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Seminrio Internacional Fazendo Gnero 11 & 13th Womens Worlds Congress (Anais Eletrnicos),
Florianpolis, 2017, ISSN 2179-510X
A TRAJETRIA DO CPAIMC (CENTRO DE PESQUISAS E ATENO
INTEGRADA MULHER E CRIANA), A REGULAO DA FECUNDIDADE
NO BRASIL E OS DIREITOS DAS MULHERES
Andrea Moraes Alves1
Resumo: A histria da instituio de polticas de planejamento familiar no Brasil comea
com a participao de entidades privadas promotoras do uso de contraceptivos e de cirurgias
de esterilizao feminina que afetavam, sobretudo, mulheres pobres. Recuperar essa histria e
seus desdobramentos nos ajuda a entender algumas questes centrais para o debate sobre a
relao entre Estado e sociedade civil no Brasil, especialmente quando essa relao incide
sobre corpos femininos. Percorrendo um perodo que vai de 1975 at 1993, minha
apresentao destaca o papel do CPAIMC (Centro de Pesquisas e Ateno Integrada Mulher
e Criana) e sua compreenso sobre assistncia mulher e as relaes ambguas que
mantinha com o Estado brasileiro. A trajetria do CPAIMC nos auxilia a examinar os
impasses e suas conseqncias para o tema da reproduo e de seu controle no Brasil.
Apontamos para os atores chaves que participaram desses impasses, com destaque para as
feministas. Os conflitos e alianas estabelecidos entre esses atores so fundamentais para a
compreenso dos sentidos atribudos reproduo e ao seu controle, e nos ajudam a pensar o
legado deixado para o tema do planejamento familiar e dos direitos reprodutivos das
mulheres. As estratgias que o feminismo usou at o incio dos anos 1990 para fazer avanar
o debate acerca dos direitos reprodutivos das mulheres foram bem sucedidas. Hoje, em um
novo contexto, as adversidades se renovam e buscamos novas estratgias.
Palavras-chave: feminismo, planejamento familiar, direitos reprodutivos, Brasil.
A dcada de 1990 foi crucial para o avano do debate sobre direitos reprodutivos das
mulheres. De l pra c, as questes em torno da reproduo tornaram-se mais complexas
assim como sua articulao com o tema dos direitos sexuais. No cenrio mundial atual,
assistimos, por um lado, a construo de prticas inovadoras de resistncia e a constituio de
sujeitos polticos plurais. Por outro lado, mobilizam-se discursos e aes que demarcam
limites claros emergncia dessas inovaes e questionam a existncia de sujeitos que
escapam aos modelos clssicos de representao poltica. Minha proposta nesse artigo
revisitar o debate que antecedeu dcada de 1990, especificamente no Brasil, para iluminar a
maneira como o campo feminista (Alvarez, 2014) naquele momento logrou estabelecer
conexes polticas que permitiram avanar o tema dos direitos reprodutivos das mulheres.
Resgatar esse momento pode servir de inspirao para pensarmos novas sadas no atual
contexto em que vivemos2.
1 Professora associada da Escola de Servio Social da UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil. 2 Registro que se trata de um convite reflexo e no a apresentao de proposies fechadas a respeito dos
rumos dos feminismos contemporneos. No tenho essa pretenso.
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Seminrio Internacional Fazendo Gnero 11 & 13th Womens Worlds Congress (Anais Eletrnicos),
Florianpolis, 2017, ISSN 2179-510X
Este artigo est dividido em quatro partes: na primeira parte, situo o surgimento da
questo da regulao da fecundidade no Brasil como um tema poltico. Na segunda parte,
apresento uma das experincias de regulao de fecundidade realizadas no pas; o Centro de
Pesquisas e Ateno Integrada Mulher e Criana (1975-1993) foi uma das instituies que
efetivou prticas de contracepo no Brasil. Olhar para sua trajetria nos ajuda a compreender
os vnculos estabelecidos entre Estado, discurso mdico e os corpos das mulheres. Na terceira
parte, destaco a oposio feminista ao CPAIMC, construda ao longo dos anos 1980 e, por
fim, ressalto o legado poltico deixado pelo feminismo brasileiro daquela dcada que pode ser
considerado para as lutas contemporneas.
