198º,
nº1?
2. Há quem defenda que o que resulta da alínea c) do art. 198º, nº1 é uma
reserva legislativa a favor do Governo no sentido em que limita a
competência legislativa da AR. O Governo tem a reserva absoluta de
desenvolver as leis de bases. Assim, a AR pode fazer leis de bases mas
88
Ana Júlia Maurício
não pode proceder ao seu desenvolvimento. No entanto, a AR pode
alterar, em sede de apreciação parlamentar, esses decretos-leis. Há
reserva primária do Governo mas não há uma reserva integral, pois a
AR pode alterar esses diplomas de desenvolvimento de leis de bases
(art. 169º). Esta é a posição defendida por Paulo Otero.
3. Outros defendem que esta alínea é uma manifestação de auto-
vinculação da AR. É a AR que pode entender auto-vincular-se a não
desenvolver uma lei de bases, mas se decidir fazê-lo, daí não resulta
uma inconstitucionalidade.
No entanto, é de realçar a dualidade entre a Constituição oficial e a Constituição
não-oficial. Quando o Governo tem maioria no parlamento, é pouco relevante, na
prática, saber quais as competências e as reservas, pois o Governo consegue sempre
apoio para as suas propostas e decretos-leis.
As leis de autorização legislativa servem para delimitar o alcance da medida
legislativa a ser adoptada pelo Governo. Mas muitas vezes o Governo faz primeiro a
medida legislativa e só depois pede autorização legislativa à AR. Quando o Governo é
maioritário instrumentaliza a AR, no âmbito da competência legislativa, aos propósitos
políticos do Governo. O Governo é como se tivesse uma competência legislativa mais
alargada.
A abertura que a Constituição determina em sede de are concorrencial permite
explicar que:
- O veto do PR é absoluto face ao Governo. No entanto, caso a matéria não seja
da reserva absoluta do Governo, o Governo pode sempre converter o decreto-lei vetado
em proposta de lei e apresentá-la à AR. Se o Governo for maioritário é quase certo que a
AR fará com que o PR promulgue a lei, mesmo que tenha de confirmar a agora lei da
AR vetada por maioria absoluta. Este é um mecanismo de manifestação do poderio
legislativo do Governo face à AR e é também manifestação da conjugação do Governo
e da maioria parlamentar na AR para superar o veto político do PR.
A supremacia legislativa dos Governos maioritários era evidente na Constituição
de 1933 e foi justificada na de 1976 por causa da meta “transição para o socialismo”,
que acabou por nunca ser implementada.
89
Ana Júlia Maurício
§ 21. Tribunais
Todos os Tribunais são, à luz da Constituição, órgãos de soberania. Os tribunais
têm o monopólio da função jurisdicional (art. 202º): só aos tribunais compete garantir a
paz jurídica, dirimir litígios e a fiscalização difusa da constitucionalidade, APENAS da
inconstitucionalidade por acção uma vez que, a inconstitucionalidade por omissão, é de
reserva concentrada do T. Constitucional (art. 204º).
O TC é, não obstante os seus membros serem, maioritariamente, designados pela
AR, um tribunal (art. 222º, nº 1).
Na sequência de modelo dos E.U.A é introduzido em Portugal, pela primeira vez
em 1911, uma competência para recusar a aplicação de normas inconstitucionais: é um
poder/dever regulado no art. 204º.
Os tribunais são independentes (art. 203º): não estão sujeitos a ordens ou
instruções de outro poder (sem prejuízo de estarem sujeitos à lei e Constituição): não
podem desaplicar a lei SALVO se esta for inconstitucional. O juiz não pode substituir o
critério do legislador pelo seu próprio critério salvo se o critério usado pelo legislador
for contrário à Constituição: nesse caso, o juiz tem o poder e o dever de recusar a
aplicação: a função de juiz não é a de mero autómato; a ideia de Montesquieu segundo a
qual o poder judicial é um pode “nu” não é, hodiernamente, verdade. O juiz tem um
papel metodologicamente activo na:
-determinação de direitos;
-interpretação do direito;
-aplicação do direito:
-integração de lacunas.
Há sempre espaços de criação de Direito por parte dos juízes (densidade
normativa): quanto menor for a densidade da norma, isto é, quanto maior for a
imperfeição da lei, maior será o protagonismo do juiz. Exemplo: Tem protagonismo na
concretização de conceitos indeterminados, na integração de lacunas, na concretização
de cláusulas abertas, saber se a norma é/não conforme com a Constituição. O juiz tem
um papel metodologicamente activo.
Não há, no direito português, a aplicação da regra do precedente. A regra do
precedente é aliada do princípio da igualdade, pois impede que sobre a mesma norma
haja duas posições/soluções contraditórias. É também aliada do princípio da segurança
90
Ana Júlia Maurício
jurídica. Todavia, apesar de não existir a norma do precedente em Portugal, o
precedente é muito importante quando alguém vai a tribunal e utiliza, como argumento
justificativo da sua posição jurídica, o sentido adoptado judicialmente por outro tribunal
num caso semelhante impedindo que, sobre a aplicação de mesma norma, existam duas
soluções contraditórias. É muito comum que os tribunais sigam a prática reiterada por
tribunais em casos anteriores e semelhantes. Isto é visível a todos os níveis, incluindo no
TC. O mesmo se passa em relação a recursos para o TC: este fundamenta a sua decisão,
muitas vezes, com base em decisões/argumentos em casos anteriores. Não é a existência
formal da regra do precedente, mas é a força informal de uma decisão anterior sobre
uma mesma matéria num determinado sentido, a condicionar a decisão presente dos
tribunais sobre matéria semelhante.
É de realçar o art. 205º, nº 2, onde subjaz a prevalência das decisões dos
tribunais sobre as decisões de quaisquer outras entidades/autoridades. A Constituição
confere uma excepção ao princípio da equiordenação dos órgãos de soberania, porque,
apesar dos órgãos de soberania estarem ao mesmo nível hierárquico, as decisões dos
tribunais prevalecem sempre face às decisões dos outros órgãos de soberania, mesmo
sobre as decisões do legislador. Põe-se então a questão de saber qual a força jurídica do
caso julgado ilegal. A lei pode dizer X; se um tribunal decidiu Y e a sentença transitou
em julgado, não sendo passível de recurso, já não há nada a fazer contra essa sentença
inválida e que contraria a lei. O caso julgado inválido tem a força jurídica da força de
lei. É como se o caso se tivesse desprendido da lei. Aos tribunais concede-se a última
palavra. E quando a sentença contraria a Constituição, ou seja, e quando a decisão do
tribunal é inconstitucional? Será que se pode admitir nesses casos a destruição, a título
excepcional, do caso julgado? Sim, porque a validade de quaisquer actos depende da
sua conformidade com a Constituição e as questões de inconstitucionalidade não
prescrevem (art. 3º, nº 3).
2ª Subsecção
Outros órgãos constitucionais
91
Ana Júlia Maurício
§ 22. Conselho de Estado (arts. 141º a 146º)
O Conselho de Estado (surge com a revisão de 1982) é o órgão de consulta do
P.R. Substitui, parcialmente, as competências do Conselho da Revolução.
Para além de membros por inerência (PR), o Conselho de Estado é composto por
membros eleitos pela AR e pelos antigos PR eleitos à luz da Constituição actual (único
caso em que alguém exerce, a título vitalício, funções públicas): Ramalho Eanes, Mário
Soares e Jorge Sampaio.
O Conselho de Estado exerce funções consultivas de 2 ordens:
- Obrigatórias: o PR tem de, necessariamente, ouvir o Conselho de Estado
(dissolução da AR (art. 133º, e), nomeação do PM (art. 133º, f)).
- Facultativa: quando o PR assim o entender convocar (art. 145º, e).
Todavia, o parecer do Conselho de Estado NUNCA é vinculativo para o PR. O
Conselho de Estado pode, por maioria esmagadora, pronunciar-se num determinado
sentido e o PR pode decidir em sentido contrário.
As reuniões não são públicas. Todavia, uma vez que se trata de um órgão
colegial, o princípio geral do direito português é o de que, se existe uma acta é para ser
publicada; assim, deste modo, em princípio as actas (resumo do conteúdo da reunião)
são publicadas, sem prejuízo de apenas serem divulgadas parcialmente. A publicidade
das actas das reuniões do Conselho de Estado podem ser importantes de modo a auferir
a responsabilidade política do PR, em certas decisões tomadas.
§ 23. Provedor de Justiça (art. 23º)
É um órgão independente, eleito pela AR, que tem uma função de controlo da
actividade dos restantes órgãos: os particulares podem apresentar queixas ao Provedor
de Justiça, por acções ou omissões dos órgãos, poderes públicos, e estas, se tiverem
92
Ana Júlia Maurício
fundamento, levam a que o Provedor emita uma recomendação ao órgão em causa.
Todavia, a recomendação NÃO é vinculativa, não é uma ordem ou uma instrução, sem
prejuízo do órgão ter o dever de cooperação com o Provedor de Justiça, tendo de
justificar o seu comportamento ou acatar a solução.
O Provedor de Justiça tem legitimidade processual activa: pode desencadear
uma acção no âmbito do TC, em sede de fiscalização sucessiva abstracta e, mais
importante ainda, por inconstitucionalidade por omissão (art. 283º, nº 1). O Provedor de
Justiça é, deste modo, o elo de ligação entre os cidadãos e o TC em sede de
inconstitucionalidade por omissão.
A autonomização da queixa junto do Provedor de Justiça é INDEPENDENTE
do acesso aos restantes mecanismos de tutela dos direitos das pessoas.
§ 24. Restantes órgãos constitucionais da República
24.1. Conselho económico e social (art. 92º)
Exerce funções consultivas junto da AR. É importante no âmbito da política de
rendimentos e preços (Aí funciona a comissão permanente de concertação social.): é um
espaço de diálogo de concertação social entre os vários representantes interesses
económicos e sociais ou os parceiros sociais (daí, alguns, o denominarem de “câmara
corporativa” da Constituição de 1976).
24.2. Conselho Superior da Magistratura (art. 217º e 218º)
É presidido pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça; tem competência
para a nomeação, colocação, transferência dos juízes, assim como o exercício de poder
disciplinar sobre os magistrados (art. 217º, nº 1).
Tem uma estrutura mista. É constituído por membros designados pelo PR,
membros eleitos pela AR e membros eleitos pelos juízes. Esta estrutura que engloba
93
Ana Júlia Maurício
uma componente política e uma componente “corporativa” garante a independência dos
juízes e a não partidarização da função jurisdicional.
24.3. Procuradoria-Geral da República (art.220º)
É constituída pelo Procurador-geral da República e pelo Conselho Superior do
Ministério Público. O Procurador-geral (actualmente, o DR. Pinto Monteiro) é nomeado
pelo PR sob proposta do Primeiro-Ministro (art. 133º, m), o que significa que não pode
ser nomeado nem demitido se ambos não estiverem de acordo.
As suas competências são:
-representar o Estado.
-defender a legalidade (Ministério público que tem, como seu superior, o
Procurador-geral da República).
-função consultiva perante dúvidas interpretativas sobre o alcance de disposições
legais.
24.5. Conselho Superior de defesa Nacional (art. 274º)
É presidido pelo PR. É o órgão consultivo sobre matéria de defesa e das forças
armadas. Sucedeu a parte das competências outrora atribuídas ao Conselho da
Revolução, em matéria militar.
Tem competências de defesa, organização e disciplina das forças armadas assim
como competências de cariz administrativa.
3ª Subsecção
Sistema de Governo
94
Ana Júlia Maurício
§ 25. Sistema de Governo da República
25.1. Sistema de Governo e “Constituição oficial”
É um sistema parlamentar monista racionalizado:
-Parlamentar: porque o Governo depende da confiança política da AR;
-Monista: porque essa confiança política é hoje APENAS do parlamento e não
necessita da confiança de PR;
-Racionalizado: há hoje um conjunto de figuras que a Constituição cria para
dificultar a destituição do Governo pelo Parlamento. Por exemplo, a moção de censura
necessita de ser aprovada por maioria absoluta (art. 195º, f). Um outro exemplo é o
facto de o Governo, para ser empossado, não necessitar de um voto de confiança
expresso pela AR (art. 192º). Basta que o Governo não tenha uma maioria absoluta
contra o seu programa do Governo (nº 4, art. 192º).
25.2. Sistema de Governo e “Constituição não oficial”
Há uma verdadeira instituição de um presidencialismo de Primeiro-Ministro: o
PM tem um ascendente sobre os demais órgãos, pois tornou-se o eixo da vida política,
uma vez que é, ao mesmo tempo, o chefe do governo e o líder da maioria parlamentar.
Tal como o Primeiro-Ministro Britânico, o Primeiro-Ministro Português controla o
Governo e o poder da maioria parlamentar (como acontece no Reino Unido).
Este fenómeno pode ser alvo de duas explicações:
1) Britanização do sistema de Governo Português – IMPORTAÇÃO?
2) Sequela/manifestação do modelo de chanceler da Constituição de 1933-
PROJECÇÃO DO PASSADO NO PRESENTE? A centralidade do Primeiro-Ministro
como proveniente do sistema presidencialista de chanceler verificado no Estado Novo.
A Constituição portuguesa é uma Constituição dotada de flexibilidade quanto ao
sistema de governo. Já se verificaram três modelos de sistema de Governo. Já permitiu
verificar o funcionamento de governos minoritários, num sistema muito próximo do
95
Ana Júlia Maurício
parlamentarismo de assembleia. Permitiu a criação e o funcionamento de governos de
iniciativa presidencial. Já permitiu o modelo presidencialista, próximo do modelo de
Primeiro-Ministro Britânico.
Análise do sistema de Governos – factores a considerar:
-Há ou não há maioria parlamentar para sustentar o Governo
(independentemente dessa maioria ser absoluta ou de coligação)?
-Estatuto político do PR: é ou não é líder da maioria parlamentar?
Até hoje nunca aconteceu (ao invés do modelo da V República Francesa). Em
Portugal, o líder da maioria parlamentar (no caso de Governos maioritários) tem sido
sempre o Primeiro-Ministro, havendo um ascendente do Primeiro-Ministro sobre o
Governo e o Parlamento. Este é o modelo britânico. Todavia, o modelo francês não está
constitucionalmente impedido: o PR pode ser o líder da maioria parlamentar e ter o
ascendente sobre o Primeiro-Ministro por ele indicado, tornando-se o cargo de
Primeiro-Ministro um lugar-tenente que cumpre as ordens do PR.
