almeida, sandra regina goulart. a áfrica na diáspora - figurações do trânsito e...
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7/23/2019 ALMEIDA, Sandra Regina Goulart. A frica na dispora - Figuraes do trnsito e cartografias de gnero em narrati
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A frica na dispora: figuraes do trnsito
e cartografias de gnero em
narrativas contemporneas
Sand ra Reg in a Gou lar tA lm eid a
Partindo das novas configuraes diaspricas da
contemporaneidade (nos termos teorizados por Gayatri Spivak),
analiso duas narrativas de escritoras africanas que abordam o
movimento de trnsito entre a frica e o pas de destino. Ao
privilegiar esse olhar sobre o espao contemporneo do
deslocamento, as autoras escolhidas - Ama Ata Aidoo e Bushi
Emecheta - questionam e interrogam os mltiplos espaos de afeto
e afiliao e a representao da frica no imaginrio da dispora,
ao mesmo tempo em que refletem sobre questes de gnero e etnia.
Proponho discutir como essas autoras teorizam esse espao
transnacional complexo e ambivalente e sua relao com o lar na
frica por meio de uma potica do espao e do trnsito igualmente
multifacetada.
O lar e todos os termos a ele relacionados - morada, casa,
ptria, terra natal - tornaram-se trapos relevantes na
contemporaneidade, desvelando, ao mesmo tempo e de forma
ambgua, o conceito de fixidez e tambm o de mltiplo
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A frica na dispora
para outro possvel, um tropo comum nos textos diaspricos que
remete
condio de deslocamento dos sujeitos migrantes em suas
mltiplas experincias de trnsito e
necessidade de transplantar
tanto as bagagens pessoais quanto o legado cultural que consigo
carregam. Como observa George, o gnero imigrante, ou o que aqui
denomino de narrativas da dispora, marcado pelo uso excessivo
da metfora da bagagem, tanto espiritual quanto material
(GEORGE, 1996, p. 8). A inevitvel associao do movimento de
trnsito com a bagagem cultural e material que acompanha os
sujeitos surge em destaque nas narrativas aqui analisadas. Essa
bagagem, porm, nem sempre encontra lugar na nova morada e deve,
por vezes, ser deixada para trs. Em outros casos, tal bagagem acaba
sendo substituda por outra mais leve ou ento transplantada de
volta ao pas de onde partiu. Mais do que pensar o lar apenas do
ponto de vista poltico, pode-se teorizar esse espao figurativo
atravs de uma potica do lar, como tambm argumentam Davies
(1994), Susan Stanford Friedman (2004) e Diana Brydon (2007).
Para Friedman, essa percepo do lar como uma imagem sempre
postergada levaria a uma potica do deslocamento ao se reconhecer
o lar como um no lugar ou nenhures , ou seja, como um espao
que, ao ser deixado para trs e se tornar devir, se materializa como
a fonte do discurso e da escrita (FRIEDMAN, 2004, p. 192-205).
Como aponta Davies, a migrao cria um desejo pelo lar, que por
sua vez produz a reescrita do lar (1994, p. 113). Assim, ao se teorizar
sobre o lar na contemporaneidade, fundamental teorizar a poltica
e a potica das articulaes desse relevante conceito mvel, instvel
e itinerante que tambm um tropo retrico de considervel poder
emocional , como argumenta Brydon (2008, p. 3).
