a trajetÓria do cpaimc (centro de pesquisas e … · não tenho essa pretensão. 2 ... os governos...
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
A TRAJETÓRIA DO CPAIMC (CENTRO DE PESQUISAS E ATENÇÃO
INTEGRADA À MULHER E À CRIANÇA), A REGULAÇÃO DA FECUNDIDADE
NO BRASIL E OS DIREITOS DAS MULHERES
Andrea Moraes Alves1
Resumo: A história da instituição de políticas de planejamento familiar no Brasil começa
com a participação de entidades privadas promotoras do uso de contraceptivos e de cirurgias
de esterilização feminina que afetavam, sobretudo, mulheres pobres. Recuperar essa história e
seus desdobramentos nos ajuda a entender algumas questões centrais para o debate sobre a
relação entre Estado e sociedade civil no Brasil, especialmente quando essa relação incide
sobre corpos femininos. Percorrendo um período que vai de 1975 até 1993, minha
apresentação destaca o papel do CPAIMC (Centro de Pesquisas e Atenção Integrada à Mulher
e à Criança) e sua compreensão sobre “assistência à mulher” e as relações ambíguas que
mantinha com o Estado brasileiro. A trajetória do CPAIMC nos auxilia a examinar os
impasses e suas conseqüências para o tema da reprodução e de seu controle no Brasil.
Apontamos para os atores chaves que participaram desses impasses, com destaque para as
feministas. Os conflitos e alianças estabelecidos entre esses atores são fundamentais para a
compreensão dos sentidos atribuídos à reprodução e ao seu controle, e nos ajudam a pensar o
legado deixado para o tema do “planejamento familiar” e dos “direitos reprodutivos das
mulheres”. As estratégias que o feminismo usou até o início dos anos 1990 para fazer avançar
o debate acerca dos direitos reprodutivos das mulheres foram bem sucedidas. Hoje, em um
novo contexto, as adversidades se renovam e buscamos novas estratégias.
Palavras-chave: feminismo, planejamento familiar, direitos reprodutivos, Brasil.
A década de 1990 foi crucial para o avanço do debate sobre direitos reprodutivos das
mulheres. De lá pra cá, as questões em torno da reprodução tornaram-se mais complexas
assim como sua articulação com o tema dos direitos sexuais. No cenário mundial atual,
assistimos, por um lado, a construção de práticas inovadoras de resistência e a constituição de
sujeitos políticos plurais. Por outro lado, mobilizam-se discursos e ações que demarcam
limites claros à emergência dessas inovações e questionam a existência de sujeitos que
escapam aos modelos clássicos de representação política. Minha proposta nesse artigo é
revisitar o debate que antecedeu à década de 1990, especificamente no Brasil, para iluminar a
maneira como o campo feminista (Alvarez, 2014) naquele momento logrou estabelecer
conexões políticas que permitiram avançar o tema dos direitos reprodutivos das mulheres.
Resgatar esse momento pode servir de inspiração para pensarmos novas saídas no atual
contexto em que vivemos2.
1 Professora associada da Escola de Serviço Social da UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil. 2 Registro que se trata de um convite à reflexão e não a apresentação de proposições fechadas a respeito dos
rumos dos feminismos contemporâneos. Não tenho essa pretensão.
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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Este artigo está dividido em quatro partes: na primeira parte, situo o surgimento da
questão da regulação da fecundidade no Brasil como um tema político. Na segunda parte,
apresento uma das experiências de regulação de fecundidade realizadas no país; o Centro de
Pesquisas e Atenção Integrada à Mulher e à Criança (1975-1993) foi uma das instituições que
efetivou práticas de contracepção no Brasil. Olhar para sua trajetória nos ajuda a compreender
os vínculos estabelecidos entre Estado, discurso médico e os corpos das mulheres. Na terceira
parte, destaco a oposição feminista ao CPAIMC, construída ao longo dos anos 1980 e, por
fim, ressalto o legado político deixado pelo feminismo brasileiro daquela década que pode ser
considerado para as lutas contemporâneas.