Se é verdade que, em Portugal, é o Primeiro-Ministro que preside ao Conselho
de Ministros, também é verdade que o PR pode participar a convite do Primeiro-
Ministro. Assim, com um Primeiro-Ministro instrumentalizado nas mãos do PR, este
poderia sempre participar, pois essa participação é constitucionalmente permitida e o PR
seria sistematicamente convidado.
O sistema de Governo é, deste modo, um sistema aberto que depende das
condições que se verifiquem num momento concreto.
Secção III
Poder Político Formal: estruturas políticas infra-estaduais
§ 26. Regiões Autónomas
26.1. Estrutura orgânica
96
Ana Júlia Maurício
As Regiões Autónomas integram-se num processo de descentralização político-
administrativa.
A estrutura orgânica das RA compreende dois tipos de órgãos:
- Órgãos de governo próprio da RA.
- Representante da República, o representante da soberania junto da RA. Era,
anteriormente, designado por Ministro da República.
Órgãos de Governo próprio da RA (art. 231º):
- Parlamento Regional, designado de Assembleia Legislativa da RA. É eleito por
sufrágio universal directo. A Assembleia Legislativa da RA tem o monopólio do
exercício da função legislativa.
- Governo Regional (a título executivo). É politicamente responsável perante a
Assembleia Legislativa da RA.
Representante da República (art. 230º):
- É nomeado pelo PR, sob proposta do Primeiro-Ministro (art. 230º, nº 1).
- Tem funções similares às do PR face ao Governo.
- Nomeia o Presidente do Governo Regional (art. 231º, nº 3).
- Empossa os membros do Governo Regional (art. 231º, nº 4).
- Assina diplomas provenientes da Assembleia Legislativa da RA e do Governo
Regional (art. 233º, nº 1).
- Pode exercer o veto político (art. 233º, nº 2 e nº 4).
- Em relação aos decretos legislativos regionais, pode desencadear a fiscalização
preventiva da constitucionalidade (art. 233º, nº 5).
- Tem veto político suspensivo para diplomas da Assembleia Legislativa da RA
(art. 233º, nº 2 e nº 3).
- Tem veto político absoluto para diplomas do Governo Regional (art. 233º, nº
4).
26.2. Atribuições
97
Ana Júlia Maurício
As Regiões Autónomas têm poderes legislativos e poderes regulamentares, na
medida em que regulam a legislação regional e certas leis da República (art. 227º).
As Regiões Autónomas participam na definição das principais medidas políticas
(art. 227º, nº 1) e participam no âmbito de aspectos de política internacional, como por
exemplo no processo de construção europeia (art. 227º, nº 1, al. v).
26.3. Sistema de governo das Regiões Autónomas
O sistema de governo das Regiões Autónomas é o parlamentar, pois o Governo é
politicamente responsável perante a Assembleia Legislativa da RA (art. 231º, nº 3) e
esta pode votar moções de censura ao Governo regional (art. 232º, nº 4).
A prática, porém, tem sido a de um sistema parlamentar de gabinete com clara
supremacia do Governo regional face à Assembleia Legislativa da RA. Os Governos
regionais têm sido, em regra, apoiados por maiorias absolutas na Assembleia
Legislativa da RA.
Pode-se falar em parlamentarismo presidencialista ou em presidencialismo de
Primeiro-Ministro (como na república), porque há uma supremacia do Presidente do
Governo regional dentro das demais instituições políticas da RA.
§ 27. Autarquias Locais (Direito Administrativo)
Três ideias:
1. Tradicionalmente, as autarquias locais são consideradas um fenómeno de
descentralização administrativa. Só têm poderes administrativos e não têm poderes
legislativos. Há uma componente política do poder local pois os seus principais órgãos;
que são as Assembleias Municipais e as Câmaras Municipais, nos municípios, e as
Assembleias de Freguesia (não inclui a Junta de Freguesia), nas freguesias; são eleitos
por sufrágio directo. São estruturas representativas que justificam um executivo e a sua
responsabilização política perante o órgão legislativo.
2. Atribuições do poder local (arts. 235º e sgts)
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Ana Júlia Maurício
A Constituição confere às autarquias locais o poder de prosseguir interesses
próprios das respectivas populações. Este poder articula-se com o princípio da
subsidiariedade (art. 6º), o princípio da descentralização (art. 237º) e o princípio da
prevalência do Direito do Estado.
3. Sistema de Governo das autarquias locais: a vertente política do “poder local”
O sistema de Governo tem evoluído para um progressivo protagonismo do Presidente
da Câmara Municipal. O Presidente da Câmara é o eixo do sistema de governo e da vida
política, em termos municipais. A Câmara Municipal é o órgão executivo que responde
politicamente perante a Assembleia Municipal. Dentro da Câmara, a supremacia cabe
ao Presidente. Tem-se assistido a uma presidencialização do sistema de governo dos
municípios. Este fenómeno é mais acentuado nos município do que nas freguesias.
Secção IV
Poder Político Informal
Poder político informal: poder que, por vezes, se sabe que existe mas que não se vê e
que, por vezes, sabe-se que existe e vê-se. Não está totalmente regulado pela
Constituição e pelas suas estruturas orgânicas.
Poder político informal: - Visível: 1. Eleitorado
2. Partidos políticos
- Invisível: 1. Formas ocultas de poder
§ 28. Eleitorado
O eleitorado traduz uma expressão política que se manifesta em dois momentos:
- eleições: escolher alguém;
- referendo: consulta a nível nacional, regional ou local. É a resolução de
uma questão em concreto; a adopção ou não de uma certa medida/resolução (legislativa
ou regulamentar).
99
Ana Júlia Maurício
O eleitorado tem o poder político de definir a orientação principal.
A teorização do poder político do eleitorado foi uma ideia desenvolvida por
Silvestre Nefrei (português) no século XIX e aprofundada por Bordeaux (francês) no
século XX.
O sufrágio expressa o exercício de um direito fundamental. Todos os eleitores
têm esse poder político informal.
§ 29. Partidos Políticos
Os partidos políticos são expressão do poder político, tendo três funções:
- Função de mediadores/veículos entre o eleitorado e os órgãos de
Estado, porque lhes compete fornecer o elemento humano (já que os partidos políticos
têm o monopólio dos candidatos à AR) e porque fornecem linhas
ideológicas/programáticas ao Governo a à AR (quer à acção legislativa quer à acção
executiva).
- Função de agentes de controlo/fiscalização do próprio poder. Não há
democracia, nem maioria sem que haja oposição. Os partidos políticos não se limitam a
apoiar um governo. Têm também um papel na fiscalização e controlo política da sua
acção legislativa e executiva. São um instrumento da democracia. São expressão do
pluralismo e da fiscalização/controlo. Têm uma função de pluralismo numa sociedade
democrática.
- Função de detenção do poder político pois são juridicamente pessoas
colectivas de Direito privado, mas exercem funções públicas. Não são uma criação do
Estado. São uma criação da autonomia privada da sociedade, mas exercem uma função
pública e política. Expressam um mecanismo de exercício privado da função pública.
§ 30. Formas ocultas de poder
As formas ocultas de poder são mecanismos de
influenciar/pré-determinar/condicionar o conteúdo das respectivas decisões políticas.
Podem ser uma manifestação da pluralidade de interesses da sociedade:
100
Ana Júlia Maurício
- Lobbying: grupos de pressão com influência junto do poder.
- Formas ilícitas de comportamento de pessoas ou grupos (suborno,
chantagem).
Existem formas ocultas de poder não só a nível central mas também a nível
local.
Capítulo III
Fontes do Ordenamento Jurídico
Secção I
Princípios fundamentais
§ 31. Princípios fundamentais
31.1. Princípio da não exclusividade das fontes normativas formais
São fontes de Direito não apenas as fontes formais ou não apenas as fontes que
resultam de processos regulados pelo Direito. Há fontes de Direito que surgem de modo
informal, como o Costume. Nem todo o Direito é escrito. Há Direito não escrito.
Exemplos de Direito não escrito são o Direito Consuetudinário interno e o Direito
Consuetudinário internacional. O Direito Costumeiro internacional é preponderante no
âmbito das fontes internacionais de Direito.
31.2.Princípio da pluralidade de fontes formais
Não há uma única fonte formal de Direito. Há várias fontes formais de Direito:
há fontes de natureza legislativa, administrativa e jurisdicional. O legislador produz
Direito de natureza normativa através de leis, decretos-leis e decretos legislativos
regionais (art. 112º, nº 1). O administrador produz Direito de natureza normativa ao
criar regulamentos (Será que há contratos de ordem normativa, precedente?). O tribunal
produz Direito de natureza normativa pois a jurisprudência pode menar decisões com
força obrigatória geral.
101
Ana Júlia Maurício
31.3. Princípio da tipicidade da reserva de lei
Reserva de lei: matérias que só podem ser tratadas por via legislativa, ou seja, só
são objecto de disciplina jurídica por acto com força de lei (lei, decreto-lei, decreto
legislativo regional). Só a lei pode disciplinar essas matérias. Reserva de lei significa
reserva de acto legislativo/poder legislativo.
O princípio da tipicidade da reserva de lei significa que só há reserva de lei nos
casos que a Constituição determine. Se a matéria não é objecto de exigência
constitucional de ser disciplinada por acto legislativo, é possível que sobre essa matéria
exista um regulamento independente. No silêncio da Constituição não é obrigatória a
existência de acto legislativo; pode haver um regulamento.
A reserva de lei opõe-se à reserva de administração e à reserva de jurisdição. A
reserva de lei é uma manifestação constitucional do princípio da separação de poderes.
Se a lei invadir essas matérias há violação do princípio da separação de poderes. Isto
demonstra a importância das reservas de competência a delimitar a reserva de lei.
31.4. Princípio da tipicidade dos actos legislativos
1. Só são actos legislativos aqueles que a Constituição reconhece como tais.
Como é que a Constituição reconhece um acto como acto legislativo? Através de
um elenco desses actos (art. 112º).
Pode haver uma interpretação extensiva. Não é necessário que exista uma norma
a dizer expressamente que actos são actos legislativos.
Discute-se se as leis orgânicas são ou não actos legislativos. Uns dizem que sim,
outros dizem que não.
2. Uma lei não pode criar outras categorias de actos legislativos. A Constituição
tem o monopólio da criação de actos legislativos. Como expressa o art. 112º, nº 5:
“Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos”.
31.5. Princípio da revogabilidade das normas
Todas as normas são revogáveis. Todavia, há limites quanto à revogabilidade:
102
Ana Júlia Maurício
- Uma norma de grau hierarquicamente inferior não revoga uma norma de grau
hierarquicamente superior.
- A revogabilidade pode estar limitada pela proibição de retrocesso de certas
matérias (normas jusfundamentais). Há normas que consagram direitos fundamentais
que não podem ser revogadas à luz de um Estado de Direito Humanos (art. 288º).
- Quanto à norma que implementa o resultado de referendo vinculativo, esta só
pode ser revogada por uma outra norma também resultante de referendo vinculativo.
31.6. Princípio da não comunicabilidade entre normas de diferente natureza
Uma norma de natureza legislativa não determina a revogação de um
regulamento. Pode é determinar, alterada a norma legislativa, a sua caducidade do
regulamento por incompatibilidade superveniente.
Uma norma de Direito Comunitário não revoga uma lei nacional que lhe é
contrária. Torna-a é inaplicável.
Não há comunicação de efeitos directos entre normas de origem diferente/ de
natureza diferente.
31.7. Princípio da pluralidade de relações internormativas
Há uma pluralidade de tipos de relacionamento entre actos normativos, ou seja,
há uma pluralidade de inter relacionamento normativo.
Há vários tipos de relações entre as normas:
- Relações entre leis da República e leis regionais.
- Relações de supremacia de diferentes níveis: entre decretos-leis autorizados e
as leis de autorização legislativa, entre as leis de bases e o seu desenvolvimento.
- Relações entre os regulamentos e as leis.
- Relações entre regulamentos dos municípios e os regulamentos das freguesias;
entre os regulamentos dos municípios e os regulamentos do Governo.
É também de referir o relacionamento existente entre tratados internacionais e o
Direito Português, incluindo o relacionamento entre o Direito da EU com a
Constituição.
103
Ana Júlia Maurício
Já não há uma pirâmide única de relacionamentos dentro do sistema jurídico
português.
Exemplo de relacionamento horizontal e vertical entre actos normativos:
- Lei geral e lei especial
- Actos de diferentes funções do Estado
31.8. Princípio da vinculação da Administração e dos Tribunais ao Direito
Os tribunais devem aplicar a lei e só podem recusar-se a aplicar a lei por razões
de inconstitucionalidade e ilegalidade (art. 204º). Os tribunais têm o poder e o dever de
não aplicar normas inconstitucionais ou ilegais, mas nunca podem recusar-se a aplicar a
lei por razões pessoais.
A Administração está subordinada à lei e à Constituição (art. 266º, nº 2). A
Administração só tem o dever de não aplicar normas se elas forem inconstitucionais
(art. 18º, nº 1) ou se violarem certos princípios fundamentais (A Doutrina diverge
quanto a esta possibilidade.).
31.9. Princípio da supletividade do Direito do Estado
Na ausência de norma infra-estadual, o Estado e o seu Direito é aplicado. Mas
com a particularidade de que, se o ente infra-estadual regular certa área, o Direito
estadual para essa área torna-se inaplicável (art. 228º, nº2).
31.10. Princípio da prevalência do Direito do Estado
O Estado, enquanto titular da prossecução do bem-estar geral, pode emanar
normas que têm primado hierárquico e aplicativo face às entidades infra-estaduais. São
os tribunais do Estado que garantem a aplicação do Direito do Estado e a sua
prevalência (art. 3º). A função jurisdicional não está descentralizada, o que significa que
ela é também garante da prevalência do Direito do Estado.
Secção II
104
Ana Júlia Maurício
Actos legislativos
§ 32. Teoria geral dos actos legislativos
32.1. Sentido e forma de lei
Sentido
O ordenamento jurídico tem uma pluralidade de sentidos para o termo lei. O
termo lei pode aparecer em diversos sentidos:
- Lei em sentido de norma jurídica, lei como equivalente a Direito. Exemplos:
art. 13º, nº 1 “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a
lei.”; art. 266º, nº 2 “Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à
Constituição e à lei”.
