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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA NÍVEL MESTRADO ALEXANDRE IRIGIYEN VANDER VELDEN A EXPERIÊNCIA DO CINEMA ENGAJADO BRASILEIRO ATRAVÉS DE CABRA MARCADO PARA MORRER: ENTRE O CINEMA E A HISTÓRIA Niterói 2016

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Page 1: ALEXANDRE IRIGIYEN VANDER VELDEN5 O que seria uma “arte engajada” não é lugar consensual, nem para artistas, nem estudiosos da área, sendo um conceito que se transformou junto

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

NÍVEL MESTRADO

ALEXANDRE IRIGIYEN VANDER VELDEN

A EXPERIÊNCIA DO CINEMA ENGAJADO BRASILEIRO ATRAVÉS DE CABRAMARCADO PARA MORRER: ENTRE O CINEMA E A HISTÓRIA

Niterói2016

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ALEXANDRE IRIGIYEN VANDER VELDEN

A EXPERIÊNCIA DO CINEMA ENGAJADO BRASILEIRO ATRAVÉS DE CABRAMARCADO PARA MORRER: ENTRE O CINEMA E A HISTÓRIA

Dissertação de mestrado apresentada como requisito

parcial para obtenção do título de mestre no Programa de

Pós-Graduação em História do Instituto de Ciências

Humanas e Filosofia – ICHF – da Universidade Federal

Fluminense – UFF

Orientador:

Prof. Dr. Daniel Aarão Reis Filho

Niterói2016

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal

Fluminense, seu corpo docente e funcionários que possibilitaram a feitura dessa dissertação.

Em especial, agradeço ao professor Daniel Aarão Reis Filho pela orientação, suas críticas e

sugestões, assim como a professora Karla Carloni e ao professor Marcos Napolitano pelo

acompanhamento desse trabalho tanto em meu exame de qualificação, como na defesa da

dissertação.

Agradeço também aos funcionários do Arquivo Edgard Leuenroth e da Biblioteca Paulo

Emílio Salles Gomes da Cinemateca Brasileira pela simpatia e disponibilidade no auxilio ao

meu trabalho nesses arquivos.

Agradeço a amigos distantes pelo acompanhamento na trajetória acadêmica e de vida, como

Renan Joele e Marcelo Saraiva, e em especial, aos vários núcleos familiares da pequena N3,

como Gabriel Sotomaior, Roger Cury, Germano Scarabelli, Leonardo Minelli, Isabela

Amante, Maíra Pilz, Daniel Ferrer, Geice Silva, Marcos Simões, Leandro Vicente e Bárbara

Pires. Agradeço aos recentes amigos Diogo Eduardo Carvalho, Marília Macedo, Clara e

Vicente Saraiva, Jorge Alvez, Valesca Egídio e Gabriel Beltrão por me acolherem

calorosamente no Rio de Janeiro, assim como aos velhos amigos, Anna Rigato, Gustavo

Branco, Henrique Balão e Suelen Masseli, que o destino teimou em trazer novamente para

perto por essas terras.

Agradeço a Márcia Cecília e Natália Vander pelo carinho e dedicação, assim como pela

disposição em compartilhar os diversos caminhos e escolhas de vida de cada um. Agradeço a

Mário Barbosa (in memoriam) pela lição de sensibilidade e disposição que deve se ter com a

breve experiência da vida.

Agradeço principalmente a Natalia Conti por me acompanhar na empreitada de conhecer as

terras cariocas, assim como compartilhar e contribuir com minha dissertação e infinitas outras

questões intelectuais, pessoais e afetivas.

Agradeço a muitas outras pessoas que não constam aqui, mas que sabem fazer parte de minha

trajetória acadêmica e pessoal, assim como das indagações presentes nessa dissertação. Não

constam aqui pela limitação de um agradecimento, não por falta de apreço ou memória.

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Resumo

Essa dissertação objetiva analisar historicamente o filme Cabra marcado para morrer(Eduardo Coutinho, 1984) e para isso visita os meandros de sua produção e recepção, assimcomo utiliza suas “imagens e sons” como fonte para pensar tanto a história do cinema comoda sociedade. Argumentando junto a trabalhos contemporâneos que revisitam a “historiografiaconsolidada” sobre a produção cultural “nacional-popular” da década de 1960 – momento daprimeira tentativa de filmar Cabra marcado – , esse trabalho procura compreender essaexperiência de maneira mais contraditória, a partir da complexidade presente nas obras, assimcomo dos conflitos existentes entre os artistas, intelectuais e militantes na época. Essetrabalho também visita as transformações no Brasil e na carreira de Coutinho ao longo dadécada de 1970, com as transformações na sociedade e a consolidação da indústria cultural. JáCabra marcado é visitado junto ao contexto histórico do início da década de 1980: a “aberturademocrática”, o surgimento do “novo sindicalismo” junto ao ascenso dos trabalhadores noBrasil e a reorganização da esquerda passando pela formação do Partido dos Trabalhadores.Por fim, uma análise minuciosa do documentário é proposta, buscando articular suas escolhasde “enredo”, de técnicas e de linguagem com os paradigmas e questões próprias de seumomento histórico.

Palavras-chave: História e cinema. Eduardo Coutinho. Abertura democrática. Ditadura

militar. Cabra marcado para morrer.

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Sumário

Introdução ........................................................................................................................... p.1

Cinema e história: notas teórico-metodológicas .................................................. p.11

Capítulo 1. O Brasil antes do golpe de 1964

1.1 “Quando eu voltei realmente voltei para uma coisa que não sabia o que era.”.............. p.17

1.2 A modernização capitalista no Brasil e no mundo.......................................................... p.18

1.3 O florescimento político-cultural e os românticos-revolucionários................................ p.20

1.4 “Do Arena ao CPC”: da nacionalização do teatro à busca das massas........................... p.23

1.5 O cinema direto chega ao Brasil em meio a efervescência............................................. p.27

1.6 As organizações e suas ideias.......................................................................................... p.29

1.7 Coutinho e as produções cinematográficas do CPC....................................................... p.35

1.8 O golpe militar de 1964 no Brasil .................................................................................. p.38

Capítulo 2. Da ditadura à abertura democrática

2.1 Dos primeiros anos de ditadura ao “milagre econômico”............................................... p.41

2.2 O “nacional popular” segundo Bernardet: primeira análise historiográfica .................. p.43

2.3 Os anos 1970 e a abertura “lenta, gradual e segura”....................................................... p.48

2.4 A consolidação da indústria cultural no Brasil: Coutinho roteirista, jornalista e

documentarista da TV Globo................................................................................................ p.50

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2.5 A transição democrática e os novos atores sociais.......................................................... p.56

2.6 O “nacional popular” x a força e autonomia da “nova classe operária”: segunda análise

historiográfica ...................................................................................................................... p.62

2.7 A recepção de Cabra marcado para morrer na década de 1980: “Nada melhor para uma

avaliação desses vinte anos, do que o filme de Eduardo Coutinho”..................................... p.70

Capítulo 3. Analisando Cabra marcado para morrer

3.1 O projetor ao entardecer ................................................................................................. p.82

3.2 Contextualizando: História da UNE Volante e o Primeiro cabra .................................. p.83

3.3 A retomada de Cabra marcado para morrer: uma nova intenção ................................. p.89

3.4 A projeção para os camponeses em Galiléia .................................................................. p.92

3.5 Primeiro e segundo encontro com Elizabeth Teixeira .................................................... p.96

3.6 A história de Cabra marcado e dos camponeses se confundem .................................. p.101

3.7 A fuga de Elizabeth Teixeira e a ofensiva ideológica da direita .................................. p.109

3.8 Coutinho em busca dos filhos de Elizabeth Teixeira ................................................... p.116

3.9 A “saída da clandestinidade” ........................................................................................ p.126

3.10 O último depoimento: “A luta que não para, a mesma necessidade de 64 está

plantada.” ........................................................................................................................... p.128

3.11 Conclusão …............................................................................................................... p.132

Bibliografia e Filmografia ............................................................................................... p.145

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Introdução

A década de 1960 é marcada por profundas transformações sociais no Brasil, assim

como por uma forte polarização política. Após a renúncia de Jânio Quadros, as chamadas

Reformas de Base eram a bandeira de coalisão entre diversos setores revolucionários e

progressistas, evidenciando a necessidade democratização da sociedade e maior distribuição

de renda. No campo econômico, mantinha-se em curso o processo de substituição de

importações, mas já pela via da industrialização pesada, com a crescente demanda pelos bens

de consumo duráveis. Ficava evidente a polarização entre os simpáticos à abertura do país ao

capital externo, e os que afirmavam como via para o desenvolvimento a consolidação de um

projeto nacional hegemonizado pela burguesia nacional, além de outras saídas à esquerda.

Nesse contexto, intelectuais e organizações partidárias e de classe teorizavam a respeito da

possível saída para o desenvolvimento e a modernização do Brasil. O cenário internacional,

com a disputa nuclear e a corrida espacial entre Americanos e Soviéticos, bem como os rumos

da Revolução Cubana reverberavam no país.

No campo da cultura, o rádio aos poucos cedia lugar para a ascensão da televisão, que

modificava profundamente o modo de vida dos brasileiros. Para além dela, a efervescência se

dava no meio artístico, sendo que toda uma geração do teatro, da música e do cinema se

comprometia com os debates e as campanhas políticas da época, pensando e produzindo arte a

partir do viés do engajamento político e da transformação social: “Amadurecia o sentimento

de pertença a uma comunidade imaginada (...), sobretudo nos meios intelectuais e artísticos de

esquerda ligados a projetos revolucionários. Compartilhavam-se ideias e sentimentos de que

estava em curso a revolução brasileira, na qual artistas e intelectuais deveriam engajar-se.” 1

Podemos destacar na vanguarda desse processo, entre outros, o Centro Popular de Cultura

(CPC) ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE) e o Cinema Novo. A análise histórica

da produção fílmica ligada a esses movimentos – objetivo dessa pesquisa – evidencia o

entrelaçamento dessas obras com os diversos projetos de transformação em litígio na época,

bem como as pretensões por parte dos cineastas em utilizar o cinema como instrumento de

atuação social e conscientização política. Dessa forma, entende-se que essas obras

ressignificam o campo histórico, social e político no qual estão imersa, assim como influem

no desenvolvimento do cinema no Brasil em seu âmbito teórico, técnico e linguístico.1 RIDENTI, Marcelo. Brasilidade revolucionária: um século de cultura e política. São Paulo: Editora UNESP,2010. p.87.1

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Essa dissertação debruça-se, em especial, sobre dois momentos da história: os anos

que precedem o golpe militar de 1964, bem como o momento de reabertura democrática na

primeira metade da década de 1980. No primeiro período foi concebida uma série de filmes

com temáticas sociais e políticas, que objetivavam denunciar a injustiça na qual as “classes

populares” estavam imersa historicamente.2 Se destaca nessa produção uma primeira tentativa

de filmar um longa produzido pelo Centro Popular de Cultura da Une em parceria com o

Movimento de Cultura Popular de Pernambuco: Cabra marcado para morrer, dirigido por

Eduardo Coutinho. A ideia para o filme surge a partir da participação de Coutinho na

Caravana UNE-Volante, uma comitiva de líderes estudantis e artistas que percorriam o país no

início de 1960, buscando organizar o movimento estudantil e que tomava contato com os

processos de luta no campo e na cidade. Ao conhecer a líder camponesa, Elizabeth Teixeira, o

cineasta viabiliza um filme de ficção sobre o violento assassinato de seu companheiro, João

Pedro Teixeira. Após algumas filmagens, o projeto é interrompido com o golpe e a

intervenção militar na região. As imagens dessa primeira tentativa de filmar Cabra marcado é

tributária às experiências cinematográficas tanto do CPC como do Cinema Novo. Nesse

sentido, cabe notar o intenso intercâmbio dos mesmos cineastas junto a diferentes

responsabilidades técnicas e de produção dos filmes, tanto pela proximidade ideológica e

profissional, como pelo próprio “limite” técnico, financeiro e de especialização dos cineastas

do Cinema Novo.3 Os cineastas envolvidos na realização desses filmes compartilham um

envolvimento com os projetos de esquerda do período, em alguns casos como simpatizantes

de organizações políticas, em outros como militantes. 4

Esses filmes são testemunhos e produtores de um cinema engajado, preocupado com a

transformação da realidade social do Brasil, o que se dava naquele momento em diversos

âmbitos da arte e da vida intelectual e política do país.5 Ademais, são testemunhos: da censura2 Entre outros, os exemplos mais conhecidos dessa produção são: Rio 40 Graus (Nelson Pereira dos Santos,1955), Aruanda (Linduarte Noronha, 1955), Cinco vezes favela (CPC, 1962), Maioria Absoluta (Leon Hirszman,1964), Viramundo (Geraldo Sarno, 1964-5).3 Constata-se pelos créditos dos documentários desse período diversos nomes em comum nas produções - comoo de Arnaldo Jabor, Leon Hirszman, Maurice Capovilla, Thomaz Farkas e Vladimir Herzog - que atuam comodiretores, roteiristas, técnicos de som, fotógrafos, entre outras atribuições conforme o projeto.4 Em relação aos cineastas, a proximidade se fazia principalmente junto ao Partido Comunista Brasileiro (caso deAlexy Viany, Nelson Pereira dos Santos, Paulo Emílio Salles Gomes e Leon Hirszman) e a chamada “esquerdacatólica” organizada na Juventude Universitária Católica e na Juventude Estudantil Católica, núcleo queconstituiria a Ação Popular (da qual Arnaldo Jabor e Cacá Diegues eram próximos)5 O que seria uma “arte engajada” não é lugar consensual, nem para artistas, nem estudiosos da área, sendo umconceito que se transformou junto às disputas sociais e políticas ao longo do século XX. Aqui utilizo o conceitode maneira ampla, definindo “arte engajada” como uma produção artística que visa transformar a realidadesocial e política ao seu entorno. Dessa forma, não trabalho com a divisão entre “arte engajada” e “arte militante”,2

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da ditadura brasileira; dos meios clandestinos nos quais ocorria a resistência (política e

cultural) ao regime; e da perseguição aos ativistas e militantes de esquerda. Além disso, esses

filmes muitas vezes apresentam inovações tecnológicas - como câmeras mais leves e

gravadores independentes que acabavam de chegar ao Brasil – que permitiam

experimentações da linguagem cinematográfica, questão importante para a análise e o

entendimento da importância dessas obras para a história do cinema nacional.

Após sua interrupção pelo golpe de 1964, o projeto Cabra marcado para morrer

permanece esquecido ao longo de quase duas décadas. Durante esse período Eduardo

Coutinho trabalhará na imprensa escrita, a televisão e ao cinema, vivenciando a profunda

transformação que o Brasil vivia nas telecomunicações e na indústria de massa. O advento da

televisão e dos meios de comunicação como “unificadores” do território e da identidade

nacional em meio à modernização conservadora do regime militar. Na década de 1980,

Eduardo Coutinho acessará parte do material filmado do Primeiro cabra6 que subsistira à

invasão dos militares na região das filmagens, pois já havia sido enviado ao laboratório

cinematográfico no Rio de Janeiro. A partir dai, constrói outro filme. Agora um documentário,

que se debruça não apenas sobre a história da morte de Pedro Teixeira, mas também sobre a

fuga e a clandestinidade de Elizabeth Teixeira após o golpe militar e o consequente

afastamento de seus filhos. Um filme que, junto às cenas da primeira tentativa de filmar

Cabra marcado para morrer, se constrói sobre imagens e documentos da época, e

principalmente sobre a memória: dos camponeses sobre as suas lutas, dos camponeses sobre

suas participações no filme, do cineasta sobre seu próprio filme. Os recursos cinematográficos

que a tecnologia de 1960 permitia de forma inédita no cinema, em Cabra marcado para

morrer são o centro da linguagem cinematográfica de Coutinho, que com a “câmera em uma

mão” e o “gravador em outra”, filmará não só os personagens, mas todos os meandros de sua

produção: das negociações com os personagens para participarem do documentário às

comum em trabalhos contemporâneos, para caracterizar meu objeto de pesquisa. No entanto, não questiono avalidade dessa chave teórica, faltando a essa dissertação um debate aprofundado sobre as possibilidades e limitesdessa conceitualização. De forma ampla, esse trabalho compreende a “arte militante” e o “agit-prop”, porexemplo, como parte do que se pode entender por “arte engajada”, entretanto, não procura definir nem propõemlimites entre essas, mas antes busca descrever as diferenças estéticas entre as obras analisadas, assim comocompreender seu diálogo com o contexto social e político de sua época. Para uma apreciação historiográfica doconceito de “arte engajada”, bem como uma leitura que propõem a diferenciação entre “arte engajada” e “artemilitante”, ainda que não de forma dicotômica, ver: NAPOLITANO, Marcos. A relação entre arte e política: umaintrodução teórico-metodológica. In: Esquerdas e cultura. Revista Temáticas. Num.37/38. Ano 19. 2011. 6 Utilizo ao longo de meu trabalho a denominação “Primeiro cabra” para tratar do projeto interrompido peladitadura e “Cabra marcado para morrer”, “Cabra marcado” ou “Segundo cabra” para tratar do documentáriolançado posteriormente.3

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câmeras e microfones que vêm para “dentro de campo”. Diferente de grande parte cinema

engajado anterior ao golpe de 1964, o documentário de Coutinho, quando lançado em 1984, é

acolhido positivamente pela crítica e pela esquerda de maneira unânime e é considerado um

marco na história do cinema nacional. Dessa forma, entra para a história do documentário

como uma forma de conceber e fazer cinema que abarca a complexidade das relações sociais

e humanas, assim como a pluralidade das memórias e experiências presentes em processos de

luta social e política.

Para compreender o estabelecimento desse marco, é preciso ter em conta as

transformações econômico-sociais do Brasil durante seu processo de abertura do regime

militar, assim como a reorganização da esquerda e de seus projetos em meio ao ascenso

operário e o “novo sindicalismo” que surge no fim de 1970 na região do ABC. Os trabalhos

acadêmicos da época também são embalados por essa efervescência política, assim como pela

“abertura política” do regime, surgindo trabalhos paradigmáticos tanto sobre o “novo

sindicalismo”, como sobre o campo cultural das décadas anteriores. Diversos trabalhos

forjaram a partir dessa década uma historiografia consolidada que argumenta a debilidade do

“idealismo” e do “didatismo” das produções artísticas “nacional-populares”, assim como a

distância dessas produções das “massas” 7. Uma “ida ao povo” sem sucesso, em grande parte

explicada pelo idealismo próprio de uma juventude que partia de outro lugar de classe, sendo

quase em sua totalidade, jovens das classes médias do centro urbano carioca e paulista. Jean-

Claude Bernardet consolidaria essa visão tanto em relação a primeira produção

cinematográficas do CPC - Cinco vezes favela – como em relação a outros documentários da

época a partir da ideia de superação do “modelo sociológico” 8.

Esses mesmos autores e trabalhos receberam Cabra marcado para morrer, como uma

contraposição, ou mesmo, uma “superação”, da forma “militantista” e “ingênua” da produção

cultural pré-golpe de 1964, um novo marco ético e teórico-estético “necessário” a história do

cinema nacional. Como é demonstrado ao longo desse trabalho, essa crítica tem longo alcance

nos meios artísticos, jornalísticos e intelectuais, e devem ser entendida em diálogo com as

7 Refiro-me aqui a trabalhos como: CHAUÍ, Marilena. Seminários: O nacional e o popular na cultural brasileira. Rio de Janeiro: Brasiliense. 1983; ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1986; PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a politica no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo, SP: Ática, 1990.

8 Refiro-me ao trabalho: BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempos de cinema: ensaio sobre o cinema brasileiro de 1958 a 1966. São Paulo: Companhia das letras, 2007. Já o conceito de “modelo sociológico” é teorizado em: Bernardet, J. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Brasiliense, 2003.

4

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transformações políticos e sociais que ocorrem no Brasil ao longo da última década de regime

militar no Brasil. Nesse sentido, a valorização do “novo sindicalismo”, dos “novos

movimentos sociais”, da “nova produção artística”, se faz conjuntamente a afirmação de um

“signo negativo”, tanto para a atuação e as “responsabilidades” das “esquerdas” no momento

pré-golpe de 1964, como para a produção “idealista” de artísticas próximos a esses projetos.

Recentemente diversos trabalhos trazem uma memória mais plural sobre campo

cultural na década de 1960, apontam um contato menos formal entre os intelectuais, artistas

populares e as “massas”, assim como trazem novos elementos em suas análises artísticas. 9

Além disso, trabalhos recentes apontam com maior profundidade uma crítica a bibliografia

sobre a produção cultural “nacional-popular”, assim como a situam junto as transformações

sociais e políticas nas quais os intelectuais estiveram imersos ao longo das décadas de 1970 e

1980.10 No sentido em que esses trabalhos caminham, essa dissertação toma Cabra marcado

para morrer como possibilidade tanto para revisitar a produção cultural “nacional-popular”,

como para compreender como o signo do “novo” em meio a “abertura política” da ditadura

afetou a construção historiográfica sobre o campo cultural da década de 1960. Ademais,

Cabra marcado não se trata apenas de um olhar para o passado, mas também para o seu

presente, sendo que sua análise diz muito sobre a sociedade e os intelectuais de seu tempo.

Situando-se a partir dessa necessidade historiográfica atual, assim como entendendo o objeto

privilegiado de análise histórica que Cabra marcado é, essa dissertação busca também

compreender quais as semelhanças, diferenças e originalidades dos recursos cinematográficos

e estéticos entre os “dois Cabras”, bem como compreender suas estéticas e “discursos” em

meio a seu momento histórico. Dessa forma, busca apontar o significado dessas produções

entendendo-as junto às transformações da esquerda (no campo político e cultural), tendo

como referência, dois momentos marcantes da história contemporânea do Brasil. Para isso, os

capítulos dessa dissertação transitam entre a história, a crítica historiográfica e a análise

fílmica.

9 Uma memória mais plural do CPC e das disputas estéticas da época é encontrada no livro de entrevistas:BARCELLOS, Jalusa (org.) CPC da UNE: uma historia de paixão e consciência. Rio Janeiro: Nova Fronteira,1994. Já outros trabalhos esmiúçam a dinâmica das atividades culturais da época e as relações entre seusprotagonistas, propondo ainda análises estéticas originais, sendo o caso de: SOUZA, Miliandre Garcia de. “DoArena ao CPC”: O debate em torno da arte engajada no Brasil (1959-1964). Dissertação de mestrado emhistória, Universidade Federal do Paraná, 2002; SILVA, Thiago de Faria e. Audiovisual, Memória e Política, osfilmes Cinco vezes favela (1962) e 5x favela, agora por nós mesmos (2010). Dissertação em história, Faculdadede filosofia e ciências humanas, Universidade de São Paulo, 2011.10 NAPOLITANO, Marcos. Esquerdas, política e cultura no Brasil (1950-1970). Um balanço historiográfico.Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n.38, p.35-50, jun.2014.5

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É importante destacar o presente interesse da academia no estudo da relação entre o

Cinema e a História, como a iniciativa do grupo de estudos “História e Audiovisual” que tem

à frente professores e estudantes da Universidade de São Paulo. As contribuições dos

envolvidos nessas pesquisas foram publicadas recentemente em História e documentário e

História e cinema: dimensões históricas do audiovisual. Merecem menção também os estudos

e as constantes publicações da Universidade Federal da Bahia (UFBA) sobre o tema como a

revista “O olho da história”, 11 e o livro Cinematógrafo: um olhar sobre a história publicado

em 2009. Ainda no âmbito dos trabalhos acadêmicos, uma série de dissertações e teses vêm

revisitando nos últimos anos as produções cinematográficas do CPC e do Cinema Novo,

evidenciando a necessidade de pesquisa e revisão bibliográfica do tema, citados ao longo

desse trabalho. Entretanto, cabe ressaltar, a inexistência de trabalhos de fôlego

especificamente de historiadores em relação ao documentário Cabra marcado para morrer,

sendo um filme majoritariamente estudado sobre o ponto de vista da semiótica ou a partir do

arcabouço de teorias da área da comunicação.

Em relação às críticas contemporâneas no campo das ciências humanas que abarcam o

documentário, é possível observar continuidades e novas propostas de leitura para a obra que

caminham menos no sentido da discussão dos projetos culturais e políticos pré-golpe12 e mais

junto à discussão de como interpretar o método e qual valor estética presente tanto no

primeiro projeto como no documentário Cabra marcado. Esse debate sobre o método do

“fazer cinematográfico” na verdade é parte da discussão das transformações da postura do

intelectual e artista diante do contato com “o outro”. No interior dessa “temática”, é possível

apontar em linhas gerais duas vertentes de compreensão do documentário a partir de 1990:11 Revista “O olho da história” disponível em: http://www.oolhodahistoria.org/index.php12 No geral, o projeto do CPC como “idealista” e “dogmático” continua a ser lugar comum das criticas e oPrimeiro cabra um exemplo de sua estética, sem singularidades. É o caso das passagens: “Tratava-se de umahistória exemplar com personagens exemplares, bem ao gosto de uma arte popular revolucionária já colocada emprática nos curtas que compunham o filme Cinco Vezes Favela (1962) (…) “um cinema engajado, com ousadiase riscos nos esquemas de produçao (equipes pequenas, orçamentos baixíssimos, atores "naturais" em locaçoes),mas sem ambiguidades ou experimentacoes estéticas." LINS, Consuelo. O documentário de EduardoCoutinho: televisão, cinema e vídeo. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 2007.; “Percebe-se nesta estratégia adistinção entre povo "fenomênico" e povo "essencial", tal como indicado por Marilena Chauí em seu comentáriodo Manifesto do CPC. Por esta distinção a cultura dos camponeses participantes do movimento não poderia sertomada global e integralmente, já que em seu interior existiam aspectos considerados "alienantes" (...) Por isso,as personagens tinham de ser tipificadas (perdem a dimensão individual e assumem-se como referência àsclasses sociais), os diálogos tinham de seguir a estrutura previamente concebida pelo diretor (conquanto oconteúdo possa ter sido dado pelos próprios camponeses) e a linguagem cinematográfica tinha de dar sustentaçãoa este projeto comportando-se de acordo com os cânones do neo-realismo. As preocupações estéticas, como sevê, subordinaram-se ao projeto político do intelectual ("revolucionário") membro do CPC.”. Alcides FreireRamos, “A historicidade de Cabra marcado para morrer (1964-84, Eduardo Coutinho)”, Nuevo Mundo MundosNuevos, Debates, 28.jan.2006. (sem página)6

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uma que parte da discussão sobre o limite da realidade em uma obra cinematográfica, e que

apontará a montagem do documentário como parte determinante no “discurso” apresentado,

prevalecendo à força da manipulação das imagens pelo cineasta. Outra que compreende as

“novidades” do método como tentativas bem sucedida de superação das formas “dogmáticas e

idealistas” responsável por uma nova perspectiva do olhar: fragmentado e aberto ao

contraditório. Essa metodologia caminharia no sentido de conseguir expor as complexidades

das experiências de vida dos camponeses e de Coutinho através de uma “verdade do

encontro”.13

Caminhando nessa primeira vertente, dez anos após o lançamento do documentário,

Menezes propõem uma nova crítica, segundo o autor: “realizada mais pelos olhos de uma

análise de suas imagens do que pelo impacto do conteúdo de seu enredo, feita naquele

momento de fim de ditadura, impulsionada pelos dolorosos ditames do coração de uma

geração órfã de sua própria história”.14 Influenciado pelo pensamento foucaltiano de “As

palavras e as coisas”, entre outras referencias como Bazin, Tarkovski e Heller, Menezes

argumenta que todo cineasta é construtor de ideias, e não coisas, e nesse sentido, todo filme

seria uma ficção, inclusive o cinema documentário: “(...) não existe cinema mais ilusório do

que o documentário, pois ele também é uma ficção, mas é uma ficção especial que tenta a

todo custo e o tempo todo se mostrar como verdade.15 A partir desse pressuposto, o crítico irá

se debruçar sobre os dois Cabras e seus recursos (suas montagens e suas entrevistas) entendo-

as como mecanismos de legitimação de uma suposta “verdade” criada por Coutinho através

da manipulação de imagens e sons. Dessa forma, procura descortinar os mecanismos

responsáveis pelos “efeitos de verdade”, “efeitos de real”, tendo em vista que: “A realidade do

filme não se identifica nem com a realidade da vida e nem a realidade da história. Está na

ordem do imaginário, o imaginário sobre o golpe de 64, sobre o “terror vermelho” e, por que

não, o imaginário do próprio Coutinho sobre os camponeses brasileiros.” 16 17

Caminhando em outro sentido, a antropóloga Regina Novaes proporá a apreensão de

13 O debate sobre a historiografia contemporânea de Cabra marcado privilegiou os trabalhos de maiorenvergadura, assim como os de historiadores e cientistas sociais. Há uma vasta crítica, principalmente no campoda comunicação e audiovisuais, em artigos, dissertações e teses, que caminham por diversos meandros e a partirde variadas referências teóricas, não sendo possível analisa-la globalmente aqui.14 MENEZES. Paulo Roberto Arruda de. "A questão do herói-sujeito em Cabra marcado para morrer filme deEduardo Coutinho". Tempo social, Rev. Sociol. USP, São Paulo, 6(1-2): 107-126, 1994. p.108.15 Idem. p.114.16 Idem. p.123.17 Caminha nessa mesma linha de debate o trabalho: TOLENTINO, Célia. A dialética rarefeita entre o não sere o ser outro – um estudo sobre o rural no cinema brasileiro. Tese de Doutorado. Campinas: Unicamp. 1997.7

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Cabra marcado a partir da memória contida em seus depoimentos, objetos passíveis de

compreensões sociológicas em constante redefinição. Dessa forma, a questão da “verdade” ou

“ficção” da obra de arte abre espaço para a compreensão que as narrativas podem ser

utilizadas como fonte de conhecimento. Para isso, Coutinho se empenharia em uma prática

próxima a “antropologia reflexiva” que tornaria explicita a complexidade da realidade. Dessa

forma, a intervenção proporcionaria elementos para compreender os contextos históricos e os

meandros da formação da identidade brasileira a partir da figura do “camponês” e ao mesmo

tempo auxiliaria na saída da clandestinidade de Elizabeth Teixeira e o resgate social da

história de João Pedro Teixeira e das Ligas Camponesas.18

Aproxima-se dessa leitura trabalhos lançados na década de 2000, como o de

Gervaiseau, “Cabra marcado para morrer ou o documentário brasileiro no limiar da

historiografia e da antropologia moderna”. Para o pesquisador o objetivo do documentário é:

“(…) observar as mudanças que se registraram entre a filmagem do Primeiro Cabra marcado

para morrer e a filmagem do segundo, a fim de poder estabelecer o percurso de uma trajetória

e, simultaneamente, instituir uma memória desse percurso.” 19 Se distanciando do “modelo

sociológico” próprio as produções da década de 1960 e 1970 no Brasil (que imporia uma voz

exterior e onisciente através da voz over), bem como a saída desse paradigma que nega a

possibilidade de encontro com o “outro de classe” (trabalhando apenas no nível puramente

significante da linguagem), Cabra marcado seria caracterizado pela “consciência da

problematicidade desse encontro e uma vontade de propiciar ao espectador uma reflexão

sobre o seu significado”. 20 Nesse sentido, o “desafio da coleta de história de vida” se daria

pela reunião de pontos de vista heterogêneos que privilegiaria primeiramente a dimensão

comum da experiencia e em seguida o aspecto diferencial.

Partindo do antropólogo Roger Bastide, Gervaiseau define a memória como uma

articulação entre a memória coletiva e a individual, um jogo de “imagens recíprocas e

complementares”, sendo que, através da negociação pela “partilha efetiva”, seria possível

compreender o campo de cada uma. Nesse sentido, como Coutinho teria partilhado a tentativa

do Primeiro cabra, veríamos no novo projeto diferentes graus de cumplicidade e negociação

18 NOVAES, Regina R. 1996. “Violência imaginada: João Pedro Teixeira, o camponês no filme de EduardoCoutinho”. Cadernos de Antropologia e Imagem. Rio de Janeiro, nº 3.19 GERVAISEAU, Henri. “Cabra marcado para morrer ou o documentário brasileiro no limiar dahistoriografia e da antropologia moderna”. Estudos Socine de Cinema: ano IV. São Paulo: Editora Panorama,2003. p.180.20 Idem. p.179.