O Fantasma do crescimento demográfico nos países pobres
A preocupação com o crescimento populacional pode ser identificada desde o
advento do malthusianismo3. O ritmo de urbanização e de industrialização do século XIX
trouxe o fantasma do crescimento demográfico desenfreado para o centro da arena pública. O
desafio percebido era o de combinar a necessidade de força de trabalho para a produção
industrial com a necessidade de consumo e de manutenção dessa mesma força de trabalho. No
período após a segunda guerra mundial, a associação entre desenvolvimento e aumento
populacional ganhou novo impulso, mas dessa vez centrada nas experiências dos países de
capitalismo tardio. O argumento central do debate girava em torno da preocupação com a
redução paulatina das taxas de mortalidade, decorrente das melhorias na saúde, da crescente e
rápida urbanização e da permanência de taxas elevadas de natalidade em países da periferia
do capitalismo mundial; enquanto os países centrais conheciam desenvolvimento, aumento da
longevidade e estabilização da taxa de natalidade, frutos das políticas de bem estar que
vicejaram na Europa no imediato pós-guerra. O tema da regulação da fecundidade como uma
preocupação de Estado ganha expressão internacional a partir da Conferência de População e
Desenvolvimento de Bucareste (1974). A questão que dividia as opiniões no plano
internacional dizia respeito ao papel dos fatores demográficos sobre o desenvolvimento dos
países em um momento em que a própria produção capitalista mudava sua configuração.
Esses impasses só seriam superados na Conferência do Cairo de 1994.
3 Malthusianismo – Doutrina baseada no trabalho de Thomas Malthus (1766-1834) que apregoava a necessidade
de contenção do aumento populacional. Segundo Malthus, a população crescia em ritmo mais acelerado do que a
capacidade de provisão de alimentos.
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“A maior vitória da CIPD do Cairo foi tirar o problema populacional da perspectiva
econômica e ideológica, para colocar as questões relativas à reprodução como fazendo parte da pauta
mais ampla dos direitos humanos.” (ALVES, 2006, 34)
No caso brasileiro, os governos de Geisel (1974-1979) e de Figueiredo (1979-1985)
são marcados por posições que abandonam progressivamente o ponto de vista natalista e
adotam preocupações controlistas. Durante os anos 1960, os governos militares insistiam que
o Brasil, por sua extensão territorial, ainda precisava de incentivos para o povoamento e por
isso não viam como necessidade uma política de controle de natalidade. A percepção começa
a mudar a partir dos anos 1970. Essa mudança coincide com os rumos do debate internacional
sobre o tema e também com questões internas: a ampliação da desigualdade econômica e a
exacerbação da pobreza urbana serão fatores presentes no discurso sobre a necessidade de
controlar o crescimento demográfico brasileiro. A partir do Governo Geisel, o que se verifica
é uma política de permissão da existência de entidades privadas filantrópicas que atuam no
campo da distribuição de contracepção e da realização de esterilizações cirúrgicas. É neste
momento que surgem iniciativas como a do CPAIMC, que relataremos a seguir.
A Trajetória do CPAIMC e o problema da regulação da fecundidade no Brasil
Em 1986, o jornal O Globo estampa em sua primeira pagina da edição de 20 de maio, um
editorial intitulado Enfim, o controle de natalidade. Esse editorial saúda a implantação no
INAMPS de serviço de “planejamento familiar”4. Diz o texto:
“Era simplesmente incompreensível a inexistência de uma política populacional no Brasil.
Queríamos e perseguíamos todas as reformas – a administrativa, a agrária, a econômica – e
deixávamos para trás a reforma demográfica, sem a qual todas as tentativas de mudança e
modernização do desempenho nacional perdem o seu principal ponto de apoio. Pressões descabidas ou
indébitas, equivocados argumentos religiosos e éticos, doutrinas anacrônicas e demais formas de
resistência às forças da racionalidade e da justiça social mantiveram os governos sob um cerco
implacável. Enquanto isso, a explosão populacional se encarregava de neutralizar ou retardar os
nossos passos na direção do desenvolvimento. Para socorrer a tragédia da miséria absoluta e as
4 Os termos controle de natalidade e planejamento familiar são usados indistintamente no editorial. O editorial
também não menciona o PAISM (Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher), existente desde 1983. O
Editorial trata na verdade da Portaria 3360, de 5/02/1986, do Gabinete do Ministro da Previdência e Assistência
Social que previa a inserção da contracepção nos hospitais públicos.