- Lei no sentido de compreender todas as fontes intencionais de criação de
Direito. Lei como fonte intencional/voluntária de criação de Direito. A lei surge oposta
ao Costume. Este sentido é mais restrito que o anterior.
- Lei como acto/expressão da função legislativa, como expressão formal do
exercício da função legislativa/poder legislativo. A lei surge oposta à Constituição. A lei
como oposta ao regulamento.
- Lei como acto proveniente da AR. Lei opondo-se a decreto-lei e a decreto
legislativo regional.
Há que ter em atenção qual o sentido do termo lei em cada norma concreta.
Lei em sentido material versus lei em sentido formal:
Lei em sentido material tem a ver com a ideia de normatividade. Tem a ver com
a ideia de norma. Uma lei para ser lei em sentido material tem de ter duas
características: a generalidade (A norma destina-se a uma categoria mais ou menos
ampla da sociedade e não a uma pessoa concreta e individual.), e a abstracção (A norma
é destinada a uma categoria mais ou menos ampla de situações e não a situações
concretas.).
105
Ana Júlia Maurício
Há, porém, leis que têm um conteúdo concreto. Por exemplo, as leis do
Orçamento, as leis de amnistia, as leis de autorização legislativa. Estas são denominadas
leis medida. As leis medida são leis a que lhes falta o conteúdo normativo. São leis que
envolvem uma medida, uma decisão, uma providência para situações concretas. Estas
são leis produto de um Estado intervencionista, um Estado que pretende transformar a
sociedade. Estas leis envolvem verdadeiros actos administrativos, elas traduzem uma
forma de administratização da função legislativa. O legislador emana uma lei mas com
um propósito que se insere no âmbito administrativo.
A lei medida não é lei em sentido material, pois carece de normatividade. Ela é
apenas lei em sentido formal, ou seja, apenas pela sua forma adquire a qualificação de
lei. Lei em sentido formal engloba as leis medida, a que falta a característica da
normatividade. Na lei medida há uma ausência de materialidade da lei.
Algumas questões:
1. Pode a AR, através de leis medida, emanar actos administrativos? / Pode a AR
emanar leis medida no âmbito da actividade administrativa? Não.
Razões:
1. Princípio da separação de poderes e da competência. A AR
não tem competência administrativa.
2. O Governo é o órgão superior da Administração Pública.
Dentro dos órgãos de soberania só o Governo é o órgão
superior da Administração Pública. De acordo com o princípio
da equiordenação, a AR nunca pode exercer funções
administrativas ou emanar normas de conteúdo administrativo,
pois estaria a invadir a esfera de competência do Governo. Se
o fizesse, haveria dupla inconstitucionalidade:
inconstitucionalidade material, por violar o princípio da
separação de poderes, e inconstitucionalidade orgânica, por
invadir a esfera de competência do Governo.
2. Pode o Governo, através de decretos-leis, praticar actos administrativos, ou
seja, emanar leis medida? Sim.
Razões:
106
Ana Júlia Maurício
1. O Governo é simultaneamente órgão com competência
administrativa e legislativa. O Governo tem competência
legislativa e competência administrativa.
2. Não obstante essas competências, isso não significa que tenha
total liberdade para emanar decretos-leis medida. Há que
respeitar o princípio da igualdade e o da imparcialidade. Não é
possível distorcer ou inverter o princípio da igualdade e o da
imparcialidade ao emanar-se uma lei medida (art. 268º, nº 4,
que garante o direito à tutela contra todos os actos
administrativos, independentemente da sua forma).
Os decretos-leis que sejam materialmente administrativos estão sujeitos a triplo
controlo:
1. Controlo político do PR, através da figura da promulgação e do veto. Se o
PR vetar um decreto-lei medida, pode o Governo transformá-lo em proposta
de lei à AR? Não, o veto do PR é absolutíssimo nesses casos. Se a AR não
tem competência para emanar leis sobre matérias administrativas, o Governo
não pode fazer uma proposta de lei à AR sobre essas matérias.
2. Controlo em sede preventiva da constitucionalidade. O diploma é passível de
fiscalização preventiva e sucessiva da constitucionalidade. Estes diplomas,
os decretos-leis medida, não estão imunes a um controlo da sua
constitucionalidade.
3. Controlo por parte do Contencioso Administrativo. O Governo pode usar a
forma de decreto-lei nestes actos administrativos e, ao fazê-lo, o decreto-lei
medida fica sujeito a três tipos de controlo. Se esse acto administrativo fosse
antes emitido em forma de despacho não estaria sujeito a triplo controlo;
haveria apenas controlo por parte do Contencioso Administrativo.
Lei em sentido formal é a lei a que falta a generalidade, a que falta o conteúdo
normativo. Há casos em que a ordem jurídica permite a existência de leis em sentido
formal. Não há uma imperatividade da normatividade da lei, salvo casos excepcionais.
A Constituição adopta o sentido de lei em sentido formal (Jorge Miranda discorda desta
posição.). Isso explica o facto da Constituição obrigar que certas leis tenham conteúdo
107
Ana Júlia Maurício
normativo, como por exemplo em matéria de restrições de direitos, liberdades e
garantias (art. 18º, nº 3), em matérias de incapacidades eleitorais (art. 50º, nº 3) e em
matérias de leis penais punitivas ou leis sancionatórias (art. 29º, nº 1). Fora desses casos
a Constituição não implica que haja generalidade. A generalidade está ligada ao
conceito de Estado de Direito, ao princípio da igualdade e pode também decorrer do
princípio de separação de poderes.
Forma de Lei
Princípio da tipicidade das formas de lei. Só são actos legislativos aqueles que a
Constituição identifica como tais. A Constituição identifica de forma expressa (art.
112º, nº1) ou pode extrair-se outros tipos de lei através de interpretação/por via
interpretativa.
A competência legislativa da AR tem como forma a lei.
A competência legislativa do Governo adquire a forma de decreto-lei.
A competência das Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas tem como
forma o decreto legislativo regional.
A Constituição não permite que resultem outros actos legislativos de uma lei, ou
seja, nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos (art. 112º, nº 5, 1ª
parte).
A Constituição consagra a proibição de regulamentos delegados (art. 112º, nº 5,
2ª parte). O que são regulamentos delegados? São normas regulamentares praticadas
pela administração, mas habilitadas a interpretar, integrar, modificar, suspender ou
revogar uma lei. O Direito Português exclui essa hipótese. Não há, pois, regulamentos
com força de lei.
Mas o Direito Português não proíbe a deslegalização. O que é a deslegalização?
Deslegalizar é retirar a força de lei a um acto ou a uma norma legislativa. Na
deslegalização, o legislador diz que certa matéria, apesar de ter a forma de lei, é de
natureza regulamentar. Assim, empreende-se a desvalorização/degradação da norma.
Exemplo: Um diploma com 50 artigos. No art. 50º estipula-se que as matérias
referenciadas nos arts. 40º a 49º são regulamentos. Este é um fenómeno de auto-
deslegalização. Assim, as matérias dos arts. 40º a 49º podem ser modificadas por via de
regulamento. As matérias dos arts. 1º a 39º e do art. 50º só podem ser alteradas por via
legislativa. A deslegalização oferece um campo de matérias ao Direito Administrativo e
108
Ana Júlia Maurício
é uma forma de diminuir a força de lei do conteúdo de uma norma, permitindo a sua
alteração através de um regulamento.
A deslegalização pode ser feita pelo próprio diploma que cria a norma legislativa
e retira a natureza legislativa à norma (auto-deslegalização) ou pode ser feita por outra
lei que procede à deslegalização parcial de determinada lei (hetero-deslegalização). Não
é possível haver deslegalização em matéria de reserva de lei. A deslegalização de
normas de reserva de lei consubstancia um fenómeno inconstitucional.
Esta matéria está relacionada com o princípio da supletividade do Direito do
Estado. As normas deslegalizadas são normas supletivas. Quando se procede a uma
deslegalização, abrindo-se a porta para a Administração, através de um regulamento,
modificar as normas anteriormente legislativas, está a conferir-se natureza supletiva a
essas normas.
O elenco de leis a que se refere o art. 112º, nº 1, é um elenco fechado? Não. É
possível encontrar na Constituição outros actos legislativos sem violar o princípio da
tipicidade, pois eles são extraídos através da interpretação da Constituição.
Há outros actos legislativos? Sim. Quais?
1. Leis orgânicas. O art. 166º, nº 2, identifica quais são, dentro da área da
competência de reserva absoluta da AR, as matérias que revestem a forma de lei
orgânica. O art. 166º é claro em matéria de forma dos actos, distinguindo no nº 2 as leis
orgânicas e no nº 3 outros actos legislativos. Há duas formas de actos legislativos da
AR.
As leis orgânicas não obedecem à regra de numeração das outras leis. Têm
numeração própria. As leis orgânicas têm especificidades quanto ao respectivo regime.
As leis orgânicas carecem de ser aprovadas obrigatoriamente em sede de votação final
por maioria absoluta (art. 168º, nº 5). Às restantes leis basta-lhes serem aprovadas por
maioria simples, normalmente. O PR não pode promulgar as leis orgânicas
imediatamente, pois a fiscalização pode ser desencadeada por outras entidades com
legitimidade processual (art. 278º, nºs 4 e 5). Se o TC se pronunciar pela
inconstitucionalidade do diploma, o PR é obrigado a vetar, independentemente de o
impulso ter partido dele ou de outra entidade com legitimidade processual (Primeiro-
Ministro ou 1/5 dos deputados).
109
Ana Júlia Maurício
Estas leis são um tipo de lei distinto das restantes em, pelo menos, sentido
formal e têm uma função distinta dos outros tipos de leis. As leis orgânicas são leis
complementares da Constituição, isto é, complementam o ordenamento constitucional
português. As leis orgânicas têm um estatuto especial no ordenamento português.
2. O Direito ordinário anterior à entrada em vigor da Constituição mantém-se,
desde que não seja contrário à Constituição ou aos princípios nela consignados (art.
290º, nº 2). É possível que hoje vigorem, no ordenamento jurídico português, outros
actos legislativos elaborados à luz de Constituições anteriores. Esses actos legislativos
têm força de lei, que lhes foi conferida pelas Constituições, ao abrigo das quais foram
aprovados e não através da Constituição de 1976. Este é o problema da pós-eficácia de
actos legislativos. Exemplos: O Código Civil actual foi aprovado por um decreto-lei na
forma prevista na Constituição de 1933. O Código Comercial foi aprovado sob a forma
de carta de lei, que era a forma prevista na Carta Constitucional. Estes exemplos
constituem cláusulas abertas permitidas pelo art. 290º, nº 2.
32.2. Conteúdo e força de lei
A lei tem um tipo de relacionamento com outras leis e actos jurídicos:
1. Relação da lei com actos jurídicos, ou seja, força de lei formal.
2. Relação da lei com as situações factuais, isto é, força de lei material.
Dentro da força de lei material:
1. A lei pode dispor, pela primeira vez, sobre todas as matérias, o que se designa
por força de lei material originária/dispositiva.
2. A lei pode também modificar, suspender, revogar a matéria disciplinada por
qualquer lei anterior, o que se designa força de lei material
negativa/superveniente.
A lei pode disciplinar pela primeira vez ou redisciplinar as matérias.
Dentro da força de lei formal:
Como se relaciona a lei com os outros actos legislativos?
110
Ana Júlia Maurício
1. A lei pode modificar, suspender, revogar, invalidar actos de outra natureza, o
que se designa por força de lei formal positiva. A lei determinando efeitos
nos outros actos.
2. Mas a lei não se deixa modificar, revogar, suspender por actos de natureza
diferente, o que designa por força de lei formal negativa.
Excepções à força de lei formal negativa:
1. Costume, nomeadamente o costume contra legem, que tem força jurídica
própria que faz ceder a força de lei formal negativa.
2. A ordem jurídica pode conferir força de lei a actos diferentes da lei. Esses
são actos com força afim à força de lei. Não são lei, mas têm força de lei.
São actos com força afim à força de lei: as declarações do TC de
inconstitucionalidade ou ilegalidade de normas, com força obrigatória de lei;
e as resoluções da AR que determinem a cessação de vigência de decretos-
leis (art. 169º).
32.3. Tipologia das relações inter-legislativas ou relações entre actos legislativos
1. Princípio da paridade hierárquico-normativa entre lei e decreto-lei. Este é um
princípio geral que decorre do art. 112º, nº 2, 1ª parte. A lei e o decreto-lei têm igual
valor jurídico. Na área concorrencial entre a AR e o Governo, o princípio é que tanto
uma lei revoga um decreto-lei como um decreto-lei revoga uma lei.
Qual o princípio para saber que acto legislativo revoga qual? O acto legislativo
posterior revoga o acto legislativo anterior. Vale o princípio da sucessão no tempo.
O princípio da paridade hierárquico-normativa vale tanto nas matérias de área
concorrencial como nas matérias de reserva relativa da AR.
Exemplo: A AR emana uma lei no âmbito da sua reserva relativa de
competência legislativa (art. 165º). Por exemplo, sobre o direito ao nome (art. 165º, nº
1, b). Posteriormente, o Governo obtém uma autorização legislativa para alterar ou
revogar a anterior lei da AR. O decreto-lei autorizado revoga a lei da AR. Aqui vale o
princípio da paridade hierárquico-normativa.
111
Ana Júlia Maurício
2. Há, todavia, actos legislativos que têm maior valor que outros actos
legislativos. Nem todos os actos legislativos têm o mesmo valor jurídico/posição
jurídica (art. 112º, nº 2, 2ª parte).
Há actos legislativos ordinários comuns e há actos legislativos ordinários
reforçados. As leis de valor reforçado ou leis reforçadas não podem ser revogadas por
lei ordinária comum. Uma lei ordinária comum que contrarie uma lei de valor reforçado
está ferida de ilegalidade.
Excepção ao princípio da paridade hierárquico-normativa das leis e decretos-
leis. Há dois níveis de leis dentro das leis ordinárias:
- Leis ordinárias comuns
- Leis ordinárias reforçadas, que são leis de valor reforçado e que têm uma
especial resistência no sentido em que só podem ser alteradas ou revogadas por lei com
o mesmo valor/natureza.
