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A MULTIFATORIEDADE DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E OS
TRAÇOS PERSONALÍSSIMOS DE VÍTIMA E AGRESSOR: A NECESSIDADE
DE POLÍTICAS PÚBLICAS TRANSDICIPLINARES PARA O REEQUILÍBRIO
DAS DIMENSÕES DE PODER
Josiane Petry Faria1
Lucas Silva de Oliveira2
Universidade de Passo Fundo, Brasil
RESUMO
O ciclo de poder e dominação da mulher, estimulado por uma sociedade patriarcal, e, há anos recorrente é o principal agente propulsor da violência contra a mulher. Isso posto, a presente investigação preocupou-se em analisar especificamente o fenômeno acima qualificado, no que tange ao traço de um perfil dos sujeitos – tanto ativo quanto passivo –, a fim de verificar a importância dessas supostas características no âmbito da reincidência, considerando os fatores que a impulsionam e as consequências que daí advém. Assim, utilizando-se do método dedutivo se pode visualizar a necessidade de combate à condição de submissão e invisibilidade que se associa a figura feminina e, para tanto, imperioso políticas públicas afirmativas e transdisciplinares para atender a complexidade do problema de modo a reequilibrar as dimensões do poder e proporcionar o empoderamento da mulher.
PALAVRAS-CHAVE: Dimensões de poder; políticas públicas transdisciplinares; multifatoriedade; reincidência; violência de gênero.
INTRODUÇÃO
A imutabilidade das relações de poder e dominação encontra-se encrustada na
história da sociedade desde as primeiras intervenções comunitárias registradas; assim,
durante a formação das mais primitivas civilizações, sabe-se que já existiam hierarquias
1 Doutora em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul, com Bolsa Capes Prosup e PDSE na Universidade de Sevilha, Espanha; Professora adjunto, Coordenadora de Extensão e Coordenadora do Projur Mulher e Coordenadora do Grupo de Pesquisa Dimensões do Poder, gênero e Diversidade da Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo; jfaria@upf.br.2 Acadêmico da Faculdade de Direito, Estagiário do Projur Mulher e membro do Grupo de Pesquisa Dimensões do Poder, gênero e diversidade da Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo; lucasoliveira7200@gmail.com.
obedecendo à lei da força, em tempo que a igualdade jamais fora estimulada. Mais
especificamente, as relações de gênero – nas quais o homem, branco e patriarca
assentava-se no topo da pirâmide social – foram as propulsoras de um método de
repressão e manutenção do poder, caracterizado pela violência.
O discurso contemporâneo, tendo a democracia como um dos seus corolários,
permanece reproduzindo desigualdades e disseminando estratégias de dominação pela
linguagem. A ótica feminina na análise das relações humanas e sociais ainda é escassa,
percebe-se a resistência masculina em dominar e a aceitação social desse fenômeno.
A literatura não nega a decisiva participação feminina, mas coloca na penumbra
a participação das mulheres, elemento esse que tem sido determinante para a obtenção e
sustentação de conquistas cidadãs, contudo não suficiente. Informação não basta,
conhecimento não basta, sensibilização e atitude são imprescindíveis.
Nesse ponto, importa verificar os fenômenos causadores da violência de gênero,
identidade os perfis e ainda entender os motivos da repetição das posições de agressor e
vítima para compreender o complexo universo e planejar mecanismos e estratégias de
ação e combate da violência por meio redistribuição das relações de força e dimensões
do poder.
A multifatoriedade da violência contra a mulher e os traços personalíssimos de
vítima e agressor
Visualiza-se que a desigualdade entre gêneros, advinda de fatores políticos,
econômicos e culturais e estimulada nas práticas de convívio social século após século,
ao lado da busca e manutenção do poder são as principais propulsoras da violência
doméstica. Na mesma linha, a mulher, tida como o ser mais vulnerável, é o indivíduo
que mais tem a perder com a estratificação do meio em que vive, isto é, ao sofrer com a
repressão e a imutabilidade de práticas violentas tão logo dentro do próprio lar – diga-se
seu local de refúgio –, tende a padecer com a reprodução das mesmas ações
externamente.