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Ao mesmo tempo em que o lar aponta para o espao
domstico, tambm indica o espao pblico da poJitica na ptria,
na terra natal. A escritora da dispora desestabiliza, ento, como
aponta Davies, tanto a narrativa uniforme e harmnica do lar quanto
a da nao. Escrever o lar se torna ainda uma forma de articular as
vrias identidades em trnsito (DAVIES, 1994, p. 113-115). A
relevncia da categoria para os estudos da dispora inegvel,
especialmente quando se considera que o conceito de lar est
irremediavelmente imbricado no feminino, como demonstram vrios
crticos (Cf. Bennett, Brydon, Friedman, George), revestido de um
significado outro como um espao conflituoso que se desloca entre
a esfera privada e pblica. Como destaca George, pode-se falar de
uma feminizao do lar , pois a palavra 'lar' imediatamente conota
a esfera privada da hierarquia patriarcal, da autoidentidade
gendrada ,
do abrigo, do conforto, da nutrio e da proteo (GEORGE, 1996,
p. 1, 23). O lar na dispora, porm, assume conotaes outras que
vo alm desse espao de conforto e abrigo para designar os espaos
de adeso emotiva que se tornam cada vez mais mveis nesse
contexto, em um constante movimento de adiamento, reformulao
e reconsiderao. Ademais, o mesmo espao geogrfico do lar pode
dar origem a um sentimento contraditrio tanto de pertena e
segurana quanto de deslocamento e terror, pois, como ressalta Avtar
Brah, o desejo por um lar no a mesma coisa que um desejo pela
terra natal . Assim, nem todas as disporas sustentam uma ideologia
de 'retorno' (BRAH, 1998, p. 180). O retorno ao lar, Chancy
observa, se complica pela lacuna entre o sonho da repatriao para
nossas ilhas e/ou nossas culturas e a concretizao desse sonho
(CHANCY, 1997, p. 165), ou poderamos afirmar com Stuart Hall
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que impossvel 'voltar para casa' de novo, no sentido que o lar
imaginado nunca ser o mesmo depois da dispora e do trnsito,
pois uma cultura nunca se repete perfeitamente longe de casa,
(HALL,
2003, p. 416).
exatamente a ideologia de retorno como um tropo
recorrente em duas obras de escritoras africanas - Aidoo e Emecheta
- que me interessa analisar aqui.
conceito de nostalgia, como
observa John Durham Peters, alm de marcar a dor de rememorar
uma terra perdida no espao e no tempo, mais um agente cultural
produtivo do que simplesmente o produto da perda de um
referencial (pETERS, 1999, p. 30). A nfase no lugar mvel do lar
e na nostalgia por um retorno ao lar/ptria pode, assim, ter
significados distintos para os muitos sujeitos e personagens das
narrativas da dispora.
Ento no nem aqui nem l (AIDOO, 1977, p. 5). Assim
Ama Ata Aidoo inicia seu romance Our sister kil Jqy de 1977,
chamando a ateno justamente para a caracterstica de entrelugar
das experincias dos sujeitos em trnsito. Geralmente descrito como
uma narrativa semiautobiogrfica e fortemente marcado pela
literatura oral e pela performance, o romance questiona os
movimentos da dispora e o papel das mulheres nesse contexto,
apresentando uma narrativa desestabilizadora e experimental que
combina fico, autobiografia, poesia, epstolas e drama. Dessa
forma, a narrativa de Aidoo privilegia a ruptura lingustica e narrativa
e estabelece uma fratura textual por meio de uma narrativa
fragmentada que, alm de misturar vrias formas literrias, elege a
ironia e a pardia como marcadores de um discurso inquietante. A
ao desestabilizadora de Aidoo dupla: na potica do texto e na
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Sandra Regina Goulart Ameida
poltica de seu posicionamento em termos de questes raciais e de
gnero. Nascida e residente em Gana, Aidoo, que j viveu nos
Estados Unidos, foi uma das primeiras escritoras, na dcada de
1970, a tratar os deslocamentos geopolticos da contemporaneidade
do ponto de vista da mulher. A narrativa de Aidoo se localiza em
um momento histrico na literatura ps-colonial que apresenta forte
apego a um nacionalismo que faz do artefato literrio um de seus
principais objetos de luta, como Elleke Boehmer observa (2005, p.