Uma lei ordinária comum não pode revogar uma lei de valor reforçado. Se a lei
comum revogar uma lei de valor reforçado padece de um vício: o da ilegalidade.
Exemplo: Lei de valor reforçado X de 1999 e lei ordinária comum Y de 2001. A
lei ordinária comum Y dispõe em sentido contrário ao da lei de valor reforçado X.
Produz-se aqui um efeito revogatório? Não, pois a lei ordinária comum Y não pode
produzir efeitos revogatórios na lei de valor reforçado X. Como a contraria, o fenómeno
é de ilegalidade. A lei de valor reforçado X tem resistência especial, pois não se deixa
modificar/revogar/suspender por lei de natureza diferente. Só uma outra lei ordinária
reforçada pode revogá-la/suspendê-la/modificá-la.
Quais são os principais tipos de leis ordinárias reforçadas? São de três tipos:
1. Leis ordinárias reforçadas de carácter geral, isto é, que dizem respeito a toda
a Ordem Jurídica. Têm valor reforçado face a todos os actos legislativos e não apenas
em relação a um acto legislativo especial. Têm um valor paramétrico face aos demais
actos legislativos. São critério, são normas padrão para os outros actos legislativos.
Que leis são essas?
- Os estatutos político-administrativos das Regiões Autónomas (art. 226º). Esta é
a lei mais reforçada das leis reforçadas. Não só são leis reforçadas a toda a legislação
112
Ana Júlia Maurício
regional, como face às demais leis da República. Nenhum decreto legislativo regional
ou lei da República pode contrariar os estatutos político-administrativos das Regiões
Autónomas.
- Lei do Orçamento de Estado (art. 167º, nºs 2 e 3). Esta lei tem, em matéria
financeira, um carácter vinculativo sobre todos os demais actos legislativos durante o
ano económico em curso.
- Lei das grandes opções do plano (art. 161º, g).
-Leis resultantes de um referendo de carácter vinculativo. A vinculatividade do
referendo exige a participação de mais de 50% dos eleitores inscritos. A lei que daí
resulte só pode ser revogada por outra lei proveniente de um referendo de carácter
vinculativo em sentido contrário.
2. Leis ordinárias reforçadas de carácter especial. São leis reforçadas só em
relação a certo acto legislativo, a um tipo de acto legislativo. Há uma relação de
especialidade subjacente a este tipo de leis reforçadas.
Que leis são essas?
- Leis de autorização legislativa em relação a decretos-leis autorizados ou
decretos legislativos regionais autorizados. A lei de autorização legislativa, elaborada ao
abrigo da al. a) do nº 1, do art. 165º, só é lei reforçada em relação ao decreto-lei do
Governo autorizado. Não é lei reforçada em relação aos demais decretos-leis.
- Leis de bases, face aos respectivos diplomas de desenvolvimento.
- Lei de enquadramento do orçamento, que é uma lei que define as regras a que
deve obedecer a elaboração do orçamento de Estado em cada ano. Esta lei tem valor
reforçado face à lei do orçamento, que se submete à lei de enquadramento orçamental.
- Lei do regime do referendo face a cada referendo.
- Lei do regime do estado de excepção em relação ao diploma que, em concreto,
declara o estado de sítio ou o estado de emergência.
- Lei quadro das reprivatizações face a cada diploma que proceda a uma
reprivatização.
3. Leis ordinárias reforçadas de carácter sui generis. Estas leis têm um carácter
reforçado, mas que não resulta do seu regime. Esse carácter reforçado resulta do seu
conteúdo e da sua função dentro do Ordenamento Jurídico.
Que leis são essas?
113
Ana Júlia Maurício
- Lei sobre a publicação, identificação e formulário dos diplomas. Esta lei tem
valor reforçado por causa da sua função no Ordenamento Jurídico Português.
- Lei que define a participação das organizações de trabalhadores na elaboração
da legislação laboral.
- As disposições do Código Civil sobre interpretação, integração, aplicação e
vigência das leis. Há quem entenda que estas disposições são leis ordinárias reforçadas.
Porém, Paulo Otero discorda e defende que estas normas são normas integrantes
materialmente da Constituição, com base numa natureza consuetudinária.
§ 33. Lei e decreto-lei
33.1. Principais tipos de leis da AR e a questão do seu valor reforçado
Há ou não há primado da AR no exercício da função legislativa?
Tipos de leis da AR:
1. Leis de revisão constitucional. Estas leis têm um estatuto especial que decorre de
várias características:
- Só podem apresentar projectos de revisão constitucional os deputados (art.
285º, nº 1). O Governo não tem poder de iniciativa legislativa sobre a matéria.
- Os projectos de lei carecem de maioria de 2/3 para serem aprovados (art. 286º,
nº 1).
- Quando um projecto de revisão constitucional é aprovado e promulgado,
implica que se proceda a uma republicação do texto da Constituição na íntegra. Isto
exclui a possibilidade de haver actos adicionais/apêndices/aditamentos à Constituição.
- Não há possibilidade do PR recusar a promulgação da lei de revisão
constitucional (art. 286º, nº 3). O PR está, pois, obrigado a promulgar a lei de revisão
constitucional. Não há veto político.
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Ana Júlia Maurício
- Pode ou não haver fiscalização preventiva da constitucionalidade da lei de
revisão constitucional? Sim. O PR pode solicitar ao TC a fiscalização preventiva da
constitucionalidade da lei de revisão constitucional. Se o TC se pronunciar pela
inconstitucionalidade, o PR é obrigado a devolver o diploma à AR e esta ou o confirma
por maioria de 2/3 ou não. Se o confirmar, o PR é obrigado a promulgá-la (art. 286º, nº
3).
- Há limites à revisão constitucional. Limites: temporais (art. 284º), materiais
(art. 288º) e circunstanciais (art. 289º).
2. Leis estatutárias ou estatutos da Regiões Autónomas (art. 226º).
A iniciativa do processo cabe, apenas, à Assembleia Legislativa da respectiva
Região Autónoma. Só a Assembleia Legislativa da respectiva Região Autónoma tem
iniciativa para alterar o seu estatuto. A Assembleia Legislativa da Região Autónoma
(RA) tem o monopólio da iniciativa para desencadear o processo legislativo, ou seja,
tem iniciativa exclusiva (art. 226º, nº 1).
A decisão final cabe, contudo, à AR, que pode:
- Aprovar o diploma que segue para promulgação pelo PR (art. 226º, nº 1).
- Rejeitar a proposta de estatuto (art. 226º, nº 2). A AR tem de o remeter à
Assembleia Legislativa da RA para que esta emita parecer. A Assembleia Legislativa da
RA pode readaptar a sua proposta ou pôr termo ao processo legislativo.
- Introduzir alterações que têm de passar pela Assembleia Legislativa da RA que
emite parecer (art. 226º, nº 4). A AR não pode aprovar alterações à proposta da
Assembleia Legislativa da RA sem, antes, devolver o diploma à Assembleia Legislativa
da RA. Mesmo que a Assembleia Legislativa da RA emita parecer negativo, a AR pode
aprovar à mesma o diploma.
Os estatutos das RA são leis da República e não leis das RA, apesar de as
Assembleias Legislativas das RA terem a reserva de iniciativa originária legislativa. A
decisão final cabe única e exclusivamente à AR.
3.Leis orgânicas (ver 32.1.).
4.Leis do Plano e Lei do Orçamento de Estado (ver 32.3.).
5.Lei de Bases.
115
Ana Júlia Maurício
O que são? São leis que definem os princípios estruturantes ou as regras
fundamentais do regime de uma determinada realidade.
O regime jurídico é composto pela lei de bases e pelo seu desenvolvimento.
A intervenção do legislador sobre determinada matéria tem graus ou níveis
diferentes de intensificação, de intenção legislativa, de densificação. O legislador pode
não regular tudo de uma só vez. Pode regular, primeiramente, os grandes princípios, as
traves mestras. Quando o faz, o legislador emana uma lei de bases e remete para um
momento posterior o seu desenvolvimento. O legislador difere para dois momentos a
regulação de certa matéria.
Mas o legislador também pode legislar todo o regime jurídico de uma só vez, ou
seja, emana as bases e o seu desenvolvimento.
A Constituição permite diferenciar dois tipos de leis de bases:
1. Leis de bases sobre matéria de reserva da AR:
- Reserva absoluta de competência legislativa (art. 164º). Exemplo nº 1: art.
164º, i) A AR tem reserva absoluta de legislar sobre as bases do sistema de ensino.
Neste caso, compete apenas à AR emanar as bases do sistema de ensino. O respectivo
desenvolvimento encontra-se na área concorrencial. Exemplo nº 2: art. 164º, u). A AR
tem reserva absoluta de legislar sobre o regime das forças de segurança. Neste caso, ou
a AR emana uma lei do regime das forças de segurança ou a AR elabora uma lei de
bases sobre o sistema de segurança e, num momento posterior, elabora outra lei de
desenvolvimento das bases. Neste caso, só a AR tem competência legislativa para
aprovar as bases e o respectivo desenvolvimento, podendo fazê-lo de uma só vez ou em
momentos distintos.
- Reserva relativa de competência legislativa (art. 165º). Exemplo nº 1: art. 165º,
nº 1, f). A AR tem reserva relativa de legislar sobre as bases do sistema de segurança
social. A AR ou o Governo, mediante autorização legislativa, podem emanar lei de
bases. O desenvolvimento da lei de bases está na área concorrencial, pois o que é da
reserva são, apenas, as bases do sistema. Será que o Governo tem ou não reserva para o
desenvolvimento ou a AR pode, também, emanar lei que desenvolva as bases? Sobre
este aspecto há divergência na doutrina. Segundo Paulo Otero, o Governo tem reserva
de competência legislativa no desenvolvimento de bases na área concorrencial.
Exemplo nº 2: art. 165º, nº1, h). A AR tem reserva relativa para legislar sobre o regime
116
Ana Júlia Maurício
geral do arrendamento rural e urbano. Neste caso, a AR ou o Governo, mediante
autorização legislativa, podem legislar sobre ou o regime geral no seu todo de uma só
vez ou, primeiramente, sobre as bases e, depois, sobre o desenvolvimento.
2. Leis de bases sobre matérias da área concorrencial.
Podem existir leis de bases na área concorrencial e, também, decretos-leis de
bases na área concorrencial. Até na área de reserva relativa, o Governo pode emanar
decreto-lei de bases, se for previamente autorizado pela AR. Se há uma lei de bases na
área concorrencial, será que o diploma de desenvolvimento está obrigado a respeitar
essas bases? Sim (art. 112º, nº 2, in fine). O desenvolvimento de leis de bases está
submetido às leis de bases. Se o Governo emitir as bases e se se admitir que a AR tem
competência para desenvolver as bases, o seu desenvolvimento efectuado pela AR tem
de se subordinar ao decreto-lei de bases do Governo. Se o decreto-lei de
desenvolvimento tem de estar subordinado à lei de bases, também a lei de
desenvolvimento (caso se admita que a AR tem essa competência) tem de se subordinar
a decreto-lei de bases. Isto decorre do princípio do reconhecimento de que a AR tem
competência para desenvolver lei de bases em matéria de área concorrencial, o que não
é possível na opinião de Paulo Otero. Paulo Otero defende que, como decorre do art.
198º, nº 1, c), o Governo tem reserva para desenvolvimento de bases.
6. Leis de autorização legislativa.
Estas leis surgiram formalmente com a Constituição de 1911. Antes, todavia, já
existia uma prática inconstitucional da existência dessas leis de autorização legislativa.
Com a sua consagração na Constituição de 1911 visava-se evitar a prática de decretos
ditatoriais, o que era comum na vigência da Carta Constitucional de 1926.
O que é uma lei de autorização legislativa?
É uma lei que permite ao Governo (art. 198º, nº 1, b) e, em certos casos, às
Assembleias Legislativas das RA (art. 227º, nº 1, b) legislar sobre matérias da reserva
relativa da AR (art. 165º).
Qual é a natureza desta lei? O que significa a autorização legislativa? Será que a
lei de autorização produz uma alienação da competência da AR? Será que a AR perde a
competência de legislar sobre essa matéria, durante a vigência da lei de autorização
legislativa?
117
Ana Júlia Maurício
Não. Essa é uma prática existente em França. Em Portugal, há elasticidade do
exercício da competência. Não só pode a AR legislar sobre essa matéria, como o
Governo, durante certo período, pode fazê-lo, graças à autorização legislativa. Há um
fenómeno de delegação de poderes, sem que a AR perca os poderes delegados.
Regime das leis de autorização legislativa. A lei de autorização legislativa:
- Só pode versar sobre matérias do art. 165º.
- Não pode ser uma autorização sobre todas as matérias do art. 165º, de uma só
vez. Não há autorização em termos globais. A autorização tem de especificar que
matéria do art. 165º pode ser legislada pelo Governo.
- Tem de explicitar o objecto, o sentido, a extensão, duração e os limites da
mesma autorização (art. 165º, nº 2).
A autorização legislativa é, em princípio, uma lei autónoma sujeita a veto,
promulgação e fiscalização preventiva da constitucionalidade, caso o PR a solicite.
Pode, todavia, estar inserida num outro diploma (ex. Lei do Orçamento de Estado).
A mesma autorização só pode ser utilizada uma única vez, sem prejuízo da sua
execução parcelada (art. 165º, nº 3). Exemplo: a AR autoriza o Governo para legislar
sobre o regime geral do arrendamento urbano (art. 165º, nº 1, h). O Governo pode
primeiro emanar as bases e, só posteriormente, através da mesma lei de autorização
legislativa, proceder ao seu desenvolvimento, dentro do período da duração autorização
legislativa. O que não é permitido ao Governo é ele emanar o regime geral e, depois, ao
abrigo da mesma autorização, proceder a alterações a esse regime.
Os destinatários da autorização legislativa são o Governo ou a Assembleia
Legislativa da RA. Se o destinatário for o Governo e se este for demitido, a autorização
legislativa caduca (art. 165º, nº 4). Se o destinatário for a Assembleia Legislativa da RA
e esta for dissolvida ou terminar a sua legislatura, a autorização legislativa caduca (art.