8

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em relação a experiência. Além disso, seu método problematizaria a questão do encontro com

o “outro”. Dessa forma:

“Podemos ver, à semelhança de Regina Novaes, no jogo de troca de lugares entre entrevistados,entrevistador, locutor, uma postura constitutiva do modo de representação da complexidade de doprocesso histórico (determinante e manifesto na diversidade de trajetórias e tomadas de posições) 'dofilme, que o aproxima da aventura da pesquisa antropológica.”21

Em relação à historiografia contemporânea, Gervaiseau argumenta a proximidade da

compreensão e do trabalho com os “fatos históricos”, com a memória e com a construção

historiográfica de Coutinho e de autores como Dosse, Veyne e Ricouer. Em alguns momentos

a inserção de artigos e jornais serviria para atestar a veracidade da fala das testemunhas,

contextualizar ou complementar informações. Em outros, a função seria levar o espectador a

questionar os escritos junto aos depoimentos. Além disso, haveria a retomada dos

acontecimentos em torno de porque e esquemas de casualidade explicativos, além de uma

permanente busca dos vestígios dos acontecimentos na consciência coletiva. Esses recursos

seriam próprios da “ideia de verdade” do historiador contemporâneo, não mais ligada a

“lógica da verificação e da falsificação”, mas sim a uma “lógica probabilística”. 22 Logo, seria

mérito da metodologia de Coutinho - próxima ao fazer da historiografia contemporânea23 e da

“aventura da pesquisa antropológica” - a instituição de uma memória coletiva, que se deveria

“em grande parte ao fato da apresentação, no curso da narrativa, de uma pluralidade

heterogênea de trajetórias existenciais.”24 25

Aproxima-se ainda desses trabalhos o artigo de Montenegro26 no qual afirma que o

documentário de Coutinho: “Institui um diálogo entre a memória e a história, transformando a

arte em um riquíssimo campo de conhecimento e de experiência históricas.” Nesse sentido, o

historiador chama atenção para um “plano geral” que caracteriza o filme - buscar os

21 Idem. p.p.185-6.22 Idem. p.p.181-2.23 Outro trabalho que caminha no sentido da aproximação de Cabra marcado e os métodos historiográficoscontemporâneos é o de Karla Holanda. Em seu artigo “Documentário brasileiro contemporâneo e a micro-história” aponta o documentário como marco da passagem de um cinema “totalizante” e de “abordagens gerais”para o “particular”. Coutinho conseguiria abarcar não apenas o que foi a ditadura, mas faze-lo conjuntamentecom a história individual dos camponeses e do próprio cineasta, uma similaridade entre o métodocinematográfico e o método da micro-história. HOLANDA, Karla. “Documentário brasileiro contemporâneo e amicro-história”. Revista de história e estudos culturais. Vol.3, anoIII, n.1. 2006. Visitado em: 5 jan 2016.Disponível em: http://www.revistafenix.pro.br/fenix_6_karlaholanda.php24 Idem. p.186.25 Ainda dentro desse olhar de aproximação com o trabalho do antropólogo, enquadra-se os leitura de Dorea eMaluf presentes na bibliografia.26 “Cabra marcado para morrer: entre a memória e a história”, publicado no livro. SOARES, Mariza deCarvalho e FERREIRA, Jorge (Orgs). A História vai ao Cinema. Rio de Janeiro: Record, 2001.9

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camponeses da experiência de 1964 e estabelecer um diálogo com eles – e valoriza

principalmente o método com que Coutinho faz isso: o uso das projeções das imagens do

Primeiro cabra (que instauraria a oportunidade de rememoração) assim como a forma de

estabelecer seu contato com “o outro”:

“A participação do diretor, perguntando, discordando, respondendo, está presente em diversaspassagens. Essa postura é definida a partir do entendimento teórico de que a relação entre entrevistadore entrevistado é assimétrica, em decorrência do poder que lhe é dado pela câmera. No entanto, essarelação desigual só poderia ser compensada, de uma forma correta, incluindo essa assimetria relativano produto que você faz. Por isso falo que esse microfone pertence aos dois lados, o diálogo é entreos dois lados, deve aparecer, inclusive, em seus momentos críticos.”

Junto a esse desafio de operar o resgate da memória, Coutinho também se revelaria um

“pesquisador incansável”, buscando para cada “fragmento de memória” descortinado um

“enquadramento histórico” através de diversas fontes documentais: “Recorre o diretor à

metodologia da história, para impedir que preciosos relatos se transformem apenas em

curiosos depoimentos de lembranças revisitadas.” Dessa forma, corroborando os apontamento

de Gervaiseau, para Montenegro o cineasta estabeleceria um contraponto entre memória e

história, possibilitando a ampliação e a compreensão do passado. E nesse sentido, o

documentário também teria o poder de interferir no “silêncio” forçado da vida esquecida ou

clandestina desses camponeses, assim como permitiria a reconciliação desses com suas

identidades, com a memória e com a história.

Essa dissertação caminha junto aos trabalhos contemporâneos que compreendem as

produções do CPC e das obras denominadas “nacional-popular” como local de conflitos e

experiências diversas, apontando o limite em tratá-las sob a adjetivação de “didatistas” ou

“idealistas”. Além disso, busca apontar qual foi o contato existente entre os “intelectuais” e as

“massas”, assim como o significado e o impacto dessa relação nas obras artísticas. Em relação

a historiografia contemporânea específica que se debruça sobre o Cabra marcado, esse

trabalho vê com ressalva as leituras que apontam a prevalência do “poder da montagem” do

cineasta sob a “indeterminação” de uma tomada (como a de Menezes), havendo perigo nessa

leitura de analisar uma obra de arte como deslocamento absoluto das “ideias” e

“necessidades” de seu diretor. Entretanto, atenta-se também para o perigo de tratar

determinado método como capaz de “revelar” a “contraditória realidade” devido a

determinada forma de intervenção de seu diretor. É certo que Cabra marcado apresentasse

como uma obra constituída por “discursos dissonantes”, permitida por uma metodologia

marcada pelas “falas contraditórios”, pelo improviso, pela metalinguagem e a “denúncia de

10

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si” como “agente discursivo”. Entretanto, a intervenção do cineasta sugerindo significados e

sentidos as sequências, assim como suas referencias estéticas e de linguagem, não podem ser

apagadas devida a própria natureza da produção cinematográfica que se estrutura junto a

montagem. Essas questões são retomadas no capítulo de análise fílmica de Cabra marcado,

assim como a coerência dos apontamentos dos trabalhos contemporâneos de Novais,

Gervasieau, Dorea, Maluf e Montenegro que apontam o trânsito do trabalho de Coutinho entre

a memória pessoal e coletiva, assim como compreendem o “método cinematográfico” do

documentário como próximo do “fazer antropológico e historiográfico”.

Cinema e história: notas teórico-metodológicas

A relação entre o cinema e a história é tão antiga quanto o próprio cinema. Em 1898,

três anos após a primeira exibição de cinema com entradas pagas projetada pelos irmãos

Lumière, o cinegrafista polônes Boleslas Matuszewski publica o artigo “Une nouvelle source

de l´histoire: création d`um dépôt de cinematographie historique” a fim de discutir a relação

entre o cinema e a história. Assim como os irmãos Lumière, esse artigo apontava o

cinematógrafo como fornecedor de imagens incontestáveis, autênticas e exatas da realidade,

fornecidas por um “princípio de autenticidade de registro” próprio da imagem

cinematográfica. Três décadas depois, de 1926 a 1934, em meio aos encontros do Congresso

Internacional das Ciências Históricas realizado na Europa, um grupo de historiadores

demonstra seu interesse pelo cinema como fonte histórica, preocupados com a preservação de

filmes nos arquivos. Prevalecia entre eles a ideia de autenticidade de registro e a atenção para

filmes de atualidades, não ficcionais, que estariam “livres” da influência pessoal de seus

realizadores.27 Compreendendo o cinema diferentemente, o trabalho de Siegfried Kracauer em

1946, De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão, aponta o filme de

ficção como reflexo da mentalidade de uma nação, estabelecendo uma relação direta entre a

obra cinematográfica e seu meio socio-histórico de produção. Kracauer aponta nas

características estéticas do expressionismo do cinema Alemão a manifestação do

autoritarismo da República de Weimar, prenúncio da ascensão nazista. Nesse sentido, o

cinema não tem o estatuto de cópia do real, mas figura como transposição de seus produtores

a partir de um contexto histórico, havendo assim homologia entre filme e meio de origem,27 KORNIS, Mônica Almeida. História e cinema: um debate metodológico. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,vol.5, n.10, 1992, p.p.237-240.11

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sendo possível revelar os mecanismos da realidade pela análise do cinema. Nas décadas

seguintes, outros estudos, principalmente na Europa, apontaram o reconhecimento do valor

documental do cinema, entretanto sem grandes discussões metodológicas sobre a relação

cinema-história, prevalecendo o princípio de autenticidade de registro. Para o historiador

Marcos Napolitano essa relação se deve ao próprio estatuto da linguagem não-escrita vista,

inicialmente, como “objetiva” e “neutra”, um registro mecânico da realidade externa:

“conjunto de significados que iam direto ao referente (a “realidade”), parecendo prescindir da

análise de significantes e de códigos de linguagem.” 28

É apenas na década de 60 que os historiadores se debruçam sobre o assunto a fim de

produzir sistematicamente teorias e metodologias específicas para o trabalho com a fonte

histórica “cinema”. Um dos primeiros historiadores a pesquisarem essa problemática, Marc

Ferro, apontava que o “iletramento” dos historiadores no campo visual se deveria ao próprio

estatuto do cinema durante o século XX, assim como as concepções e hierarquias existentes

no campo da historiografia. Se a escrita da história reflete as relações de poder da sociedade,

seus responsáveis, o Estado e as suas instituições, se utilizarão de documentos oficiais:

declarações ministeriais, documentos parlamentares, discursos e tratados. Além disso, o

cinematógrafo teria o estatuto de “máquina da ilusão e do embrutecimento”, uma “atração de

feira”, ficando restrita a truques, seleções de imagens e falsificações. Nada mais avesso ao

trabalho científico do historiador com suas referências, hipóteses e provas. Como Ferro

aponta: “Sem vez nem lei, órfã, prostituindo-se para o povo, a imagem não poderia ser uma

companhia para esses grandes personagens que constituem a Sociedade do historiador: artigos

de leis, tratados de comércio, declarações ministeriais, ordens operacionais, discursos.” 29

O tensionamento de Ferro com essa historiografia anterior se insere em um marco de

revisão teórica-metodológica mais amplo. Apesar de não ter ligação formal com a Nova

História, há uma identificação clara entre a obra desse historiador e as questões levantadas por

esse movimento. A Nova História buscou na década de 60 e 70, ampliar o espectro do que

seriam as “fontes históricas” bem como reavaliar o trabalho metodológico com essas. Apesar

de já anunciada desde o início da Escola dos Annales, a história das mentalidades ganha um

impulso como nunca visto, enriquecendo explicações dos movimentos históricos a partir das

28 NAPOLITANO, Marcos. “Fontes audiovisuais: A história depois do papel.” In: Pinsky, Carla Bassanezi (org.).Fontes Históricas. Contexto, 2005. p. 266.29 FERRO, Marc. “O Filme: uma contra-análise da sociedade?” In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (orgs).História: novos objetos. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. p. 201.12

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representações feitas pelos homens em seu tempo histórico. Já o conteúdo do termo

documento se amplia e passa a ser considerado monumento no sentido da teorização de

Jacques Le Goff. 30 Todo documento seria resultado de um esforço das sociedades históricas

para impor ao futuro determinada imagem de si própria - uma representação de si - sendo

necessário outro paradigma para pensar a escrita da história que não mais a veracidade do

documento. Nesse sentido, há uma dupla incorporação na historiografia: uma de caráter

teórico (o imaginário não mais visto como campo do falso, mas como parte constituinte da

sociedade e motor da atividade humana) e a incorporação e renovação metodológica no

trabalho das “imagens” como fonte histórica (agora parte constituinte das zonas psico-socio-

históricas do homem, não mais campo das representações mentirosas ou do não-real). Aos

poucos o princípio de autenticidade de registro perde sentido para a discussão sobre a história

e o cinema, pois todo o processo sócio-histórico de elaboração, realização e recepção de um

filme – seja ele ficcional ou não-ficcional - passam a ser visto como portadores de

historicidade.

Ferro dá os primeiros passos em relação a esse debate no campo da história, lançando

em 1968 na revista Annales um artigo intitulado “Société du XX siècle et histoire

cinématographique”, no qual faz referencia ao culto da analise de documentos escritos,

alertando sobre a disposição de novos documentos, novas metodologias, e por certo, novas

dimensões do conhecimento histórico. Apesar da maior parte da obra de Ferro no campo do

cinema ser composta por artigos que tratam de análises de filmes ou séries de filmes

específicos, é possível elencar características elementares de seu método que justificam sua

importância nesse debate. Ferro não só afirma o filme como documento passível de análise

historiográfica, mas a necessidade de um trabalho particular com essa fonte. Essa análise

atingiria a história psicossocial, revelando crenças, intenções e o imaginário do homem no

tempo. Nesse sentido, é um dos primeiros a apontar o privilégio das obras de ficção para

análise da ideologia e do imaginário de uma época, pois esses filmes trariam informações

ausentes nos documentários. Assinala ainda o cinema como imagem-objeto, investindo na

pesquisa da relação do filme com a sociedade que o produz e o consome, e nessa análise

articula variáveis não cinematográficas (realização, audiência, financiamento e ação do

Estado) com a especificidade da expressão cinematográfica (análise da linguagem

cinematográfica) 31. Merece destaque o artigo de 1971, “O filme: uma contra-análise da30 KORNIS, Op. cit, p. 239.31 Idem. p. 242.13

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sociedade”, publicada em 1973 na revista Annales, Économies, Sociétes, Civilisations, e

reeditado um ano depois no livro Faire de l´histoire: nouveaux objects. Esse artigo é

publicado no Brasil em 1975 (História: novos objetos), sendo que Ferro participa de

seminários no país na década de 80, influenciando o debate da relação entre história e cinema.

Em seu artigo, Ferro propõe que o cinema, mesmo com a vigilância, fiscalização e censura de

órgãos estatais ou privados, carrega lapsos da realidade escamoteadas pela narrativa, pela

tentativa de se forjar uma história “oficial”. Esse lapsos abririam a possibilidade de uma

contra-análise da sociedade:

“(...) os poderes públicos e o privado pressentem que ele [o cinema] pode ter um efeito corrosivo; elesse apercebem que, mesmo fiscalizado, um filme testemunha. Termina por desestruturar o que váriasgerações de homens de Estado, de pensadores, de juristas, de dirigentes ou de professores tinhamreunido para ordenar num belo edifício. Ele destrói a imagem do duplo que cada instituição, cadaindivíduo se tinha constituído diante da sociedade. A câmara revela o funcionamento real daquela, dizmais sobre cada um do que queria mostrar. Ela descobre o segredo, ela ilude os feiticeiros, tira asmáscaras, mostra o inverso de uma sociedade, seus lapsus.” 32

Também é características de destaque na concepção de Ferro a necessidade de critica

à autenticidade do documento fílmico. O historiador propõe uma metodologia para identificar

a presença de modificações ou reconstituições no documento, ou seja, uma forma de avaliar a

“veracidade” do filme. Uma análise pautada nos ângulos de câmera, na distância das imagens

de um mesmo plano, na legibilidade das imagens e da iluminação, na intensidade de ação e no

grão da película revelaria a autenticidade das imagens em relação aos fatos registrados.

Um trabalho recente do pesquisador Eduardo Victorio Morretin visita criticamente a

obra de Ferro e aponta certas debilidades. Ao utilizar o cinema para uma contra-análise da

sociedade, Ferro incorreria em um erro:

“(...) essa análise vê a obra cinematográfica como portadora de dois níveis de significaçãoindependentes, perdendo de vista o caráter polissêmico da imagem. Este raciocínio só tem sentido paraaqueles que, ao analisarem um filme, separam da obra um enredo, um ‘conteúdo’, que caminhaparalelamente às combinações entre imagem e som, ou seja, aos procedimentos cinematográficos. Pelocontrário, afirmamos que um filme pode abrigar leituras opostas acerca de um determinado fato,fazendo desta tensão um dado intrínseco à sua própria estrutura interna.” 33

Dessa forma, Morretin afirma o perigo de se visualizar as imagens como emanações

unívocas e categóricas acerca de uma realidade que estariam em um quadro dicotômico entre

verdadeiro x falso, história “oficial” x contra-história. Morretin aponta também a debilidade

em trabalhar a veracidade de um filme a partir de seus mecanismos de linguagem e técnicos,

32 FERRO. Op.cit. p.202.33 MORRETIN, Eduardo Victorio. O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro. História: Questões edebates, Curitiba, n.38, p.11-42, 2003. Editora UFPR. p. 15.14

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pois toda imagem cinematográfica requer a manipulação, organização e outros procedimentos

do cineasta diante da “realidade”. Constata-se assim que embora certa parte da obra de Ferro

aprofunde e complexifique a relação entre o cinema e a história, alguns pontos carregam uma

concepção próxima do princípio de autenticidade de registro de Matuszewski.

Buscando uma abordagem que leve em conta as contribuições de Marc Ferro e da

Nova história, assim como de críticas contemporâneas da relação Cinema e História, além dos

trabalhos de Morretin, pode-se apontar a obra do historiador Marcos Napolitano. Em seu texto

Fontes audiovisuais: a história depois do papel o historiador aponta que não se pode tomar as

imagens artísticas sob um paradigma objetivista (que toma as imagens como emanações

diretas de uma realidade), nem sob um paradigma subjetivista (as obras entendidas como um

campo inteiramente pessoal e relativo, sendo seus significados sociológicos somente fruto da

especulação). Na verdade, a imagem carregaria um estatuto intermediário: subjetivo, pois sua

linguagem é artística e ficcional; objetivo, pois tem capacidade de registrar e criar realidades

em si mesma (ainda que no mundo da ficção) encenadas em outro espaço e tempo, as quais

dialogam com o fetiche de objetividade e do realismo existente na sociedade.34 Sobre a

relação entre imagem e realidade, Napolitano afirma:

“O que importa é não analisar o filme como “espelho” da realidade ou como ‘veículo’ neutro das ideiasdo diretor, mas como o conjunto de elementos, convergentes ou não, que buscam encenar umasociedade, seu presente ou seu passado, nem sempre com intenções políticas ou ideológicas explícitas.Essa encenação fílmica da sociedade pode ser realista ou alegórica, pode ser fidedigna ou fantasiosa,pode ser linear ou fragmentada, pode ser ficcional ou documental. Mas é sempre encenação, comescolhas predeterminadas e ligadas a tradições de expressão e linguagem cinematográfica que limitam asubjetividade do diretor, do roteirista, do ator.“35

Nesse sentido, a imagem não ilustra, nem reproduz a realidade, mas a reconstrói a

partir de uma linguagem própria. Entretanto, longe de ser uma representação subjetivista,

apartada do mundo e de seu momento histórico, encontra-se nos filmes a tensão entre

evidencia e representação, como Napolitano coloca: “sem deixar de ser representação

construída socialmente por um ator, por um grupo social ou por uma instituição qualquer, a

fonte é evidência de um processo ou de um evento ocorrido, cujo estabelecimento do dado

bruto é apenas o começo de um processo de interpretação com muitas variáveis.” 36 Sendo o

filme uma representação e uma evidencia, faz-se necessário então responder, não mais se um

filme é autêntico ou real, mas o que o filme diz e como o filme diz.

34 NAPOLITANO. Op. cit, p. 235.35 Idem. p. 276.36 Idem. p.240.15

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Nesse sentido, Napolitano propõe no trabalho com o documento fílmico uma primeira

decodificação que se debruce sobre como a realidade histórica e social são representadas, seu

“conteúdo” narrativo propriamente dito. Uma identificação a partir do filme (não de seu

contexto) na base de uma “descrição densa” dos elementos narrativos básicos – o plano e as

sequências. A segunda decodificação necessária diz respeito aos aspectos técnicos-estéticos de

um filme, que se justifica pela impossibilidade de separação entre linguagem, conteúdos e

tecnologias utilizadas para a representação. Sendo assim, não se poderia isolar a cena ou o

som “real”, captado pelo meio tecnológico (a câmera, o microfone, etc.) das opções de

linguagem, imperativos dos códigos dominantes e das possibilidades técnicas do meio em

questão. Napolitano aponta que os historiadores do audiovisual tenderiam a fazer essa

separação, um movimento que levaria os trabalhos a restringirem sua análise aos diálogos de

um filme, por exemplo, ou apenas às letra das canções, ou aos textos das novelas. Mesmo que

em muitos casos, esses pontos sejam determinantes do testemunho ou da representação,

estariam longe de constituir uma critica documental completa ou dar conta da obra. Por

último, faz-se necessário a articulação entre o técnico-estético e a representação, um diálogo

entre os elementos da linguagem fílmica cotejados com a imagem em movimento. Como

aponta o historiador: “Conteúdos, linguagens e tecnologias de registro formam um tripé que,

em última análise, irá interferir no potencial informativo do documento”. 37 Esse debate

teórico-metodológico permeará o trabalho com as fontes nessa dissertação, em especial, a

análise fílmica de fôlego do documentário Cabra marcado para morrer.

37 Idem. p. 267.16

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Capítulo 1

1.1 “Quando eu voltei realmente voltei para uma coisa que não sabia o que era.”

“Eu era cinéfilo, desde garoto, de garoto mesmo; anotava nome de diretor, de ator; tinha cadernos emque anotava todos os filmes que via. Ia ao cinema cinco vezes por semana, ia ao cinema todo dia,quando podia. Tem bairros de São Paulo que eu conheço porque ia lá ver filmes.” 38

Paulistano nascido em 11 maio de 1933, Eduardo de Oliveira Coutinho desde pequeno

percorreu os cinemas de São Paulo. Aos dezenove anos, ingressa na Faculdade de Direito da

Universidade de São Paulo, mas abandona o curso no ano seguinte. Seu contato com o cinema

se intensifica ao participar em 1954 do Seminário de Cinema no Museu de Arte de São Paulo

coordenado por Marcos Marguliés, tendo professores como Rugerro Jacobbi, os irmãos

Renato e Geraldo Santos Pereira e Oswaldo Sampaio. Nesses anos trabalha como revisor e

copidesque na revista Visão. Em 1957, após ganhar dois mil dólares respondendo perguntas

sobre Charles Chaplin no programa da TV Record, “O dobro ou nada”, surge a oportunidade

de viajar pela Europa. Participa do Festival da Juventude em Moscou, passa por Praga e chega

a Paris. Já no fim de seus recursos financeiros, auxiliado pelas cartas de recomendação de

Alberto Cavalcanti, Paulo Emílio Sales Gomes e Vinícius de Moraes consegue uma bolsa de

estudos no Institut des Hautes Études Cinématographiques (Idhec). Nesse curso, irá realizar

seus primeiros filmes de curta-metragem e escrever seus primeiros trabalhos sobre cinema.

Nesses anos dirige a peça infantil de Maria Clara Machado, “Pluft, o fantasminha”. Em 1960,

formado em direção e montagem pela Idhec, retorna ao Brasil. 39 Coutinho comenta sua

passagem pelo Instituto e as transformações que sentiu ao retornar ao Brasil.

“Para mim o Idhec não foi uma experiência positiva, não. Foi positivo o que existia em volta do Idhec,o fato de ver filmes, o fato de estar fora, isso ai foi maravilhoso, é claro, foi essencial. Mas, na verdade:eu me lembro de que o Joaquim [Pedro de Andrade] chegou lá poucos dias antes de eu voltar. E quandofui para a Europa, bossa nova não tinha, Cinema Novo também não. Não existia. Quando eu volteirealmente voltei para uma coisa que não sabia o que era.” 40

Menos de três anos no exterior fora o bastante para causar estranhamento no recém-

formado cineasta. De fato, desde a década de 1940, o Brasil vinha passando por um processo

intenso de transformação econômica, social, política e principalmente cultural.

38 OHATA. Milton (org). Eduardo Coutinho. Sâo Paulo: Cosac Naify, 2013. p.254.39 Bibliografia baseada em entrevista de Coutinho e nos dados presente na “Bibliografia” do livro organizadopor Milton Ohata presente na bibliografia. Ver p.p.254-7 e p.p.659-66040 OHATA, Op. cit. p.257.17

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1.2 A modernização capitalista no Brasil e no mundo

Quase duas décadas separam o fim da ditadura varguista em 1945 e um novo estado de

exceção instaurado pelo golpe militar de 1964. Décadas em que o mundo viveu conflitos

abertos e internacionalizados, disputas econômicas e político-ideológicas costumeiramente

resolvidas pelo veredicto da força militar. A internacionalização do capital e sua investida

neo-colonial dificulta ou impede a autonomia de povos africanos, asiáticos e latino-

americanos, mesmo para os que não chegaram a ser colônias ou que já haviam deixado de sê-

la. Após duas Grandes Guerras, a derrota do nazi-fascismo, crises das econômicas liberais e a

busca de saídas socialistas, se afirma uma nova proposta de emancipação política e

desenvolvimento econômico autônomo pelos países “terceiro-mundistas”. Se contrapondo a

um projeto liberalizante (vinculado diretamente ao capital internacional e à hegemonia

político-ideológica das econômicas mais avançadas), esses projetos ganharam contornos

próprios em cada região, entretanto, carregam como características políticas em comum: sua

personificação em “pais da pátria”, ou em lideranças carismáticas; sua centralização em

partidos, movimentos nacionais ou instituições como o exército; a construção de Estados

fortes e intervencionistas (alguns ditatoriais); uma ideologia autonomista, de união de classe e

de crítica ao capitalismo liberal internacional. 41 Projetos nacionais e revoluções que

incorporam e se aliam, de diferentes formas, às grandes potências capitalistas e ao mundo

socialista conforme interesses e necessidades. Em alguns países a conquista da soberania

através de movimentos sociais nacionais e da luta armada, em outros a “descolonização” pela

barganha de pactos neocoloniais de manutenção da dependência.

No Brasil, no período pós 1945 o desenvolvimento social e econômico é marcado por

ambiguidades: um modelo de desenvolvimento dependente e associado ao capital

internacional, mas sem rupturas do corporativismo e da intervenção estatal do Estado Novo. O

mesmo ocorre com seu caráter elitista e antipopular, constituindo-se assim um período

democrático-liberal autoritário. 42 A contradição ocorre tanto nos governos do abertamente

liberal Eurico Gaspar Dutra, como nos “anos dourados” de Juscelino Kubistchek, com seu

Plano de metas (expansão da infraestrutura financiada pelo Estado), o controle sindical

corporativo e ao mesmo tempo, o incentivo ao capital internacional para a manutenção dos

41 REIS FILHO, Daniel. Ditadura e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. p.p.19-22.42 REIS FILHO, Daniel. A ditadura faz cinquenta anos: história e cultura política nacional-estatista. In: MOTTA,R. P. S., RIDENTI, M. REIS FILHO, D. (orgs.) A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. Riode Janeiro: Zahar, 2014. p. 18.18

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índices de desenvolvimento industrial. Com Jânio Quadros a ambiguidade não é diferente, se

expressando em um “ziguezague” ideológico por distintas correntes. 43 Apostando em seu

carisma pessoal e diálogo direto com a sociedade, a “renúncia-golpista” de Jânio Quadros em

agosto de 1961 surpreende, e continua a ser motivo de especulações. A disputa pela sucessão é

marcada por um longo imbróglio envolvendo os ministros militares e setores que viam com

desconfiança as intenções “populistas” de João Goulart, resultando em uma solução

institucional negociada: um parlamentarismo híbrido que limitava os poderes tanto do

executivo como do legislativo.

Ao longo de todo esse período, há a continuidade na estrutura sindical corporativista,

com o controle organizativo, político e ideológico por parte do Estado dificultando a

organização independente e classista dos trabalhadores. Entretanto, apesar dos limites da

estrutura sindical, caminhos alternativos frutificam na década de 50, momento em que a

aliança entre o PCB e a ala reformista do PTB, obtem êxito na organização e mobilização

“por dentro” e “por fora” da estrutura, na “base” e na “cúpula”, o que resulta em decisiva

participação dos trabalhadores na sociedade e na esfera política nacional. Como expressão

disso, surge o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), central sindical ativa na campanha

pelas reformas de base. 44 Além disso, outros atores se constituem com potencial de

mobilização autônoma, como os movimentos sociais urbanos (o movimento estudantil e

organizações intelectuais como o ISEB), os movimentos do campo (as Ligas Camponesas e os

sindicatos rurais) e as baixas patentes das forças armadas, adentrando o espaço anteriormente

das elites e restrito as instituições estatais. Governo e parlamento passam a ter que ver na

sociedade civil referência e interlocutores que se organizam para as disputas de projeto, como

a Frente Parlamentar Nacionalista (FPN). 45 Para esses grupos, a resolução dos problemas

econômicos e sociais se daria conjuntamente, mediante a luta pelo nacionalismo econômico e

pelos programas de reforma social. O projeto de reformas de base ganha a cena, se

reivindicando a reforma agrária, urbana, bancária, eleitoral, do estatuto do capital estrangeiro

e universitária.

43 “Aos liberais, criticava o Estado. Aos esquerdistas, elogiava o general Gamal Abdel Nasser, no Egito, e FidelCastro, em Cuba.” MOTTA, R. P. S., RIDENTI, M. REIS FILHO, D. (orgs) Op. cit. p.25.44 ANTUNES, Ricardo. SANTANA, Marco Aurélio. Para onde foi o “novo sindicalismo”? Caminhos edescaminhos de uma prática sindical. In: MOTTA, R. P. S., RIDENTI, M. REIS FILHO, D. (orgs). p.p. 130-131.45 NEVES, Lucília de Almeida. Trabalhadores na crise do populismo: utopia e reformismo. In: TOLEDO, C. Opcit, p.p.57-59.19

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1.3. O florescimento político-cultural e os românticos-revolucionários

A república liberal-democrática que se instaura no Brasil pós 1945, assinala um

momento de profundas transformações socioeconômicas. A industrialização segue seu

processo de substituição de impostações, já pela via da industrialização pesada, com a

crescente demanda pelos bens de consumo duráveis, estimulado pelo incentivo ao capital

internacional que atrai montadoras e outros setores. Aos poucos cresce e se centraliza o

contingente de trabalhadores industriais, assim como a imigração interna para os estados do

Sul. Entretanto, a sociedade passa a ser majoritariamente urbana apenas no decorrer da década

de 1960. 46 Como parte dessas modificações, novas condições materiais de vida e de

sociabilidade surgem nessas décadas como o aumento das classes médias, o aumento do peso

da juventude na composição etária do país, o acesso crescente ao ensino superior (ainda

restritíssimo), a incorporação de bens de consumo e de comunicação (como a televisão e

eletrodomésticos), em um cenário de crescente urbanização e consolidação nos centros

urbanos de um modo de vida típico das metrópoles.

Para o sociólogo Marcelo Ridenti, esses elementos constituem o contexto material47 no

qual emerge um “florescimento político e cultural” marcado pela luta de alguns setores da

sociedade pela superação das contradições sociais que o passado colonial e a exploração

imperialista imporiam ao Brasil. 48 Repensando a “identidade brasileira” não mais sob o

paradigma da integração e miscigenação (projeto conservador de intelectuais da década de 30

como Gilberto Freyre), caberia como projeto político a um país marcado pela exploração

colonial o rompimento da integração subalterna junto aos senhores do latifúndio e às

potencias centrais, quebrando essa lógica através de uma revolução política e cultural. Esse

movimento seria parte de um fenômeno mundial de afirmação de independência dos países

subdesenvolvidos, que também parte da realidade histórica do Brasil: uma construção coletiva

de diversos agentes sociais comprometidos com as lutas dos trabalhadores e do povo ao longo

do século XX, herdeira das lutas e amálgamas do anarquismo, positivismo, tenentismo,

comunismo e outras correntes políticas e intelectuais. Essa disputa, no fim da década de 1950,46 LUNA, Francisco Vidal. KLEIN, Herbert S. Mudanças sociais no período militar (1964-1985) In: MOTTA, R.P. S., RIDENTI, M. REIS FILHO, D. (orgs) Op. cit. p.p.76-77.47 Importante apontar nesse momento, ainda, a influência da polarização político-ideológica nacional (entreprojetos liberalizantes e nacional-reformistas) e internacional (com guerras coloniais e imperialistas no contextode uma acirrada guerra fria).48 A formulação é do sociólogo Marcelo S. Ridenti, que ressalta que as condições materiais não explicam por sisó as ondas de rebeldia e revolução do momento, nem as estruturas de sentimento que as acompanham, mas queessas se constroem em respostas as mudanças na organização social da época. RIDENTI, M. S. Brasilidaderevolucionária: um século de cultura e política. São Paulo: Editora UNESP, 2010. p.95.20

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forjaria nos meios intelectuais e artísticos um sentimento de pertencimento a uma

“comunidade imaginada” que compartilhava a ideia de estar em curso a revolução brasileira

na qual deveriam se engajar. 49

Se valendo do conceito de “estrutura de sentimento” de Raymond Williams 50, Ridenti

caracteriza esse ambiente intelectual, “sem excluir outras possibilidades”, como romântico-

revolucionário. Romântico, pois é parte de uma visão de mundo ampla em resposta às

transformações de ordem econômica e social próprias do advento do capitalismo que se

desenvolve em todas as partes do mundo. Uma “autocrítica da modernidade” realizada de

dentro dela própria, “caracterizada pela convicção dolorosa e melancólica de que o presente

carece de certos valores humanos essenciais que foram alienados’ no passado, os quais seria

preciso recuperar”.51 Revolucionário ou utópico, pois visa instaurar um novo futuro no qual a

modernidade encontraria valores e qualidades perdidos com a modernidade e o capitalismo.