214). A forma narrativa claramente apropriada da tradio
nacionalista da viagem de busca; no entanto, diferentemente do
realismo tpico dos romances nacionalistas de escritores masculinos
da dcada de 1960, o romance de Aidoo prima pela heterogeneidade
de estilo e posies enunciativas. Enfoca principalmente uma
metanarrativa mtica da viagem de exlio e do retorno de um sujeito
feminino em busca de uma compreenso sobre seu lugar no mundo
ps-colonial e de sua condio como mulher proveniente de um
pas africano em visita
metrpole. Como a voz narrativa observa
em um dos poemas estrategicamente inserido no romance:
In Asia
Europe
Anywhere:
Na sia
Europa
Em qualquer lugar:
For
Here under the sun,
Being a woman
Has not
Is not
Cannot
Neverwill be a
Child game
Pois
Aqui na Terra,
Ser uma mulher
No era
No
No pode
Nunca ser uma
Brincadeira de criana
From knowledge gained since - A partir do conhecimento adquirido-
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A frica na dispora
So why wish a curse on your child
Por que ento desejar uma maldio
para sua filha
Almejando que ela seja mulher
Alm disso, minha irm,
As classes dos condenados esto
Cheias,
Esto cheias
Desiring her to be female
Beside, my sister,
The ranks of the wretched are
Full,
Are full. (AIDOO, 1977, p. 51)
o poema remete
afirmao de Spivak (2010) de que, no
contexto colonial e ps-colonial, as mulheres esto ainda relegadas
a um espao de excluso. No entanto, o sofrimento da personagem
central dirigido primeiramente para a perda coletiva (AIDOO,
1977, p. 67) e a luta contra o uso e abuso de seus irmos africanos
e a explorao europeia. O
mot
da viagem, como Boehmer enfatiza,
fornece uma estrutura simblica significativa em textos ps-
coloniais, cujas narrativas de deslocamento geralmente so marcadas
pelo evento culminante do retorno ao lar, um momento que aparece
de diferentes formas, como uma celebrao, por um lado, ou uma
desiluso, por outro (BOEHMER, 2005, p. 190-191). O romance
inicia com um poema cuja imagem permeia essa narrativa da viagem
e do deslocamento - a da excluso e da impotncia. A voz narrativa,
ento, apresenta Sissie (frequentemente evocada como nossa irm
[our sister)), uma africana de Accra, Gana, que acaba de ser
selecionada para um programa de estudos na Europa. no
aeroporto, lugar do trnsito contemporneo por natureza, um espao
liminar, um entrelugar, ela tem sua primeira experincia de excluso
quando forada a perceber no apenas as diferentes coloraes
dos humanos, mas tambm como essas diferenas se tornam
desculpas para a represso e excluso (AIDOO, 1977, p. 13).
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Sandra Regina Goulart Almeida
o sentimento de alienao e de desterritorializao
permanece durante toda sua estada na Alemanha e sua rejeio ao
pas demonstra sua conscincia da discriminao que sofre na pele
e por causa dela. Sua ida para a Inglaterra no modifica sua
percepo de que so todos simplesmente recipientes das sobras
dos dejetos imperiais (AIDOO, 1977, p. 86). Na Inglaterra, Sissie
percebe o quanto os sujeitos migrantes so explorados e se choca
com a estarrecedora pobreza na qual esto imersos. Ela critica os
chamados
been-to s,
isto
,
aqueles que vo para a Gr-Bretanha para
estudar e acabam voltando para a terra natal com a iluso de que
algo de muito valioso lhes foi dado, quando, na verdade, ela
descobre, a periferia no tem o que obter do centro, a no ser um
tipo pior de escravido (AIDOO, 1977, p. 88). A narradora observa
ainda como os
been-to s
mantm esse codilho e mentem, agindo como
se a experincia do trnsito tivesse sido libertadora, sendo gratos
pelas migalhas oferecidas e esquecendo rpido demais as agruras
sofridas. Pior ainda
o que ela percebe como a cegueira dessa prpria
multido oprimida que assume o papel dos informantes nativos,
sobre o qual nos fala Spivak (1999). No poema que se segue, a voz
narrativa, evocando a perspectiva de Sissie, expressa de forma
contundente o papel inquietante que assumem esses sujeitos nativos:
Por alguns trocados agora e um/ Diploma de Doutorado depois,
Nos conte sobrei Seu povo/ Sua histria/ Sua mente/ (...)
Entregando/ No apenas eles mesmos, mas/ Todos ns (AIDOO,
1977, p. 87-88). Nesse sentido, Aidoo claramente segue a tradio
de Fanon com seu discurso crtico e nacionalista de denncia. Acusa
os europeus de violarem/ estuprarem a frica
(Open ing/ .A fr ica up
for /
Rape )
(AIDOO, 1977, p. 92), usando, para expressar sua
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A frica na dispora
indignao e condio vitimizante, essa antiga mas persistente
metfora que desvela uma equao entre a violao do corpo
feminino e a explorao e destruio da terra colonizada.
Ao final, Sissie simbolicamente encerra suas experincias
na dispora com uma missiva, fazendo uso de uma linguagem
nascida de sua vivncia de desterritorializao e deslocamento.
Escreve uma longa e reflexiva carta a um ente querido na qual
descreve toda a sua frustrao e suas crenas sobre esse espao da
dispora construido a partir das migraes da frica para a Europa.