227º, nº 3). As autorizações legislativas também caducam com o termo da legislatura ou
dissolução da AR (art. 165º, nº 4).
Não é possível que o destinatário da autorização legislativa delegue a outro
órgão os poderes que lhe foram conferidos pela AR.
O decreto-lei emanado ao abrigo da autorização legislativa está ferido de
ilegalidade se violar a autorização legislativa, nomeadamente os princípios consignados
118
Ana Júlia Maurício
no art. 165º, nºs 2 a 5, e está ferido de inconstitucionalidade se violar os princípios
constitucionais.
Em princípio, a lei de autorização legislativa é uma lei autónoma sujeita a veto,
promulgação e fiscalização preventiva da constitucionalidade. Porém, há a prática de
integrar na Lei do Orçamento de Estado autorizações legislativas em matéria fiscal (art.
165º, nº 5). Dupla particularidade:
- Estas leis de autorização legislativa sobre matéria fiscal integradas no
Orçamento só caducam com o termo do respectivo ano económico e com o termo da Lei
do Orçamento desse ano. A dissolução da AR ou a demissão do Governo não determina,
neste caso, a caducidade, ao invés do que sucede com as restantes leis de autorização
legislativa.
- O disposto no art. 165º, nº 5, só se aplica se a autorização legislativa for sobre
matéria fiscal. Se na Lei do Orçamento estiverem contidas autorizações legislativas que
não sejam sobre matéria fiscal aplica-se o disposto nos nºs 2, 3 e 4 do art. 165º,
caducando com a demissão do Governo, com o termo da legislatura ou com a dissoluçõ
da AR.
33.2. Processo Legislativo Parlamentar
O processo legislativo é o conjunto sucessivo e ordenado de actos e
formalidades que visam a produção/elaboração de uma lei. Se está em causa uma lei da
AR, fala-se de processo legislativo parlamentar. Se está em causa um diploma do
Governo, fala-se em processo legislativo governamental.
A Constituição só regula parcialmente o processo legislativo. A Constituição
regula, em especial, o processo legislativo parlamentar.
As fontes do processo legislativo parlamentar não se esgotam, não se limitam à
Constituição. Está também contemplado no Regimento da Assembleia da República
(RAR) e em certas leis avulsas, como, por exemplo, na lei que regula a participação das
organizações dos trabalhadores na elaboração de legislação laboral, ou na lei que regula
a publicação, a identificação e formulário dos diplomas.
119
Ana Júlia Maurício
Há na Constituição e no RAR dois tipos principais de processo legislativo:
- o comum (art. 118º e seguintes do RAR), que se aplica por exclusão de partes;
- especiais (arts. 164º e seguintes do RAR), que se aplica:
- Na elaboração de estatutos regionais (art. 226º da CRP e arts. 164º a
168º do RAR), que é duplamente especial porque só pode ser desencadeado por
iniciativa das RA, mas se a AR introduzir alterações ou rejeitar o diploma, a RA tem de
emitir parecer não vinculativo.
- Na aprovação das leis de revisão constitucional, pois só os deputados
podem desencadear o processo legislativo (art. 285º, nº 1 da CRP).
- Nos processos de urgência (arts. 262º a 265º do RAR), pois a
Constituição e o RAR lhes pretendem dar maior celeridade.
Fases do Processo Legislativo:
1. Iniciativa legislativa
A iniciativa legislativa traduz o poder de iniciar/despoletar um processo
legislativo.
Como é que se dá início a um processo legislativo? Através da apresentação de
uma proposta ou de um projecto de lei.
Distinção entre iniciativa e competência:
Iniciativa é o poder de desencadear o processo legislativo e traduz-se na
apresentação de propostas ou projectos de lei.
A competência é o poder de decidir se há ou não lei naquela matéria. É o poder
decisório.
Por exemplo, o art. 164º regula a reserva absoluta da competência legislativa da
AR. Sobre estas matérias só a AR tem poder decisório, mas o Governo tem
iniciativa legislativa sobre qualquer das matérias do art. 164º. O Governo não
tem é competência legislativa, ou seja, o Governo pode apresentar proposta de
lei à AR, mas o Governo não tem competência legislativa, que está reservada,
em absoluto, à AR.
120
Ana Júlia Maurício
Quem tem iniciativa legislativa (art. 167º, nº 1):
- Deputados,
- Grupos parlamentares,
- Governo,
- Grupos de cidadãos eleitores,
- Assembleias Legislativas das RA, no que lhes diz respeito.
Exemplo nº 1: Tem a Assembleia Legislativa da RA da Madeira iniciativa de lei
que altere o regime da eleição do PR? Não. A razão que o explica não é o facto
dessa competência ser de uma reserva absoluta da AR (art. 164º, l), pois
competência não se confunde com iniciativa. O que o explica é o facto de que
esta não é uma matéria respeitante à AR. É uma matéria respeitante a todo o país
e não à RA.
Exemplo nº 2: “É da exclusiva competência da AR legislar sobre as eleições dos
deputados às Assembleias Legislativas das RA” (art. 164º, j). A Assembleia
Legislativa da RA tem poder de iniciativa neste caso? Sim, porque esta matéria
diz respeito à RA.
Pode o Governo apresentar proposta de lei sobre matéria contemplada no art.
164º j)? Sim, porque o art. 167º, nº 1 não inclui limites à iniciativa legislativa do
Governo. O art. 167º, nº 1, in fine, não pode ser interpretado como criando
competência legislativa reservada/exclusiva à RA.
As RA podem apresentar propostas de lei, no âmbito do art. 164º j) (Matéria de
eleição dos deputados às Assembleias Legislativas das RA). Todavia, a iniciativa
legislativa das RA não é reservada. Todas as entidades a que se refere o art.
167º, nº 1, podem ter iniciativa legislativa, no caso do art. 164º j).
No entanto, é preciso ter em conta o art. 226º, nº 1, e art. 227º, nº 1, e), nos
quais, à primeira leitura, é atribuída iniciativa legislativa reservada às
Assembleias Legislativas das RA, quando esteja em causa a eleição de
deputados às respectivas Assembleias Legislativas. Apesar de, no texto da
Constituição, vigorar uma reserva de iniciativa legislativa a favor das
Assembleias Legislativas das RA, há uma natureza temporalmente limitada a
essa reserva de iniciativa a favor das Assembleias Legislativas das RA, em
relação à eleição dos deputados às respectivas Assembleias Legislativas. Essa
121
Ana Júlia Maurício
disposição foi introduzida pelo art. 47º da Lei de Revisão Constitucional nº
1/2004, de 24 de Julho.
Dois tipos de iniciativa legislativa (duas dicotomias):
1. Iniciativa reservada versus iniciativa concorrencial
Há iniciativa legislativa reservada sempre que a Constituição apenas confira a
uma entidade a possibilidade de desencadear o processo legislativo. Por exemplo, em
relação à Lei do Orçamento o Governo tem reserva de iniciativa (art. 161º, g). Em
relação à lei de autorização legislativa só o Governo ou a Assembleia Legislativa da RA
tem reserva de iniciativa (art. 188º do RAR). Em relação aos estatutos das RA, a
Assembleia Regional da RA tem iniciativa legislativa reservada (art. 164º do RAR). Em
relação à lei de revisão da Constituição os deputados têm iniciativa legislativa reservada
(art. 285º, nº 1).
Há iniciativa legislativa concorrencial quando a Constituição não impõe a
iniciativa legislativa reservada. A regra é a iniciativa legislativa concorrencial.
2. Iniciativa originária versus iniciativa superveniente
A iniciativa legislativa originária é o poder de, pela primeira vez, apresentar
propostas/projectos sobre determinada matéria.
A iniciativa legislativa superveniente é o poder de, depois de apresentado um
projecto ou uma proposta de lei, apresentar alterações ou novas propostas ou novos
projectos de lei em relação ao que foi inicialmente apresentado.
Exemplo nº 1: quem tem iniciativa legislativa nos estatutos das RA? As RA, mas
a AR pode apresentar projectos de alteração à proposta da Assembleia Legislativa da
RA. As Assembleias Legislativas das RA têm iniciativa originária e a AR tem iniciativa
superveniente.
Exemplo nº 2: quando um grupo parlamentar apresenta um projecto de lei na AR
(iniciativa originária), os restantes grupos parlamentares podem apresentar projectos de
alteração ao projecto inicialmente apresentado (iniciativa superveniente). Na votação,
ver-se-á qual o projecto que acolhe a maioria dos votos. O mesmo aconteceria caso a
iniciativa legislativa originária proviesse de uma proposta do Governo.
A iniciativa legislativa junto da AR passa, ainda, pelo acto da comissão do
Presidente da AR que não deve admitir os projectos ou propostas de lei que considere
122
Ana Júlia Maurício
inconstitucionais. Esta decisão pode ser contestada no Plenário. O Presidente da AR não
deve admitir os projectos ou as propostas de lei que não definam concretamente o
sentido das respectivas alterações ou das respectivas modificações. Depois de
admitidos, os projectos ou as propostas de lei são publicados no Diário da AR (não no
Diário da República). São enviados à comissão competente nessa matéria e,
naturalmente, que toda a iniciativa legislativa que não foi aprovada na sessão legislativa
em que foi apresentada não pode ser renovada na seguinte sessão legislativa.
As iniciativas de lei do Governo e da AR caducam, respectivamente, com a
demissão do Governo e a dissolução da AR.
As iniciativas legislativas não votadas numa determinada sessão legislativa
transitam para a sessão legislativa seguinte, salvo para as propostas de iniciativa
governamental, se houver demissão do Governo e salvo para os projectos de lei de
iniciativa da AR, se houver dissolução da AR.
2. Apreciação/instrução da proposta ou projecto de lei
1. Apreciação interna no âmbito das respectivas comissões.
2. Apreciação externa, que nem sempre existe, mas há casos em que é
obrigatória a consulta de outros órgãos ou entidades. Por exemplo, ouvir a RA; as
organizações dos trabalhadores; ouvir a Ordem dos Advogados em relação ao seu
estatuto; ouvir o Conselho Económico e Social. A apreciação externa é uma clara
manifestação da democracia participativa.
3. Deliberação
A deliberação compõe-se de três momentos (art. 168º, nºs 1 e 2):
1. Discussão e votação na generalidade no Plenário. Há duas consequências
possíveis:
- rejeição e o processo legislativo termina;
- aprovação e o processo legislativo continua.
2. Discussão e votação na especialidade em Plenária ou em comissão. Há casos
em que a Constituição obriga a que haja discussão e votação na especialidade em
Plenário (art. 168º, nº 4).
3. Votação final global por maioria simples, em regra (art. 116º, nº 3), por
maioria absoluta (art. 168º, nº 5), por maioria de 2/3 (art. 168º, nº 6).
123
Ana Júlia Maurício
A redacção final é feita por comissão especializada, competente para o efeito. O
momento da redacção vai condicionar a versão que será publicada. A comissão de
redacção não se pode afastar do sentido deliberativo da votação final global.
4. Promulgação
Fixado o texto, o diploma passa a ter a designação de decreto da AR, que é
enviado para promulgação pelo PR.
O PR:
- Promulga (art. 136º, nº 1).
- Veta politicamente e devolve o diploma à AR (art. 136º, nº 1).
- Solicita ao TC a fiscalização preventiva da constitucionalidade do diploma (art.
278º, nº 1).
Se houver veto político:
- A AR confirma o diploma por maioria absoluta, em regra (art. 136º, nº 2). O
PR é obrigado a promulgar o diploma.
- A AR não confirma e o PR não é obrigado a promulgar e o processo legislativo
termina.
Quanto à intervenção do TC:
- Pronuncia-se pela inconstitucionalidade do diploma e o PR é obrigado a vetar
(art. 279º, nº 1). Este é o veto jurídico ou veto por inconstitucionalidade. Neste caso, a
AR pode:
i) Expurgar/retirar/alterar a norma inconstitucional, seguindo a orientação
do TC (art. 279º, nº 2).
ii) Confirmar o diploma por maioria de 2/3 (art. 279º, nº 2). O PR não é
obrigado a promulgar mas pode fazê-lo (art. 279º, nº2, a contrario sensu).
iii) A AR nada faz e o diploma cai, terminando o processo legislativo.
- Não se pronuncia pela inconstitucionalidade. O PR pode (art. 136º, nº1):
i) Promulgar de imediato o diploma.
ii) Vetar politicamente o diploma.
A falta de promulgação implica a inexistência jurídica do acto (art. 137º).
124
Ana Júlia Maurício
5. Referenda Ministerial (art. 140º)
A referenda ministerial é a contra assinatura. É a verificação da conformidade da
promulgação. A referenda tem como objecto a promulgação. A falta da referenda
ministerial implica a inexistência jurídica do acto (art. 140º, nº 2).
6. Publicação no Diário da República (art. 119º)
A falta de publicação implica a ineficácia jurídica do acto (art. 119º, nº 2).
33.3. Força jurídica dos decretos-leis e a temática do primado do parlamento
Há ou não primado da AR no Sistema Jurídico Português?
Argumentos a favor do primado da AR:
- A AR é o órgão representativo de todos os cidadãos portugueses (art. 147º).
- A AR tem competência legislativa genérica (art. 161º, c).
- A AR tem competência legislativa reservada (art. 164º e 165º).
- A AR pode sempre fazer imperar a sua vontade face ao veto político do PR,
através da confirmação do diploma e consequente obrigação do PR o promulgar.
- A AR tem a competência das competências, pois tem o monopólio da revisão
da Constituição. A lei de revisão é de promulgação obrigatória pelo PR (art. 286º, nº 3).
Significará isto que há primado legislativo da AR?
Ao primado da AR há a possibilidade de oposição de um primado do Governo.
- A AR tem competência legislativa genérica e reservada, mas nas áreas
concorrenciais há o princípio da paridade hierárquico-normativa da lei e do decreto-lei.
A AR emana uma lei sobre determinada matéria. Se o Governo, posteriormente, emanar
um decreto-lei sobre essa mesma matéria, esse decreto-lei revoga a lei da AR (art. 112º,
nº 2, 1ª parte).
125
Ana Júlia Maurício
- A AR tem reservas de competência (arts. 164º e 165º) e o Governo também
tem reservas de competência, nomeadamente em matéria legislativa (art. 198º, nº 2) e
reserva regulamentar (art. 199º).