Dessa forma, a busca desses intelectuais seria “recuperar o passado na contramão da

modernidade”, mas não com um intuito conservador ou passadista, mas sim buscar na

afirmação das raízes do passado (populares e nacionais) as bases para construir um futuro da

revolução nacional e modernizante, capaz de romper o subdesenvolvimento. Entende-se, sem

perder de vista a heterogeneidade de ideias, que parte dos intelectuais e artistas ligados às

esquerdas na década de 1950 e 1960, inclusive os que são objetos dessa pesquisa,

compartilham a estrutura de sentimento romântico-revolucionária. 52

Se essa estrutura de sentimento se consolida nas décadas de 1950 e 1960, é certo que

se articula, através de rompimentos e continuidades, com o passado recente do movimento

49 Ridenti utiliza o conceito “comunidade imaginada” partindo do trabalho do cientista político BenedictAnderson, Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo . RIDENTI, M.Op.cit, p.p. 85-95.50 Segundo Ridenti, Raymond Williams busca na ideia de estrutura de sentimento uma forma de fugir deconceitos mais formais e sistemáticos como “visão de mundo” ou “ideologia”, sendo que estrutura de sentimentodaria conta dos “significados e valores tal como são sentidos e vividos ativamente”: “A estrutura de sentimentonão se contrapõe a pensamento, mas procura dar conta ‘do pensamento tal como sentido e do sentimento talcomo pensado: a consciência pratica de um tipo presente, numa continuidade viva e inter-relacionada”. Se essaestrutura de sentimento nem sempre seria perceptível no momento pelos artistas que a constituem, sua existência,bem como transformações e finitude seria passível de identificação e generalização através de seus registros.Williams, 1979, p.p.134-5. Apud RIDENTI, Op.cit. p.86.51 Lowy e Sayre, 1995, p.p.38-40 Apud Ridenti, p.87. Ridenti parte da elaboração de Michael Lowy e RobertSayre sobre o romantismo presente no trabalho Revolta e melancolia – o romantismo na contramão damodernidade.52 Para Ridenti, são exemplos da produção artística romântico-revolucionária no pré-golpe: a trilogia clássica docinema novo composta por Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Os fuzis; a dramaturgia do Teatro deArena; Canções engajadas como as de Carlos Lyra e Sérgio Ricardo; a produção agitprop dos Centros Popularesde Cultura. Essas produções são analisadas mais detidamente no decorrer dessa dissertação.21

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modernista, que tem entre outras características a busca da nacionalização dos temas e da

linguagem artística. A Semana de Arte Moderna de 1922 é marco de um movimento de

disputa da representação do “autêntico homem nacional”, que ocorre através de movimentos,

manifestos e revistas como o verde-amarelismo, a Escola da Anta, O Pau-Brasil e a

Antropofagia. Representações que virão marcadas por contradições românticas e modernas,

passadistas e futuristas, tradicionais e modernas, muitas vezes em diálogo com as vanguardas

artísticas internacionais. Ridenti comenta o desenrolar desse movimento:

“A crítica da realidade brasileira, associada à celebração do caráter nacional do homem simples do povo, viria nos anos 1930 e 1940, por exemplo, na pintura de Portinari e nos romances regionalistas, atédesaguar nas manifestações da década de 1960, herdeira da brasilidade, agora indissociável da ideia de revolução social – fosse ela nacional e democrática ou já socialista, contando com o povo como agente, não mero portador de um projeto político.” 53

Dessa forma, na conjuntura de 1960 o “povo” ganha novos contornos. Não mais

“cordial”, “amistoso” ou “resignado”, como nas representações conservadoras. Não apenas

“folclórico” como no primeiro modernismo. O “povo” passa a ser representado como agente

da emancipação política e econômica nacional. Como Glauber Rocha definirá: a “denúncia

social” nas artes ganha contornos de “problema social” a ser resolvido junto às massas e por

elas. 54

Tendo isso em mente, a produção intelectual de setores da classe média

intelectualizada demonstrará uma preocupação política, pedagógica e estética junto ao

público. Grupos artísticos e estudantis, organizações de classe, partidos e ativistas envolvidos

em projetos nacional-reformistas, buscam meios e formas para romper sua distância

ideológica e física das classes populares, e optam por uma alternativa de aliança de classes e

de frente única “política e cultural” que agruparia diversos setores sociais na categoria

“povo”. Nesse contexto, esse termo possui diversas matizes. Entretanto, a elaboração de

Nelson Werneck Sodré é a que mais rapidamente se populariza nos meios artísticos e

intelectuais. Isso se deve, provavelmente, a sua vasta obra já circulante, ao caráter didático da

coleção Cadernos do Povo Brasileiro55 e a visibilidade da editora Civilização Brasileira nos

meios de esquerda. 56 Para Sodré, “povo é o conjunto de classes, camadas e grupos sociais

empenhados na solução objetiva das tarefas do desenvolvimento progressista e revolucionário

53 RIDENTI, Op. cit, p.93.54 Glauber Rocha desenvolve essa ideia no manifesto “Estética da Fome”.55 Neson Werneck Sodré publica Quem é o povo no Brasil? em 1962.56 SOUZA, Miliandre Garcia de. Do Arena ao CPC: o debate em torno da arte engajada no Brasil (1959-1964).São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007. p.41.22

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na área em que vive” 57. Povo não seria sinônimo de massa, mas um conjunto de diferentes

grupos, camadas e classes sociais com o compromisso de luta pela libertação do país de sua

submissão: o campesinato, o semiproletariado, o proletariado, a pequena burguesia, as partes

da alta e média burguesia com interesses confundidos com os nacionais e que lutam por

estes.58

Nesse contexto, grupos como o Teatro de Arena, os Centros Populares de Cultura

espalhados pelo Brasil, o Movimento de Cultura Popular de Recife, o Cinema Novo, e outros

movimentos constroem sua intervenção artística e política partilhando e dialogando com as

ideias59, teses, conceitos e programas de organizações da esquerda católica (Ação popular e

organizações de juventude católicas), do PCB, e de alas reformistas do PTB. A produção

artístico-cultural resultante será nas décadas seguintes caracterizada e teorizada através do

conceito nacional-popular.

1.4.“Do Arena ao CPC”: da nacionalização do teatro à busca das massas

Em relação ao campo da arte no Brasil, no período, do pós-1940, podemos apontar

como destaque a hegemonia no teatro do grupo Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Após

convencer a burguesia industrial paulista a realizar os primeiros investimentos no ramo,

Franco Zampari, produz peças que procuravam reproduzir o padrão europeu: montagens

sofisticadas, onerosas e um repertório internacional eclético. O TBC demonstra rapidamente

suas contradições relativas à sua manutenção econômica e sofisticação – um teatro acessível a

poucos. Assim como o TBC, a partir de 1950 a maioria das companhias se desagrega tanto

pelo êxodo dos grandes artistas como pelo repertório teatral costumeiro (o Teatro de Revistas

e as comédias). Nesse contexto, os primeiros formandos da Escola de Arte Dramática de São

Paulo criam em 1955 o Teatro de Arena. Tendo à frente José Renato e Chandó Batista, o

projeto se aloca no “teatrinho da Rua Theodoro Bayma.” Mesmo sem linha cultural definida,

surge mais adequado às condições econômicas e sociais: um grupo amador, em que todos

revezavam as responsabilidades, apoiado financeiramente na parcela politizada do público

57 SODRÉ (1962) Apud SOUZA, M. G. Op. cit. p.42.58 SOUZA, M. G. p.p.42-3.59 Em meio a essa estrutura de sentimento romântico-revolucionária, diversas ideologias influem e conformamas ações políticas dos grupos e indivíduos, entretanto, não devem ser confundidas com a estrutura de sentimentoque é a caracterização de um fenômeno sociológico e histórico mais amplo.23

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paulista. 60 Como comentado, o Brasil vivia devido a sua industrialização e urbanização, um

processo de “metropolização” no modo de vida de grande parcela da população,

principalmente das classes médias, de onde cresce um setor progressista interessado (e capaz)

de financiar um teatro (ainda inicial e amador) com um conteúdo político mais claro e

comprometido com a “nacionalização” da arte.

Nos anos anteriores, associações estudantis de secundaristas, preocupadas em atrair

estudantes para suas atividades, discutiam a criação de um grupo amador de teatro para visitar

escolas e sindicatos. Gianfrancesco Guarnieri, líder estudantil secundarista na época61 se

aproxima de Oduvaldo Vianna e se encarrega do projeto. Com a ajuda do teatrólogo Rugerro

Jacobbi fundam o Teatro Paulista do Estudante em 5 de abril de 1955. Em busca de um local

para seus ensaios, o TPE busca recursos junto ao Teatro de Arena, formalizando um acordo de

ajuda mútua e termina por se incorporar a este. 62

Em 1957, a companhia enfrenta uma grave crise financeira e seus principais

articuladores se desagregam. O que seria a peça de despedida do grupo se torna um sucesso de

público e crítica: Eles não usam black-tie63, escrita por Gianfrancesco Guarnieri, estreia em

22 de fevereiro de 1958. Vianinha e Boal, que se encontravam afastados do grupo, retornam

ao Teatro de Arena. Esse momento é apontado como um marco no engajamento do grupo na

construção de uma dramaturgia nacional, comprometida com os conflitos sociais e políticos

do Brasil, com a valorização dos autores brasileiros, a formação de elenco e profissionais, a

busca de uma linguagem própria, e peças de crítica às estruturas políticas e sociais de

exclusão dos trabalhadores rurais, urbanos e das classes populares. Outra preocupação que

passa ao centro dos debates dos grupos artísticos engajados é a difusão das obras e quem era

(e deveria ser) seu público, muitas vezes uma “dolorosa consciência” de que eram um teatro

de minoria.64 No fim da década de 1960, tendo à frente Boal, Guarnieri e Vianinha, o Teatro60 BERLINCK, M. T. Op. cit, p.14.61 Em 1953, Guarnieri era Presidente da Associação dos Estudantes Secúndarios (AMES). Em 1954 vem paraSão Paulo e é eleito Vice Presidente da União dos Estudantes Secundários Paulistanos (UESP), Secretário daUnião Paulista dos Estudantes Secundários (UPES) e Vice-presidente da União Nacional dos EstudantesSecundários (UNES).62 O acordo objetivava: formar um elenco permanente do Teatro de Arena, que atuaria nele e para fora comintuito de divulgar a arte cênica em fábricas, escolas e cidades do interior do Estado; formar movimento teatralde apoio às obras e autores nacionais e de divulgação teórica e prática dos problemas do teatro; ajuda mútuaentre o Teatro de Arena e o TPE.63 Para a historiadora Miliandre Garcia a encenação da peça Eles não usam black-tie e o artigo de Guarnieri, Oteatro como expressão da realidade nacional (1959), são elementos de síntese do processo de politização doteatro brasileiro que se inicia com o Teatro de Arena, que apesar do êxito na busca da nacionalização da forma edo conteúdo, não resolveu a questão de público. In: SOUZA. Op. cit, p.23.64 BERLINCK, Op. cit, p.19.24

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de Arena contribuí para a renovação da dramaturgia nacional e lança as bases da produção

artística das próximas décadas.

Em meio a conflitos internos relacionados aos rumos que o Teatro de Arena tomava e a

solução empresarial adotada por José Renato para superar a crise financeira, o grupo viaja

para o Rio de Janeiro no final da década de 1950 e apresenta as peças Eles não usam black-

tie, Chapetuba Futebol Clube (escrita por Vianinha) e Revolução na América do Sul (escrita

por Augusto Boal). Após essa temporada, tendo como horizonte apresentar conceitos

marxistas através do teatro, Vianinha busca auxílio do sociólogo Carlos Estevam Martins,

recém formado em Filosofia na Universidade do Brasil e assistente de Álvaro Vieira Pinto no

ISEB. Esse projeto resulta na peça A mais-valia vai acabar, seu Edgar, montada com os

estudantes da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Brasil. Após a temporada, o

Teatro de Arena retorna a São Paulo, entretanto, Vianinha permanece no Rio de Janeiro e

procura manter coeso o grupo formado com a peça. Junto a ele, Carlos Estevam e Leon

Hirszman propõem ao recém eleito diretor da UNE, Aldo Arantes, a realização de um curso de

história da filosofia na sede da entidade. Sendo esses seus principais articuladores, estavam

dados os primeiros passos do que viria a ser o Centro Popular de Cultura da UNE.

A ideia de um Centro Popular de Cultura ganha forma no decorrer do curso de

filosofia no auditório da UNE. Vianinha, Estevam e Hirszman se vinculam à entidade

estudantil que viabiliza o teatro de sua sede para seu funcionamento. Além disso, a UNE

funcionaria como porta para financiamentos diretos e indiretos. O CPC teve seu regimento

aprovado em assembleia geral em 8 de março de 1962, surgindo formalmente como órgão

cultural da UNE, com autonomia administrativa e financeira.65 A UNE procurou manter seu

vinculo com a entidade devido ao sucesso nacional do CPC (que a projetava nacionalmente) e

por não dispor de recursos específicos que o CPC possuía, principalmente profissionais da

área artística. 66 Dessa forma, o CPC se organizava como uma empresa prestadora de serviços,

cobrando por sua participação em shows em comícios, cobrando entradas em seus eventos em

Universidades e sindicatos, além de receber contribuições individuais, de organizações de

65 O CPC contava com uma assembleia geral, órgão deliberativo máximo, que elegia seus membros executivos(diretores e coordenadores dos departamentos). Além disso, havia um Conselho diretor (composto peloscoordenadores de departamento presidido pelo diretor executivo) que subordinava os departamentos. O CPCcontou em seu organograma com os departamentos de Teatro (posteriormente dividido entre teatro de rua e teatroconvencional), Departamento de Cinema, Departamento de Música, Departamento de Arquitetura, Departamentode Artes Plásticas, Departamento de Administração, Departamento de Alfabetização de Adultos, Departamentode Literatura, e Departamento de Relações (responsável por manter contato com outros CPC´s)66 BERLINCK, p.23.25

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classe, de empresas, diretamente ou através da UNE.

Além de sua atividade na imprensa67, sua produção na área do teatro68, cinema69,

música70, editoração71 e distribuição72, também foram realizadas atividades gratuitas como:

teatro de rua, teatro para camponeses e alguns espetáculos com uma carreta adaptada.

Entretanto, mesmo com profissionais remunerados, é importante apontar o trabalho voluntário

de estudantes, intelectuais e artistas, sem os quais não seria possível realizar suas atividades.

73

O CPC pode ser entendido como o resultado da aproximação de artistas e estudantes

com o ISEB, da ruptura de Vianinha com o Teatro de Arena e do contato dos idealizadores da

peça A mais-valia vai acabar, Seu Edgar com a UNE. 74 Cabe ressaltar também a influência

do Movimento de Cultura Popular de Recife (MCP)75 através do contato de Carlos Estevam

com Paulo Freire no ISEB. Influenciado pelo MCP, o formato e as atividades do CPC do Rio

de Janeiro influenciam nos anos posteriores a fundação de diversos CPC’s nas principais

capitais do país, além de entidades com propostas similares. 76

É necessário situar o CPC também como um movimento pioneiro na busca de resolver

a contradição existe entre os movimentos de cultura e os problemas de público e de

massificação dos “produtos” dessas entidades. Além disso, o CPC se constitui em meio à67 O CPC contava com a Gráfica da UNE, além das revistas Movimento e o jornal O metropolitano para divulgarsuas ideias.68 O CPC montou cerca de vinte peças, além do teatro de agitação de rua feito “de improviso” sobre algumassunto polêmico do momento. As peças eram escritas pelos cepecistas (como Vianinha, Estevam, Boal,Armando Costa, Arnaldo Jabor, Guarnieri, etc), sendo algumas produções coletivas.69 O CPC produziu os longas Cinco vezes favela e Cabra marcado para morrer, esse último inconcluso.70 O CPC produziu o long-play O povo canta com uma única tiragem de onze mil exemplares. Gravou também odisco Cantigas de eleição que denuncia a corrupção nos processos eleitorais no Brasil. Além de diversosapresentações musicais, o grupo realizou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro a I Noite de Música PopularBrasileira que contou com a participação de compositores e intérpretes populares.71 O CPC publicou cordéis e pequenos livros de propaganda política., sendo os mais importantes os volumes dacoleção Cadernos do Povo Brasileiro, em conjunto com a Editora Civilização Brasileira. Cabe destacar ainda ostrês volumes de poesias presentes na coleção, denominados Violão de Rua.72 Apesar de não ter sido um sucesso do ponto de vista financeiro e funcional, o CPC criou de forma pioneirauma empresa distribuidora de seus livros e discos, a PRODAC.73 Um levantamento detalhado das produções do CPC se encontra em: BERLINCK, Op. cit, p.p.30-7.74 SOUZA. p.29.75 Fundado em maio de 1960 no governo municipal de Miguel Arraes em Recife, o movimento propunha umaeducação popular de alfabetização e de base, com ênfase na cultura popular. O projeto visava também formar aconsciência política e social dos trabalhadores e utilizava recursos junto às artes cênicas. Para um debate maisdetalhado ver: SOUZA, Fabio Silva de. O Movimento de Cultura Popular do Recife (1959-1964). Dissertação demestrado em História, FFLCH, USP, 2014.76 A historiografia carece de pesquisas sobre as experiência dos outros CPC’s pelas capitais. Assim como ostrabalhos citados aqui, quando utilizo o termo CPC, na verdade me refiro às atividades do grupo do Rio deJaneiro.26

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afirmação de um ideal de intelectual engajado politicamente e compromissado com a luta das

classes populares. Dessa forma, para seus idealizadores, o CPC se colocaria com uma

proposta à frente das do Teatro de Arena, que fora responsável por um “teatro inconformado”,

como aponta Vianinha em seu artigo de 1962, Do Arena ao CPC:

“Não que o Arena tenha fechado seu movimento em si mesmo: houve um raio de ação comprido e fecundo que foi atingido com excursões, com conferências, etc. Mas a mobilização nunca foi muito alta porque não podia ser muito alta. (...) O Arena, sem contato com as camadas revolucionárias de nossa sociedade, não chegou a armar um teatro de ação, armou um teatro inconformado.”77

Para esses artistas e intelectuais era necessário não só nacionalizar a dramaturgia, mas

expandir e massificar o público para servir como instrumento de consciência, organização e

luta da emancipação do povo.

1.5.O cinema direto chega ao Brasil em meio a efervescência

Outra questão importante a ser visitada é a transformação da linguagem

cinematográfica ao longo das décadas visitadas aqui. Como comentado anteriormente, na

seção Cinema e história: notas teórico-metodológicas dessa dissertação, ao longo das

primeiras décadas de existência do cinema, suas imagens são compreendidas, devido a um

suposto princípio de autenticidade de registro como “reflexos do real”, “autênticas” e

“exatas”. Influenciado por esse estatuto, se forjará na década de 1930 e 1940 a forma

estilística clássica do documentário, que organiza as imagens e sons a partir de uma voz over,

que assere fora de campo, detentora de um saber sobre o mundo. Entretanto, o cinema

moderno questionará essa compreensão, assim como os recursos clássicos da “narrativa

linear” e da “montagem invisível”, chamando o espectador a se incorporar na construção dos

significados, utilizando para isso “flash-backs”, montagens “psicologizantes”, histórias

paralelas e outros recursos. A frente, o próprio estatuto de “real” da representação

cinematográfica passará a ser questionado através da metalinguagem, como comenta Lins:

"A idéia, implicita ao cinema classico, de que a imagem reproduz o real - na ficçao e no documentário -sofreu abalos consideraveis, e o cinema tornou-se também produtor do real, de acontecimentos, motorde comportamentos, falas, gestos e atitudes. Foi um momento em que as fronteiras entre vida e arte,ficçao e documentário, ator e personagem, sujeito (cineasta) e objeto (personagens e situaçoes) sedissolveram, em que se experimentavam novas relaçoes entre a imagem e o som (...)”78

77 Artigo publicado em outubro de 1962 na revista Movimento. VIANNA FILHO, Oduvaldo. Do Arena ao CPC.In: PEIXOTO, Fernando (org). Vianinha: teatro, televisão, política. Sâo Paulo: Brasiliense, 1999. p.65-79.78 LINS. Op.cit. p.40.27

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Cineastas como Orson Welles, Renoir, Rossellini e Godard assim como movimentos

como a Nouvelle Vague, o cinema independente americano e os “Cinemas Novos” pelo

mundo, passam a experimentar novas formas de construir suas ficções.

No campo documentário, o surgimento do cinema verdade e direto é parte desse

movimento: “A partir do final dos anos 1950, novas técnicas e novos métodos de trabalho

descortinaram possibilidades inéditas para os documentaristas. Essas técnicas estavam

divididas em dois grandes métodos: o cinema direto americano e o cinema verdade francês.”

79 Os cineastas do direto americano “embarcaram na utopia da neutralização completa da

equipe técnica” e assim, vão buscar “afastar” sua câmera, como uma “mosca na parede” que

captaria as cenas, sem interferir nem gerar tensão nas cenas que ocorrem: “nenhuma

intervenção, pura observação.” Já o cinema documentário francês, utilizará tais avanços da

técnica, mas partirá para outro viés, construindo assim conceituação e metodologia própria:

“(...) equipamentos leves e sincrônicos adotados por cineastas com uma formação acadêmica

no campo da sociologia e da etnologia (...) inverteram a farsa da neutralidade da câmera e do

gravador, abandonando a postura da dissimulação da presença de ambos.” 80 Para cineastas

como Jean Rouch e Edgar Morrin, a existência da câmera em ação e a do próprio cineasta, já

colocaria em cheque a ideia de captação de um real sem interferência. Assim, a saída é tomar

a frente e dialogar com o outro da tela, criando a verdade não de um real descontextualizado,

mas de um encontro, de um contato, de uma entrevista. Dessa forma, tal cinema traz para

dentro do campo diegético não só o cineasta que questiona ao “outro” sobre o mundo - em

uma “verdade do encontro” - mas também evidenciará a câmera, os aparelhos de captação

sonoro, e mesmo sua metodologia de entrevista, montagem e captação do “real”.

As técnicas do cinema direto e verdade são introduzidas no Brasil a partir de 1962,

primeiramente quando a UNESCO e a Divisão de Assuntos Culturais do Itamaraty organizam

um seminário com o cineasta sueco Arne Sucksdorff. A juventude do cinema paulista e

carioca participam, sendo possível perceber o reflexo das novas formas técnicas e conceituais

nas produções da época. Na verdade, o cinema que chega ao Brasil é o direto do recuo,

todavia, a “efervescência política e cultura” se demonstra mais complexa e avessa apenas a

discussão de metodologia em relação à apreensão do real, dessa forma os documentários ao

longo da década de 1960:

“Utiliza a posição do recuo do sujeito-da-câmera e explora a fala do mundo em diálogo (…) Mas as

79 FORTES, Renata A. de P. A obra documentaria de João Batista de Andrade. p. 34.80 Citações desse trecho: Idem, p.35.28

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asserções do direto brasileiro são carregadas também por uma voz que assere fora-de-campo, em over.(…) Há a contradição entre a forma estilística do direto, explorando a nova tecnologia que permite abrira tomada da indeterminação, e a necessidade de um didatismo social, que vê o documentário como elotransmissor de uma missão educativa.” 81

Segundo Fernão Ramos, são obras precursoras desse tipo de cinema direto no Brasil

Arraial do Cabo (Mário Carneiro e Paulo César Saraceni, 1959) e Aruanda (Linduarte

Noronha, 1960). Também são exemplos dessa recepção que amalgama as novas “técnicas” e

“formas de representação” junto a um contexto de efervescência política e social,

documentários como Garrincha, alegria do povo (Joaquim P. de Andrade, 1962),

Subterrâneos do futebol (Maurice Capovilla, 1965), Maioria absoluta (Leon Hirszman,

1964), Viramundo (Geraldo Sarno, 1965) e Opinião Pública (Arnaldo Jabor, 1967), filmes

estudados no clássico trabalho de Bernardet, Brasil em tempos de cinema, visitado ao longo

dessa dissertação.

1.6.As organizações e suas ideias

Para compreender a história do CPC da UNE e de suas produções artísticas é preciso

ter claro quem são os grupos políticos e as ideias que disputam a hegemonia no início da

década de 1960 no Brasil, em especial no Movimento Estudantil e junto à intelectualidade

progressista que transitava no eixo Rio-São Paulo. A UNE, desde sua fundação 1938 tem

como marca seu engajamento nos debates políticos nacionais, principalmente nas campanhas

ligadas a pautas nacionalistas como “O Petróleo é nosso”. Entretanto, durante a década de

1950 é conduzida por lideranças conservadoras. No contexto de polarização do período entre

a abertura ao capital internacional e o reformismo nacionalista se faz sentir nas disputas de

sua diretoria entre organizações como o PCB, PSB e UDN. A aproximação tendencial dos

estudantes com as pautas nacionalista se radicalizará durante o desenvolvimentismo de JK.

Pela primeira vez, na campanha contra o aumento das passagens de bonde no Rio de Janeiro,

os estudantes se apoiam em sindicatos operários e travam um movimento conjunto mais

amplo: a União Operária-Estudantil contra a Carestia. Vencendo a hegemonia de direita na

direção da entidade a partir de 1956, a UNE realiza campanhas contra acordos do governo

com multinacionais do petróleo como American Can e Gulf.82

81 RAMOS, Fernão. Mas afinal...o que e mesmo documentário?. p. 33182 TRINDADE, Helgio. A Legalidade e o Movimento Estudantil Brasileiro. Anos 90, Porto Alegre, v. 18, n. 33,jul. 2011. p.p.134-7.29

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Nesse contexto, se gestará na década de 1960 uma frente entre a “esquerda católica”

(que se agrupa na Ação Popular nos anos seguintes) e o PCB na direção do movimento

estudantil. Aldo Arantes, goiano, que iniciou sua militância no movimento secundarista junto

à Juventude Estudantil Católica (JEC), se muda para o Rio de Janeiro no fim de 1950 para

cursar Direito na PUC-RJ, como comenta:

“Passei e me integrei no Centro Acadêmico Eduardo Lustosa, como diretor do jornal [O metropolitano]83. O Cacá Diegues era presidente do Centro Acadêmico e a partir desta época nós nos tornamos grandes amigos, Cacá presidente e eu diretor do jornal, apoiando a JUC. O Cacá não era da JUC, era agnóstico. (...) Já naquela época, nós começamos a organizar o chamado Grupão. Era um grupo de católicos e não-católicos, evidentemente o pessoal de esquerda da JUC. Logo em seguida, fui eleito presidente do DCE da PUC.” 84

A entrada de Aldo Arantes no DCE da PUC movimenta a universidade, vista até ali

como conservadora e das elites cariocas. O diretório promove em junho de 1961 a Semana

Social da PUC-RJ, um ciclo de debates sobre temas atuais que reúne teólogos, clérigos e

intelectuais leigos. Esse processo culmina com a elaboração do Manifesto do DCE, que

apontava:

“(...) temos consciência de que a promoção das classes operário urbanas e campesino-rurais se coloca, neste momento dentro da perspectiva cristã, como um passo mais largo que a história exige das vanguardas atuantes no sentido da humanização do mundo. (...) Conservar a educação como instrumento cultural de dominação das classes privilegiadas é servir à opressão dos humildes. 85

Esse movimento de engajamento e esquerdização dos católicos é acompanhado de

conflitos com os setores conservadores da igreja católica e dessa forma se gesta em grande

parte independente da Igreja. Essa movimentação termina por desembocar na organização do

chamado “grupão” e, depois, na Ação Popular.

Ao mesmo tempo em que esse grupo articulava-se politicamente, ocorria algo similar

na Universidade do Brasil, principalmente na faculdade de Engenharia e Filosofia, entretanto

sob coordenação do Partido Comunista.86 É a partir dessa aliança entre os católicos de

esquerda e o PCB que, em julho de 1961 Aldo Arantes será eleito presidente da União

Nacional dos Estudantes. A influência do PCB se fazia sentir não só no movimento estudantil,

mas também no campo sindical e artístico. Como comentado, desde a década de 1950, a83 O metropolitano era o jornal estudantil da União Metropolitana dos Estudantes, tendo Aldo Arantes comoredator-chefe e a participação de Arnaldo Jabor e outras pessoas próximas a JUC. Nele também encontram-sediversas contribuições sobre arte e cinema de nomes do cinema novo que surgiam como Glauber Rocha, DaviNeves, Paulo Perdigão e Nelson Pompéia.84 BARCELLOS, Jalusa (org.) CPC da UNE: uma historia de paixão e consciência. Rio Janeiro: NovaFronteira, 1994.p.24.85 Manifesto do DCE/PUC-RJ, 1961. IN: TRINDADE, Op.cit.86 BARCELLOS, p.39.30

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aliança entre PCB e a ala reformista do PTB obtinha êxito na organização e mobilização “por

dentro” e “por fora” das estruturas sindicais dos trabalhadores, culminando na organização do

CGT. Já no campo cultural, quadros do PCB ou simpatizantes transitavam no eixo Rio-São

Paulo trabalhando pela “nacionalização” e “popularização” da arte. Casos de Gianfrancesco

Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho, Leon Hirszman, Carlos Estevam Martins, Carlos Lyra e,

no desenrolar dos anos sessenta Ferreira Gullar. A história dos comunistas no desenrolar da

produção cultural brasileira, entretanto, é de longa data. Entretanto, a história do

envolvimento de artistas com o comunismo e o PCB é de longa data.

A Semana de Arte Moderna ocorrida em fevereiro de 1922 no Teatro municipal de São

Paulo, é um marco do modernismo brasileiro. No mesmo ano, no mês seguinte, ocorre a

fundação do Partido Comunista do Brasil, em Niterói. Nas décadas posteriores, a história de

artistas e intelectuais modernistas se ligará à história do comunismo no Brasil. Nesse sentido,

o comunismo sempre esteve próximo de questões e movimentos como o modernismo, o

nacionalismo e o frentismo cultural. Além disso, a trajetória do partido é marcada pela

aproximação e o distanciamento de intelectuais e artistas conforme as transformações

conjunturais e as respostas programáticas do partido. O PCB se fecha à contribuição desses

setores em momentos como a proletarização na década de 192087 e o período sectário pós

194788. No caminho oposto, momentos de frentismo e um programa amplo, como a frente

popular antifascistas pós-193589 e seu novo programa na segunda metade da década de 1950,

são de maior alcance junto a esses setores. 90

87 A reunião do Secretariado Sul Americano em 1930 aponta a política eleitoral e do Bloco Operário e Camponêsdo partido brasileiro como “direitista”. Segue-se a implementação da política do “terceiro período” – classecontra classe – no partido e sua proletarização e bolchevização. Junto a isso à perseguição e expulsão de grandeparte de sua direção e sua substituição por novos quadros operários. Com os afastamentos e perseguições demilitantes que transitavam no campo intelectual, as políticas e ações relativas à cultura são marginalizadas.88 Após a declaração de sua ilegalidade em 1947, o partido é desmantelado pela repressão do Estado. Reavalia ogoverno de “união nacional” – impulsionamento de Frentes Populares - como de “traição nacional” e desfazalianças com os trabalhistas do PTB. A nova política previa o “armamento geral do povo” e a criação de um“exército popular de libertação”. Perseguido, na ilegalidade e com um novo programa sectário, o PCB se afastade diversos setores e da base social adquirida no movimento de luta antifascista, sendo esse período o de maiorinfluência da estética “Realista socialista”.89 Para combater o avanço do nazifascismo na Europa e na América Latina, a Internacional Comunista (VIICongresso, 1935) aponta a necessidade da formação de Frentes Populares junto a forças progressistas anti-fascistas. O programa do partido brasileiro incorpora como bandeiras a luta pela democracia, a luta pela uniãonacional e a defesa do caráter anti-imperialista da revolução brasileira. Essa política permite ao PCB amplasalianças com organizações e personalidades políticas de destaque, assim como a (re)aproximação de intelectuaise artistas ao partido.90 Trecho sobre a história do PCB e sua relação com os intelectuais baseada em: DALMÁS, Carine. Oscomunistas, a cultura e a política das frentes populares: apontamentos sobre as concepções culturais do PCB edo Partido Comunista do Chile. In: NAPOLITANO, Marcos, CZAJKA, Rodrigo, MOTTA, Rodrigo Patto Sá(orgs). Comunistas brasileiros: cultura política e produção cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. e31

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Esses deslocamentos dos artistas e intelectuais não estão isolados, se inscrevendo na

aproximação e no distanciamento de outros setores que constituíram a base social do PCB

nessas décadas. Além disso, sob risco de enxergar mecanicamente o campo ideológico desses

militantes, é preciso avaliar a atuação política e cultural concreta de seus militantes, que

dialogam com referências e personalidades para além das próximas do partido, sem

necessariamente ver contradição em sua atuação.