Em sede de definição, Azevedo e Guerra (2003) leciona que quando se refere
que o conceito de violência doméstica reflete uma relação assimétrica e hierárquica de
poder com fins de dominação, exploração e opressão e designa dois polos de uma
relação interpessoal de poder, sendo de um lado um mais forte, e do outro, o mais fraco.
De acordo com Cesca (2004), pode-se pensar na violência intrafamiliar como
toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a
liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outro membro da família. Pode ser
cometida dentro ou fora de casa por algum membro da família, incluindo pessoas que
passam a assumir função parental, ainda que sem laços de consanguinidade, e em
relação de poder à outra. Portanto, quando se fala de violência intrafamiliar deve-se
considerar qualquer tipo de relação de abuso praticado no contexto privado da família
contra qualquer um de seus membros. Deve-se ainda ressaltar que o conceito de
violência intrafamiliar não se refere apenas ao espaço físico onde a violência ocorre,
mas também às relações em que se constrói e efetua.
Nessa senda, considerando que o sujeito tende a reproduzir o que visualiza, uma
vez que a criança cresce a par da violência praticada no ambiente doméstico, não
contando com práticas educativas que a estimulem ao contrário, terá grandes chances de
tornar o fato um hábito e reiniciá-lo em sua própria família, alimentando assim um ciclo
vicioso de criminalidade e dominação. Seguindo a mesma linha, o parceiro, ao agredir a
companheira, não sendo denunciado e recebendo a sanção adequada, desenvolverá
internamente um sentimento de impunidade, encorajado a executar o delito do mesmo
modo, caindo na reincidência. Ao iniciar com uma agressão psicológica e não ter seu
comportamento refreado, a atitude do ofensor poderá resultar em uma consequência
letal para a vítima, acarretando em danos para todos os que cercam o ambiente familiar.
Um levantamento realizado pelo Ministério Público do Amapá, a partir do Centro de
Apoio Operacional de Defesa da Mulher (2015), apontou que 1.342 mulheres foram vítimas
de violência em 2014, em Macapá. Dessas, 77% das vítimas são reincidentes e 15% fizeram
a ocorrência pela primeira vez. Ainda, relata a pesquisa que a violência geralmente ocorre
no turno da noite, sejam 35% dos casos, e ainda 91% na própria residência,
frequentemente motivada por razões passionais, ciúmes ou não aceitação da separação,
os quais juntos representam 66% das ocorrências. Em 21% dos casos os agressores
estavam sob efeito de álcool e em 4% sob efeito de drogas. O estudo, ao acompanhar a
estatística nacional, reflete a realidade brasileira em termos de violência doméstica, de modo
a questionarmos as causas principais de sua ocorrência.
Passando a analisar a questão fatorial, tem-se, segundo o Banco Mundial (2012),
que o risco de violência doméstica diminui com o aumento de nível de renda do lar e
com os anos de educação da mulher, posto que, em tempo que adquire maior grau de
formação e independência, obtém significativamente representação e poder familiar,
passando a avaliar do ponto de vista instruído o contexto em que se insere.
Do contrário, se faz evidente que a grande maioria das vítimas de violência gênero
já possui um perfil pré-determinado: observa-se serem mulheres de baixa escolaridade, sem
expectativa de autonomia e autossuficiência; tal condição reflete na dependência financeira
do marido, fato que, consequentemente, resulta na permanência do convívio entre vítima e
agressor, estimulando a prática do medo e a progressão de ameaças, tanto pessoais quanto
familiares, em tempo que se eleva o grau de vulnerabilidade da mulher, passiva a sua própria
condição de subjugada.
Paralelamente, verificam-se no sujeito ativo traços que permitem estabelecer um
padrão característico. Posto que o indivíduo, ao crescer em um ambiente violento, tomará
para si o hábito da prática, desenvolvendo psicologicamente certa passividade frente ao
assunto. Aliado a isso, a maioria dos ofensores – assim como as vítimas – possui baixa
escolaridade, nível ocupacional reduzido e pouco acesso à informação.
Torna a relação ainda mais insustentável o uso frequente de álcool, que, de acordo
com Myers (2000), reduz a autopercepção e a capacidade de avaliar consequências; ao
mesmo tempo, eleva-se a agressividade do ofensor e o torna ainda mais impulsivo,
estimulando a prática delituosa. Em concomitância, segundo estudos, o uso de drogas reduz
a capacidade de controle e aumentam no indivíduo a sensação de persecutoriedade. Os
motivos passionais – como a não aceitação do fim do relacionamento – também são
rotineiros, caracterizados principalmente pelo sentimento de posse do homem sobre a
mulher, que sabe-se historicamente recorrente.