O Fantasma do crescimento demogrfico nos pases pobres
A preocupao com o crescimento populacional pode ser identificada desde o
advento do malthusianismo3. O ritmo de urbanizao e de industrializao do sculo XIX
trouxe o fantasma do crescimento demogrfico desenfreado para o centro da arena pblica. O
desafio percebido era o de combinar a necessidade de fora de trabalho para a produo
industrial com a necessidade de consumo e de manuteno dessa mesma fora de trabalho. No
perodo aps a segunda guerra mundial, a associao entre desenvolvimento e aumento
populacional ganhou novo impulso, mas dessa vez centrada nas experincias dos pases de
capitalismo tardio. O argumento central do debate girava em torno da preocupao com a
reduo paulatina das taxas de mortalidade, decorrente das melhorias na sade, da crescente e
rpida urbanizao e da permanncia de taxas elevadas de natalidade em pases da periferia
do capitalismo mundial; enquanto os pases centrais conheciam desenvolvimento, aumento da
longevidade e estabilizao da taxa de natalidade, frutos das polticas de bem estar que
vicejaram na Europa no imediato ps-guerra. O tema da regulao da fecundidade como uma
preocupao de Estado ganha expresso internacional a partir da Conferncia de Populao e
Desenvolvimento de Bucareste (1974). A questo que dividia as opinies no plano
internacional dizia respeito ao papel dos fatores demogrficos sobre o desenvolvimento dos
pases em um momento em que a prpria produo capitalista mudava sua configurao.
Esses impasses s seriam superados na Conferncia do Cairo de 1994.
3 Malthusianismo Doutrina baseada no trabalho de Thomas Malthus (1766-1834) que apregoava a necessidade
de conteno do aumento populacional. Segundo Malthus, a populao crescia em ritmo mais acelerado do que a
capacidade de proviso de alimentos.
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Seminrio Internacional Fazendo Gnero 11 & 13th Womens Worlds Congress (Anais Eletrnicos),
Florianpolis, 2017, ISSN 2179-510X
A maior vitria da CIPD do Cairo foi tirar o problema populacional da perspectiva econmica e ideolgica, para colocar as questes relativas reproduo como fazendo parte da pauta
mais ampla dos direitos humanos. (ALVES, 2006, 34)
No caso brasileiro, os governos de Geisel (1974-1979) e de Figueiredo (1979-1985)
so marcados por posies que abandonam progressivamente o ponto de vista natalista e
adotam preocupaes controlistas. Durante os anos 1960, os governos militares insistiam que
o Brasil, por sua extenso territorial, ainda precisava de incentivos para o povoamento e por
isso no viam como necessidade uma poltica de controle de natalidade. A percepo comea
a mudar a partir dos anos 1970. Essa mudana coincide com os rumos do debate internacional
sobre o tema e tambm com questes internas: a ampliao da desigualdade econmica e a
exacerbao da pobreza urbana sero fatores presentes no discurso sobre a necessidade de
controlar o crescimento demogrfico brasileiro. A partir do Governo Geisel, o que se verifica
uma poltica de permisso da existncia de entidades privadas filantrpicas que atuam no
campo da distribuio de contracepo e da realizao de esterilizaes cirrgicas. neste
momento que surgem iniciativas como a do CPAIMC, que relataremos a seguir.
A Trajetria do CPAIMC e o problema da regulao da fecundidade no Brasil
Em 1986, o jornal O Globo estampa em sua primeira pagina da edio de 20 de maio, um
editorial intitulado Enfim, o controle de natalidade. Esse editorial sada a implantao no
INAMPS de servio de planejamento familiar4. Diz o texto:
Era simplesmente incompreensvel a inexistncia de uma poltica populacional no Brasil. Queramos e perseguamos todas as reformas a administrativa, a agrria, a econmica e
deixvamos para trs a reforma demogrfica, sem a qual todas as tentativas de mudana e
modernizao do desempenho nacional perdem o seu principal ponto de apoio. Presses descabidas ou
indbitas, equivocados argumentos religiosos e ticos, doutrinas anacrnicas e demais formas de
resistncia s foras da racionalidade e da justia social mantiveram os governos sob um cerco
implacvel. Enquanto isso, a exploso populacional se encarregava de neutralizar ou retardar os
nossos passos na direo do desenvolvimento. Para socorrer a tragdia da misria absoluta e as
4 Os termos controle de natalidade e planejamento familiar so usados indistintamente no editorial. O editorial
tambm no menciona o PAISM (Programa de Assistncia Integral Sade da Mulher), existente desde 1983. O
Editorial trata na verdade da Portaria 3360, de 5/02/1986, do Gabinete do Ministro da Previdncia e Assistncia
Social que previa a insero da contracepo nos hospitais pblicos.
Simultaneamente, nos anos 1980, desenvolvia-se o debate sobre direitos reprodutivos no interior do
movimento feminista nacional e internacional. Esse debate conferia novo contorno ao tema ao escapar da viso
controlista sobre o corpo das mulheres e fundar uma compreenso baseada no direito autonomia das
mulheres para decidir sobre o prprio corpo. Nessa viso, planejamento familiar passa