Desde a “Semana de 1922”91 as obras desses autores buscaram apresentar as injustiças

e contradições sociais do Brasil, como no caso dos romances regionalistas ou sociais, bem

como criam tipos populares que possuem vida longa nas artes. 92 Apenas na década seguinte,

através dos partidos comunistas, será sentida na produção cultural nacional a influência das

diversas matizes da estética “realista socialista”93, sendo o Jdanovismo94 o primeiro a chegar e

ter repercussão no Brasil. O Realismo socialista teve seu apogeu nas publicações e debates do

PCB entre os anos de 1947 e 1954, em uma tentativa sistemática da direção de desenvolver

uma política cultural orgânica. 95 Entretanto, a produção dos artistas comunistas não se

limitou ao partido e seu debate cultural e muitas vezes esses dialogaram com influências

vistas como contraditórias ao um ideário da esquerda e revolucionário. Nesse sentido, aponta

o historiador Marcos Napolitano:

REIS, Daniel Aarão. Entre reforma e revolução: a trajetória do Partido Comunista no Brasil entre 1943 e 1964 .In: REIS, Daniel A., RIDENTI, Marcelo (orgs). História do marxismo no Brasil: partidos e organizações dosanos 1920 aos 1960, v.5. Campinas: Editora Unicamp, 2007.91 Diversos escritores e intelectuais modernistas transitaram nas fileiras do PCB ou próximos a elas, participandopoliticamente e contribuindo em seus jornais e revistas, tais como Di Cavalcanti, Oswald de Andrade, Tarsila doAmaral, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Patrícia Galvão (Pagu), Candido Portinari e CarlosDrummond de Andrade.92 NAPOLITANO, Marcos. Esquerdas, política e cultura no Brasil (1950-1970): um balanço historiográfico.Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n.38, jun.2014. p.39-40.93 Formalmente, o Realismo socialista surge no ano de 1932, com a fundação da União de Escritores Soviéticos,e é oficializado como “método artístico” no I Congresso de Escritores Soviéticos em 1934, presidido porMaximo Gorki. O método exige do artista o compromisso com a representação histórica da realidade advinda dométodo marxista de análise, junto ao dever de transformar e educar as massas para o socialismo. A partir dessaconcepção se produzem obras tomadas pelo otimismo revolucionário, pela crença teleológica na vitória dosocialismo, por uma busca de comunicabilidade da obra ligada a conteúdos temáticos e dramáticos simplistas,pela fusão entre cultura popular e “herança cultural burguesa”, e por “heróis positivos” (o operário-padrãoidealizado, sem profundidade e contradições, que dá exemplos de ação revolucionária)94 O programa estético-ideológico Jdanovista foi amplamente debatido em jornais e revistas comunistas como arevista Problemas, controlada pelo Comitê Central sob a direção de Carlos Marighella e Diógenes Arruda.Outras revistas comunistas foram conduzidas a reproduzir a linha do Realismo Socialista como as publicações:Para todos (Rio de Janeiro), Seiva (Salvador), Horizonte (Porto Alegre), Orientação (Recife), Fundamentos (SãoPaulo). Ver: COSTA, Ricardo da Gama Rosa. Descaminhos da revolução brasileira: O PCB e a construção daestratégia nacional-libertadora (1958-1964). Tese em História, UFF. 2005.95 RUBIM, Antonio Canelas. Partido comunista brasileiro: política e produção cultural. 1987. 415p. Tese(Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciencias Humanas, Universidade de Sâo Paulo,1987.32

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“Se houve um movimento nas artes plásticas (por exemplo, Clubes de Gravura) e na música erudita constrangido por esta doutrina, no cinema ou na música popular, por outro lado, os artistas comunistas dialogavam com outras influências que julgavam ser mais pertinentes na busca da comunicação com as massas, como o melodrama e as chanchadas, e com o samba. Cinema e música popular estavam menos afeitos ao folclorismo estilizado do realismo socialista e mais próximos das influências do mercado e dogosto das massas urbanas brasileiras.” 96

No início da década de 1950, apesar dos processos de tensão e reorganização de

trabalhadores no campo e na cidade, o programa do PCB se demonstrava ineficiente para

organizar as massas e aproximar o partido dessas. Com o renascimento do movimento

sindical, os comunistas aos poucos retornam aos sindicatos (militando junto aos trabalhistas) e

participam das campanhas nacionalistas, como “O petróleo é nosso”. Após o suicídio de

Vargas, o PCB, depois de uma grande reviravolta, intervém nas eleições presidenciais e apoia

a chapa de Juscelino Kubistck e Goulart (coligação PSD-PTB). O programa comunista não

parecia mais corresponder a sua atuação pública. Em 1956, o XX Congresso do PCUS e as

denúncias dos Crimes de Stalin interferem e reorientam a política dos comunistas pelo

mundo. No Brasil, à revelia do CC, abre-se um grande debate com intensa participação dos

intelectuais do partido. Se segue a marginalização e expulsão de grupos de oposição mais

expressivos do partido, tanto os “oportunistas revisionistas de direita” como os “dogmáticos

sectários de esquerda”. 97 O debate acerca do Realismo socialista, marcado por referências na

literatura comunista estrangeira e em um programa estético-ideológico hermético, perde de

vez espaço para uma produção cultural voltada para os problemas, a cultura, e as referências

artísticas nacionais e populares. Se, mesmo em tempos de Jdanovismo, a produção cultural

dos comunistas se mostrava permeada por diversas outras referências, “(...) após 1955 não se

pode falar, rigorosamente, em uma política cultural ampla, coerente e orgânica por parte da

direção partidária pecebista, a despeito da tentativa, por parte de artistas e intelectuais, no fim

dessa década, de constituir um núcleo de ação e direção cultural do partido, como o “Comitê

Cultural da Guanabara”. 98 Nesse sentido, a política jdanovista – incentivada por sua direção -

abre espaço para o surgimento de um frentismo cultural, assim como é o momento da

introdução por parte de um grupo de intelectuais do partido da obra do marxista húngaro

Georg Lukács, que integra as ideias do filósofo acerca do realismo e do frentismo ao debate

96 NAPOLITANO. Op. cit, p.42. Para o historiador seriam exemplos de “diálogos improváveis” entrecomunistas e outras referências as produções Agulha no palheiro (de Alex Viany, 1952), Tudo azul (de MoacyrFenelon, 1951) e o “primeiro” Nelson Pereira dos Santos.97 REIS. Op. cit, p.87-9.98 NAPOLITANO. Op. cit, p.41.33

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sobre a cultura. 99

Além disso, se a prática política do PCB já não condizia com seu programa pós-1947,

a “Declaração sobre a política do PCB” em março de 1958 marca formalmente um novo

programa. Parte-se da constatação do desenvolvimento capitalista no país, com a ampliação

do mercado interno, o surgimento de um importante setor da indústria pesada, o crescimento

do proletariado indústria e de uma burguesia nacional interessada no desenvolvimento

independente e progressista da economia. O desenvolvimento capitalista seria de interesse do

proletariado e do povo, que sofreria mais devido ao atraso econômico do país e da exploração

imperialista do que propriamente de um capitalismo nacional. Dessa forma, as bandeiras da

revolução brasileira seriam anti-imperialistas, antifeudais e pelo avanço da democracia

política, dada pela articulação de uma frente única composta pelo proletariado, por

camponeses, pela pequena burguesia urbana e pela burguesia nacional e setores latifundiários

descontentes e rivais dos grupos imperialistas. Formalizava-se o programa etapista nacional-

democrático, que apontava a revolução burguesa nacional como etapa para o socialismo. A

política de coexistência pacífica da URSS influi nesse programa, que prevê a transição ao

socialismo a partir de meios pacíficos, com vitórias processuais de setores nacionalistas e

democráticos, caso os “inimigos do povo” não recorressem à violência. Em 1960, o congresso

do PCB matiza as formulações da “Declaração de Março” e a partir dessa nova orientação os

comunistas participam das mobilizações nacionais, dos movimentos sindicais e populares e

interferem nos pleitos eleitorais, apoiando a chapa nacionalista composta pelo Marechal Lott e

por Goulart (candidato a vice) nas eleições presidenciais de 1960. O PCB, ainda formalmente

ilegal, ganha nova legitimidade social e volta a crescer em efetivos e influência. 100 Em

relação ao novo programa, o historiador Daniel Aarão Reis faz um apontamento importante. A

“Declaração de Março” e os novos rumos do PCB constroem horizontes em que se torna

possível aos militantes comunistas tomar atitudes e posições diferenciadas, das mais

prudentes às mais combativas, sempre reivindicando a mesma linha política. 101

E é em meio a essas transformações no programa do PCB e da atuação de seus

militantes e simpatizantes que se constrói uma forte influência dos comunistas durante a

década de 1950 e 1960, sendo que o Teatro Paulista do Estudante, o Teatro de Arena e o CPC

99 FREDERICO, Celso. A presença de Lukács na política cultural do PCB e na universidade. In: MORAES,João Quartim de. História do marxismo no brasil: os influxos teóricos. V.2. Campinas: Editora Unicamp, 2007.100 REIS, Op. cit, p. 91-94.101 Idem, p.95-6.34

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se constituem junto à presença de nomes influentes ligados ao PCB como Carlos Estevam,

Guarnieri, Vianinha, Hirszman, Ferreira, Martins, Gullar e Carlos Lyra.

Outras ideologias políticas também influem na produção e forma de pensar a arte.

Destaca-se aqui também a influência do nacional-desenvolvimentismo Isebiano, elaboração

que via o avanço do capitalismo e a industrialização nacional como necessário à superação do

subdesenvolvimento econômico nacional. Essa elaboração influencia intelectuais que

observam o campo cultural sob o paradigma do subdesenvolvimento, destacando-se os

escritos de Paulo Emílio Salles. Em um país subdesenvolvido, o cinema só poderia ser

subdesenvolvido, sendo necessário, ao mesmo tempo, construir uma indústria cinematográfica

nacional (tarefa que envolvia a burguesia nacional), assim com afirmar formas nacionais para

fugir da referência cultural imperialista. 102 Em relação ao CPC, pode-se sentir a influência do

nacional-desenvolvimentismo em suas produções, inclusive existindo um contato direto entre

os intelectuais dessas instituições como comenta Martins.

1.7. Coutinho e as produções cinematográficas do CPC

Em 1960 Eduardo Coutinho retorna a São Paulo e reabre contato com diversos artistas

e intelectuais. Surge a possibilidade de seu “primeiro trabalho profissional, entre aspas” 103

junto ao Teatro de Arena como assistente de direção de Amir Haddad na peça Quarto do

despejo. Após esse trabalho, se aproxima do CPC paulista junto ao grupo responsável por

preparar a peça Mutirão em Novo Sol para o “I Congresso dos Trabalhadores Agrícolas”, que

ocorreria em Belo Horizonte. 104 Desde seu retorno da França, em suas viagens constantes ao

Rio de Janeiro, Coutinho trava contato com figuras importantes do cinema nacional como

Nelson Pereira dos Santos e com os militantes fundadores do CPC como Leon Hirszman e

Carlos Estevam Martins. No retorno de seu trabalho em Belo Horizonte, recebe o convite do

cineasta Hiszman para se incorporar como gerente de produção no filme Cinco vezes favela,

primeiro projeto cinematográfico do CPC, se mudando para o Rio de Janeiro em dezembro de

1961.102 SOUZA, Julieme S. M. Cinema, trajetória no subdesenvolvimento, de Paulo Emílio Salles Gomes, profícuainterlocução ideológica com ISEB e PCB. Fênix - Revista de História e Estudos Culturais. Vol.6, Ano VI, n.4,2009.103 OHATA, Op. cit. p. 257.104 A peça apresentada em novembro de 1961 foi escrita por Nelson Xavier, Augusto Boal, Hamilton Trevisan,Modesto Carone e Benedito M. Araújo, dirigida por Chico de Assis e tinha atores recém-saídos do Teatro deArena como Guarnieri e Juca de Oliveira. BARCELLOS, Op.cit, p.183.35

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O projeto era basicamente uma reunião de cinco curtas com as favelas do Rio de

Janeiro como pano de fundo. O curta Cama de gato, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade,

já havia sido realizado, sendo escolhidos para estar à frente dos outros quatro curtas, jovens

diretores do CPC ou próximos a ele. Para Coutinho, chamava atenção no projeto o

amadorismo e a precariedade da produção, como comenta:

“O Miguel nem sabia o que era cinema na época; eu sabia pouco, mas sabia mais do que ele: o Miguel não sabia nada de prática. O assistente era o Henrique Mayer – tudo gente nova! -, só o fotógrafo é que era veterano, era o Jiri Dusek. (...) Carlos Diegues estava fazendo direito na faculdade. Às vezes tinha que fazer uma prova, não tinha filmagem... Uma coisa desse tipo, entende? Todo mundo estava começando, não sabíamos ainda fazer nada.”

Durante as filmagens do último curta, Pedreira de São Diogo, Coutinho é liberado das

filmagens, para se incorporar à caravana UNE Volante 105, que percorreria o país levando o

debate sobre a reforma universitária com a participação do CPC. A proposta do CPC foi que

Coutinho dirigisse as filmagens durante a viajem sobre os problemas encontrados nos locais

visitados, e que esse material desse vida ao documentário Isto é Brasil, que nunca foi

montado. 106

A caravana chega a João Pessoa na Paraíba em abril de 1962, em meio a um contexto

de violência no campo por disputas de terra.107 Alguns dias antes da caravana chegar à cidade,

João Pedro Teixeira, fundador da Associação de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de

Sapé (Liga de Sapé), havia sido assassinado e Coutinho registra o ato público em protesto a

sua morte na cidade de Sapé. É nesse momento, que o cineasta trava seu primeiro contato com

a esposa do camponês, Elizabeth Teixeira, e seus filhos. Para operar a câmera Paillard Bolex

16mm durante a caravana o cinegrafista Acir Mendonça da Agencia Nacional havia sido

contratado, entretanto, ele a abandona em Pernambuco devido a um problema de saúde. 108

Dessa forma, as imagens do ato de protesto e de Elizabeth e de sua família tem a

particularidade de terem sido registradas pelo próprio Coutinho, como comenta:

“ (...) eu não sabia carregar a câmera, às vezes carregava e ela não andava, sabe? (...) E o espantoso –para mim, que sou desastrado como ninguém – é que imprimiu. Incrível, porque graças a isso é que eu

105 Aldo Arantes, então presidente da UNE relação o que foi a Caravana UNE-Volante: “(...) uma caravana queia do Rio Grande do Sul a Manaus. Ela percorreu o Brasil inteiro. Eram 25 pessoas: cinco integrantes do CPC ecinco dirigentes da UNE. (...) Então, nós íamos de cidade em cidade; fazíamos assembleias gerais dosestudantes; fazíamos reuniões com as lideranças estudantis; fazíamos contatos com autoridades eapresentávamos as peças de teatro do CPC.” In:BARCELLOS, Op. cit. p.29.106 Essas cenas são apresentadas nas primeiras sequências de Cabra marcado para morrer.107 Essa região vivia um momento de intensa organização no campo desde 1955, com a fundação da SociedadeAgrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco, mais tarde chamada Liga Camponesa de Galiléia.Diversas invasões de terra ocorriam em estados como o Maranhão, a Bahia, o Rio Grande do Norte e a Paraíba.108 OHATA, Op. cit. p.p.258-9.36

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tenho aquele material, aquele comício que tem uma enorme importância no Cabra... Foi a única coisaque eu filmei na vida; nunca filmei, nem antes nem depois (...)” 109

Ao retornarem da caravana, Carlos Estevam Martins teria indicado Coutinho para

fazer o segundo longa metragem do CPC, sendo a ideia inicial um filme baseado nos poemas

de João Cabral de Melo Neto, “O rio”, “Morte e vida Severina”, e “O cão sem plumas”. O

escritor teria chegado a ceder os direitos, porém, “atemorizado talvez” pelo que se dizia sobre

o CPC, e de vincularem seu nome com os comunistas, desautorizou a licença. 110 Surge então

uma “segunda ideia”: “Filmar a vida de João Pedro Teixeira, baseada em documentos,

baseado na vida real, um semidocumentário. Uma historinha, mas sem atores profissionais,

interpretada só por camponeses.” 111. Aceita pela direção do CPC que acerta uma coprodução

com o MCP, o filme consegue o financiamento de 12 mil cruzeiros do MEC. 112 Coutinho

viaja por quase um ano por Pernambuco e pela Paraíba organizando as coisas para a filmagem

e aguardando a verba do Ministério da Educação, liberada em novembro de 1961. Em sua

viajem encontra Leon Hirszman, participando das filmagens de Maioria absoluta.

O filme seria rodado em Sapé, local do assassinato de João Pedro Teixeira, com os

próprios camponeses como atores. Entretanto, em janeiro de 1964 os conflitos por terras na

região se acirraram e novos assassinatos ocorrem, sendo as filmagens transferidas para o

Engenho Galiléia em Vitória de Santo Antão. Apenas Elizabeth é mantida do elenco original e

novos atores são escolhidos na região, a maioria moradores do Engenho Galiléia. Com pouco

mais de um mês de filmagens o projeto é interrompido pelo golpe militar de 1964. O exército

invade a região prendendo camponeses, membros da equipe de filmagem e os equipamentos

encontrados. Elizabeth Teixeira retorna para a Paraíba e é presa por quatro meses, e refugia-se

após isso com outra identidade no Rio Grande do Norte. Parte do material filmado é

preservado, pois o cineasta David Neves guarda na casa de seu pai, general do exército, uma

pré-montagem do copião feita com as imagens já enviadas ao estúdio no Rio de Janeiro. Além

desses negativos enviados, ao retomar o projeto, Coutinho conseguirá resgatar anotações de

filmagens e oito fotos dos "sets", utilizando esse material para compor o Cabra marcado para

morrer lançado em 1984.

109 Idem, p.260110 Idem, p.184.111 Ibidem.112 BARCELLOS, Op.cit. p.186.37

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1.8. O golpe militar de 1964 no Brasil

Como comentado anteriormente, o início da década de 1960 é de forte polarização

política e ideológica no Brasil e no mundo. Um embate ideológico em um contexto de

polarização internacional entre a ofensiva liberalizante e a hegemonia americana de um lado,

e de outro, vias socialistas (como a soviética e cubana) e movimentos de libertação nacional

que ocorriam na Ásia e na África. É certo que havia heterogeneidade entre os grupos, assim

como atores políticos que alteram em suas posições conforme a conjuntura. Entretanto, é

possível falar na consolidação de dois blocos políticos: um favorável à repartição do poder e

da riqueza através das reformas de base, com posições que variam desde o reformismo-

moderado de setores do PTB, aos “exaltados” da “reforma na lei ou na marra”. De outro lado,

grupos que visavam conservar (e quando possível consolidar) seu poder político e econômico,

desmantelando o programa nacional-reformista. Nas eleições de 1962 esses setores avançam

nos cargos da Câmara e do Senado, elegendo governadores para importantes estados como

Rio Grande do Sul (Ildo Meneghetti) e São Paulo (Adhemar de Barros), quando já possuíam

governos de Minas Gerais (Magalhães Pinto) e da Guanabara (Carlos Lacerda). Além das

representações políticas, organizações como o complexo IPÊS/IBAD113, o alto clero da igreja

católica, associações femininas, parte da imprensa, entre outros atores a direita, muitas vezes

financiadas por instituições internacionais, mobilizavam a sociedade em torno dos ideais

religiosos e do anticomunismo, ganhando, no início de 1964, notoriedade e adeptos

principalmente nas camadas urbanas médias. 114 Se muitas vezes analisa-se esse debate

através das disputas entre e nos poderes legislativo e executivo, é certo que essa esfera

refletiam os interesses de amplos setores ligados à consolidação da liberalização da economia

através do capital multinacional e aos latifundiários que temiam a reforma agrária.

O longo processo de transformações econômicas que ocorriam no Brasil desde a

segunda Guerra pautado em sua industrialização via investimento estatal e a incorporação de

capitais internacionais, evidencia contradições a que resultam em crise cambial e numa dívida

externa impagável. A economia crescia, entretanto demonstrava uma séria de impasses: uma

estrutura fiscal estreita, junto a uma economia que crescia sem se diversificar, com papel

113 Refiro-me à caracterização de René Dreifuss, que vê o complexo IPES/IBAD como “a elite orgânica daburguesia multinacional e associada”, uma estratégia e resposta dos meios patronais a ameaça de seu poder declasse.114 A contribuição de outros setores além dos militares no golpe de 1964 é estudada em diversos trabalhos queatestam a participação civil e empresarial de maneira sistemática ou indireta. Sobre a participação das eliteseconômicas ver o trabalho de Dreifuss (1981). Para outra perspectiva sobre a participação civil e a noção de“responsabilidade ampliada” ver: Rollemberg e Quadrat (2010) e Pressot (2004).38

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central das estatais que acabavam financiando a acumulação capitalista. Junto a isso – e como

consequência – um processo inflacionário – que no início de 1963 beira a margem de 80% ao

ano, acompanhado de um crescimento quase nulo. 115 Entendendo a política econômica do

setor externo e público como principais causas da inflação, os ministros Celso Furtado e San

Thiago Dantas elaboram o Plano Trienal, onde previam combater a inflação sem sacrificar o

desenvolvimento através do aumento da carga fiscal, da redução de despesas e a captação de

recursos do setor privado pelo mercado de capitais. 116 Apesar do empenho governamental, o

funcionamento do Plano não reverteu a situação inflacionária e de baixo crescimento, nem

convenceu os setores envolvidos diretamente. Desagradou tanto o setor industrial, quando as

classes populares e os trabalhadores que sentiam diretamente o desgaste da inflação em seu

poder de compra. Se, em um primeiro momento foi bem recebido, rapidamente os setores

sindicais, nacionalistas e de esquerda condenam o plano.

Conciliador e vacilante, sem adotar posturas mais radicais de qualquer lado, Goulart se

vê cada vez mais isolado. Por fim, no início de 1964, aposta em sua credibilidade junto aos

setores da esquerda, e em 13 de março, faz seu discurso mais inflamado pró-reformas no

Comício da Central do Brasil. Anuncia seus decretos de nacionalização das refinarias

particulares no Brasil e a desapropriação de terras com mais de cem hectares nas margens das

rodovias e ferrovias federais. A resposta ao comício e à anistia concedida por Goulart aos

insubordinados da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB) não

demora a aparecer. A Marcha da Família com Deus pela Liberdade de caráter religioso, anti-

comunista e anti-governo ocorre em 19 de março na capital paulista e prepara terreno para as

outras que viriam no interior. No dia 31 de março tem início a ação golpista do General

Olympio Mourão que parte de Juiz de Fora com suas tropas para ocupar o estado da

Guanabara. Com exceções pontuais, nem as esquerdas, nem as massas esboçam mobilizações

a fim de reverter o desenrolar do golpe. A “frente democrática” desabava como um “castelo

de cartas”. 117 Goulart se resigna: parte para Brasília, depois Porto Alegre, onde Brizola via

115 SINGER, Paul. O significado do conflito distributivo no golpe de 1964. In: TOLEDO, Caio Navarro de.1964: visões críticas do golpe: democracia e reformas no populismo. Campinas: Universidade Estadual deCampinas, 1997. p.17.116 LUNA, Francisco Vidal. KLEIN, Herbert S. Transformações econômicas no período militar (1964-1985) In:MOTTA, R. P. S., RIDENTI, M. REIS FILHO, D.(orgs). p.93.117 Avaliação do sociólogo Caio Navarro de Toledo que a partir da ideia de falência do populismo aponta: “Ogolpe encontrou as esquerdas fragmentadas em diferentes correntes ideológicas, isoladas das grandes massaspopulares e sem nenhuma estratégia política para resistir a ação deflagrada. Subordinadas e vinculadas aopopulismo janguista, não conseguiram as organizações populares e sindicais vislumbrar e implementar uma açãoindependente face ao capitulacionismo do governo Goulart.” TOLEDO, C. A democracia populista golpeada In:39

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condições de resistir, e por fim asila-se em Montevidéu. Uma “estranha derrota” 118 se abate

sobre as reformas de base, levando com ela a democracia.

O golpe rompe com a agenda das reformas, que buscava através do desenvolvimento

econômico, diminuir as desigualdades, assim como ampliar a extensão e efetividade do

regime democrático: um rompimento de projeto econômico-político. Como parte disso, o

golpe também rompe com o processo de organização dos trabalhadores e da sociedade civil,

intensificando a repressão aos movimentos sindicais e populares e desmantelando as

organizações políticas e de classe combativas. O caminho estava aberto para a “modernização

conservadora”, um projeto de desenvolvimento atrelado ao capital internacional, que de um

lado resulta em desenvolvimento econômico, social e tecnológico (crescimento industrial,

mecanização e modernização da agricultura, urbanização e emergência de relações

cosmopolitas) junto à consolidação de um sistema político excludente da classe trabalhadora,

das classes populares e de incorporação subordinada de outros setores. Às vozes de oposição

restava a perseguição e repressão do regime.

TOLEDO, C. Op.cit. p.42.118 Alusão de Reis Filho a reflexão do historiador Marc Bloch sobre a “estranha derrota” dos franceses diante daocupação nazista em 1940. REIS FILHO, D. A. Op. cit, 2014. p.45.40

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Capítulo 2. Da ditadura à abertura democrática

2.1 Dos primeiros anos de ditadura ao “milagre econômico”

Na madrugada de 31 de março de 1964 ocorria às primeiras movimentações golpistas

de tropas do exército. A quarta divisão de infantaria sob o comando do general Olímpio

Mourão Filho marchava de Juiz de Fora para o estado da Guanabara. Estava lançada a sorte

do mandato de João Goulart. Antes mesmo do presidente deixar o solo brasileiro para seu

exílio no Uruguai, o presidente do senado, Auro de Moura Andrade, declara a vacância de seu

cargo, assumido por Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados. Entretanto, a

disputa pela presidência não se operava mais na esfera do poder político civil. Os chefes das

três forças armadas articulados no Comando Supremo da Revolução exerceriam o poder

executivo e lançariam em 9 de Abril seu primeiro decreto ditatorial. Decretava-se um Ato

Institucional concentrando poderes na mão da presidência da república atribuindo-lhe a

capacidade de cassar mandatos, interromper direitos políticos e modificar a constituição.

Ao contrário do que muitas vezes o senso comum aponta, o golpe militar de 1964 não

deve ser entendido como uma ação unilateral dos chefes das forças armadas, nem como uma

ação dependente exclusivamente dos interesses americanos na política nacional. Como

diversos estudos constatam, a participação civil foi ativa e determinante sob diversos aspectos

para a tomada do poder pelos “generais”. É certo também que os setores “golpistas”, apesar

de características comuns, possuíam um leque de concepções ideológicas e propósitos

variados sobre como gerir o “desenvolvimento nacional”. Enquanto uma parcela queria uma

intervenção cirúrgica para afastar Jango e seus aliados radicais, legitimar o golpe

institucionalmente e retornar à democracia, outros setores advogavam a intervenção militar

para erradicar o comunismo e o varguismo por completo, sem problemas com o uso da força e

da exceção por tempo indeterminado. Entre os civis e militares também havia divergências

sobre o modelo econômico a ser implementado: de apoiadores de um Estado interventor e

centralizador da economia e da vida política, a adeptos de um projeto liberal baseado no

Estado diminuto - esse último pensamento forjado e divulgado principalmente através da ESG

e do complexo IPES/IBAD. Dessa forma, como aponta o historiador Daniel Aarão, a ditadura

nunca foi “una”, mas “vária”, com disputas desde sua gênese, tendo como marco o

“hibridismo”: uma combinação de atos institucionais, configurando um estado de exceção, e o

respeito pela fachada legal de um regime constitucional liberal: a perspectiva de destruir o

41

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varguismo e o comunismo, presentes no primeiro governo, liderado por Castello Branco,

combinada com a tentação de manter o Estado forte, intervencionista e regulador, evidente

desde a posse de Costa e Silva. 119

Com a “linha dura” e o “liberalismo” se afirmando no imediato pós-1964, as primeiras

diretrizes valorizam a ortodoxia financeira em conformidade com as políticas do FMI e do

liberalismo internacional, assim como de aproximação diplomática e militar com o governo

americano. Em nome do saneamento financeiro e da contenção da inflação era necessário

cortar os gastos públicos, o crédito e arrochar os salários. Entretanto, apesar da retórica não

intervencionista, o Estado não se eximiu de fomentar a economia e manter sob controle seus

rumos através de subsídios, a ação de estatais e o monopólio de produtos e serviços. 120

Nos primeiros anos de ditadura militar os setores adeptos de uma “limpeza” profunda

na política nacional, sem problemas na utilização de métodos de exceção e truculentos,

ganham força e recebem a alcunha de “linha dura”. A repressão atinge as organizações ligadas

a projetos de esquerda e lutas sociais como a UNE, a CGT, as Ligas Camponesas, grupos

católicos de esquerda como a JUC e a AP, assim como o PCB. Milhares de pessoas são presas

irregularmente e a tortura generalizava-se. Com as restrições do Ato Institucional n.2 121,

relativo à criação de novos partidos, parte da oposição ao regime se organiza “por dentro” sob

a sigla do MDB. Junto a esse partido, outros setores faziam uma “oposição moderada” e

defendiam o retorno à democracia de forma pacífica, sendo o caso da Frente ampla 122, setores

da igreja, liberais e políticos civis golpistas descontentes ou perseguidas pelo regime. Os

militantes do PCB que conseguiram fugir da repressão articulam uma reunião de seu comitê

central em maio de 1965 e reestruturam sua linha de atuação política para o “frentismo” pelas

liberdades democráticas e a participação ativa nas limitadas eleições possíveis durante a

ditadura.123

119 REIS, Ditadura e democracia, 2014. p.52.120 LUNA, KLEIN. Mudanças sociais no período militar. In: REIS. A ditadura que mudou o Brasil. 2014. p.p.94-6.121 Nas eleições diretas para governador em1965 os partidos de oposição aos militares elegem 5 dos 11governadores, o que demonstra sua expressividade. A fim de contê-los os militares decretam o AI.2, extinguindotodos os partidos e criando uma cláusula de barreira: era necessário ao menos 20 senadores e 120 deputadosfederais para a legalização de uma sigla. Na prática, isso inviabilizou a existência de algum partido para além doARENA (ligado aos militares da situação) e o MDB (de oposição).122 Nos primeiros anos de ditadura, uma série de políticos de direita e conhecidos golpistas se desencantam comos rumos políticos do regime. Carlos Lacerda, vendo suas pretensões eleitorais se acabarem em 1966, lança aFrente Ampla nesse mesmo ano. A Frente contará com participações ilustres e contraditórias como a de JuscelinoKubitschek (cassado em 1964 e exilado em Lisboa) e a de João Goulart (exilado em Montevidéu). A Frente éproibida em 1968.123 Após o golpe o PCB revê suas teses sobre a “revolução brasileira” e lançam a “Resolução de Maio”42

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Apesar da inflação ter reduzido seus índices pela metade nos primeiros anos do

regime militar, estava longe de ser o ideal, gerando insatisfação na opinião pública e na

população.124 Além disso, a “limpeza” também alcançava setores liberais, inclusive mandatos

de políticos que apoiaram o golpe militar. O descontentamento com o regime também se

demonstrava através dos movimentos sociais, como as passeatas organizadas pelas entidades

estudantis na ilegalidade. No dia 26 de junho de 1968 a insatisfação culminou na “passeata

dos cem mil” no Rio de Janeiro. Inicialmente organizada a partir das reivindicações

estudantis, ganha contornos mais amplos com a participação de intelectuais, artistas e

categorias de trabalhadores. O movimento operário entrava em cena em sua primeira greve

desde o golpe, com mobilizações por reivindicações salariais em Contagem e Osasco. Apesar

dessas mobilizações não ganharem uma articulação nacional e capacidade de questionar o

regime e as políticas financeiras de arrocho salarial, demonstrando que a sociedade não era

toda apática a situação do país, mas se opunha com reivindicações ainda que de forma

fragmentada.

A conjuntura de contestação ao regime a partir do frentismo político e cultural, de

grupos guerrilheiros e dos movimentos sociais, ainda que enfraquecidos e fragmentados,

demonstra que para se sustentar seria necessário aos militares serem mais “enérgicos” com as

oposições. Utilizando como justificativa a recusa do Congresso em cassar os deputados

Márcio Moreira Alves e Hermano Alves (ambos do MDB) após declarações “ofensivas” e

“intoleráveis”, o Ato Institucional n.8 é decretado.125 O ato concentrava e ampliava ainda mais

o poder do presidente da república e o caráter de exceção de suas funções, ampliando

“legalmente” a possibilidade de repressão aos movimentos sociais e as vozes de oposição.

2.2 O “nacional popular” segundo Bernardet: primeira análise historiográfica

Para compreendermos esse contexto, é preciso ter em conta também a avaliação sobre

apontando a ditadura como “entreguista”. Segundo esse raciocínio ela logo demonstraria suas contradiçõesinclusive com a burguesia nacional, sendo necessário se articular com amplos setores pelas “liberdadesdemocráticas” isolando o regime militar.124 Os índices de inflação foram de 86% em 1964, de 45% em 1965 e de 40% em 1966. Dados em: Reis, DanielAarão, Ditadura e democracia no Brasil, p.56.125Após os discursos de Márcio Moreira Alves e artigos no Correio da Manhã, que fazia críticas ao governo, ogoverno solicita a cassação de ambos ao Congresso, que é negada. Aproveitando o desfecho, o AI.8 é decretadodando poderes ao presidente de decretar o recesso do Congress, invervir nos estados e municípios, cassarmandatos parlamentares, suspender direitos políticos por dez anos, decretar o confisco de bens “ilícitos” esuspender o direito ao habeas corpus.43

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as causas de 1964 por parte “das esquerdas” no período posterior ao golpe militar. Segundo

Celso Frederico elas se constituem basicamente de duas vertentes: uma delas se aproxima ao

conteúdo da “Resolução de Maio” da direção do PCB, que defende o golpe como fruto de um

desvio de esquerda do Bloco democrático e nacionalista apoiador de Jango. Agora, para

derrubar a ditadura, era preciso refazer a política de alianças, incidir na base social do regime,

minando a sustentação do governo. 126 A frente antiditatorial, sob influência do PCB, tem

como principal iniciativa para aglutinar a intelectualidade a Revista Civilização Brasileira,

editada pelo comunista Ênio Silveira. Sob essa avaliação, o PCB constrói o frentismo político

e cultural antiditatorial, assim como o nacionalismo é valorizado em sua chave anti-

imperialista por constituir a busca de uma arte autêntica. No campo cultura, tomam à frente

comunistas e membros identificados com o PCB como o Grupo Opinião, os cineastas Nelson

Pereira dos Santos, Gustavo Dahl e Leon Hirszman e músicos populares como Sérgio Ricardo

e Carlos Lyra. Entretanto, também tem apoio de um espectro amplo a sociedade, que reúne

liberais descontentes com os rumos do regime em meio a já comentada “limpeza” política

operada pela ditadura. 127

Nesse sentido, não necessariamente tendo a frente comunistas e com diferentes graus

de influência desses, se construiu também uma série de outras iniciativas culturais que

apresentavam um caráter de contestação ao regime, em diferentes graus. Além das já citadas,

a continuidade do Cinema Novo, os Festivais de MPB, a continuidade do Teatro de Arena e o

nascente Teatro Oficina, no mercado editorial o Pasquim e os jornais Opinião e Movimento.

Esse contexto é descrito por Roberto Schwarz em seu clássico ensaio, “Cultura e política,

1964-1969”128, como de “relativa hegemonia cultura de esquerda”, leitura vista com cautela

pela historiografia recente. Segundo sua leitura, o fechamento dos canais de representação

política institucional, atrelados a “superpolitização da cultura” serão os responsáveis pela

consolidação de uma frente ampla cultural de oposição ao regime, com os interessados em se

inserir nos festivais e manifestações artísticas de contestação ainda toleradas antes do AI.5.