- A AR tem reserva de competência, mas, nalgumas áreas, o Governo tem
reserva de iniciativa. Por exemplo, as leis de autorização legislativa e as leis em matéria
orçamental.
- A Constituição impõe limites à iniciativa legislativa dos deputados e grupos
parlamentares (art. 167º, nº 3: lei travão). Os deputados e os grupos parlamentar não
podem apresentar projectos que envolvam um aumento das despesas ou diminuição das
receitas do Estado previstas no Orçamento, no ano económico em curso. Com isto, visa-
se proteger a estabilidade orçamental. Através de interpretação à contrario sensu do art.
167º, nº 3, durante o ano económico em curso, só o Governo pode apresentar propostas
que envolvam um aumento das despesas ou uma diminuição de receitas do Estado,
previstas no Orçamento. Exemplo: No ano de 2008, na vigência do Orçamento de
Estado desse ano, o Governo visa baixar o IVA de 21% para 20% (art. 165º, nº 1, i).
- Quando o Governo é maioritário, a AR, em princípio, aprova o que o Governo
quer ou rejeita o que o Governo não quer.
- As leis da AR estão sujeitas a promulgação e a promulgação está sujeita a
referenda ministerial (art. 136º e art. 140º) e ninguém obriga o Primeiro-Ministro a
referendar.
- O veto do PR é suspensivo em relação às leis da AR e absoluto em relação aos
decretos-leis do Governo (art. 136º, nº 2 e art. 136º, nº 4). Como o Governo não pode
confirmar o diploma e superar o veto político do PR, há quem defenda que assim se
prova o primado da AR. Porém, na área concorrencial, o Governo pode apresentar, sob
proposta de lei, o decreto vetado pelo PR. Logo, o veto do PR não é realmente absoluto.
- Uma lei de bases na área concorrencial pode ser revogada, modificada por
decreto-lei de bases. Esta é uma manifestação do princípio da paridade hierárquico-
normativa.
Notas:
1. Primado do Governo no número de actos legislativos emanados. O número de
decretos-leis do Governo é superior face ao número de leis da AR.
126
Ana Júlia Maurício
Muitas das leis da AR são leis de autorização legislativa ou são leis que elevam
aldeias a vilas ou vilas a cidades, principalmente em anos de eleições autárquicas.
As leis sobre as principais matérias são emanadas sob a forma de decreto-lei.
2. O art. 169º regula a apreciação parlamentar de decretos-leis.
A AR pode, na área concorrencial ou em decretos-leis autorizados, chamar a si
um juízo sobre o mérito político do diploma. A AR, nestes casos, pode:
- Determinar a cessação de vigência do decreto-lei, mediante resolução (art.
169º, nº 1).
- Introduzir alterações através de lei (art. 169º, nº 1).
- Suspender a vigência de decretos-leis autorizados (art. 169º, nº 2).
Se a AR cessar a vigência do decreto-lei, mediante resolução, o Governo não
pode repetir esse decreto-lei no decurso dessa sessão legislativa. O Governo não está
impedido de voltar a emanar um decreto-lei sobre a mesma matéria do que foi suspenso,
apenas com algumas diferenças.
A resolução que determina a cessação de vigência não tem efeitos retroactivos
(art. 169, nº 4). O diploma produz efeitos até à publicação da resolução.
§ 34. Decreto Legislativo Regional e Lei da República
34.1. Poder Legislativo Regional
Há quatro tipos de poderes legislativos das RA:
1. Há um conjunto de matérias a que se refere o art. 227º, nº 1, i), l), n), p) e q),
que são da competência legislativa exclusiva/reservada da respectiva
Assembleia Legislativa da RA. Sobre estas matérias, se a AR ou o Governo
legislar, haverá uma situação de inconstitucionalidade orgânica. Sobre essas
matérias, por força do art. 232º, nº 1, as Assembleias Legislativas das RA
têm o exclusivo da competência legislativa, excluindo a intervenção de
outros órgãos com competência legislativa.
127
Ana Júlia Maurício
2. As Assembleias Legislativas das RA têm a possibilidade de desenvolver leis
de bases (art. 227º, nº 1, c). Esta competência designa-se competência
legislativa complementar ou de desenvolvimento. As Assembleias
Legislativas das RA têm competência paralela ao Governo no
desenvolvimento, para o âmbito regional, de leis de bases. Há um interesse
específico regional que justifica esse desenvolvimento. Enquanto as
Assembleias Legislativas das RA não procederem ao desenvolvimento das
bases, aplica-se a lei da República, que tenha procedido a esse
desenvolvimento (art. 228º, nº 2). Esta é uma manifestação do princípio da
supletividade do Direito do Estado.
3. As Assembleias Legislativas das RA têm também competência legislativa
autorizada (art. 227º, nº 1, b). Competência esta que resulta de uma lei de
autorização legislativa da AR. As Assembleias Legislativas das RA podem
proceder ao exercício de competência legislativa sobre matérias da reserva
relativa da AR, as matérias do art. 165º. Particularidades a essa competência
legislativa autorizada:
- As Assembleias Legislativas das RA não podem legislar sobre todas as
matérias do art. 165º, ao invés do que sucede com o Governo.
- Quando a Assembleia Legislativa da RA pede autorização legislativa à AR,
o pedido de autorização tem de ser acompanhado do anteprojecto de decreto
legislativo regional, que a Assembleia Legislativa RA elaborará, se lhe for
concedida a autorização legislativa pedida (art. 227º, nº 2).
4. Atribui-se às Assembleias Legislativas da RA uma competência
legislativa primária, normal, quando estão em causa matérias que dizem
respeito à RA, matérias elencadas no estatuto e não se encontrem resrvadas
aos órgãos de soberania (art. 227º, nº 1, a).
Duas observações:
- As matérias elencadas no estatuto criam uma presunção de que sobre elas o
órgão primariamente competente é a respectiva Assembleia Legislativa.
- Se o Governo ou a AR legislar primariamente sobre essas matérias, que
resultam do estatuto da RA, a lei da República em causa é uma lei ilegal,
porque viola uma reserva criada pelo estatuto da RA. A lei da República, ao
128
Ana Júlia Maurício
violar o estatuto da RA, é uma lei ilegal. Mas a lei da AR não pode ser
objecto de fiscalização preventiva pelo TC. O TC, a título preventivo, só
verifica a inconstitucionalidade das normas. O TC, a título preventivo, não
verifica a ilegalidade da norma. O PR pode vetar o diploma e pode pedir ao
TC a fiscalização preventiva, mas não poderá invocar a ilegalidade da norma
face ao estatuto da RA, em sede de fiscalização preventiva.
34.2. Relações entre lei regional e lei da República
Se uma lei da República disciplinar as matérias do art. 227º, nº 1, i), l), n) p) e
q), será uma lei inconstitucional.
A lei da República (art. 227º, nº 1, a) que incida sobre matérias que estão
reservadas no estatuto das RA, será ilegal e essa ilegalidade não pode ser objecto de
fiscalização preventiva pelo TC. Não é inconstitucional e a fiscalização preventiva do
TC só se pronuncia sobre a inconstitucionalidade.
Relações entre leis da República e diplomas regionais: A ausência de disciplina
legislativa da Assembleia Legislativa da RA ou de legislação regional não impede a
aplicação da lei da República ou que o direito do Estado seja aplicado (art. 228º, nº 2).
Esta é uma manifestação do princípio da supletividade do Direito do Estado.
Dois fenómenos que resultam da prevalência da lei da República/Direito do
Estado:
1. Função específica de lei de autorização legislativa em relação às matérias do
art. 227º, nº 1, b). A lei de autorização legislativa deve definir o sentido, o
objecto, a extensão e a duração da autorização (art. 165º, nº 2), ou seja, o
modo como a Assembleia Legislativa Regional deve proceder no âmbito da
autorização. A lei de autorização legislativa tem a função de orientar o modo
como pretende que a Assembleia Legislativa da RA exerça o respectivo
poder legislativo. Esta é uma manifestação do princípio da prevalência do
Direito do Estado. De referir, ainda, que a proposta da lei de autorização
legislativa deve ser acompanhada do anteprojecto do decreto legislativo
regional a autorizar (art. 227º, nº 2).
129
Ana Júlia Maurício
2. Função das leis de bases. Esta função traduz o princípio da prevalência do
Direito do Estado. Se a lei de bases define as linhas gerais, os princípios
estruturantes desse regime jurídico, isso significa que as Assembleias
Legislativas das RA, ao desenvolverem essa lei, têm de se conformar com o
padrão normativo proveniente da lei de bases. A lei de bases pode versar
sobre matéria ainda não disciplinada num decreto-lei regional ou sobre
matéria já disciplinada anteriormente pela Assembleia Legislativa da RA.
Exemplo nº 1: Há uma lei de bases de 2007 e é elaborado um decreto
legislativo regional de desenvolvimento em 2008. Este tem de se conformar
à lei de bases de 2007, às suas linhas gerais/estruturantes definidas pela lei de
bases.
Exemplo nº 2: Há um decreto legislativo regional de 2006, no âmbito do art.
227, nº 1, a), que disciplina, no âmbito da RA, uma matéria que respeita ao
seu estatuto. Será que sobre essa matéria os órgãos da República estão
impedidos de legislar? Não, pois o Estado é unitário e existem interesses
públicos gerais protagonizados pelo Estado, que permitem, que justificam
que o Estado elabore uma lei sobre essa matéria, nomeadamente uma lei de
bases. Logo, o Estado pode, em 2008, elaborar uma lei de bases sobre a
matéria em causa. Esta lei de bases pode determinar a ilegalidade
superveniente daquele decreto legislativo regional de 2006. Os princípios
estruturantes desta lei de bases de 2008 podem ser incompatíveis com as
opções do legislador regional vertidas naquele decreto legislativo regional de
2006. O fundamento deste fenómeno é a prevalência do Direito do Estado.
Aquele decreto legislativo regional de 2006, por força da lei de bases de
2008, passaria a estar ferido de ilegalidade superveniente. Há, no entanto,
quem defenda que a consequência é a caducidade daquele decreto legislativo
regional de 2006.
Se isto é assim, os órgãos de soberania têm sempre nas mãos a continuação
da vigência ou não de um decreto legislativo regional, no âmbito da matéria
do art. 227º, nº 1, a). A emanação superveniente de uma lei de bases sobre
essa matéria pode determinar que a matéria transite dessa al. a) para a al. c).
A lei de bases é um condicionamento, uma limitação à liberdade política
legislativa regional sobre essa matéria. Esta é uma manifestação do princípio
da prevalência do Direito do Estado.
130
Ana Júlia Maurício
Hoje já não há leis gerais da República. As leis gerais da República eram leis
cujos princípios fundamentais vinculavam as RA. Há, ainda, no entanto,
princípios gerais da colectividade, designadamente as leis de bases que se
sobrepõe aos interesses especiais das RA, que limitam à priori ou à posteriori
a competência legislativa das Assembleias Legislativas das RA. Esta é uma
manifestação do princípio da prevalência do Direito do Estado.
Há uma lei de bases de 2006 e um decreto legislativo regional de 2008, em
sentido contrário. É discutível se a desconformidade entre uma lei de bases e
um decreto legislativo regional posterior acarreta mera ilegalidade, pois viola
uma lei de valor reforçado, ou acarreta uma inconstitucionalidade. É
relevante a distinção pois se acarretar uma inconstitucionalidade, como
apontam os arts. 112º, nº 2, e 227º, nº 1, c), é passível de fiscalização
preventiva, pedida em sede da intervenção do Representante da República,
na respectiva RA.
Relações entre lei regional e lei da República:
1. Competência à RA ou ao órgão de soberania. Se há uma lei de um
desses órgãos que invada a esfera de competência reservada ao outro,
o fenómeno é de inconstitucionalidade orgânica.
2. Situação de supletividade do Direito do Estado quando não à
legislação da Assembleia Legislativa da RA (art. 228º, nº 2).
3. Situação de prevalência do Estado face ao Direito da respectiva RA.
Esta é a situação expressa nas: opção do estatuto (lei do Estado), no
poder inerente a uma autorização legislativa e nas leis de bases.
Secção III
Outros Actos Normativos
Os actos normativos não se esgotam nas leis. As leis são a expressão da vontade
do Estado. Mas as leis não esgotam o universo dos actos normativos.
131
Ana Júlia Maurício
§ 35. Costume
Fonte informal/não voluntária, que não depende de regulação para o seu
surgimento. A Lei pode sofrer as vicissitudes de um costume contrário (costume contra
legem).
O Costume não é apenas fonte de Direito ordinário. É também fonte de Direito
Constitucional. É, ainda, uma fonte internacional de Direito.
Não é fonte de Direito de acordo com a Lei (costume secundum legem). O
Costume pode ser praeter legem e contra legem e é aplicável nos mesmos termos em
Direito Constitucional.
Será que o Costume é Costume contra constitucionem ou é expressão normativa
da inconstitucionalidade? Será que o Costume contra constitucionem é inconstitucional
ou ele é uma nova norma que torna inaplicável a Constituição “oficial”?
Se o Costume contrário atinge princípios jurídicos fundamentais decorrentes da
dignidade da pessoa humana e do valor da Justiça, esse costume é inconstitucional.
Se o Costume contrário não atinge nenhum princípio jurídico fundamental
decorrente da dignidade da pessoa humana, esse costume é costume contra
constitucionem e é parte integrante da Constituição não-oficial.
Capítulo IV
Sistema de Defesa da Constituição
Secção I
Meios de defesa da Constituição
Secção II
Fiscalização da constitucionalidade e da legalidade
1ª Subsecção
Enquadramento Geral
132
Ana Júlia Maurício
§ 45. Inconstitucionalidade e garantia da Constituição
O fenómeno da inconstitucionalidade, isto é, da desconformidade de uma norma
com a Constituição e a existência de um mecanismo de controlo, de um mecanismo de
fiscalização da constitucionalidade é uma garantia da própria Constituição.
Uma Constituição flexível não comporta a ideia de inconstitucionalidade ou essa
ideia não é tão visível, pois uma Constituição flexível deixa-se modificar por um lei
posterior.