Nesse sentido, o deslocamento geogrfico a que foi submetida lhe
d a medida exata de suas limitaes, mas tambm potencializa a
esttica do deslocamento. Agora Sissie pode escrever tanto sobre
seus sentimentos relativos terra natal, quanto sobre suas
experincias de deslocamento, pois ela tem as palavras, a linguagem
e o conhecimento que antes lhe faltavam.
retorno ao lar
inevitvel para essa irm desmancha-prazeres,
qual o ttulo alude
(O ur sister k il Jqy), que escolhe a ptria, o lar como espao afetivo e
lugar no qual poder investir e lutar por melhores condies de
vida e, principalmente, pela conscientizao de seu povo. Ela acusa
os irmos e irms que, ao invs de cumprirem seus objetivos iniciais
de estudarem e retomarem ao pas natal para contribuir para sua
construo acabam seduzidos pela metrpole e se tornam sujeitos
sem ptria , empobrecidos, destitudos e em contnua itinerncia.
Sissie critica precisamente a noo hoje difundida de que onde
quer que uma pessoa se sinta em casa, esse deve ser o seu lar
(AIDOO, 1977, p. 125). Ao invs de aceitar tal premissa, ela implora
a esses homens e mulheres da dispora africana ps-colonial: ''Volte
para casa (...) volte para o nosso povo (AIDOO, 1977, p. 126). Na
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epstola-testemunho est implcito que o ente querido no
compartilha de sua ideologia do retorno e ela o recrimina por querer
ficar para sempre em lugares estrangeiros e se tornar desterrado e
aculturado (AIDOO, 1977, p. 117). E conclui falando justamente
do seu
locus
prprio de enunciao, do lugar da mulher forte que,
apesar de supostamente educada nas virtudes da mulher africana
(AIDOO, 1977, p. 117), acusada da falta de instintos femininos ,
consegue ser consciente e crtica da situao de explorao que
vivencia: No, meu querido: parece que muito da ternura e da
submisso que voc e todos seus irmos esperam de mim e de todas
as irms aquilo que realmente ocidental (AIDOO, 1977,
p. 117). Assim, Sissie reverte o esperado parmetro das mudanas
nas relaes de gnero ocasionado pela dispora. Para se sujeitar a
viver no Ocidente, teria que se submeter aos tradicionais papis de
gnero dela esperados. Em sua terra, com o histrico de luta que
compartilha com seus irmos, acredita que pode articular sua voz e
ter uma posio mais ativa e mais agenciadora. espao do lar
ainda o espao no qual sua experincia
gendrada
pode ser mais bem
articulada em termos polticos.
Tendo ao fundo a voz inquiridora e articuladora de Sissie, o
romance termina com a protagonista chegando de volta a seu pas,
concluindo que ela jamais enviaria a carta que redigiu no traslado
de retorno, pois no havia mais necessidade. Uma vez escrita, ela
havia cumprido sua misso reparadora, pois como lembra Nelly
Richard, a escrita o lugar onde este espasmo da revolta opera
mais intensivamente (RICHARD, 2002, p. 139). A escrita aqui se
torna, pois, o veculo de sua revolta espasmdica, bem como o
ponto de encontro de Sissie e seu lar: ''Abaixo estava seu lar com
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A Africa na dispora
seu inevitvel calor e, mesmo depois desses milhares de anos, suas
incertezas (AIDOO, 1977, p. 133), mas o lar onde seu corao
est, e tambm seu compromisso e dever para com seu povo. A
escrita e a literatura que preconizam esse retorno ao lar e
nao
idealizados podem ainda ser associadas ao que o tambm ganense
Appiah descreve como o nativismo dos escritores africanos, ou seja,
a crena em uma topologia que reitera a viso sentimental de uma
essncia comunal africana em um contraponto binrio a uma suposta
universalidade europeia que apagaria os particularismos (APPIAH,
1992, p. 56). Como Appiah, Hall (2003) relata o risco de se incorrer
em um discurso nativista acrtico que refora essencialismos
identitrios e a crena em uma subjetividade idealizada, una e
estvel. Se, por um lado, a narrativa de Aidoo, com sua nfase na
dicotomia ns/eles , corre o risco de reproduzir uma imagem
estereotipada do trnsito e das relaes transnacionais, por outro, o
romance deve ser analisado em seu contexto histrico de uma
narrativa ainda recente do perodo ps-colonial que, como aponta
Boehmer (2005), necessita se afirmar no apenas como espao
literrio, mas tambm como espao articulador da nao e da
resistncia ps-colonial.