Simultaneamente, nos anos 1980, desenvolvia-se o debate sobre “direitos reprodutivos” no interior do
movimento feminista nacional e internacional. Esse debate conferia novo contorno ao tema ao escapar da visão
“controlista” sobre o corpo das mulheres e fundar uma compreensão baseada no direito à autonomia das
mulheres para decidir sobre o próprio corpo. Nessa visão, “planejamento familiar” passa a ser um dos ítens que
compõem uma agenda comprometida com a autodeterminação reprodutiva das mulheres.
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carências de toda sorte da população pobre, cada ano acrescida das contribuições da proliferação
instintiva, desorientada, uma massa formidável de investimentos tem que ser transferida daqueles itens
que poderiam melhorar os níveis gerais de qualidade de vida e de bem estar social do País.”
Miséria e aumento populacional são associados e exige-se do Estado uma resposta – a
“reforma demográfica”. Esse pensamento reflete uma das posições que marcou a sociedade
brasileira naquele momento. O CPAIMC é um dos agentes promotores dessa posição. Na
semana seguinte à publicação do editorial, o prof. Paulo Bahia, Chefe do Setor de
Comunicação Social do CPAIMC, parabeniza o jornal pela “maturidade” com que tratou do
tema do “planejamento familiar” no Brasil.5
Em 1975, é registrado em cartório o CPAIMC (Centro de Pesquisas e Atenção
Integrada à Mulher e à Criança), “sociedade civil sem fins lucrativos, com objetivos
específicos e de caráter filantrópico” (Aguinaga, 183, 1996). O Centro foi resultado de um
trabalho conjunto de profissionais de saúde (obstetras, ginecologistas, pediatras, enfermeiras)
do Hospital São Francisco de Assis no Rio de Janeiro6. A idéia central desses profissionais era
colocar em prática uma nova forma de prestação de serviços de saúde na área materno-
infantil. Essa nova forma distribuía-se em quatro níveis articulados de atendimento:
“Domiciliar, Unidade Auxiliar de Saúde, Ambulatório Geral e Hospital Geral e Infantil”. (Op.
Cit.: 181). Esse modelo foi inspirado em experiências anteriores, como a ocorrida em Montes
Claros a partir de 1971 (Sobrinho, 1993) e contou com assessoria de consultores estrangeiros
que já tinham participação em serviços de saúde desse tipo7. A preocupação com a assistência
5 Globo – 28/05/1986 – O País – pag.06. 6 O Hospital São Francisco de Assis foi criado em 1922 por Carlos Chagas. No século XIX, funcionava como
um asilo para indigentes e inválidos. Sua criação liga-se à fundação da Escola de Enfermagem Anna Nery,
também projeto de Carlos Chagas. Atualmente, o hospital encontra-se tombado pelo IPHAN (Instituto do
Patrimônio Histórico Nacional). Localizado na Praça Onze – Centro do Rio de Janeiro - o HESFA, como é
conhecido, dedica-se a atividades de saúde primária e secundária e é campo de ensino prático da enfermagem, da
medicina e do serviço social da UFRJ. O Hospital desenvolve atividades assistenciais na área de HIV/AIDS,
gerontologia/geriatria e abuso de álcool e drogas. 7 Um aspecto interessante a ser observado nessa proposta é que ela contou com assessoria de consultores pagos
pela ONU e posteriormente pela USAID para construir esse modelo de atendimento. Esses consultores foram:
Fernando Hurtado, Paul Burgess e Leslie Scofield. Um chileno, um irlandês e um norte-americano que
trabalharam em momentos diferentes na construção do CPAIMC. Com exceção do primeiro, os outros dois eram
de origem religiosa: um católico, que fora ligado ao Vaticano e outro de formação metodista. Da mesma forma, o
Hospital São Francisco de Assis, sede do CPAIMC, tinha em sua história um passado de assistência religiosa aos
pobres. O Dr. Helio Aguinaga, criador e diretor do centro, apesar de não ser católico praticante, vinha de uma
família com sólida formação católica.