Retomando o pensamento de Celso Frederico, uma segunda vertente de critica ao

golpe militar de 1964, o apontará como consequência da aliança pretensamente nacionalista

126 FREDERICO, Op. cit, p. 342.127 Uma parte significativa de empresários ligados à cultura se colocam contrários ao regime tanto pordescontentamentos ideológicos como mercadológicos, e abrigam parte da arte engajada das décadas de 1960 e1970. NAPOLITANO, Marcos. Coração civil. Arte, resistência e lutas culturais durante o regime militarbrasileiro. 2011. (Livre Docência em História do Brasil Independente) – FFLCH, USP, 2011.128 SCHWARZ, Roberto. Cultura e politica. 3. ed. São Paulo, SP: Paz e Terra, 2009.44

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com setores da burguesia nacional, que deixou o movimento popular a seu reboque,

despreparado politicamente e ideologicamente. Essa leitura forja a critica ao programa do

PCB pré-golpe como etapista, direitista e conciliador, junto à nascente teoria do populismo.

Essa análise, que vê o nacionalismo como fenômeno ideológico entre interesses classistas

contraditórios, disputa terreno com o PCB, influencia o debate nas universidades e pauta as

lutas e programas da ação direta guerrilheira. Em relação aos grupos de ação direta, cabe

apontar gênese na reorganização teórica-programática de parte da esquerda a partir do golpe

de 1964. Autodenominando-se “esquerda revolucionária”, dezenas de organizações, muitas

dirigidas por ex-militantes do PCB, pautaram suas ações em uma análise que previa um

conflito inevitável das classes populares com o regime, sendo necessário não só o conflito

ideológico, mas também direto e exemplar junto às massas e a opinião pública. Teorizava-se a

“utopia do impasse” e a esquerda sofria as inflexões da experiência guerrilheira cubana. 129

Apesar de terem surpreendido os militares e gerado repercussão na sociedade e nos meios de

comunicação devido as suas ações inéditas, as organizações são desmanteladas pelos órgãos

de inteligência e repressão do Estado e ao final de 1972 se encontravam isoladas

politicamente e socialmente. 130

Ainda que apontando saídas políticas diversas (não necessariamente a luta armada), e

muitas vezes tendo compartilhado no momento inicial pós-golpe a iniciativa da frente cultural

e política com os comunistas, a crítica ao reformismo do PCB reverbera na construção de uma

historiografia marcada pela “negativação” da “militância cultural” pré-1964 vinculada ao

chamado projeto “nacional-popular. Essa historiografia descreve as experiências do CPC,

como uma “ida ao povo” de setores médios da sociedade que buscariam conscientizar e

desalienar as massas. Acreditando contribuir com um processo revolucionário mais amplo que

estaria em curso, esses intelectuais moldariam uma pedagogia ingênua e “militantista” que

simplificaria as contradições da realidade. Nessa chave interpretativa, o debate estético é

resumido a uma postura de transformar a concepção materialista e revolucionária da realidade

em um esquema sociológico simples e demonstrável, visando o diálogo junto à cultura dos

setores mais pobres da sociedade. Um trabalho pioneiro dessa análise historiográfica é o

129 REIS, Ditadura e democracia, 2014, p.60.130 Com diferenças organizativas e programáticas, os grupos de esquerda se dividiram cada vez mais empequenas organizações. Algumas surgem a partir de quadros comunistas que aderem à luta armada como a AçãoLibertadora Nacional (ALN) - liderado por Carlos Marighella e Joaquim Câmara – e o Partido BrasileiroRevolucionário (PCBR) – liderado por Jacob Gorender e Mário Alves.45

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mestrado não finalizado de Jean-Claude Bernardet, base de sua obra Brasil em tempo de

cinema - ensaio sobre o cinema brasileiro de 1958 a 1966, de 1967. Nela o pesquisador

aponta as debilidades do cinema nacional, sua “mentalidade importadora” e as profundas

transformações que ocorriam com o surgimento e fortalecimento da indústria de massa no

Brasil. A classe média é apontada como a principal produtora e consumidora dessa cultura,

"os responsáveis pelo movimento cultural brasileiro." Uma crítica a seu trabalho, corroborada

pelo próprio autor do livro é a falta de fundamento sociológico em relação à categoria “classe

média”, utilizada como uma categoria descritiva que abarca desde setores médios até a

pequena burguesia.131 Nesse trabalho, Bernardet caracteriza a criação de uma “realidade

asséptica” na produção cinematográfica do CPC Cinco vezes favela:

“As estórias foram elaboradas para ilustrar ideias preconcebidas sobre a realidade, que ficou assimescravizada, esmagada por esquemas abstratos. (...) É uma espécie de realidade asséptica que permiteuma compressão e uma interpretação única: a do problema enunciado. (...) O espectador absolutamentenão é solicitado a participar da obra; a única coisa que se exige dele é que sente em sua poltrona e olhepara a tela, nada mais. E só lhe resta uma alternativa: negar o filme ou entusiasmar-se com ele.” 132

Essa leitura demonstrará ao longo do tempo uma serie de limites, que será explorada a

frente na continuidade do debate historiográfico.

Se Bernardet crítica o “nacional-popular” através de seu trabalho acadêmico, é certo

também que diversos artistas não se furtaram a crítica e apontamento de novos caminhos

políticos e estéticos. No fim da década de 1960 o frentismo passava a ser questionado por

artistas como Glauber Rocha, Zé Celso, Caetano Veloso e os tropicalistas que apontavam o

nacional-popular como integrado ao mercado e ligado ao conservadorismo estético,

alimentando o conservadorismo político. 133 Junto a isso ocorria perda da força relativa que o

PCB manteve no campo cultural, mesmo após o golpe, devido aos artistas consagrados, a

editora e revista Civilização Brasileira e aos setores, da esquerda aos liberais, que coexistiam

no interior da frente cultural. Esses artistas e empresário procuram novos caminhos para além

do frentismo e cada vez mais saem da zona de influência do PCB. Tudo isso em um contexto

de consolidação da indústria cultural que incorporará de diferentes formas os ativistas131 Sobre essa questão Bernardet comenta:“(...) até meados dos anos 1950, quando começamos a ter algumareflexão sobre a classe média, não tínhamos bibliografia. A bibliografia sobre a intelectualidade, os artistas, sóaparece um pouco mais tarde. (...) Acho que foi uma falha minha no livro, mas era também um momentohistórico da sociologia. Não tínhamos retaguarda.” BERNARDET, Jean-Claude. Jean-Claude Bernardet: umcrítico contra a estética da miséria. Out 2014. São Paulo: Revista FAPESP, ed.244. Entrevista concedida aMaria Guimarães e Neldson Marcolin.132 BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempos de cinema. Ensaio sobre o cinema brasileiro de 1958 a 1966.São Paulo: Companhia das letras, 2007, p.42-3.133 NAPOLITANO, Op. cit, 2014. p.44.46

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comunistas e simpatizantes ao longo da década de 1970.

Cabe ainda uma última questão sobre a relação do regime com os intelectuais e artistas

que se colocavam em oposição de forma moderada ou dura aos governos militares. É certo

que desde os primeiros momentos após o golpe militar, a censura e a repressão política se

acirram, desmobilizando a maior parte das ações culturais críticas ao regime, situação que se

dificulta após o AI.5 dando fim a “superpolitização da cultura”. Contudo, mesmo na

adversidade, artistas e intelectuais não deixam de produzir obras de cunho social e político,

seja de contestação ao militares, seja de denúncia das profundas desigualdades sociais e

econômicas da realidade brasileira. Ao longo da ditadura, as posições políticas e forma de

militância desses é variada: da simpatia ou militância junto a luta armada clandestina a

militância política autônoma, da ligação com movimentos de vanguarda ou contracultura ao

trabalho profissionalizado na indústria cultura. Assim também foi com as respostas do regime

que variaram: desde a perseguição direta (com prisões, exílios ou assassinatos), à

condescendência de certa oposição ao regime ou postura esquerdista. Nesse sentido, é possível

afirmar que a repressão aos setores sociais de oposição ocorreu de forma seletiva e muitas

vezes contraditória, principalmente se compararmos a repressão dos setores médios e

“intelectualizados” com a truculência das perseguições, torturas e assassinatos das

organizações clandestinas e movimentos de trabalhadores. Isso se explicaria em grande parte

pela origem de classe desse setor, o que conforma relações pessoais e de influência. Além

disso, o regime militar sempre necessitou firmar consensos e dar legitimidade a suas ações a

partir de setores formadores da opinião pública como jornais liberais e emissoras de televisão,

por exemplo, que muitas vezes viram suas liberdade restringidas.

Para além dos mecanismos de repressão e censura, os governos militares também

procuraram construir sua sustentação através de complexos mecanismos de consenso. Essas

iniciativas do governo a partir do final de 1960 terá como base material o alto ritmo de

crescimento mundial, que reverbera em índices inéditos na economia brasileira.134 De 1970 a

1973 o Brasil vive o “milagre econômico”, com profundas modificações qualitativas em sua

base industrial e tecnológica como o aparecimento de indústria petroquímica, o

desenvolvimento das telecomunicações e da expansão da malha ferroviária integrando o país

e o crescimento do complexo hidrelétrico. 135 Nesse sentido, o Brasil se modernizava,

134 Durante esse período os índices de crescimento da economia brasileira são: 9,5% em 1970; 11,3% em 1971;10,4% em 72: 11,4% em 73.135 REIS. Ditadura e democracia no Brasil. p.80.47

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entretanto, não avançava na construção de mecanismos democráticos de poder político ou de

distribuição econômico: uma “modernização conservadora e autoritária”.

2.3 Os anos 1970 e a abertura “lenta, gradual e segura”

O quadro econômico mundial se modifica ao longo da década de 1970, com o

crescimento perdendo seu fôlego principalmente devido às tensões árabe-israelenses e a

chamada “crise do petróleo” em 1973. No Brasil, o “milagre econômico” não se sustentava

mais: a balança comercial evidencia o déficit, a divida externa mais do que se duplicava e as

massas populares sentiam o arrocho salarial e o aumento do custo de vida.136 O II Plano

Nacional de Desenvolvimento do governo não surtia o efeito esperado, ao mesmo tempo em

que o descontentamento era capitalizado pela oposição e se demonstrava nas urnas137. Além

disso, a violência das ditaduras latino-americanas ganhava projeção na opinião pública

nacional e internacional, agora também condenadas por líderes de países centrais como o

presidente democrata americano Jimmy Carter. Sem o crescimento econômico privilegiado

para facilitar os consensos e a pressão contra os excessos dos aparelhos de segurança, restou

ao governo estrategicamente forjar um projeto de distensão que visaria o retorno à

normalidade institucional, mas de forma a garantir o controle do processo. Para que o “caos”

não surgisse no horizonte, o governo Geisel leva a cabo uma abertura “lenta, gradual e

segura”, um processo permeado pela contradição entre o direito democrático e o

autoritarismo. Ao mesmo tempo em que se revogavam os Atos institucionais se flexibilizava a

censura e a autonomia era devolvida aos tribunais, variados “casuísmos” - como a “Lei

Falcão” e o “Pacote de Abril” 138 - visavam manter o poder parlamentar e político nas mãos do136 As cifras da dívida externa no período foram de 20 bilhões em 1974 para 52 bilhões em 1978. In: REIS,Ditadura e democracia, p.123.137 O MDB mostrava sua força como oposição principalmente por canalizar os votos de insatisfação com oregime de forma geral. Nas eleições de 1974 ele passa a ter mais de um terço dos deputados, o que inviabilizavareformas constitucionais (que necessitavam de dois terços da casa) sem seu apoio. Mesmo sempre tendo sidomaioria no congresso, estados e prefeituras, o governo se utilizará de uma série de expediente (“casuísmos”) afim de minimizar esse peso crescente da oposição.138 Com o crescimento do MDB nas eleições, o Ministro da Justiça Armando Falcão limita a propagandaeleitoral no rádio e na televisão à divulgação do nome e número dos candidatos, retirando a possibilidade decritica ao regime, a chamada “Lei Falcão”. Em Abril de 1977, o governo decretou através de quatorze emendas e3 novos artigos diversos “casuísmos” para manter sua maioria governista no legislativo. O chamado “Pacote deAbril previa: a reforma dos tribunais e de outras instituições; a votação indireta de 1/3 do corpo do Senado;eleições indiretas para governador em 1978; a ampliação do mandato presidencial para seis ano; restabelecesublegendas interessantes ao ARENA; superdimensiona a representatividades dos estados menos populosos;modifica o quorum da câmara para maioria absoluta (metade mais um); Estende a Lei Falcão para eleiçõesestaduais e federais.48

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partido da situação, a ARENA. 139 Obviamente, a necessidade de “distensão” do regime não

era consenso entre os setores do exército e da direita, sendo que os descontentes passavam

para a ofensiva com o objetivo de gerar um “terror generalizado”. Atentados diretamente a

entidades ou figuras de oposição ao regime, como a outros alvos visando culpabilizar os

“esquerdistas”. A “abertura” também demandava neutralizar a extrema direita.

Se os “casuismos” serviam para conter o MDB, os órgãos repressivos haviam

exterminado ou dispersado as “esquerdas radicais” pelas cadeias, esconderijos e exílios. Nesse

novo momento de abertura, a “esquerda revolucionária” abandonará a perspectiva do conflito

armado direto, se engajando principalmente em campanhas internacionais de denúncia dos

assassinatos e das torturas, nos comitês de anistia e jornais alternativos (a imprensa nanica)

Sua influência se manterá de maneira diminuta principalmente nos meios acadêmicos e na

intelectualidade. 140

No contexto do governo Geisel, de piora nas condições de vida geral da população e

retração econômica, os movimentos sociais e de trabalhadores organizam com dificuldade

ações moleculares, sob controle dos aparelhos repressivos, da “limpeza” na esquerda e nas

oposições e das políticas de consenso dos governos militares. Casos como pequenas greves,

oposições sindicais efêmeras, o movimento contra a carestia de 1974 a 1976, o “quebra-

quebra” de trens e ônibus mais ou menos espontânea. A primeira passeata pública de

descontentamento desde o AI.5 ocorreu em outubro de 1975, durante o culto ecumênico do

jornalista Vladimir Herzog, em protesto a seu assassinado no DOI. No começo de 1976

ressurgem as greves estudantis nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia, e no ano

seguinte, os estudantes tomam novamente as ruas e tentam reorganizar a UNE.

139 REIS. Ditadura e democracia no Brasil, p.111.140 Reis, Daniel Aarão, Ditadura e democracia no Brasil, p.10349

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2.4 A consolidação da indústria cultural no Brasil: Coutinho roteirista, jornalista

e documentarista da TV Globo

“Essa daqui a gente pega, descasca ela, deixa as torrinha. Quando acabar põem para secar no sol.Depois de seca a gente rala ela num ralo, ai vai e lava, bem lavadinha, coa e deixa aquela farinhazinha,põem para secar (...) Esse daqui, batata de umbuzera. Já comi essa daqui. 58. Essa mucunãm do mesmojeito comi em 58. Que eu era pequeno. Mas tenho muita lembrança que comi, como se diz, a força. (...)a minha madrasta obrigo eu a comer o pão dessa mucunãm. Sem eu querer.” 141

“Nos anos 1970, em plena ditadura, era mais interessante trabalhar no jornalismo da Globo do que hoje.Antes, a censura era externa; agora ela é interna, e abrange não só o conteúdo, quanto a linguagem.Aconteceu comigo algo que exemplifica isso: num programa sobre a eterna seca no Nordeste, em 1976,fiz um plano de três minutos e dez segundos em que um flagelado falava sobre as várias espécies deraízes que ele fora obrigado a comer durante as secas que tinha vivido. (...) Hoje, isso seria impossível,mais até por questões de forma que de conteúdo. Um plano de mais de três minutos, o que significaisso? Diz o Manual da Globo – “Quanto alguém fala mais de trinta segundo, desconfie”. 142

Se a militância e a experiência cinematográfica de Eduardo Coutinho junto ao CPC da

UNE se interrompe no desbaratar de Cabra marcado para morrer com o golpe de 1964, sua

passagem pela indústria cinematográfica percorrerá um trajeto mais longo nas próximas

décadas. A partir de 1965 o cineasta trabalhará em diversas produções escrevendo, dirigindo e

atuando. 143 Em 1968, após uma viajem a Bulgária para a exibição de seu filme O homem

que comprou o mundo no Festival da Juventude, é convidado para ir à Tchecoslováquia

presenciando a invasão das tropas soviéticas no país e o fim da Primavera de Praga. No ano

seguinte Coutinho se envolverá com o projeto da Saga filmes que pretendia rodar no nordeste

quatro filmes a baixo custo com a temática do cangaço. Através desse projeto se dá o

reencontro de Coutinho com essa região, como comenta: “Eu então fiz uma pesquisa. Até hoje

foi uma coisa muito preciosa para mim, muito mais que os filmes. Porque eu li tudo o que

pude encontrar sobre cangaço, coronelismo, coisas desse tipo, tudo sobre a história do

Nordeste em geral.” 144 Nesses anos escreve com Armando Costa o argumento de A vingança

dos doze (dirigido por Marcos Farias) e roteiriza e dirige Faustão, um longa-metragem sobre

o coronelismo baseado no personagem Henrique IV de Shakespeare. Já na década de 1970

Coutinho atuará como copidesque no Jornal do Brasil e mais tarde como crítico de cinema,141 Transcrição da fala de um sertanejo no documentário Seis dias em Ouricuri de Eduardo Coutinho.Minutagem: 00:11:18.142 OHATA. p.18. (Entrevista de 1992).143 Produções de que Coutinho participou na década de 1960: A falecida (1965, co-roteirista), O pacto, episódiode ABC do amor (1966, direção, argumento e roteiro), Garota de Ipanema (co-roteirista), Engraçadinha depoisdos 30 (roteiro não filmado), O homem que comprou o mundo (1968, direção, argumento e co-roteiro), Câncer(ator).144 Ohata. Op.cit, p.186-7.50

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produzindo nessa época mais de 40 textos e algumas reportagens. 145 Em paralelo a sua

atuação na imprensa, co-roteiriza três longas: Os condenados (1973), Lição de amor (1975) e

Dona flor e seus dois maridos (1976).

Ao longo desse período de transição entre os anos 60 e 70 no Brasil, como parte do

processo de “modernização econômica” no Brasil, pode-se constatar uma série de outras

transformações sociais como a urbanização e a metropolização das cidades. O censo de 1970

acenava pela primeira vez que a população urbana superava a rural e um considerável

aumento da idade média e da expectativa de vida da população. 146 Ocorria ao longo desse

processo também a ampliação do sistema de ensino básico e superior do país, permitindo o

aumento da escolaridade média dos brasileiros.147 Essas transformações atingiam

principalmente os setores médios da sociedade, “camadas de amortecimento” que ganhavam

relevância e atribuam complexidade a estrutura social não mais resumível a uma pirâmide

social de topo milionário e minúsculo em comparação à imensa base miserável. Junto a essas

transformações socioeconômicas, se conformam modos de vida típicos das metrópoles.

Consolidam-se os meios de comunicação de massa no Brasil que beneficiam principalmente

esses “setores modernos”, seja os empresários das comunicações, seja as classes médias

urbanizadas. Nesse momento de “modernização” e integração do país ao sistema global, o

passado colonial e as desigualdades econômicas e sócias profundas convivem. Ridenti

sintetiza o processo e suas consequências:

“Houve um processo rápido de generalização da economia de mercado, com o amadurecimento daracionalidade capitalista, envolvendo a constituição de uma lógica burocrática e de cálculo para atingirfins lucrativos, até mesmo no âmbito da produção cultural. Foram anos que se estabeleceu um públicoconsumidor, socialmente diversificado, para bens simbólicos; houve uma crescente profissionalizaçãode seus produtores e dos empresários envolvidos, multiplicaram-se as instâncias de consagração edifusão no meio artístico, no qual se constituíram grupos e movimentos em busca de legitimidade eprestígio. Colocava-se cada vez mais como possibilidade a autonomização de carreiras artísticas eintelectuais.” 148

A “busca de legitimidade e prestígio” desses grupos se dá em meio a mudanças na145 O pesquisador Milton Ohata organizou e lançou no ano de 2013 o importante volume intitulado “EduardoCoutinho” (presente na bibliografia) com entrevistas e apreciações críticas sobre a obra do cineasta, além de seustextos e reportagens da época em que trabalhou no Jornal do Brasil.146 A idade média passa de 18,7 anos em 1960 para 20,3 em 1980, e a expectativa de vida cresce em media doisanos a cada cinco anos no fim da década de 1960 e 1970. A pirâmide etária brasileira deixa de ter um formato“pré-moderno clássico” - com uma base (população jovem) larga - para um formato em “barril”, característicodos países industrializados e desenvolvidos. Dados do IBGE disponíveis no trabalho de Luna e Klein em: REIS,Daniel Aarão. Modernização, ditadura e democracia: 1964-2010. v.5. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.147 Segundo o IBGE, em 1950 42,7% da população era alfabetizada, enquanto em 1980 esse número atingiu os74%. Além disso, o número de estudantes universitários variou de 142 mil em 1964 para 1,3 milhão em 1984,crescimento de 2% para 12 % dos jovens entre 20-24 anos na universidade.148 RIDENTI, Marcelo. Cultura. In REIS (coord). Modernização, ditadura e democracia, p.233-4.51

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composição social desse setor. Anteriormente à década de 1960 seus integrantes eram

majoritariamente oriundos do declínio material e político de oligarquias latifundiárias. Com o

aumento do acesso às universidades e de modos de vida metropolitanos, ascende socialmente

e avoluma-se uma nova classe média intelectualizada, descendente de imigrantes ou

migrantes internos, não raro a primeira geração com acesso ao ensino superior, ligada a

formas mais contemporâneas de arte, ciência e tecnologia e aos bens de consumo. 149

Outra transformação importante apontada por Ridenti a partir da década de 1960, é a

continuidade do Estado como mantenedor de artistas e intelectuais. Entretanto, a partir daqui

há uma contra tendência de profissionalização e institucionalização das carreiras tanto no

âmbito privado como público, que passa a constituir regras para arbitrar direitos e deveres em

paralelo às trocas de favores. Nesse movimento tanto Estado como iniciativa privada se fazem

presentes na consolidação da indústria cultural. Ridenti sintetiza:

“Em suma, nos quarenta últimos anos do século XX, a tendência foi a de superar as condições limitadoras ao desenvolvimento da indústria cultural no Brasil, em seu duplo aspecto de produção de mercadorias simbólicas padronizadas e de lógica cultural no capitalismo tardio, pela qual todos se submetiam à unidade da produção e mercantilização, que impunha seu próprio ritmo, dirigindo e disciplinando as necessidades dos consumidores, destacando-se o papel significativo da propaganda nesse processo”. 150

É nesse contexto que em 1975 Coutinho retoma pela terceira vez seu contato com o

nordeste dessa vez trabalhando para a TV Globo. Após recusar um convite para atuar no

Jornal Nacional, o cineasta se incorpora à equipe do Globo Repórter, programa de reportagens

temáticas criado em 1973.151 Nos próximos anos ele escreverá, fará traduções, pesquisas,

edição e dirigirá diversos filmes junto ao programa. 152 A passagem de Coutinho pelo Globo

repórter deve ser entendida sob diversos aspectos, entre eles a possibilidade de estabilidade

financeira. O cineasta aponta em diversas entrevistas o problema que era viver “apenas do

cinema” nessa época, dificuldade que também contribuiu para sua passagem pelo jornalismo

nos anos anteriores. Além disso, o programa aprofunda seus laços com a linguagem do

documentário que já conhecia desde seu curso no IDHEC. Entretanto, longe do amadorismo,

na TV Globo a oportunidade era produzir reportagens-documentários com a veiculação e o

149 Idem, p.p. 236-7.150 Idem, p.239.151Jornalistas e profissionais do cinema ligados a esquerda ou importantes para o Cinema Novo trabalharamnessa época no Globo Repórter como Walter Lima Jr., João Batista de Andrade, Maurice Capovilla, HermanoPenna, Silvio Back, Jorge Bodanski, Dib Lufti, etc.152 Coutinho dirige no total seis filmes para o Globo Repórter: Seis dias de Ouricuri (1976); Superstição (1976);O pistoleiro de Serra Talhada (1977); Theodorico, o imperador do sertão (1978); Exu, uma tragédia sertaneja(1979); Portinari, o menino de Brodósqui (1980).52

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aporte financeiro e profissional da emissora de televisão brasileira que consolidava sua

hegemonia nos meios de comunicação de massa.

Nesse sentido, a passagem de Coutinho pela Globo está inserida na “modernização” da

comunicação da época que se dá acompanhada pelas políticas do Estado, que incentivam o

crescimento da iniciativa privada e a consolidação da massificação e nacionalização das

comunicações. A consolidação das emissoras de televisão estimuladas pela criação do

Ministério das Comunicações, da Embratel e dos investimentos estatais em telecomunicações

visando à segurança e integração do território nacional. Além disso, os governos militares

também investiram através de agencias estatais em projetos de desenvolvimento cultural,

como a fundação da Embrafilme (1969), da Funarte (1975) e do Servico Nacional de Teatro

(reformulado em 1973). A televisão, apesar de inaugurada no Brasil na década de 1950, se

consolida apenas na década de 1970 como principal meio de comunicação nacional,

beneficiada pelas políticas e pela tecnologia desenvolvida junto ao Estado. Se forjava uma

aliança de interesses entre o regime e os empresários das comunicações, que expandiam e

modernizavam suas empresas. Em contrapartida, os meios de comunicação - a televisão

principalmente - auxiliavam o regime na transmissão de suas mensagens e na sustentação do

consenso social. Como situa Helena Weber:

“(...) a Globo integralizou as diferentes manifestações culturais e mercadológicas, nacionais einternacionais, propiciando ao telespectador a sensação de estar conectado ao mundo; graças aoscódigos universais da comunicação e da estética, era possível imaginar que o Brasil desenvolvia-se eaproximava-se dos grandes países. (...) É nesse período, também, que se estabelece o virtual monopólioda Rede Globo de Televisão, fruto e expressão máximos do totalitarismo e exemplo de desinformação.”153

Dessa forma, firmava-se um pacto não escrito pela modernização, tanto da economia

como dos costumes e dos valores éticos e morais. 154 Nesse movimento a Rede Globo

incorporara em seu quadro de funcionários os profissionais mais qualificados da época,

muitas vezes, intelectuais, artistas e técnicos com afinidades político-ideológicas com a

esquerda. Esses profissionais encontram espaços cada vez mais privilegiados do ponto de

vista financeiro, das condições de trabalho, assim como do alcance com o público. Esses

artistas e intelectuais também encontram um crescente espaço em universidades, agências de

publicidade, na imprensa, entre outras possibilidades na iniciativa pública e privada. Esses

segmentos se adaptaram à nova ordem de maneiras diversas e muitas vezes ambíguas,

153WEBER, Maria Helena. Comunicação e espetáculos da política. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS,2000. p.180.154 REIS. Ditadura e democracia no Brasil. p.96.53

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gerando diversos “rearranjos pragmáticos”. Se até o AI-5, a racionalidade capitalista não

tomava por completo a administração dos meios de comunicação, permitindo brechas para se

veicular ideias de oposição à ordem, a marca da década de 1970 são deslocamentos nos

discursos e a existências de posições ambíguas nas produções artísticas e nas trajetórias de

artistas e intelectuais da esquerda.

Dessa forma, se constituiria toda uma produção cultural marcada, em diferentes graus

por traços de conformismo e resistência, integração e crítica, em meio ao avanço da indústria

cultural e a repressão e censura do regime militar. Como Ridenti comenta: “A cultura de

massa era, sem dúvida, diluidora de formas e mensagens, que em seu amálgama contraditório

já expressava a mundialização, mas não deixava de ter uma ponta de utopia e protesto.”155 As

produções cinematográficas e os diversos apontamentos de Eduardo Coutinho sobre o

processo de trabalho no programa Globo repórter demonstram essas contradições e

amálgamas que se estabeleceram do contato entre artistas e intelectuais ideologicamente

identificados com a esquerda e a consolidação da indústria cultural no Brasil em meio a

“modernização conservadora e autoritária.” Exceção no “padrão globo de qualidade”, as

filmagens do Globo repórter eram feitas em filme reversível, sem copião, diferente das outras

produções já em “tape”, o que, entre outros fatores, permitiria um trabalho mais autônomo.

Coutinho conta em uma entrevista anos depois: “apesar da ditadura, nosso núcleo constituía-

se num nicho dentro da emissora, onde se permitia um trabalho mais autônomo, mais lento,

mais aberto à controvérsia e uma relativa experimentação.” 156 Mesmo que se aponte os

limites institucionais e ideológicos dessa autonomia de trabalho, é fato que a produção desses

cineastas destoa se comparado a programação da Globo e de outras emissoras naqueles anos,

em sua maioria, comprometida com a consolidação dos consensos de “ordem” do regime e

com suas mensagens e propagandas.

Longe de ser o único determinante dessa produção, o suporte técnico e os meandros de

produção dentro da TV Globo não deixaran de ser importante para uma “autonomia relativa”

dessas produções, o que permitia não só levar temas sociais e políticos às telas, mas também a

experimentação no campo da linguagem. Segundo Coutinho, essa realidade se modifica com a

entrada do programa na “era eletrônica” em 1982, quando as fitas permitem um acesso da

direção do programa direto às imagens e um julgamento do produto em processo. Na critica

do cineasta, esse movimento coloca o Globo Repórter sob a mesma lógica do resto da155 REIS, Modernização, ditadura e democracia. p.252.156 OHATA. Idem. Op. cit. p.18.54

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produção da TV Globo: tornou-se asséptico, integrado, neutralizado. Lógica do processo

industrial tal como esse se desenrola na Globo e na televisão em geral, lógica da

homogeneização e da rentabilidade a qualquer preço.” 157 O impacto da “era eletrônica”

parece reverberar nas intenções de Coutinho, que em 1982 após finalizar as filmagens de

Cabra marcado para morrer deixa a equipe do Globo Repórter

Sete dias em Ouricuri é uma produção privilegiada para demonstrar a

“experimentação”, e a censura “interna e externa” desse momento. Nesse documentário há

traços marcantes e inaugurais da linguagem e da metodologia que Coutinho desenvolveu em

seus filmes: o contraste entre um narrador over que assere informações para dar

inteligibilidade a trama em uma linguagem próxima a jornalística, mas sem asserir

conclusivamente; planos longos dos moradores do sertão e da paisagem; poucas intervenções

de Coutinho ao longo dos depoimentos e sem suas perguntas presentes na montagem; o

respeito à cronologia das filmagens na montagem; uma voz over tímida nas asserções globais

conclusivas; sequências que buscam “dar voz” ao sertanejo, mostrando a “cultura” dos

moradores da região (uma banda de música da cidade, uma festa popular, uma procissão, a

confiança religiosa na vinda da chuva). Como apontado pelo cineasta na epígrafe, cenas das

dificuldades vivenciadas pelos sertanejos que pouca chance teriam de existirem e serem

exibidas se passassem pela estrutura convencional da emissora ou fossem realizadas pela sua

equipe de jornalismo. Certamente sofreriam a “censura interna” que se dá tanto no plano

ideológico como no da linguagem. Em relação à “censura externa” não é diferente. Houve

mediações com o poder público, que inicialmente o liberou, mas questionou sua exibição no

dia em que iria ao ar. O filme acabou autorizado desde que não fosse ao ar terça-feira às 21

horas, dia e horário convencional do programa:

“E acabou sendo programado para uma sexta-feira, 20 de setembro de 1976, sem nenhuma chamada ao vivo, competindo com a TV Tupi, que passava uma luta do Cassius Clay. Quer dizer, acabou sendo um programa visto por muito pouca gente, porque não teve nem chamada, o que foi lamentável. De qualquer forma, televisão sempre tem pessoas vendo programa, então foi importante.” 158

É nesses anos de trabalho na televisão e de reencontro com o nordeste que Coutinho

retoma o projeto inacabado de Cabra marcado para morrer. Em 1979 ao viajar para um

festival de cinema em João Pessoa, procura notícias do filho mais velho de Elizabeth Teixeira,

Abraão. No mesmo ano entra com pedido de financiamento na Embrafilme para retomar

Cabra marcado, agora um novo projeto que sofreu a ação do tempo e das transformações157 OHATA, Idem, p.18.158 OHATA, Idem, p.192.55

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sociais e pessoais pelas quais Coutinho passou:

“Na verdade, houve todo um processo: logo depois do golpe percebi que algo estava errado no filme. Um ano depois sabia que teria de ser um filme diferente, mas ainda não tinha uma noção exata. A partir de 1977, com a melhoria na situação política do País, é que comecei a pensar mais nisso. E, em 1979, cheguei a conclusão de que não poderia ser um filme igual aos outros, teria de contar sua própria aventura e a das pessoas que estiveram envolvidas em sua produção.”159

Se aproveitando de duas férias acumuladas na TV Globo, Coutinho viaja ao nordeste à

procura dos camponeses que participaram do Primeiro cabra. Retorna ao Rio de Janeiro e

prepara uma equipe de filmagem com quem viajará novamente para realizar o documentário.

A poucos dias do término de suas férias, o cineasta havia capturado quase todo o material

necessário, completado nos anos seguintes com filmagens no Rio de Janeiro dos filhos de

Elizabeth (Marinês, Marta e José Eudes) e em Limeira com o ator do Primeiro cabra, Cícero

Anástácio. Nos próximos anos, uma longa travessia – das primeiras projeções para conseguir

apoio para sua ampliação à 35mm aos prêmios e reconhecimento internacional - que mudaria

a vida de Coutinho como artista e a história do cinema nacional.