Tratando o assunto de forma técnica, no Brasil, reincidente apenas é o sujeito que
comete nova prática delituosa após condenação transitada em julgado; no entanto,
considerar-se-á o termo como reincidente o indivíduo que comete infrações de forma
contínua. Desse modo, conforme divulgação do Mapa da Violência (2012), por Waiselfisz, a
reincidência da violência contra a mulher possui um percentual consideravelmente elevado,
de forma mais recorrente a partir dos trinta anos de idade da vítima.
Assim, tendo em vista os dados antes apresentados, bem como os fatores que
emanam na maior parte dos casos, não se torna difícil analisar a causa da reincidência nos
casos de violência doméstica. Ao encontrar-se nas condições descritas, a mulher se insere no
submundo da violência, e acaba não visualizando para si mesma uma possibilidade de
empoderamento e independência. Ao conviver com as condições personalíssimas do
companheiro e sofrer com abusos e ameaças, teme por um perigo vital, não restando-lhe
opções se não aceitar a situação como parte de sua realidade. Adequado, portanto, torna-se o
ensinamento de Miranda (1998), ao dizer que o campo da violência doméstica é um
"terreno movediço", em que se mesclam fantasia e realidade, cena que causa horror e
curiosidade.
Buscando certa exemplificação aliada à temas da realidade, torna-se válida a
união entre o presente estudo e a literatura, visualizada no texto de Clarice Lispector
(1998), que, ao tratar das perspectivas de gênero e sua importância no convívio social,
aduz a necessidade de proteção da figura feminina. Veja-se: "Como a nordestina, há
milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões
trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto
existiriam como não existiriam. Poucas se queixam e ao que eu saiba nenhuma reclama
por não saber a quem. Esse quem será que existe?". O alguém a quem reclamar,
instituição a quem se refere a autora, é o Estado, incumbido da representação da mulher
em casos de violência. Assim, verifica-se o grau considerável de reincidência na quantidade
evidente de boletins de ocorrência registrados pelas vítimas, muitos em um curtíssimo
espaço de tempo; tal situação realça a necessidade da busca pela efetiva tutela jurisdicional
do Estado, ora responsável pelo garante da dignidade da pessoa humana. A demanda, dada
após o rompimento das barreiras criadas pelo medo e caracterizadas pela vergonha de
admitir os abusos e esclarecer o contexto em que se encontra, demonstra a procura da vítima
pela proteção pessoal e familiar, cumulada com a primordialidade de um auxílio para
vencer a etapa de dominação e opressão, da qual não merece fazer parte.
A presente análise recorre diretamente à necessidade de fortalecimento das
políticas públicas de proteção à mulher vítima de violência, buscando atendimento
assistencial em diversas áreas, visando a não recondução desta ao ciclo reincidente e
humilhante do qual se associa, possibilitando assim a resolução dos conflitos e
consolidando a igualdade de gênero, ao mesmo tempo em que se busca seu
empoderamento e se fomente sua dignidade.
Para que se evite a propagação da violência é ímpar também que se trabalhe com
o sujeito ativo, incluindo-o no protagonismo da resolução do problema. É indispensável
que se vá além das medidas judiciais, organizando a participação do agressor em
programas sócio-educativos articulados a diversas áreas, buscando sua reeducação e
recuperação. Ao mesmo tempo, imprescindíveis são as campanhas contra a violência, as
quais veiculadas e estimuladas desde a infância até a fase adulta, visem reformar o
cenário delinquente que se constrói dentro dos lares. Nessa senda, adequada é a lição de
Ana Lúcia Sabadell, quando noticia que "a melhor forma para combater a violência
contra a mulher é ensinar a todos, e sobretudo aos que estão em formação, que homens e
mulheres merecem igual respeito e consideração. Só a mudança de mentalidade, isto é,
o distanciamento da cultura patriarcal, permitirá erradicar a violência contra as
mulheres."