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materno-infantil nesse modelo é explicada pelo Dr. Helio Aguinaga8, um dos mentores e
Diretor do CPAIMC, em uma das entrevistas que fizemos em sua casa no ano de 2013:
“A minha formação foi toda ela constituída no Hospital São Francisco de Assis desde o
começo. Era uma clientela pobre, miserável, prostitutas, elas iam todas se tratar no hospital. Eu via
aquelas mulheres, três, quatro horas da manhã elas acordavam pra poder ser atendidas, eram aquelas
filas. Tinha que ter uma idéia pra vencer aquilo, aí que surgiu a idéia de fazer o CPAIMC. Não foi
uma idéia só minha; outros colaboraram.”
A preocupação em construir um serviço médico que organizasse/cuidasse (d)os
corpos das mulheres e (d)as crianças pobres é o que marca o início do projeto do Centro de
Pesquisas e Atenção Integrada à Mulher e à Criança – CPAIMC. O modelo de funcionamento
do CPAIMC implicava em uma divisão de tarefas, distribuídas em quatro níveis de
atendimento que obedeciam aos graus de complexidade dos casos. Os dois níveis iniciais
eram realizados em favelas e bairros periféricos da cidade do Rio de Janeiro, os dois últimos
no ambulatório ou nas enfermarias hospitalares do São Francisco de Assis. O primeiro nível
era o domiciliar, onde visitadoras treinadas (residentes nas comunidades) e auxiliares de
enfermagem se responsabilizavam por atividades de assistência primária, como: detecção e
notificação de doenças transmissíveis, enfermagem domiciliar, cuidados básicos de higiene e
saúde. O segundo nível era a unidade auxiliar. Sediada na comunidade, essa unidade reunia
médicos, enfermeiros e assistentes sociais e tinha como função realizar curativos e suturas,
cuidar de infecções, atenção ao pré-natal, coleta de esfregaço vaginal, educação e controle de
planejamento familiar, encaminhamento de paciente para hospital. O CPAIMC chegou a ter
44 unidades auxiliares instaladas na cidade. Elas abrangiam a região central do Rio de Janeiro
8 Helio Aguinaga nasceu em 08 de junho de 1916 no Estado de São Paulo. Mudou-se para o Rio de Janeiro ainda
na infância com os pais e os irmãos. Ingressou na Faculdade Nacional de Medicina em 1934 e graduou-se em
1939. Entre 1940 e 1942 viajou aos EUA com bolsa da Fundação Rockefeller a fim de especializar-se em
ginecologia e obstetrícia, área pela qual se interessou devido à influência do pai, Dr. Armando Aguinaga,
iminente figura médica, um dos pioneiros nas pesquisas sobre câncer do colo uterino. De volta dos EUA,
ingressa como médico no serviço de ginecologia e obstetrícia do Hospital São Francisco de Assis da UFRJ.
Ocupa posição de chefe do serviço de ginecologia em 1969, substituindo seu pai. Em 1975, funda o CPAIMC.
Em 1976, presta exame para Livre Docente na UFF, mas não assume o cargo e em 1987 integra a Academia
Nacional de Medicina. Hélio Aguinaga é fundador e foi o primeiro presidente da Associação Brasileira de
Entidades de Planejamento Familiar (ABEPF). Também foi membro de outras sociedades como a de
Ginecologia e Obstetrícia do Estado do Rio de Janeiro, da Sociedade Brasileira de Cancerologia, da Sociedade
Brasileira de Reprodução Humana e da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro. Helio Aguinaga
dirigiu o CPAIMC até sua extinção em 1993, após as denúncias das CPI´S que investigaram a esterilização em
massa de mulheres no Brasil. Ele faleceu em 2015.
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– Catumbi e Santa Teresa – até regiões mais afastadas do Centro, como Bonsucesso e Acari.