No entanto, nem sempre as narrativas da dispora que
enfocam os sujeitos femininos cultuam o retorno como uma opo
de agenciamento. Em alguns casos, a dispora se torna um espao
no qual as relaes de gnero assumem uma dimenso outra,
inviabilizando o retorno para as personagens femininas.
Diferentemente das narrativas de retorno de Aidoo, Emecheta
aborda no romance Kehin de (1994) uma outra ideologia do retorno,
com a qual as personagens femininas no podem compactuar.
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Nascida na Nigria, Emecheta se mudou para a Gr-Bretanha nos
1960 para estudar, enfrentando uma realidade similar
da
personagem Sissie. Em
K ehinde
a autora aborda, em especial, o
ambguo lugar ocupado pelas mulheres na dispora. O romance narra
a estria da protagonista, Kehinde, cujo nome d ttulo ao romance,
e seu marido Albert. Ambos saram da Nigria para viver em Londres,
onde nasceram seus filhos, Bimpe e Joshua. J no primeiro captulo
a situao de conflito se estabelece quando Albert recebe uma carta
da famlia, instigando-o a retomar terra natal. A reao de Kehinde
imediata, alguma coisa agourenta torceu no estmago de
Kehinde (EMECHETA, 1994, p. 1). A situao do casal na
dispora, somos informados logo de incio, bem diferente daquela
que se esperaria de um casal na Nigria. Kehinde tem um trabalho
estvel em um banco e ganha mais do que seu marido. Instala-se
assim um jogo das relaes de gnero que procura equilibrar as
tradies do pas de origem e as novas perspectivas adquiridas no
pas de destino - ambos sabendo se tratar de uma mera performance.
De fato, a voz narrativa destaca ao longo do relato as muitas
diferenas nas relaes de gnero nos contextos especficos dos dois
pases, desde a responsabilidade pela manuteno da famlia, at o
relacionamento interpessoal e sexual do casal. Apesar de encenar
com perfeio o papel do pai de famlia Igbo em Londres , Albert
no se sente satisfeito com as restries em sua atuao, como a
voz narrativa perspectivada por sua viso nos informa: Kehinde
iria aprender quando retornasse para casa como ela deveria se
comportar. (...) Como Kehinde sabia perfeitamente bem, por trs
das aparncias de ocidentalizao, o homem tradicional Igbo estava
vivo e forte, esperando por uma oportunidade para reivindicar seu
direito inato (EMECHETA, 1994, p. 35). Tal observao,
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igualmente agourenta, funciona como um prenncio da ao que se
desenrola no romance.
Descobre-se, a seguir, que Albert, mesmo sem a aprovao
de Kehinde, j havia decidido seu retorno para a Nigria, fato
complicado pela gravidez inesperada. O retorno significa para Albert
o reconhecimento da masculinidade que ele sente que perdeu na
dispora: ''Aqui no sou ningum, apenas um gerente de loja. Ele
afirma querer a vida comparativamente mais fcil dos homens de
sua terra, se sentir um chefe de famlia (EMECHETA, 1994,
(p. 35). Nesse sentido, observa-se o que Boehmer denomina de a
inevitvel feminizao dos homens colonizados diante do imprio
- uma imagem recorrente nas narrativas ps-coloniais e da dispora
(BOEHMER, 2005, p. 216). No caso de Albert e Kehinde, o que
chama a ateno o deslocamento das questes de gnero no espao
ambguo da dispora. H uma frequente oscilao, tanto para Albert
quanto para Kehinde, com relao percepo das vrias questes
que esto em jogo em seu relacionamento no pas estrangeiro, cada
um encenando um papel para o outro em um constante deslize e
adiamento para lidarem com seus fantasmas. Tal enfrentamento
ocorre apenas longe da dispora, na ideologia do retorno atravs da
qual Albert resgata de uma vez por todas as tradies nas quais
havia sido doutrinado e s quais opta por aderir. Ao aborto de
Kehinde se segue a concretizao do sonho nostlgico de retorno
ao lar de Albert, enquanto Kehinde aguarda em Londres at que ele
se estabelea e ela venda a casa.