Quando uma Constituição é uma Constituição rígida, ela só pode ser
modificada/alterada por um processo intencional de revisão constitucional. Na
Constituição rígida não se aplica o princípio de que lei posterior revoga lei anterior. A
natureza rígida da Constituição inclui um mecanismo de fiscalização, que é uma
garantia da constitucionalidade das normas e da sua não alteração através de leis
ordinárias. Essa ideia de inconstitucionalidade traduz-se na garantia de ideia de Direito
expressa na Constituição. Todavia, nem sempre a existência da ideia de
inconstitucionalidade é acompanhada do mecanismo de fiscalização constitucional.
Pode existir a ideia de inconstitucionalidade, de desconformidade de uma norma com a
Constituição, sem eu haja mecanismos de fiscalização dessa inconstitucionalidade.
Exemplo: O PR só pode demitir o Governo, quando ele ponha em causa o
regular funcionamento das instituições democráticas (art. 195º, nº 2). Se o PR demitir o
Governo, sem que este estivesse a por em causa o regular funcionamento das
instituições democráticas, o acto político do PR, apesar de inconstitucional, não é
passível de fiscalização da constitucionalidade.
A fiscalização da constitucionalidade nem sempre tem o mesmo modelo. A
fiscalização da constitucionalidade pode ter um carácter meramente político, ou seja,
pode ser o órgão político a proceder a essa fiscalização (era o que sucedia nas
Constituições liberais portuguesas e é a tradição francesa, em nome do princípio da
separação de poderes) ou, pelo contrário, a fiscalização da constitucionalidade pode a
cargo dos tribunais. É a fiscalização jurisdicional da constitucionalidade. Em Portugal, a
fiscalização jurisdicional surgiu pela primeira vez em 1911. A fiscalização jurisdicional
é a tradição norte-americana. São os tribunais que fiscalizam a constitucionalidade das
leis.
133
Ana Júlia Maurício
Mas dentro dessa tradição jurisdicional, dentro do controlo jurisdicional da
constitucionalidade, há ainda três modelos possíveis:
1. Fiscalização difusa da constitucionalidade (art. 204º). A fiscalização
jurisdicional pode competir a todos os tribunais, tendo estes, no caso
concreto, o poder e o dever de não aplicar uma norma
inconstitucional. Este é o modelo norte-americano e o modelo
português vigente a partir de 1911, introduzido por via da influência
da Constituição brasileira de 1891.
2. Fiscalização concentrada da constitucionalidade (arts. 227º a 283º).
Um único órgão tem a primeira e a última palavra em matéria de
fiscalização da constitucionalidade. Neste modelo existe um TC. Este
é o modelo austríaco. É o modelo que surge na década de 20 do séc.
XX; é um modelo mais recente que o da fiscalização difusa. Este
modelo foi introduzido em Portugal em 1976.
3. Modelo de fiscalização misto, que é o modelo actualmente vigente
em Portugal. Este modelo conjuga a fiscalização difusa (art. 204º) e a
fiscalização concentrada a cargo do TC (arts. 227º a 283º). Todos os
tribunais e o TC fiscalizam a constitucionalidade.
§ 46. Tipologia da inconstitucionalidade e da ilegalidade
A inconstitucionalidade é a desconformidade de uma norma com a Constituição.
A ilegalidade é a desconformidade de uma norma com uma lei que não seja uma
lei constitucional.
Em ambos os casos, há uma situação de invalidade. Simplesmente a invalidade
pode ser mais gravosa (inconstitucionalidade) ou menos gravosa (ilegalidade).
Tipos de Inconstitucionalidade:
1. Inconstitucionalidade quanto ao objecto:
134
Ana Júlia Maurício
- Orgânica. Há inconstitucionalidade orgânica sempre que quem emanou o acto
não tinha competência para o fazer, isto é, quando o autor do acto age sobre uma
esfera de competência de outro órgão. Por exemplo, a AR legislar sobre matéria
respeitante à organização e funcionamento do Governo (art. 198º, nº 2) ou o
Governo legislar sobre matéria de reserva absoluta da AR (art. 164º).
- Formal. Há inconstitucionalidade formal sempre que o acto não obedeça à
forma, às formalidades, aos procedimentos impostos pela Constituição. O acto,
na sua forma externa, não respeita as formalidades devidas. Exemplo: As leis
orgânicas têm de ser aprovadas por maioria absoluta (art. 168º, nº 5) e a AR
aprova por maioria simples. Ou é uma questão de procedimento da futura lei.
Exemplo: Uma lei do Orçamento aprovada por iniciativa dos deputados
(contraria o art. 161º, g). Há um problema de iniciativa que se reflecte no
procedimento da feitura da lei, pois a iniciativa da lei do Orçamento está
reservada ao Governo. Haverá também uma inconstitucionalidade formal.
- Material, que se traduz numa desconformidade do conteúdo do acto com a
Constituição. Não é um aspecto que diga respeito a quem elaborou o acto ou ao
modo como o fez, mas, sim, diz respeito ao conteúdo, ao objecto, à solução
material que é desconforme à Constituição.
Exemplo: Uma norma que viole o princípio da igualdade é uma norma
materialmente inconstitucional. Uma norma que restrinja em demasia um direito
injustificadamente, violando o princípio da proporcionalidade.
2. Inconstitucionalidade:
- Originária, quando à data em que o acto é praticado, ele é desconforme com a
norma constitucional vigente a essa data.
- Superveniente, quando, por efeito de alteração de uma norma constitucional,
um acto, que até então era conforme à Constituição, passa a ser desconforme à
Constituição. Durante a vida do acto de direito ordinário, ele tem dois períodos
marcantes durante a sua vigência. Num primeiro período, ele era conforme com
a Constituição e, num segundo período, em que, por efeito de uma revisão
135
Ana Júlia Maurício
constitucional ou por efeito de uma mudança de Constituição, o acto passa a ser,
a partir da entrada em vigor da nova norma constitucional, desconforme com a
Constituição.
3. Inconstitucionalidade:
- Consequente/derivada. Exemplo: Se uma lei de bases é inconstitucional, o
decreto-lei de desenvolvimento ou o decreto legislativo regional de
desenvolvimento, produzido com fundamento nessa lei de bases, está também
ferido de inconstitucionalidade. A montante, a norma que lhe serva de
fundamento é inconstitucional. Há inconstitucionalidade derivada sempre que
uma norma tem como fundamento uma norma anterior que é inconstitucional.
- Antecedente. Exemplo: Há uma inconstitucionalidade de uma lei de bases que
gera a inconstitucionalidade do acto que lhe está dependente, que tem na lei de
bases o seu fundamento.
3. Inconstitucionalidade:
- Presente, nos casos em que as normas são desconformes ao texto constitucional
vigente.
- Pretérita:
- No domínio da mesma Constituição formal. Exemplo: Há um
decreto-lei de 1977, que foi emanado pelo Conselho da Revolução, que ainda
hoje é aplicado. Suscita-se uma questão em torno da constitucionalidade
orgânica desse decreto-lei. Será que o Conselho da Revolução tinha competência
para emanar esse decreto-lei, ou esse decreto-lei era da competência da AR? Que
texto dá a resposta? A Constituição de 1976, mas o texto em vigor entre 1976 e
1982. Para em 2008, se apreciar a constitucionalidade de um decreto-lei de 1977,
há que ressuscitar normas constitucionais do passado, que já não estão em vigor.
Este é o problema da inconstitucionalidade pretérita. Há inconstitucionalidade
pretérita sempre que o juízo de inconstitucionalidade toma como base normas
constitucionais que já não estão em vigor, normas do passado. Neste caso, o
136
Ana Júlia Maurício
juízo de inconstitucionalidade pretérita é feita ao abrigo da mesma Constituição
em sentido formal.
- Mas pode suceder que a inconstitucionalidade seja suscitada no
domínio de Constituições anteriores. Exemplo nº 1:Há uma lei de bases
de 1972 e discute-se hoje a inconstitucionalidade ou validade orgânica,
formal e material dessa lei de bases. Qual é o padrão constitucional de
referência? Qual era o texto constitucional em vigor em 1972? A
Constituição de 1933. Exemplo nº 2: O decreto-lei que aprovou a entrada
em vigor do Código Civil de 1967. Suscita-se a validade desse decreto-
lei, pois imagine-se que ele não foi promulgado pelo PR. Para se saber
qual a consequência da falta de promulgação do decreto-lei de 1966 é
preciso ir ao texto constitucional de 1933. Exemplo nº 3: Imagine-se que
está em causa o Código Comercial que foi aprovado por uma carta de lei
em 1888. A Constituição em vigor na altura era a Carta Constitucional de
1826.
Será que os tribunais criados, ao abrigo da Constituição de 1976, para defender a
ideia de Direito da Constituição de 1976 têm competência para controlar/verificar a
constitucionalidade de diplomas que ainda estão em vigor, mas que foram aprovados
face a uma Constituição que já não está em vigor/face a uma ideia de Direito distinta da
actual? Duas opiniões:
- Uns dizem que os tribunais criados em 1976 não têm competência para
verificar a constitucionalidade de normas emanadas à luz de uma outra Constituição. A
competência dos tribunais de 1976 indica que estes só podem defender a ideia de
Direito de 1976 e garantir a fiscalização pretérita da Constituição formal de 1976 e não
a de Constituições anteriores.
- Outros defendem que os tribunais da Constituição de 1976 têm competência no
âmbito da fiscalização pretérita, podem fiscalizar a constitucionalidade pretérita de
todas as normas, seja em relação à Constituição de 1976 ou em relação a texto
constitucionais anteriores. Esta opinião baseia-se no art. 290º, nº 2, “O Direito ordinário
anterior à entrada em vigor da Constituição mantém-se, desde que não seja contrário à
Constituição ou aos princípios nela consignados.”. Baseia-se também no princípio da
unidade da Ordem Jurídica. Esta é a opinião de Paulo Otero.
137
Ana Júlia Maurício
Isto prova a pós-eficácia das normas constitucionais. As normas constitucionais
podem continuar a produzir efeitos depois da cessação de vigência dessa Constituição.
§ 47. Mecanismos de controlo da inconstitucionalidade e da ilegalidade
No caso português, a fiscalização da constitucionalidade obedece a um sistema
misto, que concilia a fiscalização difusa, nos termos da qual todos os tribunais têm o
poder e o dever de recusar a aplicação de normas inconstitucionais (art. 204º), e a
fiscalização concentrada, que cabe ao TC.
Fiscalização incidental/difusa (art. 204º):
Perante um caso concreto, a resolução de um litígio, que opõe A a B, estando em
causa uma norma, o tribunal, ao aplicar a norma, tem o poder e o dever de se recusar a
aplicá-la, se a considerar inconstitucional. O tribunal emite, no caso concreto, um juízo
de inconstitucionalidade. A norma em sede de fiscalização está em sede de fiscalização
difusa/incidental pois incide sobre casos concretos, que são as questões principais, como
por exemplo sobre a resolução de um problema de poder paternal, divórcio,
cumprimento de um contrato, um acto da Administração.
O juiz não aplica certa norma ao caso concreto pois considera-a inconstitucional.
De todo o modo, a norma considerada pelo tribunal inconstitucional, em sede de
fiscalização difusa, continua a ser válida. Qualquer outro juiz pode aplicar essa mesma
norma com o entendimento de que ela não é inconstitucional. A fiscalização difusa
permite que existam decisões pelas quais o tribunal recuse a aplicação de uma norma a
um caso concreto, com o entendimento de que ela é inconstitucional.
Esse entendimento será fiscalizado, em sede de recurso, pelo TC. Se o TC se
pronunciar sobre a inconstitucionalidade em sede de fiscalização concreta, o Ministério
Público tem o dever de apresentar a questão junto do TC, quando essa norma volte a ser
aplicada num tribunal. Se se verificarem três declarações de inconstitucionalidade
proferidas pelo TC, em três casos concretos, em sede de fiscalização concreta, a norma
é declarada inconstitucional com força obrigatória geral (art. 281º, nº 3). A norma
desaparecerá, assim, do Ordenamento Jurídico. Esta é a ponte entre a fiscalização
sucessiva concreta e a fiscalização sucessiva abstracta.
138
Ana Júlia Maurício
Fiscalização Abstracta:
Por vezes, a fiscalização da constitucionalidade não ocorre a título incidental,
isto é, não é apenas um mero incidente no âmbito de uma outra questão principal. Há
casos em que o objecto do processo jurisdicional é ajuizar da validade ou da não
validade de certa norma à luz da Constituição. Esta é uma situação de fiscalização
abstracta da inconstitucionalidade. O objectivo da intervenção do tribunal é única e
exclusivamente conhecer se a norma é ou não conforme com a Constituição. Só o TC
pode proceder a este tipo de fiscalização.
2ª Subsecção
Fiscalização da inconstitucionalidade por acção
§ 48. Fiscalização preventiva
Este tipo de fiscalização pode ser feito antes ou depois da entrada em vigor da
norma no Ordenamento Jurídico. Quando a fiscalização da norma é feita antes da
entrada em vigor da norma no Ordenamento Jurídico, antes da sua publicação, diz-se
que esta é fiscalização preventiva da constitucionalidade. Este tipo de fiscalização pode
vir a impedir que um diplome valha como lei. A norma só vale como tal após a sua
publicação no Diário da República.
A fiscalização preventiva obedece a três modalidades:
1. Fiscalização preventiva dos diplomas legislativos regionais, cuja iniciativa,
cujo poder de desencadear o processo, cabe, em exclusivo, ao Representante da
República na RA (art. 278º, nº 2).
2. A fiscalização preventiva pode incidir sobre diplomas que são potenciais leis
orgânicas (art. 278º, nº 4). Quanto aos decretos da AR, que são potenciais leis orgânicas,
têm legitimidade activa para desencadear o processo o PR, o Primeiro-Ministro ou 1/5
dos deputados da AR em efectividade de funções.
3. Em relação aos demais actos cujo destino é a promulgação como lei ou
decreto-lei (art. 278º, nº 1), quem tem legitimidade para desencadear a fiscalização
139
Ana Júlia Maurício
preventiva é única e exclusivamente o PR. Também é possível verificar-se a
constitucionalidade de normas constantes de um Acordo/Tratado Internacional, que
tenha submetido ao PR para ratificação.
Qual é o regime a que está sujeita a fiscalização preventiva da
constitucionalidade?
Um diploma é enviado para promulgação ao PR. O PR pede ao TC a fiscalização
preventiva da constitucionalidade.