O terceiro nível de atendimento se dava no Centro de Saúde, onde se encontrava todo o
pessoal médico. Nesse nível ofertavam-se os cuidados ambulatoriais para realização de
exames clínicos e controle de pré-natal para mulheres em risco mediano. Para o quarto e
último nível eram encaminhados os casos mais complexos que necessitavam de cirurgia ou
internação. A sede do Hospital São Francisco de Assis, na Praça Onze, centro do Rio,
funcionava como base para as ações de saúde dos dois últimos níveis. A proposta de
renovação do modelo de atendimento era inspirada por alguns princípios básicos: prevenção,
colaboração entre a equipe médica e de enfermagem e envolvimento da comunidade atendida.
Os objetivos centrais a serem atingidos pelo CPAIMC eram: racionalização do uso de
recursos humanos e financeiros, melhoria da qualidade dos cuidados médicos e aumento da
cobertura assistencial. (Aguinaga, 1976).
Os recursos financeiros que sustentaram as atividades do CPAIMC ao longo de sua
existência vieram primeiramente de um acordo com o Fundo de População das Nações
Unidas. Posteriormente, os recursos passaram a vir da USAID (US AID DEPARTMENT).
Essa agência de financiamento americana reunia as seguintes organizações: John Hopkins,
Pathfinder Foundation, FPIA (Family Planning International Assistance) e FHI (Family
Health International) que contribuíram materialmente com o CPAIMC. Além dos recursos
advindos dos contratos com a USAID, o CPAIMC, através da figura do Dr. Helio Aguinaga,
empenhava-se na tarefa de conseguir doações e apoio de instituições nacionais. Suas relações
pessoais com empresários, banqueiros e políticos abriram portas à instituição.
A despeito de contemplar em seu projeto institucional a oferta de serviços básicos de
saúde materno-infantil, a trajetória do CPAIMC ficou marcada pelo seu envolvimento com a
oferta de contracepção e pela realização de cirurgias de esterilização feminina. A década de
1980 será prolífica em denúncias dessas práticas. Denúncias que virão dos mais diversos
setores: da Igreja Católica e das organizações feministas. No próximo item, vamos apresentar
a construção da oposição feminista ao CPAIMC.
O Norplant, o laparoscópio, a CF 1988 e as CPI´s: o desmonte do CPAIMC
Ao longo dos anos 1980, o CPAIMC e outras entidades privadas de
planejamento familiar, como a BEMFAM (Sociedade Civil para o Bem Estar Familiar),
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aplicavam pesquisa junto à população feminina com o Norplant, anticoncepcional subcutâneo
em teste no Brasil9. O Centro é citado em reportagem do Jornal do Brasil que noticia a
suspensão da pesquisa pelo Ministério da Saúde, por haver fortes evidências de prejuízo à
saúde das mulheres e porque as pesquisas não estariam seguindo o protocolo correto (JB,
22/05/1986, Primeiro Caderno, Pag. 13). As reportagens contendo denúncias contra o
CPAIMC intensificam-se a partir de 1986. Depois da proibição da pesquisa com o Norplant
no Brasil, é a introdução do laparoscópio em cirurgias do aparelho reprodutor feminino que
abre margem para novas denúncias e proibições10.