A viagem, mais uma vez, marca a narrativa dessa persogem
diasprica em busca do lar perdido, uma viagem, como a de Sissie,
tambm de autoconhecimento e reflexo sobre as condies das
mulheres em diferentes espaos geopolticos. Dois anos depois, o
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Sandra R egina oular t lmeida
retorno de Kehinde marcado pelo choque cultural que se segue
ao descobrir que Albert havia desposado uma outra mulher, educada
e sofisticada, que, apesar de seu doutorado, ainda mantinha as
tradies patriarcais e j havia dado a Albert um filho e esperava
outro, operando em conformidade com o sistema que perpetrava
esse tipo de injustia contra as mulheres (EMECHETA, 1994, p.
112). Apesar de ambos pertencerem a famlias poligamas, tanto
Kehinde como Albert foram criados como catlicos e antes
recusavam a prtica de poligamia de seus antepassados. O retorno
de Albert restaura tambm as prticas sexistas que marcam as
relaes de gnero na Nigria, com as quais Kehinde se recusa a
compactuar e, assim, o retorno ao espao do lar evoca tambm a
restituio das tradicionais prticas patriarcais e estabelece
definitivamente uma fratura entre eles - o Albert que ela conhecia
havia deixado de existir (EMECHETA, 1994, p. 87) e assim no
mais havia lugar para ela nesta famlia (EMECHETA, 1994, p.
91): Aqui o mundo dos homens. No surpresa que tantos querem
voltar para casa, apesar do sucesso no exterior (EMECHETA,
1994, p. 94). Kehinde reconhece ento que a Nigria de seus sonhos
no existia e que, ao invs de aproveitar sua condio de been-to e
madame da casa, ela estava ainda mais relegada s margens
(EMECHETA, 1994, p. 97), como uma esposa snior, mas sem
emprego, dependendo de Albert financeiramente, sem espao em
seu novo lar.
Ao final, Kehinde consegue dinheiro emprestado e retoma
para a Inglaterra e se surpreende ao ouvir a voz de seu Taiwo , o
esprito de sua irm gmea rebelde, morta antes de seu nascimento:
Lar, doce lar A imagem da irm gmea, Taiwo, que remonta
tradio oral iorub que denomina o gmeo que nasce primeiro,
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simboliza de certa forma o duplo que d a Kehinde (o nome da
segunda gmea a nascer) a fora que por vezes lhe falta para ser
assertiva em suas escolhas. Kehinde acredita que Taiwo que vai
frente abrindo o caminho para ela. Quando Kehinde responde: Este
no o meu lar. A Nigria meu lar, Taiwo responde: Fazemos
nossas prprias escolhas enquanto prosseguimos. (...) Essa a sua.
No h nada do que se envergonhar (EMECHETA, 1994, p. 108).
Por meio da suposta voz de seu Taiwo, Kehinde consegue chegar
resoluo para a dualidade que encontra diante do paradoxo do lar,
tornando-se finalmente unida a seu Taiwo, Em um ato simblico,
ela retira a placa de venda da casa e declara esta casa minha
(EMECHETA, 1994, p. 108), evocando o famoso argumento do
ensaio crtico
Um teto todo seu
da escritora inglesa Virginia Woolf,
publicado em 1929.
tambm seu duplo que a encoraja a estudar,
a viver por si s, a se relacionar com um inquilino caribenho mais
novo do que ela e, finalmente, a desafiar as atitudes machistas de
seu filho. Para Kehinde, a viagem de retorno
terra natal torna-se
um aprendizado em termos de relaes de gnero, pois no apenas
compreende as limitaes do conceito lar, mas tambm aprende a
clamar por seus direitos, a decidir sua prpria vida e a transgredir os
limites impostos pelos papis de gnero demarcados socialmente.
Assim, Kehinde intervm na dinmica do devir em trnsito
e na comunidade na qual escolhe se inserir. Ao rejeitar o retorno ao
lar e a narrativa que constri as mulheres como portadoras da
tradio, principalmente no trnsito, conforme teoriza Sneja Gunew
(2008, p. 9), privilegia o pessoal, o privado ao invs de optar pela
ao politica ou por uma atitude nacionalista e nativista como faz
a protagonista de Aidoo, cuja deciso de retorno ao lar tem
consequncias profundas para sua vida privada. As posies de
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Kehinde ecoam o argume~to de Anh Hua segundo o qual a lgumas
mulheres diaspricas podem no se sentir nostlgicas porque seus
lares eram locais de violncia e patriarcados culturais, nacionalistas
e transnacionalistas . Nesse sentido, as mulheres na dispora so
menos provveis de ter memrias nostlgicas sobre o lar pelas
dolorosas lembranas das atitudes, costumes e tradies
patriarcais na terra natal (2005, p. 195). Embora ainda polarizada,
a concepo do lar na e da dispora que Kehinde constri, no
entanto, longe de ser um lar idealizado, , antes de tudo, um lar em
potencial e em construo que d a ela uma possibilidade de
interveno prtica e de agenciamento, mudando as configuraes
de gnero s quais esteve durante tanto tempo atrelada e
problematizando um padro de comportamento que complicado
pelo trnsito.