Haja vista que a inserção da mulher na gerência do poder – tanto intra quanto
extra-familiar – é condição fundamental para a democratização de um sistema de justiça
social sério e eficaz, não haveria do que se falar em violência promovendo desigualdade
de gênero simplesmente pela promoção de uma estratificação social. No entanto, a
prática contínua e reiterada de atos eminentemente patriarcais ainda serve de estímulo à
propagação de tamanhas disparidades, impedindo a retirada da condição de
invisibilidade e subordinação que recai sobre a mulher.
Dado o exposto, concebe-se hoje um conceito multifatorial de violência, que
engloba questões sociais, raciais, econômicas e de geração, isso considerando todos os
estimulantes antes apresentados. O combate específico a cada um deles, a partir de
ações interdisciplinares e transversais conduzidas na sociedade, torna-se substancial
para a erradicação da reincidência e consequente redução dos índices de criminalidade,
em direção à igualdade de gênero. Fundamentos que emanam abertura para a
continuidade da hierarquia vigente, os quais empreendem que a figura feminina
continue a ver a condição inferior como parte natural de sua identidade, devem,
substancialmente, ser extintos, para que se alcance um conceito prático de sociedade
harmônica e ideal.
Políticas públicas transdisciplinares para o reequilíbro das dimensões de poder
De acordo com Organização Mundial de Saúde a violência demanda estudos
constantes para que ponderações possam ser feitas e a partir de então formuladas
estratégias de entendimento e enfrentamento. Trata-se de fenômeno que deita suas
raízes sobre múltiplos fatores como biológicos, sociais, culturais, econômicos e
políticos, sendo inviável a pretensão de um conceito único e de ordem científica. Essa
impossibilidade é fruto do entendimento de que se trata de fenômeno que se apresenta
em variadas formas e é baseada no parâmetro social vigente para comportamentos
aceitáveis e inaceitáveis. Portanto, passa pelo filtro da cultura e dos valores morais
presentes. Divulga a Organização Mundial de Saúde (2012):
A violência é um fenômeno extremamente difuso e complexo cuja definição não pode ter exatidão científica, já que é uma questão de apreciação. A noção do que são comportamentos aceitáveis e inaceitáveis, ou do que constitui um dano, está influenciada pela cultura e submetida a uma contínua revisão à medida que os valores e as normas sociais evoluem.
A complexidade da violência se multiplica diante das diversas nuances e
formatos que poderá atingir, mais intensamente sentidas no caso da vítima feminina.
Sinteticamente: a) violência física, qualquer conduta que ofenda o corpo da mulher
provocando-lhe lesão corporal; b) violência psicológica, conduta que cause dano de
ordem emocional com diminuição ou inibição – total ou incompleta – da autoestima, ou
prejudique de qualquer maneira o desenvolvimento da saúde psicológica e
autodeterminação. Resumindo, toda ação ou omissão que dela decorra humilhação,
ridicularização, sofrimento e/ou medo; c) violência sexual, qualquer conduta que
obrigue a mulher a participar, assistir ou manter relação sexual de qualquer ordem não
desejada. Quaisquer atos referentes ao uso da força ou da intimidação que possam dar
causa a casamentos, prostituição, aborto, comercialização da sexualidade não queridos
pela mulher; d) violência patrimonial, quando se configuram retenção, subtração,
destruição, violação de bens, sejam eles objetos, valores, instrumentos, ferramentas de
trabalho e documentos; e) violência moral, é aquela que se configura em calúnia, injúria
e difamação. Ferem a honra o sentimento da mulher, na maneira como ela se observa e
na modo como os demais componentes do corpo social a entendem, isto é, ofende sua
imagem.
As diferentes nuances da violência contra a mulher podem ocorrer isoladamente
ou em associação, por atos ou omissões, por palavras ou gestos, ao vivo, por meio de
terceiros ou ainda se utilizando dos recursos da tecnologia da informação e da
comunicação. Observe-se que foram descritas as formas de violência identificadas e
catalogadas para efeitos de estudos e formatação de normas jurídicas, no entanto
importante não olvidar os aspectos clandestinos e invisíveis da violência simbólica
presente nos rótulos e estigmas. Pensar que estar em situação de violência é escolha
pessoal, covardia ou fraqueza é discriminação e portanto grave violência.