O CPAIMC organizou um treinamento para uso de laparoscópio em cirurgias do
aparelho reprodutor feminino, a esterilização entre elas. O laparoscópio é um aparelho que
permite a realização de observações internas da região abdominal com uma pequena incisão,
reduzindo os riscos e o período de internação do paciente. Seu uso sofisticou-se, fazendo
surgir na década de 1980, a videolaparoscopia. As primeiras cirurgias videolaparoscópicas
foram realizadas na área de ginecologia. O financiamento do programa de treinamento em
laparoscopia do CPAIMC vinha da USAID. O treinamento incluía também a oferta do
aparelho às instituições de saúde cujos médicos participassem do curso dado na sede do
CPAIMC no Rio de Janeiro. Médicos de várias regiões do país participaram desse curso. Em
entrevista, o Dr. Helio recorda-se da iniciativa de trazer um especialista americano que
ministrou o primeiro treinamento. Nesse treinamento inicial foi feito o uso do laparoscópio
em uma cirurgia no Hospital São Francisco de Assis com a assistência de médicos do
CPAIMC. Segundo depoimento do Dr. Helio Aguinaga, o laparoscópio para uso cirúrgico foi
uma inovação técnica introduzida na medicina brasileira pelo CPAIMC11. Ainda de acordo
com o médico, tratava-se de forma rápida e segura (porque pouco invasiva) para realizar a
9 Uma referência importante que trata desse tema é a tese de doutorado de Daniela Manica (2009),
“Contracepção, natureza e cultura: embates e sentidos da etnografia de uma trajetória.” 10O título da reportagem é contundente: “Brasília cancela programa de esterilização em massa” – JB,10/01/1987,
Primeiro Caderno, pag.04. 11 Em 1987, o Dr. Helio Aguinaga toma posse na Academia Nacional de Medicina. Para tal, preparou um
memorial sobre laparoscopia na ginecologia. O texto apresentado chama-se “Laparoscopia pélvica: experiência
de 20.245 casos”. Não posso afirmar se os mais de 20.000 casos que servem de base empírica ao estudo são
oriundos exclusivamente do CPAIMC, o que seria um número bastante elevado, dado que o uso do laparoscópio
havia começado poucos anos antes. Ainda nesse mesmo período, entre 1984 e 1986, o Dr. Helio Aguinaga
participou ativamente de reuniões da “World Federation for Voluntary Surgical Contraception”, como consta em
seu currículo apresentado à Academia Nacional de Medicina por ocasião de sua candidatura. A World
Federation of Health Agencies for the Advancement of Voluntary Surgical Contraception”, nome completo,
promoveu encontros no Rio de Janeiro, em Serra Leoa, Bangladesh e Cingapura, o Dr. Helio esteve presente em
todos eles. Essa entidade surge em 1975 como uma organização não governamental internacional cujo objetivo
era disseminar a esterilização cirúrgica voluntária como método contraceptivo.
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ligadura de trompas, dentre outras aplicações. Segundo as denúncias divulgadas no Jornal do
Brasil entre 1986/1987, a disseminação do laparoscópio viabilizou o incremento do número
de esterilizações pelo país. O Conselho Federal de Medicina posicionou-se sobre o tema.
Segundo Ana Lipke, à época representante do Conselho junto à Comissão de Estudos de
Direitos da Reprodução Humana do Ministério da Saúde, a distribuição de laparoscópio e o
treinamento em laparoscopia para fins de anticoncepção podia ser visto como um caso de
ingerência de interesses externos no Brasil. “É uma política direcionada para reduzir a
população do Terceiro Mundo”, declara ela ao Jornal do Brasil (Jornal do Brasil, 10/01/1987,
pag.04)
O panorama internacional se modifica durante os anos 1980: cessam progressivamente
os recursos externos para projetos de desenvolvimento baseados em propostas de controle
populacional e afirmam-se paulatinamente na agenda política os direitos das mulheres.
Lembremos que em 1984, por exemplo, o Brasil ratifica seu compromisso com a Convenção
para a Eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher. 1988 é o ano de
promulgação da nova Constituição Federal, o Dr. Helio Aguinaga empenha-se no debate
acerca da introdução do tema do planejamento familiar no texto constitucional. Mas, seu
discurso divide espaço com outros atores políticos que cresciam em influência. A idéia
representada pelo CPAIMC, e veiculada pelas exposições públicas do Dr. Helio Aguinaga,
vinculava planejamento familiar a desenvolvimento social e econômico. Reproduzia-se o
discurso dos anos 1970, quando o pânico social relativo ao crescimento demográfico nos
países periféricos alimentava as políticas populacionais. No entanto, nos anos 1980, essa
argumentação era contestada, principalmente pelo movimento feminista. O movimento
feminista articula-se fortemente em torno do assunto e suas percepções sobre a natureza do
planejamento familiar partilham de outras premissas. Segundo Celi Regina Jardim Pinto
(2003), um ponto importante para a construção do moderno feminismo brasileiro esteve
justamente no debate em torno do direito ao corpo e à saúde. Feministas como a Deputada
Estadual no Rio de Janeiro, Lucia Arruda12, afirmavam publicamente que era preciso “se