O TC pode, perante o pedido, emitir um de dois juízos:
1. O TC pronuncia-se pela inconstitucionalidade do diploma.
2. O TC não se pronuncia pela inconstitucionalidade do diploma. O juízo do TC
não é pela positiva, no sentido de julgar uma norma constitucional. O TC ou se
pronuncia pela inconstitucionalidade ou pela não inconstitucionalidade.
Se o TC se pronunciar pela não inconstitucionalidade, o PR não pode usar o veto
jurídico, pois o TC não se pronunciou pela inconstitucionalidade da norma.
Se o TC se pronunciar pela inconstitucionalidade, o PR é obrigado a vetar (art.
279º, nº 1) e a devolver o diploma ao órgão que o aprovou, com o acórdão do TC com a
justificação das razões pelas quais a norma é inconstitucional.
O órgão que aprovou o diploma (o Governo ou a AR) pode:
1. Nada fazer e o processo legislativo termina.
2. Expurgar (retirar do diploma a norma julgada inconstitucional). Há casos em
que esta hipótese não se verifica, nomeadamente quando o vício é a
inconstitucionalidade orgânica, pois o órgão que emanou o diploma não tem
competência para o elaborar e também não tem competência para sanar o vício. O
expurgo é possível em casos de inconstitucionalidade material e em casos de preterição
de formalidades. O expurgo não é possível em situações de inconstitucionalidade
orgânica.
Se o órgão em causa expurgou ou fez aditamentos à norma, será que a
inconstitucionalidade dessa norma aumentou? O PR pode desencadear nova fiscalização
preventiva face às normas aditadas, mas não face a normas já existentes no diploma, em
relação às quais o PR não havia suscitado a questão da inconstitucionalidade.
140
Ana Júlia Maurício
3. (Esta opção não é aplicável ao Governo, mas tão só à AR.) A AR confirma o
diploma por maioria de 2/3 (art. 279º, nº 2). Há que não confundir a confirmação de um
veto por inconstitucionalidade, nos termos do art. 279º, nº2, com a confirmação do veto
político, nos termos do art. 136º, nº 2. A sua diferença é assinalada:
- Na localização sistemática da matéria.
- Quando a AR confirma o diploma, na sequência de um veto político, o
PR está obrigado a promulgar (art. 136º, nº 2).
- Quando a AR confirme o diploma, na sequência de um veto jurídico por
inconstitucionalidade, o PR não é obrigado a promulgar (art. 279º, nº 2). O PR é o
garante da Constituição. Se dois órgãos de soberania, o TC e o PR, entendem que uma
norma é inconstitucional, tem lógica que a AR não se possa sobrepor sem mais face à
opinião desses órgãos de soberania. Daí o PR não ser obrigado a promulgar o diploma.
Paulo Otero defende que se houver violação de direitos, liberdades e garantias (art. 18º),
o PR é obrigado a não promulgar, pois enquanto órgão político ele está vinculado a
garantir a Constituição. Quanto às restantes matérias, Paulo Otero defende que o PR
pode optar ou não pela recusa da promulgação.
Regiões Autónomas
Quando a Assembleia Legislativa da RA recebe, por devolução do
Representante da República, um diploma vetado por inconstitucionalidade, declarada
pelo TC, a Assembleia Legislativa da RA só pode:
- Nada fazer e o processo legislativo termina.
- Expurgar ou introduzir alterações ao diploma.
Não é permitido que a Assembleia Legislativa da RA confirme o diploma, pois é
o TC, um órgão de soberania, que se pronuncia pela inconstitucionalidade e a
Assembleia Legislativa da RA, apesar de órgão político dotado de legitimidade, não se
pode sobrepor a um órgão de soberania. A faculdade prevista no nº 2, in fine, do art.
279º, só compete à AR. O Representante da República na RA não pode assinar um
diploma vetado por inconstitucionalidade, sem que a Assembleia Legislativa da RA
tenha expurgado a parte inconstitucional ou alterado o diploma.
Se a Assembleia Legislativa da RA legisla sobre algo que padece de
inconstitucionalidade orgânica, esse diploma não é passível de expurgo. A
141
Ana Júlia Maurício
inconstitucionalidade orgânica não pode ser passível de expurgo a não ser que apenas
parte da norma padeça desse vício.
§ 49. Fiscalização sucessiva: (a) fiscalização abstracta
A fiscalização sucessiva da constitucionalidade é feita após a publicação do
diploma, depois da sua entrada no Ordenamento Jurídico.
Só algumas entidades, as referidas no art. 281º, nº 2, podem pedir ao TC que
aprecie e declare a inconstitucionalidade. O TC pode emitir:
- Um juízo em que considera que a norma é inconstitucional.
- Um juízo em que considera que a norma não é inconstitucional. A
apreciação prende-se com os fundamentos do pedido. Nada impede, que mais tarde,
outros fundamentos sobre a mesma norma levem o tribunal a pronunciar-se pela sua
inconstitucionalidade.
Se o TC se pronunciar pela inconstitucionalidade da norma, essa declaração tem
força obrigatória geral (art. 282º, nº 1).
A partir de quando se produzem os efeitos da declaração de
inconstitucionalidade da lei com força obrigatória geral?
Há uma lei de 1990. Hoje, dia 24 de Abril de 2008, o TC declara que a lei é
inconstitucional com força obrigatória geral.
A partir de que momento se produz a cessação de efeitos dessa lei declarada
inconstitucional com força obrigatória geral? Duas possibilidades:
- A norma cessa a produção de efeitos desde 1990, ou seja, a declaração do TC
tem eficácia retroactiva.
- A norma só cessa os seus efeitos a partir de Abril de 2008.
Em Portugal, há uma natureza retroactiva da eficácia da declaração de
inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Ou seja, há um apagamento de todos
os efeitos produzidos pela lei. Isto é um efeito de fazer desaparecer todos os efeitos que
a norma aparentemente produziu, enquanto esteve aparentemente em vigor.
A declaração do TC, de 24 de Abril de 2008, tem eficácia retroactiva, destruindo
todos os efeitos produzidos entre 1990 e 2008. Se a lei de 1990 tivesse revogado uma lei
142
Ana Júlia Maurício
de 1980, a consequência da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória
geral conduz à repristinação da lei de 1980. Neste caso, há, assim, um duplo efeito da
declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral (art. 282º, nº 1):
- A natureza retroactiva.
- Ou há um efeito repristinatório, se a lei declarada inconstitucional com força
obrigatória geral revoga uma lei anterior.
- Ou há um problema de lacuna. Esse problema será solucionado através do
recurso à analogia ou, caso não seja possível a analogia, através da norma que o
intérprete criaria, se tivesse de legislar sobre essa matéria dentro do espírito do sistema.
Como se recorre à analogia quando há reserva de lei?
Caso de inconstitucionalidade superveniente, que só opera em sede de
inconstitucionalidade material:
A lei de 1990 não era inconstitucional. Depois houve uma lei de revisão
constitucional, em 2004, que fez com que a lei de 1990 passasse a ser inconstitucional.
A lei de 1990 passou a padecer de inconstitucionalidade material.
Neste caso, o efeito retroactivo só vai até 2004 e não até 1990, pois é uma
situação de inconstitucionalidade superveniente. A inconstitucionalidade superveniente
só é relevante tratando-se de inconstitucionalidade material. Não é relevante nos casos
de inconstitucionalidade orgânica ou formal. Se, por exemplo, agora essa matéria é da
reserva absoluta da AR e ela, na altura, foi emanada em conformidade com a
Constituição, pelo Governo, ela não se torna inconstitucional. A inconstitucionalidade
superveniente só é operativa em sede de inconstitucionalidade material. E a declaração
de inconstitucionalidade superveniente só cessa os efeitos que a norma ordinária
produziu depois da entrada em vigor da nova lei de revisão constitucional.
Limites à retroactividade da declaração de inconstitucionalidade com força
obrigatória geral. Podem-se salvar alguns efeitos de normas declaradas inconstitucionais
com força obrigatória geral:
1. Art. 282º, nº 3. Não são destruídos os casos julgados, todas as decisões judiciais
transitadas em julgado. Protege-se aqui o princípio da segurança jurídica.
143
Ana Júlia Maurício
Salvo decisão contrária do TC em matéria sancionatória (penal, disciplinar ou de ilícito
de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido). Permite-se a
destruição do caso julgado em matéria sancionatória, se agora há um regime mais
favorável ao arguido do que o regime anterior.
2. Art. 282º, nº 4. Atribui-se ao TC o poder dos poderes em matéria de fiscalização da
constitucionalidade. Pois permite-se que a retroactividade não exista quando o TC
entender que razões de segurança jurídica, equidade e interesse público de excepcional
relevo justifiquem restringir os efeitos típicos da declaração de inconstitucionalidade
com força obrigatória geral. Por exemplo, o TC poderia entender, por razões de
segurança pública, que a lei de 1990 só deixaria de produzir efeitos a partir de 2008.
3ª Subsecção
Fiscalização da inconstitucionalidade por omissão
§ 51. Inconstitucionalidade por omissão
A Constituição tanto pode ser violada por aquilo que se faz em sentido contrário
à mesma, como a Constituição pode ser, também, violada por aquilo que não se faz. A
inconstitucionalidade por omissão consubstancia-se na violação da Constituição pela
inércia do poder legislativo, do poder administrativo ou do poder político. Todavia, a
Constituição apenas institui a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, quando
está em causa a omissão do poder legislativo. Em primeiro lugar, só a omissão do poder
legislativo é relevante em sede de inconstitucionalidade por omissão. Ou seja, é certo
que o poder administrativo, que o poder judicial e que o poder político também podem
violar a Constituição por omissão, quando não faça algo que seja imposto pela
Constituição, mas isso não é relevante em sede de fiscalização da Constituição por
omissão. Só a omissão do poder legislativo é relevante em sede de inconstitucionalidade
por omissão.
Em segundo lugar, nem toda e qualquer omissão do poder legislativo é relevante
em sede de inconstitucionalidade por omissão. Exemplo: Uma lei de bases que
144
Ana Júlia Maurício
determine que o seu desenvolvimento se deve fazer no prazo de 2 meses ou no prazo de
6 meses. Se, decorrido o prazo desses 2 ou 6 meses, não for emanado um diploma
legislativo de desenvolvimento, há uma omissão legislativa, mas essa omissão
legislativa não é relevante, ela não gera uma inconstitucionalidade por omissão. Isto
porque é necessário, para existir inconstitucionalidade por omissão:
- Que haja uma omissão do poder legislativo.
- Que estejam em causa normas constitucionais não exequíveis por si mesmas.
É necessário que seja uma relação directa entre uma norma da Constituição não
exequível por si mesma e a falta de uma norma legislativa, ou seja, de um acto
legislativo.
Duas ideias nucleares para a relevância da inconstitucionalidade por omissão, no
Direito Português:
- Ausência de normas do poder legislativo, única e exclusivamente.
- Que essa ausência se traduza numa violação da Constituição, de normas não
exequíveis por si mesmas.
Só o TC tem competência para conhecer da inconstitucionalidade por omissão.
Ou seja, não há fiscalização difusa da inconstitucionalidade por omissão. Quando o art.
204º afirma que “Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar
normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.”, a
violação a que o art. se refere é sempre uma violação por acção. No Direito Português
não existe a fiscalização difusa ou incidental da inconstitucionalidade por omissão.
Apenas o TC tem competência para conhecer, de modo concentrado, a
inconstitucionalidade por omissão.
Nem todas as entidades, nem todas as pessoas podem desencadear o pedido de
fiscalização da inconstitucionalidade por omissão. A Constituição limita a legitimidade
processual activa, ou seja, limita a possibilidade de desencadear uma acção, de
desencadear um processo de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão. A
Constituição limita a legitimidade activa de desencadear um processo de fiscalização da
inconstitucionalidade por omissão às entidades referidas no nº 1 do art. 283º. Que
entidades são essas? O PR, o Provedor de Justiça ou, tratando-se de violação de direitos
145
Ana Júlia Maurício
de uma RA, os presidentes das respectivas Assembleias Legislativas das RA. Só três
entidades têm legitimidade para requerer a fiscalização da inconstitucionalidade por
omissão, com a particularidade de a última (presidentes das Assembleias Legislativas
das RA) só o poder fazer quando estiver em causa a violação de direitos das RA.
Efeitos da verificação da inconstitucionalidade por omissão pelo TC:
- Quando o TC se pronuncie pela inconstitucionalidade por omissão, ele deve
dar conhecimento ao órgão legislativo competente, para que o órgão legislativo
competente possa tomar as providências legislativas para dar execução à Constituição.
- À luz do diploma da responsabilidade extracontratual do Estado, a Lei
67/2007, de 31 de Dezembro, há um outro efeito. Quando o TC verifica que há
inconstitucionalidade por omissão, as pessoas que se sintam lesadas, pela ausência da
norma legislativa em causa, podem pedir uma indemnização ao Estado. Esta
indemnização decorre do não exercício da função legislativa, ou seja, da omissão
legislativa.
Notas:
- Pela fiscalização da inconstitucionalidade por omissão passa a garantia do
modelo de bem-estar consagrado na Constituição, ou seja, é um mecanismo que visa
garantir a cláusula de bem-estar.
- Tem sido feito, desde 1976, um uso muito limitado da figura da
inconstitucionalidade por omissão. São menos de cinco as decisões do TC que se
pronunciam pela inconstitucionalidade por omissão. A razão desse uso limitado prende-
se com a ideia de que a verificação da inconstitucionalidade por omissão se encontra na
fronteira do princípio da separação e poderes (art. 111º). A matéria em causa é delicada,
pois traduz-se na verificação, pelo poder judicial, de como o poder legislativo está ou
não a cumprir a Constituição, por aquilo que não faz.
- Além disso, é verdade que o TC pode verificar a inconstitucionalidade por
omissão. É verdade que o TC, quando verifica que há inconstitucionalidade por
omissão, deve dar disso conhecimento ao órgão legislativo competente, para ele
elaborar a lei ou as leis necessárias. Mas também é verdade que, contra a continuação da
omissão do órgão legislativo, nada há a fazer. O TC não pode, designadamente,
146
Ana Júlia Maurício
substituir-se ao órgão legislativo, sendo o TC a emanar as normas. Não o pode fazer,
pois isso violaria o princípio da separação de poderes, consignado no art. 111º.
147
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