2.5. A transição democrática e os novos atores sociais

Como apontado, desde o AI.5 e o desbaratar da “esquerda revolucionária”, o

enfrentamento político com o governo no campo das lutas sociais e do movimento de massas

foi diminuto e fragmentado. Esse cenário começaria a mudar em 15 de maio de 1978 quando

uma greve por condições trabalho e salariais nas montadoras estoura em São Bernardo na

Scania-Vabis. Iniciava-se o retorno dos movimentos sociais e de trabalhadores à cena política

nacional. O sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo se mobiliza na construção

das greves, que logo se alastram para as empresas Ford e Volks e outros estados do Brasil.

Líderes sindicais, partidos políticos, jornalistas, estudantes e intelectuais se mobilizavam e

corriam para a região do ABC tentando compreender o novo ascenso da classe trabalhadora

organizada. As medidas de “distensão”, assim como o difícil quadro econômico que

deteriorava os salários e aumentava o custo de vida, em parte explica o “ressurgimento” das

mobilizações no chão de fábrica e dos movimentos populares. Em um primeiro momento,

como tática política e a fim de preservar o funcionamento das organizações sindicais, as

lideranças grevistas agitam um caráter não político de suas greves, entretanto, elas colidiriam

sem escapatória com a legislação salarial, as restrições autoritárias sobre os sindicatos e o

159 .Entrevista para Fernando Molica, O estado de São Paulo. 2.12.84.56

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projeto econômico dos militares, como comenta Mattos:

“Tais demandas, que partiam das condições de trabalho e das reivindicações de natureza salarial,geravam pautas mais amplas de caráter social e político ao questionarem a lógica da legislação salarialmantida pelo governo e a estrutura sindical que impedia a livre negociação. A consecução dessas pautaslevaria, enfim, a um novo modelo de sindicalismo, que pressuporia liberdade e autonomia sindicais.” 160

Com o desenrolar das mobilizações se forja um laço político entre as lideranças

sindicais com as lideranças políticas de contestação ao regime, aproximação que resulta

inclusive em apoio a candidaturas do MDB nas eleições de 1978. Em outubro desse ano, em

conformidade com a vontade de Geisel e o seguimento de seus planos de abertura “segura”, o

último general presidente é eleito, João Figueredo. O resultado das eleições indiretas com

pequena margem de vantagem para a situação demonstrava a força crescente da oposição e o

sentimento de necessidade de mudança.161 Dando continuidade a “abertura”, os Atos

Institucionais são revogados a partir de primeiro de janeiro de 1979, o direito ao habeas

corpus é restituído assim como a autonomia do Judiciário.

Em março do ano seguinte, uma onda de greves surgem a partir de São Bernardo dos

Campos, dessa vez com maior organização e uma base social ampla que envolvia além das

fábricas, os bairros e as organizações católicas e igrejas locais. É importante salientar que o

MDB estava distante dessa base social, pois centrava seus esforços na oposição ao regime

através dos mandatos legislativos e executivos. Assim também era com o trabalhismo,

distante dessas lutas. Seu maior líder, Brizola, se encontrava no exílio e já em um momento de

autocrítica aos enfrentamentos armados de que havia participado, com um discurso reformista

moderado e se aproximando da Internacional Socialista. O PCB vivia uma fase de

reorganização de seu comitê central no exílio, sem condições de intervir naquela realidade e

atuava junto ao MDB na oposição moderada. Já as organizações clandestinas eram pequenas e

estavam fragmentadas, não tendo influência quando esses ascensos se iniciam, entretanto,

apostam na intervenção nas mobilizações e greves a fim de se reconstruírem, apontando que

esses processos poderiam ser o início de uma crise revolucionária no Brasil. Nesse contexto

de fragilidade e ausência de antigas referências, as “novas” lideranças sindicais se forjam

como referências políticas de massa, sendo Luiz Inácio Lula da Silva o mais importante

expoente desse processo. A saída encontrada pela ditadura para por fim a greve de 1979, sem

160 MATTOS, Marcelo Badaró. Novos e velhos sindicalismos no Rio de Janeiro (1955-1988). Rio de Janeiro:Vício de Leitura, 1998. p.p.65-6.161 O resultado das eleições presidenciais indiretas foram de 355 votos para a chapa Figueredo/Aureliano Chaves(ARENA) e 226 votos para a chapa General Euler Monteiro/Paulo Brossard (MDB).

57

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fugir a regra do autoritarismo, foi a de intervir no sindicato, destituir e prender sua diretoria, e

fechá-lo. Após um mês de mobilização contra o fechamento do sindicato, apesar da greve ter

sido desmantelada, os sindicalistas foram libertados e ganhavam ainda mais prestigio e

referência entre os trabalhadores. A partir dai não havia mais como nem porque negar o

caráter eminentemente político das greves e mobilizações.

Ao longo da década de 1970, os exilados políticos e simpatizantes, se organizavam em

grupos pró-anistia no Brasil e no exterior e ganhavam força junto à opinião pública. A lei da

anistia viria em agosto de 1979, após disputas políticas relativas a seu alcance e termos:

competiam politicamente propostas mais radicais que exigiam o fim dos órgãos repressivos e

a prisão e julgamento dos torturadores. Setores mais moderados como o PCB e o MDB

concordavam com a exclusão dos “crimes de sangue” da anistia, entendendo como os “termos

possíveis” para aquele momento. Os setores à direita também possuíam diversas opiniões,

desde os que advogavam uma abertura total, aos que queriam a exclusão da anistia os

envolvidos em sequestros e atos de “terrorismo”. Por fim, a anistia se “ampla, geral e

irrestrita” não foi aprovada, prevalecendo uma mediação conciliatória. 162 Como parte da

“abertura”, em novembro do mesmo ano será aprovada a proposta de reforma partidária,

abrindo caminho para a criação de novos partidos. 163

Esse contexto inédito também permitiu a construção de um projeto comum por parte

de diversos setores à esquerda, em meio a reunião de diversos grupos políticos de variados

referenciais teóricos e programáticos. A ideia da formação de um partido dos trabalhadores

não era nova, sendo que Lula em 1978 declara que é questão de tempo os trabalhadores se

organizarem. 164 Todavia, nem sempre foi consensual essa estratégia entre os grupos citados,

nem entre os “sindicalistas autênticos”, nem mesmo por parte de Lula. As movimentações em

torno da formação do PT foram vistas muitas vezes como “divisoras da classe”, um freio à

solidariedade com as greves operárias, ou ainda como o pretexto necessário para que o regime

162 A partir das experiências das diversas ditaduras na América Latina se forja a “teoria dos demônios”, visão naqual dois lados em guerra (o Estado e as organizações de oposição) haveriam cometidos exageros. A partir dessaideia se introduz a figura jurídica da “anistia recíproca”, anistiando torturadores e torturados. Na verdade, nãohouvera guerra alguma e sim um enfrentamento desigual que massacrou parte oposição e seus simpatizantes. Alei da anistia não incluía os “crimes de sangue” e previa a reintegração dos anistiados a seus empregos anteriores,e foi aprovada em 28 de agosto de 1979 com apenas 5 votos de diferença no Congresso (205 a 201). Apesar dalei, dezenas de presos políticos permanecem na cadeia até 1985 com a reforma da Lei de Segurança Nacional,sendo libertados, mas não anistiados.163 O campo conservador do ARENA converte-se em PDS. O MDB vira o Partido do Movimento DemocráticoBrasileiro, no qual segue em seu interior o PCB e PCdoB. Os adeptos do trabalhismo são disputados por duassiglas: o PTB (com Ivete Vargas à frente) e o PDT (fundado por Brizola).164 Cadernos do presente, n.2, Sâo Paulo, jul. 1978, p.75. In: SECCO, L. Op. cit., p.40.58

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intervisse energicamente nos sindicatos. Por fim, em 1979 no Congresso dos Metalúrgicos do

Estado de São Paulo (realizado em janeiro em Lins, São Paulo) e no Congresso Nacional dos

Metalúrgicos (realizado em junho em Poços de Caldas, Minas Gerais), a ideia ganha força nas

bases. Em outubro lança-se oficialmente o movimento “pró-PT”, sendo aprovada suas

“normas transitórias de funcionamento”, sua “declaração política”, sua “carta de princípios” e

uma Comissão Nacional Provisória. 165 Por fim, em fevereiro de 1980 no Colégio Sion em

São Paulo, cerca de 1200 pessoas e 400 delegados de 16 estados fundam o Partido dos

Trabalhadores, registrado dois anos depois.

Segundo Lincoln Secco, os primeiros trabalhos sobre a formação do PT consolidaram-

no como um projeto oriundo de três fontes: os setores eclesiais progressistas, o que teria

permitido a capilaridade social nas periferias urbanas e na zona rural; os grupos oriundos da

luta armada e que traria a referência no socialismo, mesmo que de forma indefinida; e o novo

sindicalismo, com seu papel dirigente no mundo do trabalho. O historiador acrescentaria a

essa interpretação ainda outra fontes: os políticos estabelecidos do MDB, os intelectuais de

origens e ideologias diversas e os militantes de organizações trotskistas. 166

A formação do PT junto a organizações e lideranças de matizes políticas variadas, que

compreendiam de diferentes formas a “necessidade” do partido – para alguns se tratava de um

objetivo tático, para outros, estratégico –, em meio a um contexto de deslocamentos e

reorientações de práticas e discursos, gerou documentos partidários e declarações repletas de

amalgamas. Essas questões influenciaram também as características de organização do

partido: um partido de correntes, com forte discurso anti-burocrática e com a participação da

base através dos núcleos. Inferem-se essas questões a partir da apreciação tanto dos

documentos fundacionais do partido como da análise dos discursos, como comenta Secco, em

relação a principal liderança nacional do “novo sindicalismo”:

“Lula despontou como líder nacional na campanha salarial de 1977, depois que ficaram patentes oaumento da produtividade industrial, o achatamento dos salários e as manipulações dos índicesinflacionários pelo governo. Mas até então ele era distante de uma definição ideológica. O discurso queleu na posse como presidente do sindicato dos Metalúrgicos rejeitava o capitalismo e a ideologiamarxista, embora representasse muito mais a concepção católica do autor do texto: o advogadoMaurício Soares.” 167

Apesar das divergências e dos amalgamas político-programáticos, é certo que esses

diversos grupos e lideranças compartilhavam um entusiasmo com as mobilizações dos

165 Ibidem.166 Idem. p.p.26-7.167 Idem. Op. cit. p. 67.59

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trabalhadores, que cresciam e nacionalizavam-se a cada ano, convencidos de que era possível

um projeto autônomo dos próprios trabalhadores para a sociedade. Essa expectativa tinha uma

base real: as lutas e greves do período acompanhadas de uma reorganização sindical. Esse

processo tem como um dos pontos altos a realização do primeiro Congresso Nacional da

Classe Trabalhadora (CONCLAT) em agosto de 1981, encontro no qual pela primeira e última

vez estiveram presentes todas as tendências do movimento sindical brasileiro da época. Dois

anos após esse encontro, parte de seus participantes próximos ao PT fundaram a Central

Única dos Trabalhadores (CUT) em agosto de 1983.

Outra base real dessa reorganização é o baixo crescimento econômico e as altas taxas

de inflação, que aumentavam o número de desempregos e afetava a qualidade de vida,

principalmente dos trabalhadores. A concentração de renda social e regional era gigantesca,

assim como a dívida externa se mostrava explosiva após anos de política econômica que se

apoiava no FMI e nos fundos financeiros americanos. 168 As eleições sob o pluripartidarismo e

voto direto ocorrem em novembro de 1982, elegendo os novos governadores, prefeitos,

vereadores e parlamentares estaduais e federais. A grande maioria dos eleitos se dividiam

entre os maiores partidos, PDS e PMDB, com leve maioria para o primeiro, atestando um

predomínio das forças conservadores e oposições moderadas.

A partir de março de 1983, outro importante movimento marcaria a transição

democrática. Diversos setores civis - estudantes, intelectuais, artistas, sindicalistas,

jornalistas, etc - e os recém criados partidos, organizam passeatas e comícios a favor de

eleições presidenciais diretas para o ano de 1985. O Deputado do PMDB, Dante de Oliveira,

conseguira as assinaturas necessárias no senado e congresso para viabilizar a Proposta de

Emenda Constitucional n.5. A emenda é votada em abril do ano seguinte, em um contexto de

diversas manobras militares e parlamentares do governo. Não conseguindo o necessário, 2/3

do Congresso, não chegou a ser encaminhada para o Senado, marcando o fim do

movimento.169 As eleições indiretas através do Congresso, elegeriam Tancredo Neves o

primeiro presidente do Brasil após o período ditatorial.

Sob o impacto desse contexto inédito, se opera no campo dos estudos históricos e

168 Até 1980 o país demonstra um crescimento positivo, entretanto com a inflação chegando a 100% anualmente.Entre 1981 e 1983 o país tem perda real de 7% e inflação na faixa dos 100%. Em1984, último ano de governoFigueiredo, o crescimento retoma a faixa dos 5%, mas a inflação chega a 200%. REIS, Modernização, ditadura edemocracia, p.142.169 O resultado da votação da “Emenda Dante de Oliveira”, como ficou popularmente conhecida foi de 298votos a favor, 65 contra, 113 ausências e 3 abstenções, ficando 22 votos a baixo do necessário (2/3 da casa) paraseguir ao Senado.60

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sociais uma revisão que cunhará termos como “novo sindicalismo”, “sindicalismo autêntico”

e “nova classe operária” estabelecendo uma contraposição entre o que surgia naqueles anos no

ABC e as antigas organizações e tradições sindicais. Nesse sentido, pode-se falar no

estabelecimento de um “vínculo orgânico” entre as lutas operárias e os intelectuais que

buscavam compreender o ascenso operário no ABC. O trabalho desses cientistas sociais, ao

mesmo tempo em que procuravam explicar os fenômenos, auxiliavam na legitimação dos

movimentos sociais e sindicais e de suas novas lideranças, como comenta Braga e Santana em

relação aos trabalhos no campo da sociologia:

“(...) a sociologia do trabalho brasileira, agora “pública e orgânica”, cumpriu com um importante papelna tarefa de garantir e legitimar o juízo segundo o qual o “novo sindicalismo”, ao enfrentarconjuntamente as gerências e os militares, articulando a crítica ao autoritarismo fabril à crítica aoautoritarismo estatal, delineava uma autêntica alternativa dos trabalhadores aos dilemas vividos pelatransição democrática brasileira.” 170

Faz presente, nesse momento, a recém-incorporação de conceitos pela academia no

Brasil - como o de “intelectual orgânico” e de “hegemonia” - que podem também ser vistos

nos discursos de sindicalistas da época, além da adoção do marxista italiano Gramsci como

intelectual “semioficial” do PT e da CUT. 171

Como vestígio desse “vínculo orgânico” e a legitimação do “novo”, pode-se observar

também os discursos das principais referenciais sindicais da época, como Lula, José Ibrahim e

Olívio Dutra. 172 As recorrentes agitações nos discursos dessas lideranças sobre o sindicalismo

“pelego”, “ de cúpula” e “populista” da época de Vargas e de João Goulart, eram similares –

quando não a reprodução – aos modelos teóricos de trabalhos sociológicos influentes, como

os de Francisco Weffort173. Nessa argumentação, contrapunha-se um “antigo sindicalismo” –170 BRAGA, Ruy. SANTANA, Marco Aurélio. O pêndulo oscilante: sociologia do trabalho e movimentosindical no Brasil. CADERNO CRH, Salvador, v. 22, n. 56, p. 297-309, Maio/Ago. 2009. p.301. Sobre astransformações na sociologia do trabalho e o conceito de vínculo orgânico ver o artigo em questão.171 Sobre o impacto das ideias de Gramsci no Brasil, ver: BIANCHI, Álvaro. Gramsci e as ciências sociais. Re-vista de Sociologia e Política, n. 29, p. 7-14, nov. 2007.172 Para uma análise aprofundada sobre os discursos dos sindicalistas citados, consultar: MATTOS, M. Op. citp.p.61-67.173 Weffort é um dos principais responsáveis pelas ideias da “teoria do populismo” e do “sindicalismo populista”que se constrói como chave teórica a partir da década de 1960 e que servirá como contraponto de negatividadeao “novo sindicalismo”. Weffort aponta o “colaboracionismo de classe”, o “corporativismo” e a “perda de auto-nomia” das organizações dos trabalhadores como características do sindicalismo na época de Jango e Vargas:“[O sindicalismo populista] no plano da orientação, subordina-se à ideologia nacionalista e se volta para uma po-lítica de reformas e de colaboração de classes; no plano da organização, caracteriza-se por uma estrutura dual emque as chamadas “organizações paralelas”, formadas por iniciativa da esquerda, passam a servir de complementoà estrutura sindical oficial, inspirada no corporativismo fascista como um apêndice da estrutura do Estado; noplano político, subordina-se às vicissitudes da aliança formada pela esquerda com Goulart e outros políticos fiéisà tradição de Vargas.” WEFFORT, F. Origens do sindicalismo populista no Brasil: a conjuntura do após-guer-ra. Estudos Cebrap, São Paulo, n. 4, 1973. p.67. Seu “vínculo orgânico” com o “novo sindicalismo” fica eviden-te se pensarmos em sua militância política por um partido socialista e popular no Brasil durante a década de61

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dos comunistas e trabalhistas – a um novo, de “sindicatos espontâneos”, “de base” e

“combativos”. Dessa forma, os trabalhos apontam tanto a “autenticidade” do “novo

sindicalismo” - que partiria “de baixo para cima” - , como a “radicalidade” e “combatividade”

de suas greves, em contraposição ao “colaboracionismo” da aliança PCB-PTB.

No geral, essas leituras ignoraram as semelhanças e continuidades entre os “pelegos” e

os “autênticos”, não evidenciando que o “novo sindicalismo” surgiu a partir da mesma

estrutura corporativista sindical anterior. Além disso, muitas vezes certos trabalhos

generalizaram a experiência do centro industrial do ABC para o conjunto das movimentações

dos trabalhadores pelo Brasil, enquanto outros subestimaram o caráter espontâneo das

mobilizações dos trabalhadores.

2.6.O “nacional popular” x a força e autonomia da “nova classe operária”:

segunda análise historiográfica.

No fim da década de 1970 e início da década de 1980, diversos trabalhos históricos se

debruçaram sobre a produção cultural das décadas anteriores. Uma parte desses trabalhos

pode ser entendido, de certa maneira, como continuidade das discussões já presentes no

trabalho de Bernardet da década de 1960, que se vinculava a crítica do reformismo PCBista e

as formas estéticas “militantistas” anteriores ao golpe. Entretanto, agora em meio às greves e

mobilizações dos operários do ABC, ao surgimento do “novo sindicalismo”, ao processo de

formação do PT e da reorganização dos partidos na vida política nacional. Uma referência

importante no campo do cinema é o trabalho de Bernardet Cineastas e imagens do povo,

publicado em 1985. A obra se debruça sobre documentários brasileiros da década de 1960 e

1970 de cineastas do Cinema Novo e próximos a ele. O debate se centra na técnica e temática

utilizadas para a construção da representação do “outro popular”. Essa representação partiria

do “modelo sociológico” que teria como característica: a) uma postura científica, que segue o

modelo pergunta/resposta, ilustrando com entrevistas, asserções “over” e outros recursos, um

esquema pré-estabelecido sobre a sociedade; b) a utilização da linguagem realista para

justificar sua representação como dado indiscutível do real, se aproximando do cinema de

representação. 174 O modelo evoluiria com a “perturbação do método”, documentários nos

quais cada vez mais a “voz” fica a cargo do “outro” sem mediações, e no qual a câmera passa1970, assim como seu envolvimento como secretário-geral do PT na década de 1980.174 BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Brasiliense, 2003. p.35.62

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a analisar a própria “classe média”, que se transforma em objeto e sujeito da representação. O

movimento analítico, assim como as conclusões de Bernardet nos dois livros, são similares: a

produção cinematográfica do CPC, assim como os documentários engajados analisados na

década de 1960, são construções esquemáticas e de demonstração de uma realidade pré-

estabelecida. Além disso, faz-se primordial explicitar que esses filmes são produções da

“classe média”, que representam seus dilemas e questões políticas (e não as do “outro

representado”) e que utilizam a linguagem “clássica” da representação cinematográfica para

se legitimarem enquanto realidade.

Constituem também parte dessa historiografia consolidada sobre o “nacional popular”,

os trabalhos de Marilena Chauí. Na década de 1980, a filósofa tomará os escritos de Carlos

Estevam (primeiro diretor do CPC) como reflexo de uma concepção supostamente

homogênea de seus militantes e artistas 175. Chauí também aponta a coleção “Cadernos do

Povo Brasileiro”, lançado pela Editora Civilização Brasileira em parceria com o CPC, como

possuidora de uma pedagogia autoritária, pois nessa não haveria documentos que atestem as

argumentações do texto, que atribuiria ideias, vontades e práticas ao povo e a nação, sem que

apareçam suas vozes.176 O sociólogo Renato Ortiz, também na década de 1980 faz uma

avaliação próxima quando aponta: “o povo é personagem principal da trama histórica, mas na

realidade se encontra ausente”. 177 Ainda hoje, as análises predominantes sobre o CPC

reproduzem uma leitura enviesada pela crítica ao “Anteprojeto do CPC”, erroneamente

reproduzido pela historiografia como “O manifesto do CPC”, na verdade, um texto autoral de

Carlos Estevam que não passou pelas instancias deliberativas da entidade e que mais gerou

polêmica do que diretrizes dentro do CPC. Como aponta Marcos Napolitano: “(...) o

manifesto deve ser visto dentro da sua historicidade e de seus limites como documento

histórico, e não como expressão inequívoca da arte cepecista.” 178 Dessa forma, é preciso ter

em mente a pluralidade de concepções estéticas no interior do CPC para além dos

reducionismos do manifesto e de outros discursos dos artistas, pois em muitos casos as obras

demonstram uma diversidade que escapa a essa análise.

A partir da década de 1990, uma série de trabalhos passam a demonstrar essas175 CHAUÍ, Marilena. Seminários: O nacional e o popular na cultural brasileira. Rio de Janeiro: Brasiliense.1983.176 Idem, p. 84. 177 ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. p.73. Apud:SOUZA, Miliandre Garcia de. Do teatro militante à música engajada: A experiência do CPC da UNE (1958-1964). São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007. p.38.178 NAPOLITANO. Op. cit, p.43.63

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debilidades das leituras historiográficas forjadas na década de 1980. Através de depoimentos,

documentos da época e novas análises estéticas, diversos trabalhos demonstraram uma

memória mais plural e conflituosa sobre o CPC e as experiências próximas. O livro de

entrevistas de Jalussa Barcellos, CPC – Uma história de paixão e consciência é um marco

nesse sentido, mas é o trabalho de Miliandre Garcia de Souza, Do Arena ao CPC: o debate

em torno da arte engajada no Brasil (1959-1964)179, o primeiro a tecer uma crítica

aprofundada sobre as leituras generalizadoras da produção da época. Outros trabalhos se

detêm em obras ou artistas específicos, atentando não só para uma pluralidade nos

posicionamentos políticos e artísticos, mas também para as inovações que trazem a seu campo

e ao debate estético da época. 180 O trabalho de Souza preocupa-se em contextualizar a

produção artística da época em meio às “ideologias nacionalistas”, ao “nacional-popular”, às

elaborações do ISEB, ao programa do PCB, à formação pedagógica da intelectualidade e ao

desenvolvimento da indústria cultural no Brasil. Entretanto, sem resumir as artes a um reflexo

mecânico dessas ideologias. Pelo contrário, ela aponta uma diversidade de posições em

relação ao que seria produzir “arte revolucionária”, “arte popular” e “conscientizar o povo”.

Souza aponta as transformações da atuação político-cultural de ex-integrantes do Teatro de

Arena como Vianinha e Guarnieri, que se distanciam do grupo ao perceberem a necessidade

de uma arte engajada mais próxima das massas, a fim de avançar nesse contato. Aponta

também na própria reflexão a partir das iniciativas que surgem com esse propósito,

transformações na forma de compreender esse contato. Souza historiciza:

“Até meados de 1962, a matriz carioca dividia unilateralmente a ação cultural entre quem levava e quem recebia cultura. Após algumas experiências malfadadas, os ativistas perceberam o equívoco dessa prática e que não podiam separar o produtor (intelectual) do consumidor (massa) de cultura. Iniciava-se,então, um trabalho de aproximação de artistas, intelectuais e estudantes do CPC com as classes populares.” 181

Se inscrevem aqui diversas iniciativas como a fundação do bar Zicartola (que reunia

Zé Keti, Elton Medeiros, Vinicius de Morais, Baden Powell, Carlos Lyra e os demais amigos

179 Esse livro se origina a partir da dissertação de mestrado de Miliandre Garcia de Souza: “Do Arena ao CPC”:O debate em torno da arte engajada no Brasil (1959-1964)180 São contribuições relevantes nesse sentido: BETTI, Maria Silvia. Oduvaldo Vianna Filho. São Paulo, Edusp,1997; VIEIRA, Thaís Leão. Vianinha no Centro Popular de Cultura (CPC da UNE): Nacionalismo e militânciapolítica em Brasil-Verão Brasileira (1962). Dissertação de mestrado em história, Universidade Federal deUberlandia, 2005; SILVA, Thiago de Faria e. Audiovisual, Memória e Política, os filmes Cinco vezes favela(1962) e 5x favela, agora por nós mesmos (2010). Dissertação em história, Faculdade de filosofia e ciênciashumanas, Universidade de São Paulo, 2011.181 GARCIA, Op. Cit. p.9.64

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de Cartola), a Caravana UNE-Volante182 e a própria fundação do CPC. É certo que muitos

textos que dissertam sobre a necessidade de vincular a produção do intelectual com a massa

contêm um “didatismo” e a ideia de “rebaixar a estética a favor da comunicação”, criticas

pertinentes da historiografia consolidada. É certo também a influencia do nacional-

desenvolvimentismo do ISEB e do alcance do programa nacional-democrático do PCB entre

esses artistas e intelectuais. Entretanto, mesmo que se aponte uma hegemonia política, os

debates e as respostas político-estéticas são diversos e influem de diferentes formas nas ações

culturais. O mais interessante do trabalho de Souza é demonstrar que havia um debate intenso

sobre arte e engajamento político, sendo que textos programáticos para a arte - como o

“Anteprojeto do CPC” - são respondidos criticamente por outros intelectuais, inclusive do

próprio CPC, nos dias seguintes de sua publicação. Além disso, o processo de produção

artística envolvia uma serie de dificuldades e meandros desconhecidos até então, dos quais a

intelectualidade tomava ciência e buscava responder, movimento ligado à formação da

intelectualidade brasileira. Entretanto, por não fazer essa ressalva, soa como “culpabilista” o

apontamento da historiografia consolidada sobre o CPC não ter cumprido seu objetivo de “ir

ao povo”. No sentido oposto, Souza aponta o quanto a experiência do CPC foi importante

para os debates político-culturais da época, para a formação e profissionalização de centenas

de artistas e a renovação e consolidação da dramaturgia, da música e do cinema no Brasil.

Uma das primeiras instituições a debater a importância da arte se tornar nacional e popular, a

dialogar e articular grupos amadores e estudantis, a buscar a formação de elenco e técnicos

capacitados, a contribuir com a formação da intelectualidade, a realizar atividades culturais e

políticas no interior do Brasil. Nota-se a influência não só do CPC, mas também de

experiências como o Teatro de Arena e o Cinema Novo nas décadas seguintes, sendo que

atualmente diversos trabalhos sobre artistas que se incorporam a indústria cultural atestam

esse diálogo. É certo que, naquelas décadas, o público, em sua grande maioria, se restringiu a

quem podia arcar financeiramente e corroborava com a nacionalização da dramaturgia, com

exceção de algumas iniciativas como a UNE-Volante e o “teatro de rua” de Vianinha.

Entretanto, não parece apropriado resumir a experiência do CPC e de outros grupos a essa

questão.

No mesmo sentido do trabalho de Souza, Thiago de Faria e Silva critica em sua

182 UNE-Volante foi uma caravana organizada pela UNE no primeiro semestre de 1962 que percorreu diversascidades e capitais do Brasil com parte da diretoria da entidade e artistas do CPC realizando atividades políticas,culturais e estabelecendo contato com movimentos sociais e de trabalhadores.65

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dissertação, Audiovisual, Memória e Política, os filmes Cinco vezes favela (1962) e 5x favela,

agora por nós mesmos (2010), a historiografia consolidada sobre o filme Cinco vezes favela.

Criação coletiva de 1962, financiada pelo CPC, seus cinco episódios foram dirigidos por

diferentes diretores próximos à entidade, sendo alguns militantes organizados, caso de Leon

Hirszman (PCB), Cacá Diegues (JUC) e Miguel Borges (OMR-POLOP). Após suas primeiras

exibições, com poucas exceções, o filme recebe duras críticas negativas do meio artístico, na

imprensa e na academia. Em 1967, Jean-Claude Bernardet, no trabalho já comentado, não

apresenta uma crítica de caráter conservador, mas reforça a desqualificação (estética e

política) do filme. Bernardet critica a estrutura simples do filme (ilustração de ideias

preconcebidas, de esquemas abstratos) que pouco convidaria o espectador à politização e à

interpretação e, sim, à passividade contemplativa do problema enunciado. Buscando

compreender o filme historicamente, Silva resgata a inovação de Cinco vezes favela ao abrir

campo para a produção coletiva e a cinematográfica popular, seja como produção

independente ou junto a movimentos populares e entidades de classe. Uma vertente da

história do cinema brasileiro que perpassa a ditadura (como as experiências de Renato Tapajós

no Sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo183) e tem forte presença nos dias de

hoje com o advento de tecnologias acessíveis, seja em movimentos de resistência política e

cultural na periferia dos centros urbanos ou no trabalho educativo de ONG´s e outras

entidades. Nesse sentido, o filme produzido em 2010 por Cacá Diegues e Renata Almeida

Magalhães junto a ONG’s, 5X Favela, agora por nós mesmos,184 se constitui como parte dessa

vertente do cinema nacional e, ao mesmo tempo, como atualização do Cinco vezes favela do

CPC, já sob um novo paradigma: não mais representar o “outro”, mas “dar voz” para que os

jovens cineastas da favela expressem sua realidade.

Em sua dissertação, Silva ainda empreende uma análise histórica e estética dos

capítulos do filme, demonstrando que, se, em parte, as críticas de Bernardet são válidas, o

“hermetismo” e a “passividade” de seus “esquemas abstratos” sofrem perturbações durante

todas as narrativas. A “unidade” é perturbada em todos os capítulos: os nordestinos não são

um grupo coeso (há distinção entre empregados e desempregados); os favelados não

apresentam unidade política, nem psicológica; não há unidade entre consumidores e

183 Destaca-se aqui o filme Linha de montagem, recentemente restaurado, que é produzido junto ao comitêcultural do Sindicato de Metalúrgicos do ABC e acompanha suas greves do final da década de 1970.184 O filme constitui-se de cinco capítulos, assim como o filme Cinco vezes favela. Participaram na realização dofilme as ONG’s CUFA, Nós do Morro, Observatório de Favelas, AfroReggae e Cidadela/Cinemaneiro. 66

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empresários. As favelas e o cotidiano de seus moradores se apresentam como espaço do

contraditório, sendo a resistência política exaltada ao mesmo tempo em que se questiona os

interesses em disputa (pessoais e coletivos) e os limites das respostas políticas apresentadas. É

assim quando Zé da Cachorra decide resistir ao grileiro à revelia da comunidade; no enredo de

“Escola de Samba Alegria de Viver” que apresenta a luta sindical em meio às crenças

populares e o papel da escola de samba como agente organizador da vida social; na vitória

temporária dos favelados em “Pedreira de São Diogo” até que o patrão resolva explodir

novamente a pedreira; no conflito sentimental e de subsistência do garoto em “Couro de gato”

devido à necessidade de se desfazer do gato capturado. Além de situar essas obras para além

de um “esquema abstrato” e “passivo”, buscando um marco mais consistente, Silva aponta

que as representações de Cinco vezes favela se aproximam da crítica da época ao paternalismo

de certas figuras políticas e grupos existentes nas favelas, e da critica às políticas de remoções

que ocorriam no momento. 185

Para além das críticas expostas por Silva, acrescento algumas considerações relativas à

análise de Bernardet sobre Cinco vezes favela. Considerando a ressalva sobre a falta de

referencial sociológico para tratar da categoria “classe média”, o apontamento de Bernardet é

coerente, afinal, é o setor médio e da pequena burguesia que tinha condições materiais de

discutir e produzir arte naquele momento, bem como tinha acesso aos meios de comunicação.

Entretanto, esse apontamento toma o centro da análise em detrimento do movimento

histórico: como demonstrado, há evidencias que a arte engajada na década de 60 procurou e

estabeleceu contato com movimentos sociais, entidades de classe e trabalhadores não

organizados na cidade e no campo. Iniciativas anteriores como o MCP em Pernambuco, a

UNE-Volante (que viajou pelo interior do Brasil, estabelecendo contato com o movimento

estudantil e de trabalhadores), e as atividades do CPC (como seus shows e o “teatro de rua” de

Vianinha), permitiram contato e uma troca profícuo e instigadora com o “outro de classe”.