12 “Lucia Arruda, fotógrafa, foi a primeira mulher a se declarar feminista na tribuna da ALERJ. Foi eleita aos 26
anos de idade entrando para a história política como a primeira deputada estadual eleita pelo PT. No final dos
anos 70, início dos anos 80 passou a integrar o movimento pela anistia e o núcleo do Brasil Mulher e, depois, a
Comissão de Mulheres do PT. Foi uma das deputadas que mais dedicou seu mandato à causa feminista. O
movimento feminista dava muito suporte ao seu mandato. E, no início do primeiro mandato foi criado o “Fórum
Feminista do Rio de Janeiro”, cujo objetivo era criar um canal de diálogo constante com o movimento. Esta
articulação durou até o final de seu primeiro mandato. Coube ao gabinete de Lúcia Arruda um papel
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colocar publicamente contra o controle da natalidade, desmistificando e desmascarando as
políticas controlistas que se impõem através do argumento de que as mulheres são
responsáveis pela pobreza e miséria do terceiro mundo” (Jornal do Brasil, Seção de Cartas dos
Leitores, 20/05/1988). CPAIMC e BEMFAM são nominalmente citadas na carta como sendo
parte da “elite do poder que interferiu todo tempo na história da saúde no Brasil”. Para essa
elite, segundo a autora da carta, “não interessa o que pensa a população, muito menos a
feminina, antes interessa usá-la como cobaia, experimentando, coagindo, desinformando”. De
fato, o texto constitucional aprovado em 1988, em seu artigo 226, parágrafo 7 estabelece que
o planejamento familiar é “de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos
educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva
por parte de instituições oficiais ou privadas” (grifo meu).
Ao longo dos anos 1990, o debate se aprofunda e os argumentos ligados à dimensão
dos direitos reprodutivos como direitos humanos básicos ganham força e alteram a gramática
relativa ao tema. O ponto de vista de que planejamento familiar e pobreza são elementos
articulados, opinião que está presente no discurso do Dr. Helio Aguinaga e no CPAIMC,
perde força na arena política daquele momento.
O momento de maior exposição pública do CPAIMC aconteceu no início dos
anos 1990, quando da instauração da CPI para “apurar as responsabilidades de esterilização
massiva de mulheres no Estado do Rio de Janeiro” e da CPMI para examinar “a incidência de
esterilização em massa de mulheres no Brasil”. A CPI foi presidida pela Deputada Lucia
Souto e sua relatora foi a Deputada Heloneida Studart, ambas ligadas à bancada feminista da
Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. Um aspecto que caracterizou essa Comissão
Parlamentar foi a introdução do argumento eugênico no debate acerca da esterilização. Não se
tratava exclusivamente de apresentar um número alto de mulheres esterilizadas e que essas
esterilizações eram feitas prioritariamente por entidades privadas de planejamento familiar,
mas de constatar que essa “esterilização massiva” ocorria preferencialmente entre mulheres
negras, o que agravava ainda mais a denúncia. Como uma de suas recomendações, a CPI
Estadual propõe a abertura de uma CPI Nacional sobre o tema. No mesmo mês e ano,
novembro de 1991, solicita-se a instalação de Comissão Parlamentar Mista de Inquérito para
fundamental, entre outros, na criação da Delegacia das Mulheres no Estado do Rio de Janeiro. No final do
primeiro mandato, a deputada criou a Comissão Especial de Saúde e Direitos Reprodutivos. Esta Comissão teve
continuidade no mandato de Lúcia Souto.” (Moreira & Araújo, 30,2010)
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examinar “a incidência de esterilização em massa de mulheres no Brasil”. Os autores da
solicitação são a Deputada Federal Benedita da Silva, também ligada ao movimento feminista
e ao movimento negro, e o Senador Eduardo Suplicy, ambos do PT. Benedita da Silva será a
Presidente desta CPMI. Ambas CPI`s contaram com a participação de entidades feministas,
de saúde, demógrafos, e membros da hierarquia superior da Igreja Católica. As sessões da
CPMI ocorrem em 1992 e em 1993 o relatório está concluído. O argumento eugênico é
retomado. “As investigações da CPMI de 1993 não constataram a existência de políticas
oficiais voltadas ao controle da natalidade da população negra no país. Todavia, ela
representou um passo importante na afirmação da identidade das ativistas negras na medida
em que abriu espaço na esfera parlamentar e governamental para averiguação das denúncias
suscitadas pelas militantes, gerando maior visibilidade do feminismo negro.” (Damasco, Maio
& Monteiro, 147,2012)
O relatório final da CPMI concluiu que havia esterilização em massa de mulheres no
Brasil e que BEMFAM e CPAIMC “executaram, na prática, políticas de controle demográfico
concebidas por governos estrangeiros e organismos internacionais, com repercussões
negativas sobre a soberania nacional, mas é forçoso reconhecer que contaram com a omissão
do governo brasileiro, que jamais investigou seu modus operandi.”(Congresso nacional,
Relatório n.02, de 1993, p.116). Os efeitos desses episódios sobre o CPAIMC são
devastadores. Em 1993, a instituição fecha as portas.