A anlise dos dois romances evidencia a heterogeneidade
das disporas contemporneas e o movimento em direo quebra
de um modelo que pressuporia uma clara distino entre a percepo
do lar e a experincia da dispora, ou entre a terra natal e o pas
anfitrio. Para muitas escritoras que abordam os trnsitos na
contemporaneidade e para suas personagens, as questes de gnero
efetuam uma desestabilizao, uma rasura que marca a maneira
como os movimentos da contemporaneidade so percebidos. No
h uma nica narrativa da dispora nem tampouco uma nica
experincia das mulheres na dispora. O que se observa justamente
a possibilidade de diversos percursos e variadas percepes do lar
na e da dispora, ou seja, uma multiplicidade de espaos associados
a uma possvel concepo de lar. Os romances aqui analisados tm
em comum o fato de enfatizarem um processo de agenciamento
para esses sujeitos femininos no espao transnacional de mobilidade
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A frica na dispora
de sujeitos das margens - seja pela ideologia do retorno ou pela
opo pelo trnsito, ao invs de adotarem um discurso vitimizante
ou marginalizante. As personagens abordadas falam de um lugar
especfico marcado pelas questes de gnero, mas tambm
inevitavelmente respaldadas pelas questes raciais e tnicas. So,
acima de tudo, disporas racializadas e g end rada s, concebidas na
esteira terica de uma escrita do trnsito.
ef ernci s
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Maria N azareth Soares Fonseca
Maria Zilda Ferreira Cury
Organizadoras
f r i c
d i n m i c s c u lt u r i s e l i t e r r i s
Belo Horizonte
Editora PUC MINAS
2012
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Sandra Regina Goulart Almeida
deslocamento. Sou uma tartat;uga, onde quer que eu v, carrego o
lar nas minhas costas , escreve Gloria Anzalda, em seu clebre
Border la n d s/L a F ron te ra .
O lar , como sugere Tony Bennett,
frequentemente um lugar de um retorno imaginado , como a
imagem idealizada do lar materno e da ptria, mas tambm a
possibilidade de outros destinos ao fim de uma viagem ou
movimento, como a busca incessante de um lar longe de casa
(BENNETT, 2005, p. 163). Para outros, como a crtica literria e
escritora diasprica Myriam Chancy, o lar se torna paradoxalmente
tanto o local de descoberta de si mesma quanto o ponto sem volta
(CHANCY, 1997, p. xi).
,
ao mesmo tempo, a negao da
possibilidade de encontrar esse ideal quimrico, como comprova o
conhecido dito popular, no h melhor lugar do que o nosso lar,
ou como escreve Bell Hooks, s vezes, o lar no est em lugar
nenhum (HOOKS, 1990, p. 148), ou como comenta
apropriadamente Caren Yamashita, em C irc le K C ycles ,o lar era uma
cpia de uma cpia de uma cpia de uma cpia, mais distante do
que ela podia imaginar (YAMASHITA, 2001, p. 147). O lar ,
portanto, inerentemente contraditrio, um espao de contestao,
como argumenta Carol Boyce Davies (1994, p. 113), mas tambm
um l ocusde mltiplas possibilidades representativas, pois, como nos
lembra o escritor Salman Rushdie, o lar se tornou um conceito
muito disperso, avariado, diverso em nossos trabalhos atuais
(RUSHDIE, 1996, p. 93).
Rosemary George teoriza o conceito em termos de uma
poltica do lar , pois lares no so lugares neutros e, por isso,
imaginar um lar um ato to poltico quanto imaginar uma nao
(GEORGE, 1996, p. 6). A contnua referncia a uma bagagem que
deve ser transportada de um territrio a outro, ou de um lar originrio