Além disso, se a representação parte do “roteiro” do artista de “classe média”

(incômodo tanto de Bernardet quanto de Chauí), o “outro de classe” se expõe de forma inédita

no cinema, seja por meio de entrevistas, de atores amadores que interpretam sua própria

condição ou colaboram com o roteiro, seja pelo teatro de rua que propõem um expectador

participativo. Nesse sentido, a existência e participação do “outro de classe” presente nessas

obras não pode ser confundido com a participação direta (ou a ausência) desse “outro” na

185 SILVA, Op.cit, p.105.67

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escrita de um roteiro, concepção que toma a produção do discurso como ato isolado do artista

e superestima seu poder de orientação diante da polissemia que a arte carrega. Nesse sentido,

o “outro de classe” se faz presente na elaboração artística em um contexto no qual o contato

com a realidade das favelas e do campo existia. Esse se dava, para ficarmos no exemplo de

Cinco vezes favela e a primeira tentativa de filmar Cabra marcado para morrer, através de

organizações como o PCB e seu trabalho político nas favelas 186, e no contato dos lideres

estudantis e artistas com as lideranças camponesas como Elizabeth Teixeira durante a UNE-

Volante. Dessa forma, essa experiência histórica, mesmo carregando “idealismos” e

“didatismos”, está longe de ter sido construída apartada da experiência dos trabalhadores e

dos movimentos sociais da época, sugestão implícita na obra de Bernardet e que a

historiografia consolidada sobre o CPC reforça.

Para compreender melhor essa questão podemos pensar nas ponderações de Marcos

Napolitano sobre a teoria do “circuito fechado”: uma leitura que aponta o nacional-popular e a

atuação do PCB como sem “lastro histórico”, vítima de um circuito de comunicação fechado

em si mesmo:

“A ruptura do circuito esboçado no período do CPC teria circunscrito a arte de esquerda, bem como osseus debates culturais, a um “circuito fechado” de comunicação entre intelectuais. Quando muitohaveria uma comunicação entre intelectuais e sua base social, a classe média, que se encaminhava paraa diluição no mercado e sua consequente neutralização política.” 187

É importante ter em vista que essa nesse contexto, a historiografia também constrói

outra leitura do que seria o “engajamento político”, estabelecendo um debate e legitimando

novos movimentos artísticos. Nesse sentido, a crítica ganha um contorno “teleológico” em

que a estética “nacional popular”, assim como o frentismo do PCB é negativada diante de sua

suposta “superação” pelos novos movimentos. Em obras da década de 1970 e 1980, as

vanguardas, como o Tropicalismo, são apontadas “como tomada de consciência crítica e

dessacralizadora desse processo histórico” 188.

Na contramão dessas leituras, as reflexões do historiador Napolitano apontam a

necessidade de não se ver a produção artístico-cultural da esquerda nos anos 1950 e 1960

como “um movimento linear pré-determinado pelos males de origem – a ‘ida ao mercado”,

que teria como efeito lógico a neutralização de um projeto cultural crítico. Mesmo sob a

186 Idem, p.54.187 Idem, p.45.188 Ibidem. O historiador se refere aos trabalhos de Heloísa Buarque de Hollanda, Celso Favaretto e IsmailXavier presentes na bibliografia.68

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influência do nacional-popular, esse processo carrega diversos conflitos e variáveis nas

produções artísticas, e junto a uma nova conjuntura econômica, política e de mercado

constitui uma produção que não é imposição de um único estilo de expressão. Ao contrário, os

estilos, muitas vezes divergem, apesar de partirem de referenciais similares. 189

Resumidamente, podemos apontar o trabalho de Souza como o marco de uma revisão

sobre a historiografia do CPC em uma crítica centrada principalmente nos aspectos empíricos

e metodológicos dos trabalhos anteriores. Dessa forma, sua proposta de uma nova

historiografia sobre o assunto se constrói na negação tanto de generalizações como da leitura

equivocada do campo artístico como reprodutor mecânico do programa e das ideologias da

época. Para isso se pauta na leitura de documentos que comprovam a multiplicidade de

debates da época e por fim, empreende uma análise histórica e estética das obras de

integrantes do CPC. Nesse mesmo sentido, Silva constrói seu trabalho sobre Cinco vezes

favela. No entanto, para compreender a experiência do CPC e dos movimentos artísticos

próximos, é necessária uma crítica que leve em consideração as transformações políticas e do

campo intelectual das décadas seguintes, nas quais se consolidará uma historiografia, o que

tentei apontar aqui apontando o contato dos autores da “historiografia consolidada” junto aos

movimentos sociais e políticos que o Brasil vive no início da década de 1980. A crença na

classe operária autônoma perpassa o discurso desses e as suas ideias, incidindo na forma de

pensar o nacional popular e os movimentos culturais de depois. O “novo sindicalismo” e a

“nova esquerda” se constituem junto à crítica dos comunistas e trabalhistas, imbuída de um

discurso antiburocrático, “autonomista” e que desqualificará o frentismo policlassista. Como

aponta Marcos Napolitano:

“(...) criticar o nacional-popular significava criticar a velha esquerda, abrindo caminho para novas formulações e propostas partidárias e ideológicas. Nesta revisão critica, o nacionalismo de direita e de esquerda foram, propositalmente, embaralhados, comparados e criticados como mistificações dos conflitos sociais mais profundos. 190

Dessa forma, a historiografia dos anos de 1980 trabalhada aqui também apresenta

como mediação a transformação da esquerda junto ao surgimento do Partido dos

Trabalhadores, além de uma nova conjuntura internacional que vive a falência do “socialismo

real” e a queda do Muro de Berlim no fim da década. Nesse sentido, algumas produções

artísticas e grupos pagam tributo como símbolos do radicalismo das esquerdas pré-1964,

189 Idem, p.46.190 Idem, p.4769

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assim como de um cinema de classe média idealizador do popular. 191 Dessa maneira, faz-se

necessário revisitar as obras e escritos desses personagens, buscando um marco mais sólido de

crítica a essas experiências, não se tratando de inverter o sinal, passando do negativismo

linear a um ângulo de incontestável positivação sobre a experiência nacional-popular. É

preciso abarcar o que há de pertinente na historiografia consolidada, assim como nos

movimentos artísticos de vanguarda da década de 1960, mas desfazer simplificações,

dicotomias pouco esclarecedoras (como forma x conteúdo; pesquisa estética x engajamento

político) e ter em vista a pluralidade dessa experiência.

2.7 A recepção de Cabra marcado para morrer na década de 1980: “Nada melhor

para uma avaliação desses vinte anos, do que o filme de Eduardo Coutinho”

“Jango [documentário de Silvio Tendler] não está mais sozinho na marquise das diretas” 192

“O fato essencial, porém para tornar o filme possível foi a anistia e o fim do Ato-5. Eu digo anistia por -que a volta dos exilados políticos foi uma coisa essencial. Os próprios camponeses sabiam que eles ti -nham voltado, e ao saber disso eles começaram a ter coragem de falar, porque eles são muito astuciosos– não são nada burros, ao contrário do que se pensa. Tanto para mim como para eles teria sido difícil fa-zer um filme antes e mais ainda para eles porque ele teriam que falar e estariam muito mais expostos doque eu.” 193

Cabra marcado para morrer foi filmado em 16mm, sendo enviado a censura em

janeiro de 1984. O projeto teve em parte apoio financeiro da Embrafilme, entretanto foi

finalizado com recursos pessoais. Após sua liberação, diversas projeções foram realizadas a

fim de levantar recursos para sua ampliação. Um percurso de sessões pela Embrafilme, pela

Câmara dos Deputados, pelo MASP e por outros cinemas e que envolveu artistas, políticos,

entidades eclesiais e pessoas influentes que pudessem financiar a finalização do projeto.

Financiada pelo Banespa, em meados de outubro de 1984 é lançada a primeira cópia em

35mm do documentário. 194

191 SILVA, Op. cit, 112.192 Sergio Augusto, Folha de São Paulo.Ilustrada.22.04.1984. In: OHATA, Op. cit. p.451.193 Estado de Minas. Caderno dois. Belo Horizonte. 18.03.85 Entrevista para a TV alemã Hessischer Rundfunkdurante festival de Cinema de Berlim que foi ao ar em 12 de março de 1985.194 Coutinho comenta: “A primeira cópia em 16mm ficou pronta em janeiro deste ano. Fiz, nos sete meses se-guintes cerca de quarenta exibições, na esperança de eventualmente encontrar alguém ou algum grupo interes-sados em financiar a ampliação. A exibição no auditória da Folha, em maio, foi fundamental. Marco Aurélio Gar -cia e Paulo Sérgio Pinheiro, ligados ao governo Montoro, estavam presentes, gostaram muito do filme, e deramum toque no Banespa, que afinal desembolsou Cr$ 52 milhões para a ampliação” ( Folha de São Paulo,02.12.1984)

70

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A frase acima de Sérgio Augusto no jornal Folha de São Paulo atesta tanto o contexto

de lançamento do documentário, como o olhar dos críticos para a obra. Nesse momento de

reabertura, filmes como Os anos JK – Uma trajetória política, Jango (Tendler, 1980 e 1984

respectivamente), Jânio a 24 quadros (Pereira, 1981), e Cabra marcado para morrer são

lançados e apontam leituras do passado e perspectivas para a construção democrática do país.

Produzindo a partir de gêneros diversos e sob a influência de tradições estéticas variadas,

perpassam essas obras temas como: Quais as causas do golpe de 1964? Quais as marcas de 20

anos de exceção? O que é a esquerda atual e seus desafios? Como e por onde construir a

democracia?

A outra epígrafe diz respeito a uma entrevista de Coutinho durante o festival de

Cinema de Berlim em 1985 e aponta a importância do fim do AI.5 e da anistia para as

condições de produção de Cabra marcado. Se a ditadura perseguiu e esfacelou a vida das

lideranças políticas das lutas populares, o fim desse processo não ocorre com a formalização

do fim dos atos de exceção, mesmo porque a abertura “lenta, gradual e segura” continuou

permitindo “casuísmos” e “repressões seletivas” como comentado anteriormente. Como

Coutinho aponta, o contexto de “distensão” permite que essas lideranças saiam da

clandestinidade, entretanto a “coragem de falar” é mediada e negociada ao longo do tempo

em meio ao perigo da “exposição” e da “saída da clandestinidade”. A obra de Coutinho

caminha nesse sentido, assim como a recepção de seu documentário por parte da

intelectualidade, que elogiará seu caráter de resgate social da “memória dos vencidos” e suas

inovações no campo estético e da linguagem do documentário. Além disso, de formas simples

ou complexas, a crítica apontará a ligação entre uma nova forma de “narrar” com uma nova

forma de pensar e se relacionar com o “outro de classe”, assim como de entender o “papel

social do intelectual”. Essas questões devem ser entendidas como parte das transformações da

esquerda e de suas ideias e projetos para o país, como demonstrarei na crítica aos jornais da

época, aos trabalhos de importantes intelectuais e da própria produção de Coutinho.

Uma breve análise dos jornais ao longo dos anos de 1984 e 1985195 demonstra uma

recepção marcada por elogios quase sempre vinculados à suposta nova forma narrativa que

compreenderia de forma completa ou mais complexa a realidade da história de Elizabeth e sua

195 Os jornais aqui analisados se encontram na Biblioteca Paulo Emílio Salles Gomes (Cinemateca Brasileira, SãoPaulo), nos Arquivo Edgard Leuenroth (Unicamp, Campinas) e na obra de Ohata presente na bibliografia. Foi pri-vilegiado a análise e apresentação de artigos de pessoas envolvidas e qualificadas no campo da crítica artística ehistórico-sociológica.71

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família:

“(...) excepcional capacidade do documentário para representar a realidade de frente, sem subterfúgios,sem apelos a simbolismos, tratando a matéria de forma direta e objetivamente. (...) se eleva a patamaresnunca antes alcançados por qualquer filme do gênero(...)”196

“O filme de Coutinho é um dos trabalhos mais elaborados do cinema documental, pela sua exceção, au-dácia e cruel trajetória terceiro-mundista. (...) Sem grande revanchismo, o filme de Coutinho traz consi-go uma obstinação: seu compromisso com a verdade.”197

“Filme comovente, um provável marco”.198

“O melhor do cinema nacional (...) entusiasmante, lúdica e comovente visão do esfacelamento de umafamília, depois de 1964. (...) seu tema e a condução da história transmitem a emoção e a verdade”..199

“Não tenho dúvida que Eduardo Coutinho realizou o mais importante, o mais humano e o mais autênti-co documentário do cinema brasileiro até agora.” “Um documento de dimensões universais. Ele trans-cende o regional.”200

As matérias também apontam a influência da recepção positiva a partir do

reconhecimento da importância da obra, assim como das premiações nacionais e

internacionais do documentário que rendem manchetes como: “vencedor do FestRio, vive

agora as tensões e solicitações geradas pela consagração”,201 “Cabra marcado faz chorar e

está cotado para prêmio”202, “Cabra em NY”: sucesso total”203, “Cabra marcado fez sucesso

em Berlim”204. A recepção de Cabra marcado também aponta no geral as “características

negativas” da estética vinculada a primeira tentativa de filmá-lo, assim como o “simplismo” e

“maniqueísmo” que seria próprio ao projeto nacional-popular dos jovens intelectuais e

cineastas da época. Nesse sentido, o documentário também seria a crítica “justa” aos projetos

de esquerda anteriores ao golpe de 1964:

“O filme é emocionante, uma auto-crítica das esquerdas brasileiras e um projeto de democracia que ficaimplícito no depoimento de dona Elizabeth Teixeira, (...) Algumas cenas da época [de 1960´s], dentro daestética popularesca – ou seja, os próprios protagonistas da história interpretavam a si mesmos, o queera de um ridículo enorme.” 205

“(…) o filme faz a crítica do Centro de Cultura Popular (CPC) da UNE, meninos da classe média quepretendiam levar cultura ao povo utilizando uma visão simplista e maniqueísta.” 206

“(...) se tivesse seguido o seu curso normal até o fim, hoje, presume-se, não passaria de mera curiosida-de arqueológica do nascente Cinema Novo.” 207

Cabe ressaltar a insistência das críticas, mesmo argumentando sem profundidade

196 Vladimir Carvalho, Correio Braziliense, 30.05.1984. In: OHATA, Op. cit, p.453.197 Heitor Capuzzo. Diário do ABC. 11.12.84.198 Pola Vartuck. Estado de São Paulo. 11.12.1984.199 Gazeta de vitória. 26.02.85.200 Fernando Spencer. Diário de Pernambuco. 08.03.1985.201 Sérgio Augusto, “O cineasta repórter da emoção”. Folha de São Paulo. 02.12.1984.202 Jornal do Brasil. 25.11.1984.203 Diário Popular. 06.04.1985.204 Tribuna da imprensa, 05.04.85.205 Amylton de Ameida. A Gazeta de vitória. 21.2.85.206 A Gazeta de vitória. 26.02.85.207 Sergio Augusto, Folha de São Paulo.Ilustrada.22.04.1984. In: OHATA, Op. cit. p.451.72

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comparativa, em apontar o Primeiro cabra como desprovida de singularidades, não só em

relação à produção do CPC, mas também a do Cinema Novo e da arte engajada da época.

Uma análise das entrevistas de Coutinho durante esses anos apontam que essas leituras

estavam intimamente ligadas aos objetivos e questões que habitavam o cineasta naquele

momento. Como já argumentado, Coutinho trilha uma mudança de postura do

intelectual/artistas, no contexto de abertura democrática, que se identificará não mais com o

compromisso da “desalienação”, mas com a afirmação de uma “outra história” das camadas

populares. Nesse sentido, o cineasta compreende seu documentário como forma dessas

pessoas serem “recolocadas na história e recolocadas como símbolo de uma grande massa

popular que nunca participou da história”.208 Um filme de compromisso com a retomada e

publicização da memória e história dos “vencidos” de 1964. Entretanto, essa retomada não se

construiria, a partir de “representações sociológicas”, nem de “personagens míticos”, mas

através dos sujeitos comuns e particulares que viveram certa experiência, como aponta: “Eu

queria agora um filme sobre aquelas pessoas, e não sobre a classe camponesa do Brasil, sua

evolução. (...). A sociologia está contida na trama da própria vida das pessoas. Retirei toda a

tendência a fabricar heróis, de heróis quero distância. Não posso manipular a verdade.”209

Essa reflexão sobre a “representação sociológica” e os “heróis” na verdade é parte de

uma reflexão sobre a experiência do Cinema Novo ao longo dos anos 1960 em geral, e do

CPC em particular, assim como a relação que existia entre os artistas e intelectuais junto ao

povo, como fica claro em diversas passagens de suas entrevistas na época:

“Quando reencontrei o João Mariano, não esperava que ele tivesse uma postura agressiva, nos classifi-cando de “comunistas”. (...) E isso foi mantido no filme, ou seja, a contradição entre o homem que vi -veu o João Pedro e que hoje renega esse passado. Nos tempos do CPC, seria impossível manter isso nofilme.” 210

“Eu faço uma crítica ao passado geral do populismo no Brasil, à tendência cultural do CPC, negandotoda a encenação esquemática. Era uma coisa de classe média, paternalista e autoritária. (...) O CPC ti -nha uma concepção utilitária de arte, era simplista, supondo que o receptador tinha uma cabeça va -zia..”211

“Na década de 1960, a gente fazia um cinema muito político, com uma visão assim… Uma visão umpouco autoritária (...) A gente julgava o povo e, ao mesmo tempo, onipotente, achava que entendia opovo.” 212

“(...) é que nesta época se fazia um cinema onde os diretores eram um pouco os mágicos taumaturgos,eram um pouco deuses, que diziam o que pensavam do povo, o que não pensavam do povo, que se atri-

208 Estado de Minas. Caderno dois. Belo Horizonte. 18.03.85.

209 Entrevista de Coutinho durante o festival do Rio (RIOFILME) para Uchoa de Mendonça na Gazeta de Vitória,26.02.85.210 Fernando Molica. O estado de São paulo. 02.12.84.211 Entrevista para Uchoa de Mendonça. Ibidem.212 Entrevista para Alexy Viany em 1985. In: OHATA, Op. cit. p.222.73

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bulam poderes mágicos sobre a história, eram um pouco profetas. (...) o que o Cabra pode ter de novo éque ele é extremamente humilde, ele não diz o que pensa do povo – ele procura caminhar junto e isto éuma postura nova, eu acho.” 213

Logo, seja de forma mais ou menos mediada - adjetivos que vão de “simplista” a

“visão autoritária”, de “esquemáticos” a “mágicos taumaturgos” – Coutinho contribui para o

balanço negativo e muitas vezes simplista da experiência estética e política da década de

1960. Um sentido crítico comum que aponta proximidade ideológica entre crítica e cineasta.

Conjuntamente a essa negatividade sobre a experiência anterior há a positividade de uma

“postura nova” do intelectual, que não se colocaria mais a frente das camadas populares

dizendo “o que pensa do povo”, mas procuraria “caminhar junto a ela.” Para dar cabo desse

seu projeto, também seria necessário uma “nova prática” cinematográfica, “impossível nos

tempos de CPC”, que buscará se legitimar enquanto um método mais “eficaz” ou menos

“ingênuo e idealista” de “escuta do outro”.

Outros trabalhos importantes ao nosso debate dizem respeito à recepção de Cabra

marcado no meio acadêmico, principalmente os que forjaram o que chamo de “historiografia

consolidada” sobre o desenvolvimento político e cultura brasileiro a partir de 1960. Sem

dúvida, interpretações do Brasil que assim como o documentário de Coutinho estão envoltas

nas lutas de seu presente. Cabe destacar aqui o artigo de Marilena Chauí “Do épico

pedagógico, ao documentário”, lançada ainda no meio das “exibições promocionais” de

Cabra marcado em busca de recursos para a ampliação do documentário.214 Relembrando as

injustiças e contradições do processo de modernização da economia brasileira215, a filósofa

afirma: “Nada melhor para uma avaliação desses vinte anos, do que o filme de Eduardo

Coutinho (...).” 216 Seguindo o tom geral das críticas aqui visitadas, se argumenta a

importância da obra de Coutinho junto ao balanço generalista da produção do CPC:

“Na linha cultural do CPC, o filme de 1964 pretendia ser exemplar: épico e pedagógico, lição de políti-ca e construção de heróis, lutadores, clara partição entre o bem e o mal, personagens funcionando maiscomo arquétipos do que como seres humanos reais. Em contraponto, o documentário nos coloca na pre-sença de criaturas de carne e osso, com dúvidas e indecisões, medos e esperanças, meditando sobre o

213 Estado de Minas, Caderno Dois, Ibidem.214 Ao final de seu artigo na Folha de São Paulo, Chauí reserva um “PS”: “Eduardo Coutinho precisa de 45 mi -lhões para transformar o documentário em filme comerciável. Seria bom se os que dispõem de fundos para apromoção da cultura oferecessem ao cineasta os meios que permitirão a um vasto público ver e rever sua obramagistral.” In: OHATA, Op. cit. p.459.215 Seu artigo inicia-se assim: “Quem vem acompanhando as lutas dos boias-frias de São Paulo, a degradaçãodos trabalhadores nordestinos nas “frentes de trabalho”, as previsões de gigantesca mortalidade infantil nocampo, há de indagar o que foi a propalada “modernização” da economia brasileira nos últimos vinte anos.”Idem. p.p.455-6.216 Ibidem.74

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passado e avaliando o presente. Ao filme épico-pedagógico sucedeu o documentário preciso, conciso edramático (...)” 217

Outra manifestação interessante de seu artigo é a crítica ao “público juvenil” presente

na projeção do documentário, que pouco entenderia a complexidade da realidade, pois teriam

assistido ao filme a procura de “reparação”:

“A complexidade real é, por vezes, insuportável para o público juvenil (...) que reclama apontando a“incoerência” de homens e mulheres que Coutinho não mais permitiu ficassem reduzidos a modelos efórmulas, próprios de quem possui a “linha justa” porque imagina conhecer “as leis necessárias dodesenvolvimento histórico”, perante as quais os seres humanos são apenas “suportes empíricos” de um“sentido inelutável”. (...) inconscientemente talvez, parte do público espere que o cineasta seja oexecutor da “vontade histórica”, que ocupe o lugar vago do demiurgo, do caudilho salvador, do messiasque redime um povo de sua própria história e anule o estilhaçamento de tantas vidas.”218

O conteúdo do incomodo ao “público juvenil” encerra, na verdade, uma crítica mais

profunda à concepções políticas e teorias historicamente ligadas “as esquerdas”. Apesar dessa

dissertação não produzir uma crítica profunda sobre as transformações do pensamento político

e filosófico de Chauí, é evidente que termos como “modelos e fórmulas”, “linha justa”, “as

leis necessárias do desenvolvimento histórico”, “suportes empíricos”, “sentido inelutável” e

“vontade histórica” são elementos de crítica, se não ao marxismo como teoria de

conhecimento válida, sem dúvida a suas correntes vulgares. Nesse sentido, uma crítica as

organizações políticas brasileiras que reivindicavam o marxismo. Dessa forma, Cabra

marcado para morrer é apontado como politicamente consciente – da crítica necessária aos

grupos e ideias equivocadas da esquerda – e esteticamente consciente – crítico ao modelo

CPCista e proponente de uma “nova estética” capaz de “ouvir o outro de classe”. Chauí

resume: “da epopeia ao drama documentado, dos arquétipos perfeitos à complexidade real, da

intenção pedagógica à percepção do outro como consciente de si.”219. Dessa forma, Chauí

insiste no caráter contraditória da realidade/história e no caráter revelador do documentário.220

Como comentado anteriormente, Bernardet possue obras de referência no debate sobre

o Cinema Novo, como Brasil em tempos de cinema e Cineastas e imagens do povo. Apesar de

não possuir um trabalho de folego sobre Cabra marcado, em um artigo de 1985 na Folha de

217 Idem. p.457.218 Idem. p.456-7.219 Idem, p.458.220 Crítica que caminha no mesmo sentido é o artigo de Paulo Paranágua, lançado na França no início de 1986:Um Homme marque pour mourir. O autor aponta: “[As imagens do Primeiro cabra] carregam os sinais de umaexpressão submetida aos imperativos edificantes do agitprop: hieratismo, idealização, esquematismo, mani-queísmo. (...) [Já a riqueza de Cabra marcado é a de poder] dar lugar assim a uma verdade plural, em processode perpétua definição, incessantemente questionada pelos pontos de vista e acontecimentos, enriquecida peladialética do passado e do presente confrontados, sem que nenhum desses momentos seja negado ou ocultado,75

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São Paulo lança uma primeira interpretação sobre o documentário mais completa e complexa

que a de Chauí. Entendendo o golpe militar como ruptura do projeto ideológico cultural pré-

64, que teria como fim a “lata do lixo da história” não fosse o Segundo cabra, Bernardet

propõem compreender Cabra marcado como um resgate dos “detritos de uma história

rompida, de uma história derrotada.”221 Como seria próprio de uma experiência de ruptura, a

retomada dessa história não se daria de forma coesa, como comenta Bernardet: “O fragmento

não é uma arbitrariedade estilística, mas é a própria forma da história derrotada, motivo pelo

qual, mesmo na busca da coerência e da significação, o caráter fragmentário não pode nunca

ser abandonado.”222 Uma história constituída por uma diversidade de estilos: pelos diversos

materiais que a compõem; pelas sequências de Elizabeth e dos camponeses cortadas e

distribuídas ao longo do filme; pelo neorrealismo do Primeiro cabra e a estética de

“documentário direto” e o tom de sensacionalismo de reportagem das entrevistas. Junto a

esses elementos, o documentário lançaria uma “ponte” sobre o projeto interrompido do

Primeiro cabra e sobre a própria história de família Teixeira: “A tarefa do espetáculo

consistirá em trabalhar com esses vestígios, desenterrá-los, organizá-los para construir uma

coerência – a ponte – sem que, no entanto, se perca a noção de fragmento.” 223

Além disso, o documentário abriria espaço apenas para duas linhas de personagens,

ambas oprimidas: Coutinho e seu projeto de 1964; Elizabeth, sua família e os camponeses.

Uma decisão clara de não mostrar personalidades políticas das classes dominantes. Entretanto,

um espaço de resgate repleto de “obstáculos” como os discursos dissonantes: o camponês

Brás Francisco nega as lutas do passado e agora se atem a preocupação da venda de seu sítio;

Mariano nega a experiência da “revolução” comentando que participa do filme apenas pela

“simpatia” e “bondade” de Coutinho; Elizabeth elogia a anistia de Figueiredo em dois

momentos ao longo do documentário.

Esses apontamentos de Bernardet caminham no sentido dos novos marcos estéticos

que as reportagens e o artigo de Chauí apontam, mas de maneira mais consistente e

aprofundada.224 De forma geral, Bernardet corrobora as leituras anteriores e traz novos

conciliando a fidelidade e o questionamento, a ética e a estética, e se expondo ao mesmo tempo com a aparen -te simplicidade de um processo espontâneo de criação, de um work in progress. (...) O filme de Coutinho devol-ve a palavra aos camponeses, sem demagogia, sem complacência, sem tutela.” Idem, p.479-83221 Idem, p.466.222 Idem, p.470.223 Ibidem.224 Faço essa crítica levando em consideração não só a qualidade da análise de Bernardet, mas também a limi -tação do formato próprio ao artigo de jornal o qual Chauí escreve. Deve-se ter em vista também a necessidade76

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elementos sobre a inovação e singularidade que Cabra marcado carregaria. Nesse sentido, o

compreende também dentro das “tradições estéticas” que compõem seu todo fragmentado: o

uso de materiais diversos, o processo de montagem que fragmenta para dar unidade temática e

narrativa, a influência do “cinema direto”, a influência do sensacionalismo de reportagens

jornalísticas. Um olhar para “dentro da obra” que é muitas vezes inconsistente nos trabalhos

anteriores, principalmente nos que se preocupam mais com a negação da experiência CPCista

do que a análise estética do documentário atual.

Em relação a esse balanço, Bernardet o aponta nas passagens: “O Cabra/64 tem algo

de neorrealismo temperado com didatismo: seu hieratismo lembra o episódio Pedreira de São

Diogo”; “(…) o autor expondo-se em primeiro plano [em Cabra/84], com tanta importância

quanto seu personagem, era impensável na época do Cabra/64”. Afirmações, que mesmo em

uma linguagem mais branda, o aproximam das leituras anteriores: o CPC como signo de

“didatismo” e “hieratismo” e Cabra marcado como inovação estética. Entretanto, sem um

balanço tão claro e categórico quanto os projetos “das esquerdas”.

Ademais, Bernardet possui a singularidade de historicizar e situar o documentário em

um contexto mais amplo de produção. O projeto de Cabra marcado – “jogar uma ponte por

cima da ruptura para dar sentido ao passado e vivificar o presente” – seria na verdade, parte

de um projeto coletivo já manifesto ao menos há dez anos, que se iniciaria com o filme A

queda 225 e estaria presente também em Eles não usam black-tie226 e Memórias do cárcere227.

Essas obras utilizariam respectivamente, cenas do longa Os fuzis e obras literárias

homônimas, assegurando um passado às obras, assim como um “novo futuro” preenchido

com questões da sua contemporaneidade. Entretanto, o documentário utilizaria as obras de

referência não apenas como um dos elementos na construção de sua narrativa sobre “o povo”:

“ (...) a obra articuladora não é um dos elementos da ficção, mas é o próprio filme em si.

Nesse processo, é a partir de sua produção artística que intelectual se articula com povo.“ 228

Além disso, Cabra marcado seria o primeiro a manter um caráter fragmentário em sua

narrativa, não tendo compromisso ideológico e didático sobre certa representação histórica,

como nos outros filmes: “obras que têm antes como função ilustrar uma concepção que lhes é

da “propaganda” no artigo de Chaui que objetivava publicizar o documentário de Coutinho e auxiliar na coletade recursos para a ampliação e comercialização do filme.225 Ruy Guerra e Nelson Xavier, 1976.226 Leon Hirszman, 1981.227 Nelson Pereira dos Santos, 1984.228 OHATA, Op. cit. p.469.77

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anterior.”229 Sua concepção fica clara quando o crítico exemplifica sua ideia fazendo uma

comparação entre cenas de Memórias do cárcere e o documentário:

“A grande diferença, a meu ver, é que em Memórias a significação da cena existe antes da cena, a cenajá nasce portadora da significação e tem como função exibir a metáfora, a cena é dominada pelo sentidometafórico: enquanto em Cabra a cena é antes descrita e a metáfora brota dela; em vez de se impor, elabrota frágil sem assumir o caráter da mensagem fechada.” 230

Dessa forma, se positiva Cabra marcado a partir de sua “nova proposta”, teorizada

como “mensagem aberta”, “metáfora que brota”, “ponte de fragmentos”, sendo a primeira

obra a dar um passo além da autocrítica levada a cabo pelos cinema novistas, que ainda se

perdiam no “caráter didático e dogmático” da “mensagem a transmitir” e na “ilustração de

concepções anteriores”.

Uma última leitura necessária a essa análise é o artigo de Roberto Schwarz publicado

no início de 1985, Fio da meada. Como o próprio título sugere, ele corrobora a ideia do

documentário como filme de memória, que restabeleceria através do resgate de Elizabeth, dos

camponeses e da história do Primeiro cabra, a continuidade das lutas do movimento popular

anterior a 1964: “Ou ainda, o cinema engajado e a luta popular reemergem juntos. Ora, nada é

mais comovente que reatar um fio rompido, completar um projeto truncado, reaver uma

identidade perdida, resistir ao terror e lhe sobreviver.”231 Schwarz explica metaforicamente

que atar o fio rompido não é estabelecer uma simples continuidade, mas compreender as

transformações que a ruptura do golpe trouxe e o desenrolar da história de vida e luta dos

camponeses e de Coutinho. ”Acontece que os fiéis, quando se reencontram depois da

provação, não são os mesmos do começo (...) Sob as aparências do reencontro o que existe

são os enigmas da situação nova, e os da antiga, que pedem reconsideração.” 232 Em relação

ao balanço da arte engajada o historiador aponta uma perspectiva menos categórica,

historicizando o contexto político e apontando “grandes momentos” da produção

cinematográfica:

“(...) a justiça e simplicidade da reivindicação popular emprestavam relevância a vida estudantil e acultura, que por sua vez garantiriam ressonância nacional, admiração e reconhecimento civilizado à lutados pobres. A complementaridade destas aspirações é objetiva e produziu grandes momentos, quepodem ser vistos na parte do filme realizada em 1962: a estupenda dignidade dos camponeses, asingeleza trágica na apresentação dos conflitos de classe, o reconhecimento de tipos não burgueses debeleza etc. São momentos, aliás, que mostram como é tola, esteticamente, a doutrina antiengajadaatual.” 233

229 Idem. p.473.230 Idem. p.475.231 Idem. p.460.232 Ibidem.78

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Em relação aos projetos das esquerdas, Schwarz esmiúça uma crítica a “revolução

com estímulo de cima”, mas mediada pela historicidade do momento social – que movia seus

atores políticos - e pela importância das “formas culturais novas” pelos quais passaria uma

produção “não mercantil”:

“Hoje parece óbvio que aquela aliança não tinha futuro político e que a revolução com estímulo de cimasó podia acabar mal. No entanto ela canalizou esperanças reais, de que o filme dá notícia e nas quais sepressentem outras formas de sociedade. A relação entre assunto, atores, situação local e gente de cinemanão é evidentemente de ordem mercantil, e aponta para formas culturais novas. Não se pode dizertambém que o diretor se quisesse expressar individualmente: a sua arte trata de apurar a beleza designificados coletivos. Tem sentido no caso, falar em autor? O filme não é documentário, pois tematores, mas o seu assunto é a tal ponto o destino deles que não se pode tampouco dizer que seja ficção.”234

Esse último apontamento diz respeito à relação intelectual/povo, e não corroboram as

leituras anteriores, pois relativiza a ideia da produção artística CPCista como fruto apenas da

expressão individual de seu autor. Para além disso, o “neorrealismo” CPCista, devido as suas

“novas relações de produção” e seus camponeses/atores carregaria um estatuto de dubiedade,

não sendo a filmagem da “vida dos camponeses” (documentário), nem seria um enredo sobre

a luta do movimento camponês descolado dessa realidade e dessa experiência (uma ficção).235

O crítico aponta na sequência: (...)“o filme mostra quanto os oprimidos podem dar aos

intelectuais, e vice-versa (não esqueço as objeções que se podem fazer a esse ponto de vista).