Aprendendo com o legado feminista
O desmonte das entidades de planejamento familiar como o CPAIMC foi um caso
bem sucedido na trajetória feminista brasileira. Evidentemente, esse sucesso veio
acompanhado por um clima político interno e externo que favoreceu as estratégias adotadas.
Entre as estratégias citamos: a entrada de mulheres com agendas feministas no campo
parlamentar, a ocupação de espaços públicos de debate, como a grande mídia, a penetração do
ponto de vista feminista em instituições ligadas ao Estado e à sociedade civil e a atuação
direta em momentos decisivos da política nacional, como a elaboração da Constituição
Federal de 1988.
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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
A redemocratização no Brasil e a possibilidade de ancorar demandas feministas em
partidos políticos de esquerda foram cruciais para o avanço da agenda dos direitos
reprodutivos como direitos das mulheres. Em que pesem as dificuldades para consolidação
dessa entrada nos partidos, podemos observar o quanto ela foi decisiva. A penetração, ainda
que tímida, das visões de mundo das feministas nos veículos de comunicação de massa
também foram importantes. A publicação de cartas na Imprensa a respeito de temas como o
planejamento familiar de uma perspectiva alternativa ao que vinha sendo colocado foi
importante para o sucesso da empreitada contra a atuação de agências privadas. Por fim, a
mobilização de aliados políticos em entidades da sociedade civil foi fundamental para o
sucesso das investigações das CPI´s. Entre esses aliados, estavam pesquisadores de
universidades e centros de investigação científica até setores progressistas da Igreja Católica.
A observação dessa história pode nos ajudar a iluminar as discussões atuais sobre os
caminhos do feminismo.
Em um momento em que há forte descrença em caminhos institucionais de luta, em
que a capacidade de articulação de alianças parece frouxa; mas, em que, por outro lado,
testemunhamos exemplos muito férteis de disputas simbólicas, talvez seja hora oportuna de
fazermos um balanço do caminho percorrido e, considerando o cenário atual claramente
adverso, pensarmos em compatibilizar o legado com os desafios que se avizinham.
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The Trajectory of the Center for Research and Integrated Attention to Women and
Children (CPAIMC): the regulation of fertility in Brazil and women’s rights
Abstract: The history of the institution of family planning policies in Brazil begins with the
participation of private entities that promoted the use of contraceptives and surgeries for sterilization
of women that particularly affect poor women. To review this history and its consequences helps us to
understand some issues that are central to the debate about the relationship between the state and civil
society in Brazil, especially when this relationship affects women’s bodies. Reviewing a period from
1975 to 1993, my presentation highlights the role of The Center for Research and Integrated Attention
for Women and Children (CPAIMC) and its comprehension of this “assistance to women” and its
ambiguous relationship with the Brazilian state. The trajectory of the CPAIMC helps us to examine
the impasses, and their consequences, related to the issue of reproduction and its control in Brazil. We
point to the key actors who participated in these impasses, highlighted by feminists. The conflicts and
alliances established between these actors are essential to understanding the meanings attributed to
reproduction and its control, and help us to think about the legacy of the themes of “family planning”
and “reproductive rights of women”. The strategies that feminism used until the early 1990s to
advance the debate about reproductive rights of women were quite successful. Today, in a new
context, the adversities are renewed and we seek new strategies.
Keywords: feminism, family planning, reproductive rights, Brazil
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