Nesse sentido há, portanto
uma intimidade indisfarçável entre história, violência e poder. No sentido analítico, podemos falar em cultura da violência e na violência intrínseca de sua própria banalização, especialmente quando ouvimos ou lemos afirmações como “não adianta”, “isso faz parte da política”. Mas chega de lamentações, pois não queremos nos tornar a voz das carpideiras, que choram por encomenda a desgraça da humanidade alheia. (COLUSSI; DIHEL 2008, p. 13)
Outro fator interessante é que no caso da violência contra a mulher, sobretudo na
doméstica ou familiar o estigma atinge principalmente e com mais severidade a vítima
ao contrário das demais condutas violentas, onde a rotulagem adere somente ao
agressor. Todavia, essa cultura está se modificando por meio do comportamento
feminino, evidenciado nas práticas sociais, movimentos de luta, politicas públicas e
apoio midiático.
Na análise da violência contra mulher é crucial não se contaminar pela ideia
mecanicista de que as mulheres são simplesmente dominadas pelos homens e
unicamente vitimadas por seus companheiros. “Uma democracia com pilares na cultura
patriarcal é inoperante, vazia ou inexistente, o que consequentemente faz do direito um
mero instrumento de estratégias de grupos dominantes.” (COSTA, 2010, p. 391)
A ultrapassada percepção dual deve ser substituída pela interação dinâmica. O
mesmo acontece com a vida doméstica/privada, a qual se institucionaliza abrindo o
espaço destinado ao afeto e as individualidades para a burocracia presente no ambiente
público, de maneira que a subjetividade passa a estar sob o crivo das relações
interpessoais. Ao invés de desnaturar ou desqualificar a vida privada o movimento
promove a interação, a harmonia de valores e princípios, fazendo com que o espaço
privado deixe de ter uma soberania particular impenetrável. Deixou de ser temática de
ordem unicamente privada para se converter em problema social com repercussão na
saúde pública.
A Lei n. 11.340/06 – Lei Maria da Penha - é resultado, em grande medida, da
consciência de que não basta acesso à Justiça, é preciso acesso à Justiça qualificada.
Qualificação essa desviada no cenário dos Juizados Especiais Criminais, onde o palco
do diálogo e da mediação cedeu à pressa, ao imediatismo e a desvalorização das dores
humanas, sobretudo quando se fala em relações de gênero envoltas pela domesticidade,
onde os amores e os rancores se amplificam.
Os problemas decorrentes da violência de gênero exigiam e exigem trato
diferenciado respeitando as peculiaridades de uma cultura masculinizada penetrada na
sociedade ao longo de séculos e gozando de ares de normalidade. O problema privado,
depois social assumiu a face de problema normativo, de incapacidade do modelo
tradicional. Era premente a necessidade e a urgência de um novo modelo, haja vista o
assentimento social do discurso feminista de crítica feroz e genuína aos Juizados
Especiais, acusados de banalizar a violência e fragilizar a figura feminina. Inadmissível
que o desrespeito à mulher terminasse com pagamento de cestas básicas ou outra
medida alternativa.
Assim, o fundamento e a prática do controle social passam a se ater diretamente
aos problemas da dominação cultural, política e econômica de certos grupos sobre
outros. A resposta social ao desvio nas sociedades modernas e pós-modernas se focam
em formas de controle formal e institucional e ao mesmo tempo na procura de técnicas
fundadas mais na persuasão e menos na coerção, utilizando para tanto meios de
comunicação de massa. (AZEVEDO, 2010)
Pela simplificação que introduz na realidade, a violência viola a complexidade dos elos existentes entre as coisas e os homens. Uma situação conflituosa resulta sempre de uma amálgama, de uma imbricação muito complexa de inúmeras causas. Para resolver o conflito, é preciso tentar agir ao mesmo tempo sobre todas as causas que o criaram. A violência é incapaz de elevar a cabo essas diferentes acções. Devido ao seu mecanismo simplificador, ela retém apenas uma causa e só age numa direcção. (MULLER, 1995, p. 165)
Quando se pretende enfatizar a não-violência, geralmente é no sentido de opção,
de escolha dos indivíduos para a condução da sua vida, mas não se admite como regra,
sobretudo na pauta política, uma vez que se afirma a inerência da ação violenta como
recurso necessário. Viver em ambiente de respeito aos direitos humanos não significa
ausência de conflitos, mas o tratamento dos mesmos de forma não violenta. Enfim, se
deve buscar o alinhamento entre meios e fins, pois se o objetivo é a conciliação ilógica,
despropositado é tentar atingi-la por meio da violência e da repressão. “O processo de
implementação de políticas públicas com a transversalidade de gênero, no entanto,
encontra-se limitado pela fragilidade política dos mecanismos institucionais de defesa
dos direitos da mulher.” (PRÁ, 2001, p. 201)
O discurso feminista mantém-se preso ao excessivo recurso do sistema penal,
exigindo a criminalização de novas condutas, a redefinição e novas nomenclaturas para
os tipos penais existentes e ainda o agravamento de penas e a descriminalização do
aborto. Esse excesso promove uma elevação exagerada das expectativas quanto ao
próprio poder do sistema penal e ainda da estrutura punitiva. Isso, por si só, conduz a
um processo de perda de legitimidade e de descrédito do mecanismo punitivo do
Estado, uma vez que, ao contrário do discurso, a vida das mulheres não se resolve com
uma sentença penal condenatória. A estrutura penal foi construída para o protagonismo
do réu, o qual é acusado e ao mesmo tempo recebe proteção enquanto a vítima ocupa a
postura de meio de prova somente. O direito penal age sobre o passado e não possui
essa pretensão de transformador da realidade social, o que incumbe às políticas
públicas.
Veja-se:
A natureza jurídica do direito penal é por excelência da negatividade e da repressividade. O poder nele inscrito, contudo, não é somente repressivo, pois traduz discurso, o qual de uma parte, legitima a lógica seletiva com que opera o sistema penal e, de outra, dá sustentabilidade a um paradigma patriarcal que, de sua manifesta função de proteção à sua função latente e efetiva de subordinação e inferiorização da mulher, funciona como um suporte e dispositivo institucional agindo na (re)produção discursiva de gênero, operando, ainda, na construção discursiva de categorias (tipos de mulheres).3
Necessário se faz assimilar a complexidade das relações de poder, das
dimensões do gênero e as nuances da violência contra a mulher, a fim de se
fundamentar o discurso na máxima eficácia dos direitos humanos fundamentais, tendo
como objetivo a proteção e a emancipação da mulher, por meio do investimento maciço
3 WERLE, Vera Maria. O direito penal sob uma perspectiva de gênero. In: BOFF, Salete Oro. (org.) Gênero: discriminações e reconhecimento. Passo Fundo: Imed, 2011, p. 133.
em políticas públicas de incentivo e promoção do empoderamento de base. Importa
construir estruturas e mecanismos de diálogo utilizando-se do empoderamento feminino
para ocupação do espaço público e intensificação dos processos de fortalecimento da
cidadania de gênero em busca da manutenção da igual dignidade.
CONCLUSÃO
Evidencia-se com isso que, sem esquecer a importância do aspecto político - um
dos maiores entraves para se conseguir a igualdade de gênero – exige ênfase a
necessidade do empoderamento feminino na base, ou seja, na consciência e na atitude
não discriminatória e prol da cidadania de gênero. Meritório potencializar dimensões
formais de atuação, mas sem olvidar que o maior desafio democrático reside primeiro
nas instâncias mais elementares da vida.
Gize-se que o reconhecimento das lutas femininas se deve, fundamentalmente,
ao esforço das próprias mulheres, as quais além de esclarecer as demandas específicas
foram a campo na busca de estratégias e construção de atividades para elaboração de
políticas públicas de gênero e ainda todas aqueles vinculadas aos direitos humanos.
Porém, a luta por igualdade de gênero e redução dos índices de violência não se trata
somente de um encargo das mulheres, mas sim de toda a sociedade.
Ao mesmo tempo importante frisar que em se tratando de Estados ocidentais e
de discursos democráticos a missão não cabe exclusivamente à mobilização social
espontânea e genuína. Enfim, a violência de gênero e repetição da figura de vítima e
agressor demonstra que o problema ultrapassa o asilo inviolável do lar e a
intimidade/privacidade das relações afetivas, eis que reflete em outras camadas e setores
do poder a demandar a atuação estatal, por de um complexo de políticas públicas
afirmativas sedimentadas no objetivo da igualdade de gênero e na metodologia do
reequilíbrio das relações de poder.
REFERÊNCIAS
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