São perspectivas que existiram e se materializaram culturalmente, sem prejuízo da grande

parte de ilusão que comportavam.”236 Nesse sentido, me parece que Schwarz aponta um ponto

de contato entre o “intelectual” e o “povo” nessa experiência não “tão superficial”,

“autoritário” ou unilateral como as leituras da historiografia consolidada e da ideia de

“circuito fechada” debatida anteriormente. Mas também não deixa de apontar a necessidade

de crítica as possíveis posturas equivocadas e ilusórias do intelectual diante do “povo”.

Ao analisar o novo Cabra marcado, Schwarz partirá também da necessidade de

historicizar seu momento, onde não há as mesmas condições governamentais do populismo,233 Outro trecho que corrobora esse sentido é: “A ideia do primeiro filme nasce durante a viagem da UNE volan-te ao Nordeste, em 1962, no quadro dos CPC e MPC, e traz a riqueza daquele momento extraordinário. Sob osigno da renovação cultural, aliavam-se a disponibilidade dos estudantes e as formas mais dramáticas da luta declasses, que no Brasil, devido a herança escravista, costumavam e costumam se travar fora do alcance da opini -ão pública.” p.p.460-1.234 Idem. p.461.235 Sem dúvida, um debate teórico não deve resumir o documentário à ausência de atores. Utilizo metaforica-mente aqui a oposição documentário e ficção feita por Schwarz, compreendendo-a como a oposição entre umafilmagem “direta” da vida das pessoas (documentário) e uma representação de atores a partir de um roteiro“externo” a vida das pessoas (a ficção). O debate conceitual contemporâneo sobre os limites entre o documen-tário e a ficção não perpassa pela simplicidade dessa oposição.236 Ibidem.79

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nem a mesma efervescência social. Além disso, não se trata mais do encontro da luta

camponesa e suas lideranças com o movimento estudantil através do cinema em um momento

de radicalização político-ideológica:

“Agora trata-se da obstinação e solidariedade de um indivíduo, armado de uma câmera, que em condi-ção de degelo político ajuda outra pessoa a voltar à existência legal, o que além do mais lhe permite completar o antigo filme. (...) Onde em 1962 havia a redefinição do cinema e, por extensão, da produ-ção cultural no quadro do realinhamento das alianças de classe no país, está agora a potência social da filmagem (“O senhor é da Globo?”) entrando pela vida particular das pessoas – nesse caso para bem.”237

Nesse trecho, Schwarz caracteriza a “ida ao povo” não como um projeto desligado de

bases sociais junto a uma ideia “idealista” e “dogmática”, mas como um momento história de

possibilidade de redefinição do cinema e da produção cultural. Em minhas palavras, de

deslocamentos e redefinições da função social do cinema/cultura, que se expressaria, ainda

que inicialmente, nas “novas relações de produção” que surgiam do contato entre artistas e

lideranças políticas (no caso do CPC, lideranças estudantis e populares). A partir de Schwarz,

articulando os debates do capítulo anterior, pode-se compreender o desenrolar desse projeto

que se romperia com o golpe militar e a modernização conservadora, em um contexto de

consolidação das telecomunicações e da indústria de massa no Brasil. Nesse sentido, se agora

a retomada do projeto se faz a partir da “solidariedade de um individuo” – e não mais da

aliança estudantil-artística do CPC da UNE – a “potência social da filmagem” é muito maior,

em um país unificado pelos meios de comunicação – “O senhor é da Globo?” – e no qual a

produção cinematográfica tem potência para abarcar grandes camadas sociais.

Em relação às características estéticas e metodológicas gerais do filme, Schwarz

aponta outros elementos que vão ao encontro das leituras anteriores: uma impressão de

“vitalidade e esperança” estaria contida nas imagens do documentário devido a continuidade

da vida popular, ao sentimento de fim da ditadura, a simpatia e inteligência dos nordestinos, a

ausência das classes dominantes. Devido à experiência concreta com o latifúndio e as

perseguições, os depoimentos de camponeses como Elizabeth possuiriam uma espécie de

objetividade diante dos estragos e maldades: “Um saber tácito, de quem viu a onça, sem

propaganda ou doutrina, que dá uma rara versão da luta de classes, limpa de oficialismo de

esquerda.” 238 Nesse sentido, Schwarz elogia a “câmera atenta e documentária” de Coutinho,

“homenagem à clareza da luta popular”, assim como reconhece a qualidade do enredo que não

deixa em aberto o sofrimento das entrevistas – ao gosto da exploração das emoções alheias –237 Idem. p.463.238 Idem. p.464.80

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mas as situa no marco do sofrimento da perseguição e diáspora da família Teixeira. Essa

leitura positiva a “câmera atenta” de Coutinho, entretanto, o faz junto à “qualidades” dos

depoimentos próprios do “saber tácito sem oficialismos”, compreendendo as “qualidades”

mais como parte de uma totalidade do encontro do que propriamente determinada pela

“metodologia” do cineasta.

81

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Capítulo 3 – A análise de Cabra marcado para morrer

Cabra marcado para morrer pode ser entendido como um filme de "resgates": de um

projeto artístico – uma visita ao Cabra/64; da vida e história dos camponeses e seus

movimentos de luta - para quem historicamente se nega “a voz”; de Elizabeth Teixeira - a

quem o golpe destruiu a família e reservou a vida clandestina. Como exposto anteriormente,

Cabra marcado como filme de “memória” e de “resgate” é um lugar comum nas análises

historiográficas. Entretanto, longe de ser forjar um discurso formal, longínquo ou institucional

em relação aos “vencidos da história”, o que Coutinho faz é utilizar seu ofício para reabilitar

socialmente Elizabeth Teixeira, tanto pela sua atenta negociação com os protagonistas dessa

história, como pelo impacto de sua obra acabada, visitada aqui a luz dos jornais e da recepção

de Cabra marcado na sociedade. A intervenção de Coutinho na vida clandestina de Elizabeth,

escondido sob o nome de Marta Maria, revela para seus amigos e pares seu passado,

reabilitando-a no nível da experiência comunitária. Essas imagens são a matéria-prima

essencial do documentário, que uma vez finalizado e divulgado contribui na luta pela

reabilitação na sociedade dos que tiveram as vidas interrompidas pelo golpe de 1964.

3.1 O projetor ao entardecer

Cena 1 - 00:00:27 239 Cena 2 – 00:00:31

Os créditos iniciais anunciam em letras garrafais: “Mapa apresenta”, “Cabra marcado

para morrer”, “Um filme de Eduardo Coutinho”. Corte para a primeira cena. Uma colina ao

entardecer, um céu azul escuro, uma silhueta de sol se ponto. A montanha cobre a tela com

dois terços de breu. A cena não consolida seu contorno naturalista devido ao tremer da

239 As cenas e minutagem foram retiradas da versão restaurada lançada em 2014.82

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câmera, o acorde dissonante de sintetizador e a antena “espinha de peixe” cruzando o céu.

Uma luz se acende, mas pouco revela. Finalmente refletores iluminam o espaço. Um grupo de

pessoas se movimenta em um alpendre de uma casa no campo. Corte. Plano médio do centro

do alpendre. Dois homens preparam um projetor para uma exibição de cinema. Corte final.240

A sequência de vinte e dois segundos pode parecer despretensiosa ou mesmo pouco

original. Entretanto, ela carrega um enorme simbolismo e nos servirá de metáfora para

compreender a importância desse filme. Quando pensamos na projeção de um filme, nossa

memória pode ser tomada pela caricatura de um domingo em um “shopping center”. Cenas

deslumbrantes produzidas com as mais avançadas tecnologias e projetadas nas mais modernas

salas para o nosso “lazer”. Quando as luzes se acendem, todos seguem para suas casas com

seus pares. Entretanto, bem diferente é a experiência do cinema visitada aqui, mais próxima

de uma “sessão itinerante” pelo interior do país. Essas sessões costumam ocorrer ao anoitecer

e pela sua excepcionalidade proporcionam uma experiência coletiva e singular por onde

passam. Assim também é com os vinte dois segundos iniciais de Cabra marcado para morrer,

que além de metaforizar a experiência comunitária documentada, simboliza algumas

potencialidades do cinema, exploradas ao longo do filme: revelar, sensibilizar, provocar

identificação e mobilizar. É a partir desse olhar que pretende-se analisar Cabra marcado para

morrer e compreender junto a ele as transformações no cinema e na sociedade brasileira.

3.2 Contextualizando: História da UNE Volante e o Primeiro cabra

Cena 3 – 00:00:40 Cena 4 – 00:00:56

240 Cena 1 – 00:00:27 e Cena 2 – 00:00:3183

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Cena 5 - 00:01:27 Cena 6 – 00:02:05

Cena 7 – 00:05:31 Cena 8 – 00:06:34

Cena 9 – 00:07:16 Cena 10 – 00:07:36

Após a rápida cena do projetor, Cabra marcado apresenta um bloco temático241 com o

intuito de contar a experiência na UNE-Volante e do Primeiro cabra, assim como apresentar o

contexto social e político do início da década de 1960. Sobre imagens feitas pela equipe da

241 Para minha análise dividi o filme em dez “blocos temáticos” os quais também chamo de “sequências”. Essadivisão segue a cronologia do documentário e identifica-se a partir de “temas” comuns tratados em determina-do espaço de tempo. Ela não se submete rigidamente a decupagem técnica do roteiro ou da montagem do fil -me. Ela é arbitrária e por isso subordina-se a minha proposta de análise fílmica, sendo válidas outras propostasde divisões do documentário.84

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UNE-volante em 1962 (sob a direção de Coutinho)242 se sobrepõem a música “A canção do

subdesenvolvido” 243. Em um plano geral244 de uma feira popular, trabalhadores olham para a

câmera. Ao fundo dois prédios com os slogans “Texaco” e “Esso”. Gullar assere: “A imagem

da miséria contrastada com a presença do imperialismo, essa era uma tendência típica na

cultura daquele tempo (...)”. A voz-over de Coutinho identifica as próximas imagens: “Como

integrante do CPC e responsável por essas imagens, também paguei meu tributo ao

nacionalismo da época, indo filmar em Alagoas um campo de Petróleo que a Petrobras

começava a explorar”.

Nota-se nessas imagens a necessidade de "documentar" o modo de vida das classes

populares: as casas de palafita, os garotos catando caranguejos, trabalhadores na feira popular.

Com exceção de um trabalhador da Petrobras, ao menos na montagem, há a ausência de

entrevistas. As imagens da UNE Volante, assim como a “Canção do subdesenvolvido”, são

apresentadas como “vestígios históricos”, sendo que isso se demonstra pela ausência de sua

“voz” e pela forma como é apresentada pela voz-over, que as liga com o contexto social de

sua produção: o anti-imperialismo e o nacionalismo da época. De fato, analisando sobre esse

viés, a imagem da feira popular contraposta aos prédios das petroleiras estrangeiras245 carrega

um importante valor simbólico daqueles anos, pois constrói imageticamente a leitura dos

círculos da esquerda no qual esse projeto está envolvido: a contradição entre as condições de

vida do “povo” e o poder econômico e tecnológico das empresas estrangeiras. Nota-se ai

também a contraposição com a força da ideia desenvolvimentista ao redor da busca de

soberania enérgica através da Petrobras.

Entretanto, é importante apontar que a construção imagem/voz não apresenta crítica

aprofundada, problematizadora ou conclusiva sobre as transformações e os projetos

econômicos e políticos daqueles anos. Nesse sentido, como já pontuado, as imagens adquirem

um caráter majoritariamente de "vestígios históricos", no sentido de "exibir", "expor" certa

época. Nota-se também a ausência de comentário sobre os atributos estéticas das imagens.

Tendo em vista as críticas categóricas de Coutinho sobre a estética “nacional popular” visitada

anteriormente, e compreendendo que a obra de arte não é uma transposição direta das ideias

de seu autor, é possível afirmar que a crítica ao “didatismo” CPCista aparecem de maneira242 Cena 3 – 00:00:40 e Cena 4 – 00:00:56243 A canção de Carlos Lyra foi lançada no LP produzido pelo CPC, “O povo canta”.244 Para uma simplificação na análise utilizo apenas três denominações de planos: Plano geral, Plano médio ePrimeiro plano.245 Cena 5 – 00:01:27.85

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menos categórica no documentário de Coutinho. As asserções da voz-over - “tendência típica

na cultura daquele tempo”. “tributo ao nacionalismo da época” – se aproximam mais da

historicização das imagens do que propriamente de um julgamento de valor negativo. Nesse

sentido, aponta as imagens como frutos “da época”, reforçando a ideia de “vestígio histórico”

dessas imagens. Uma avaliação das características estéticas do Primeiro cabra não são

retomadas ao longo do documentário, diferentemente da memória de Coutinho sobre o

significado político da UNE-Volante, analisado no capítulo anterior.

Na continuidade, é narrada a chegada da UNE volante na Paraíba em Abril de 1962.

Corte para manchetes de jornais: “UNE- Volante sábado em João Pessoa.” Na mesma página

se lê: “A morte de João Pedro”.246 Coutinho comenta a morte do líder camponês e os protestos

organizados pela Liga de Sapé247 em repúdio, bem como seu primeiro contato com Elizabeth

Teixeira de onde surgiria a ideia de filmar Cabra marcado. Gullar contextualiza: “Como a

sindicalização rural era um direito inexistente na prática, os trabalhadores rurais encontraram

nas ligas, o único meio legal para canalizar suas reivindicações”.

Uma questão que aparece nessa sequência e que se confirmará ao longo do

documentário, é a diferença no uso da voz over de Coutinho e de Gullar. Há uma clara

diferença na função e o lugar que elas ocupam. Gullar disserta sobre os “fatos históricos” que

perpassam o filme como o contexto social da época e o que ocorre nas filmagens. Também é

responsável por sínteses e conclusões, como na passagem apontada, em que levanta as causas

da mobilização social no campo passar pelas Ligas Camponesas. Na voz de Coutinho também

encontramos essas características, entretanto, elas carregam majoritariamente um peso da

experiência vivida: quando comenta passagens históricas se inclui como sujeito que viveu

aquela experiência. A sequência demonstra isso: Coutinho narra seu encontro com Elizabeth

Teixeira e seus filhos, colocando sua afetividade e seu protagonismo naquele encontro. Já

Gullar, assere sobre os detalhes de como a filmagem se deu. De diferentes formas e

intensidades isso ocorrerá ao longo do filme, mas sempre mantendo o caráter de vivência por

parte de Coutinho. 248

A utilização de jornais e fotos da época é uma tônica no documentário, principalmente

nos momentos em que se fala sobre os acontecimentos entre 1962 e 1964. Coutinho utiliza246 Cena 6 – 00:02:05247 Sapé é um povoado na região de São Sebastião, Alagoas. A Liga de Sapé era a maior que existia na época,sendo seu nome de registro Associação de Trabalhadores Agrícolas de Sapé.248 Um terceiro narrador consta nos créditos do documentário e assere apenas em um momento do filme. Suafunção será debatida nesse trecho.86

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esse recurso na continuidade para contar os conflitos por terra na região de Sapé no início de

1964 e a necessidade de mudar as locações de seu filme para o Engenho Galiléia em

Pernambuco. A apresentação da história de Galiléia e da preparação para as filmagens ocorre

sobre as imagens do Primeiro cabra, uma forma de montagem constante no documentário. 249

As imagens de 1964 são utilizadas como representação ficcional da história contada por

Coutinho. Esse uso se assemelha com a função original dessas imagens, que narrariam à

história da morte de João Pedro Teixeira e se diferenciam na forma como são apresentadas as

imagens da UNE Volante - “vestígios” de certa época. Cabe ressaltar que essas diferentes

formas de “uso da imagem” são parte da escolha do cineasta de como montar seu “material

bruto” e dar vida a sua narrativa. Se esse uso não esvazia o caráter histórico que as imagens

da UNE Volante e do Primeiro cabra possuem - imagens inclusive que podem ser analisadas

fora do contexto de Cabra marcado250 – é certo que delimita uma função específica na

narrativa do documentário.

Na continuidade, o documentário apresenta o desfecho das filmagens em 1964. São

apresentadas três tomadas consecutivas de uma mesma cena do Primeiro cabra, na qual

empregados do latifúndio intimidam uma família camponesa em frente a sua casa. A banda

sonora imprimi tensão a cena: o ponteiro de um relógio, uma respiração ofegante e um

estampido.251 A voz-over narra a interrupção do projeto trinta e cinco dias após o início de

suas filmagens. Com o golpe, o exército invade a região, prende camponeses, parte da equipe

de filmagem e equipamentos cinematográficos. Corte para o “relatório de película” no qual se

encontra datas de envio de material para a revelação em um laboratório do Rio de Janeiro.

Oito fotos de cena guardadas por um membro da equipe são apresentadas e também um

exemplar do roteiro, recuperado pela advogada das Ligas Camponesas. Corte para a primeira

sequência do filme: o projetor ao ar livre sendo ajustado para uma exibição.

Um apontamento que essa sequência suscita diz respeito ao uso da imprensa, de fotos

e de outras “fontes” escritas no documentário. 252 Esses recursos são utilizados para demarcar

249 Cena 7 – 00:05:31250 Caminha nesse sentido um apontamento do trabalho de Altmann presente na bibliografia: “Dentre as sequên-cias do Cabra filmado em 64 há imagens que hoje seriam interpretadas como nítidas manifestações de interes-se e registro etnográficos. Destacam-se cenas como as da fabricação de farinha de mandioca, de dona Elizabethe seus filhos cantando um côco e de homens construindo coletivamente uma casa, sugerindo mutirão”. ALT-MANN, Eliska. “Memórias de um Cabra marcado pelo cinema: representações de um Brasil rural”. Campos.5(2):87-105. 2004. p.93.251 Cena 8 – 00:06:34.252 Cena 9 – 00:07:16 e Cena 10 – 00:07:36.87

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cronologicamente os acontecimentos, além de atestarem a “veracidade” da experiência

histórica. Isso se demonstra quando a câmera focaliza duas reportagens no mesmo jornal,

demarcando a simultaneidade da chegada da UNE Volante à Pernambuco e a morte de João

Pedro Teixeira.253 Na sequência, as outras manchetes, fotos e documentos textuais

apresentadas revestem de veracidade a voz over e servem para apresentar a cronologia dos

acontecimentos, em uma linguagem muito próxima do “documentário clássico” e dos

noticiários jornalísticos.254 Dessa forma, se comenta sobre o roteiro resgatado e sua imagem é

apresentada apenas para corroborar a narrativa, sendo que seu “conteúdo” pouco aparece e

não influi na narrativa. Essa função nos jornais e nas fontes escritas fica explicita também se

atentarmos para o fato de que a montagem ligeira nos dá a oportunidade de ler apenas parte

das “fontes” (como as manchetes e datas dos jornais e as datas do relatório de revelação),

cabendo a essas imagens apenas a função de dar veracidade à voz over. A utilização dessas

fontes se modifica ao longo do documentário, como será demonstrada a frente.

Por fim, cabe situar esse “bloco temático” no contexto geral do filme. Como se vê essa

sequência tem como principal objetivo trazer elementos de inteligibilidade ao filme, narrando

e contextualizando a tentativa que foi o Primeiro cabra. O projetor cinematográfico, iniciando

e encerrando a sequência, apresenta seu conteúdo metafórico e concreto de intervenção: é ele

o aparelho que permite não se perder o fio de continuidade entre a experiência da década de

1960 e o momento da realização do documentário, entre o passado e o presente. O projetor

cinematográfica/cinema a partir daqui marca um uso para além dos “vestígios” ou da

“ficionalização” de um contexto passado, o de auxiliador na identificação pessoal e coletiva,

impulsionador de memórias. A partir daqui, essas formas de “uso” das imagens, dos

testemunhos e das “fontes” sofrem tencionamentos e ganham outros contornos, entretanto,

sem superar totalmente seus usos como “vestígios” ou cenas que representam a narrativa da

voz over. Apenas atento para as diferentes formas como as imagens dos anos de 1960 são

apresentadas, bem como suas semelhanças com certas tradições de linguagem - o

“documentário clássico” e o as reportagem jornalística, - no sentido da “diversidade

estilística” na composição de Cabra, visitada no capítulo anterior na crítica de Bernardet.

253 Cena 6 – 00:02:05

254 Fernão Ramos explicita as características do “documentário clássico”: “No documentário clássico, até o finaldos anos 1950, predomina a locução fora-de-campo (a voz over ou voz de Deus). É uma voz que possui sabersobre o mundo, enunciada, em geral, por meio de tonalidade grandiloquentes. (...)” RAMOS, Fernão Pessoa.Mas afinal... o que é mesmo documentário? São Paulo: Editora Senac São Paulo. 2008. p.23.88

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3.3 A retomada de Cabra marcado para morrer: uma nova intenção

Cena 11 – 00:10:37 Cena 12 – 00:11:15

Cena 13 – 00:13:11

Superada a contextualização do Primeiro cabra, Coutinho explicitará os objetivos de

seu documentário e partirá em busca do primeiro contato com os camponeses de Galiléia. A

voz over de Coutinho assere sobre uma longa panorâmica em cores do Engenho da Galiléia:

“Fevereiro de 1981. Dezessete anos depois voltei a Galiléia para completar o filme do modo que fosse possível. Não havia um roteiro prévio, mas apenas a ideia de tentar encontrar os camponeses que havi-am trabalhado em Cabra marcado para morrer. Queria retomar nosso contato através de depoimentos sobre o passado, incluindo os fatos ligados à experiência da filmagem interrompida, a história real da vida de João Pedro, a luta de Sapé, a luta de Galiléia e também a trajetória de cada um dos participantes daquela época até hoje.”

Objetivos expostos, Coutinho inicia a primeira entrevista do documentário com João

Virgínio da Silva, um dos dois camponeses ainda vivos que participaram do processo de

desapropriação na Galiléia. O camponês conta sua história em frente a sua casa ao lado de

familiares e amigos.255 Como veremos no decorrer do documentário esse formato coletivo das

entrevistas é constante, atribuindo um caráter de experiência “comunitário” aos depoimentos.

255 Cena 11 – 00:10:3789

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Em sua entrevista João Virgínio conta como foi às primeiras reuniões para a formação

da Sociedade Mortuária Beneficente de Galiléia. Sobre imagens dos camponeses na época a

voz over de Gullar complementa: “Galiléia era um Engenho de Fogo morto, dividido em

pequenas parcelas de terra. Nelas viviam 150 famílias de foreiros que cultivavam lavoura de

subsistência (...). O aumento do forro também foi uma das causas da fundação da liga.” Na

continuidade, João Virgínio conta a importância de Bem Zezé na formação da Sociedade

agrícola e pecuária dos plantadores de Pernambuco e a repressão à sindicalização rural

naqueles anos: “Que se botasse o nome de sindicato naquela época a gente era naufragado, a

gente era morto.” Gullar novamente intervém: “José Francisco de Souza, o Zezé da Galiléia,

homem muito respeitado e que tinha sido administrador do engenho durante mais de trinta

anos, foi eleito presidente da liga. O proprietário de Galiléia decidiu expulsar todos seus

moradores quando percebeu que a Liga não se preocupava apenas com os mortos (...)” Jornais

da época anunciam: “Mais de 100 famílias camponesas despedidas do Engenho Galiléia”;

“Lutas contra o aumento do forro”.256 Sobre imagens das mobilizações camponesas na região,

Virgínio conta a luta pela desapropriação do engenho e a intervenção do recém-escolhido

advogado das Ligas camponesas, Francisco Julião.

Interessante notar que a entrevista de Virgínio vem mediada pelos complementos e

explicações de Gullar. Se a voz over em alguns momentos traz elementos novos, em outros

repete as informações sistematizadas do relato de Virgínio para melhor compreensão. Dessa

forma, a voz over caminha no sentido mencionado anteriormente: um narrador impessoal que

interfere, complementa e ajuda o relato a ter inteligibilidade narrativa e histórica. Dessa

forma, a voz over interfere construindo junto à “fala” e às “fontes históricas” uma narrativa

histórica. Por fim, é interessante notar que o uso das manchetes de jornal e fotos aqui é similar

ao da sequência anterior, servindo para demarcar cronologicamente os acontecimentos,

“ilustrar o passado” e dar veracidade aos “fatos históricos”.

Cabe aqui uma ressalva: é preciso compreender a fala de Virginio junto a interação de

Coutinho e sua montagem também como “agente” dentro dessa narrativa. Leituras como a de

Menezes apresentada aqui, caminham no sentido da valorização da “manipulação” em

detrimento da “realidade do encontro”, deixando de lado que as entrevistas por si só

representam “vestígios” e interferem na narrativa fílmica, muitas vezes independente da

vontade ou das necessidades do cineasta. É o que se demonstra no momento final da

256 Cena 12 – 00:11:1590

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entrevista de Virginio, na qual o camponês comenta o debate no parlamento em relação a

desapropriação do Engenho Galiléia:

“Um gritava: minha gente, não vamos fazer a desapropriação de Galiléia, porque não é desapropriaruma Galiléia, é desapropriar várias Galiléias, porque dai a vante pegará fogo dentro do Brasil, de pontaa ponta, que ai o pessoal fica viciado, tá vendo, vão sacaniza e vão pedir aos poderes públicos para de-sapropriar as propriedades. Mas felizmente agente ganhemo, os deputados votou com a gente.”

A “fala” de Virginio veio a público pela intervenção de Coutinho – suas escolhas ao

longo da entrevista e da montagem – entretanto, carrega consigo o testemunho e as memórias

do camponês, não sendo, obviamente, uma “fala imparcial” ou “espontânea”, mas

influenciada pelo encontro com o cineasta. Esse trecho da entrevista de Virginio pode ser

tomado como “vestígio” pelo historiador para a reconstrução da história das Ligas

Camponesas, por exemplo, sendo ela antes uma “fala” mediada pelo encontro e pela

montagem, do que propriamente uma “fala” do cineasta. Nesse sentido, o testemunho do

camponês aponta importantes elementos para compreender a história social e política da

época, como a polarização das forças políticas em torno do debate da reforma agrária, bem

como medo das elites políticas e proprietários rurais da generalização dos processos de

expropriação. Esse “caráter de vestígio do encontro” se apresenta independente dos “efeitos

de verdade” de determinada linguagem cinematográfica, mas sem dúvida, a análise fílmica e

histórica deve considerar as “estratégias de verdade” para não atribuir a certa tradição de

representação o estatuto de “emanação do verdadeiro”.

Na última tomada dessa sequência, segue-se o primeiro plano de um camponês

apresentando sua carteira de associado da “Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de

Pernambuco (Liga Camponesa). 1955”. 257 Na primeira página sua foto, na seguinte os

atestados de contribuição. Independente de como essa cena surge, se por um pedido de

Coutinho, ou pela apresentação espontânea do agricultor de seu documento, o fato é que ele se

coloca na narrativa como “vestígio do passado” e “documento” que atesta a história contada.

Seguindo a função comentada, a voz over de Gullar assere o desfecho: “A desapropriação por

interesse social de Galiléia foi feita em dezembro de 1959 através de justa e prévia

indenização em dinheiro como determinava a constituição. Galiléia tornou-se então um

símbolo da força do movimento camponês, mas até hoje os galileus não tem a escritura de

suas terras.” Esse trecho, mesmo mesclando o discurso sobre o passado com depoimentos da

atualidade, ainda dá contornos de grande importância para a voz over como organizadora das

257 Cena 13 – 00:13:11.91

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falas e da “narrativa histórica”. O jornal e a carteira de associado se colocam como

“vestígios” e “atestadores” da história.

3.4 A projeção para os camponeses em Galiléia

Cena 14 – 00:15:00 Cena 15 – 00:15:33

Cena 16 – 00:16:30 Cena 17 – 00:17:25

Cena 18 – 00:19:35 Cena 19 – 00:21:02

Esse bloco temático visita a noite de projeção das cenas do Primeiro cabra para a

comunidade de Galiléia, assim como as entrevistas dos camponeses sobre o filme. No

92

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alpendre mostrado na cena inicial do documentário, se encontra um projetor e os moradores

da região. Os atores do filme são os “convidados especiais para a projeção”. A voz over de

Coutinho apresenta seus conhecidos – José Daniel do Nascimento, Brás Francisco, Bia e João

Mariano. Plano médio da frente do projetor se acendendo. 258 Corte. Panorâmica partindo da

tela de projeção e percorrendo os espectadores. Coutinho explica em over: “O material foi

mostrado exatamente como tinha sido filmado, com cenas fora de ordem, com cenas

incompletas, cenas repetidas, claquete, etc.” As cenas de 1964 são apresentadas em

contraposição as reações do público, que identificam os camponeses nas imagens. É possível

apontar a fala de Coutinho sobre as imagens no sentido de legitimação da “captação do real”

quando faz a ressalva sobre a “não manipulação” do material bruto – “mostrado exatamente

como tinha sido filmado”. Além disso, a metáfora do poder do cinema vem à tona na

montagem do cineasta: o projetor aparece sendo manipulado e há um close de seu acender em

contraposição ao olhar atento e ansioso dos espectadores259, apontando o cinema também

como prática interventora na realidade. Nesse sentido, se explicita seu auxilio na retomada do

passado - através da projeção de “vestígios” - e na criação de uma identidade coletiva e

pessoal na atualidade. Essa metodologia se desenrolará ao longo de todo o documentário,

também envolvendo a apresentação de fotos e a reprodução de entrevistas.

Sobre essa cena da projeção Coutinho assere em over: “O que mais despertava o

interesse dos Galileus era a identificação dos participantes da filmagem dezessete anos mais

moços.”. O camponês Zé Daniel é identificado pelos expectadores260 e a voz over de Gullar

comenta: “Zé Daniel ainda vive em Galiléia. Além de ator, sua casa também foi utilizada

como principal locação do filme. A casa de João Pedro.” Essa passagem demonstra uma

diferença na utilização da voz over já comentada no filme. Tanto Coutinho como Gullar

asserem sobre acontecimentos históricos e questões que estão para além dos contextos

imediatos das imagens captadas, e dessa forma, constroem junto às entrevistas, imagens,

jornais um determinado discurso. Entretanto, Coutinho comenta constantemente de um lugar

próximo da experiência pessoal e sentimental dos camponeses, enquanto a voz de Gullar

majoritariamente mantém-se atrelado a questões gerais ou acontecimentos históricos e seus

desenvolvimentos.

Na sequência do documentário, Zé Daniel é entrevistado após sua identificação pelos

258 Cena 14 – 00:15:00259 Cena 14 e Cena 15 – 00:15:33260 Cena 16 – 00:16:3093

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expectadores da projeção. As perguntas de Coutinho transitam por dois assuntos: “Você

gostou de ter visto o filme sábado?”; “Você ficou crente quando? (...) Que igreja você é?”. O

próximo entrevistado é Brás Francisco, também após sua identificação pelos camponeses

durante a projeção. O camponês sede a entrevista em frente a sua casa com sua esposa e filho

ao fundo.261 Coutinho pergunta: “Você lembrava do filme que você viu outro dia? (...) O que

você achou?”. A voz over de Gullar assere: “Brás Francisco da Silva é o único dos atores do

filme que prosperou. (...) Dando duro desde os oito anos na lavoura Brás se confessa cansado

e quer vender o sítio”. Na sequência, Coutinho pergunta a Brás: “Está querendo vender não?”.

Ele responde: “Estou querendo vender mesmo. Não apareceu quem compre, quer comprar?”.

Gullar complementa: “Brás, conhecido pelos vizinhos como João, fugiu de Galiléia em 64 e

mudou de nome para evitar perseguições. Desiludido com a atividade política, Brás não gosta

mais de Galiléia, nem de lembrar as lutas do passado.”

Nota-se aqui, como já debatido, a influência da voz over de Gullar na organização do

discurso. Aqui inclusive em uma linguagem próxima a “jornalistica”, quando assere uma

afirmação - “quer vender o sítio” - e na sequência traz um depoimento que confirma sua

colocação - “Estou querendo vender mesmo”. Interessante também é a pontuação sobre a

atual posição diante do passado de Brás. Durante todo o documentário os “destinos” dos

camponeses serão sempre resgatados, sendo esse um dos mais emblemático no sentido de

“negação” da atividade política e das lutas do passado.

Com exceção dos rápidos planos intercalados do projetor em Galiléia, a entrevista com

Zé Daniel é a primeira quebra “cronológica” do documentário. Até aqui, o filme seguia uma

sensação de continuidade em relação à captação das imagens, que foi das imagens da UNE

Volante às cenas do Primeiro cabra e por fim, ao primeiro encontro com o camponês

Virgínio. Entretanto, as entrevistas dessa sequência se dão dias após a projeção em Galiléia,

sendo que a montagem do documentário a partir daqui passa não só a ter em conta a

cronologia da captação das imagens e entrevistas, mas também se desenvolve a partir de

“temas” e da inteligibilidade da narrativa. Nesse sentido, a intercalação da noite de projeção

com as entrevistas é uma montagem que tem como prioridade a unidade narrativa que tem

como temática a experiência dos camponeses com o Primeiro cabra - “Você gostou de ter

visto o filme?”. Essa questão é importante em relação ao “método” e montagem na obra de

261 Cena 17 – 00:17:2594

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Coutinho, e será visitada novamente à frente. 262

O último camponês a ser identificação na projeção é Cicero Anastásio, que está

ausente da plateia. Seguindo a “unidade temática” comentada anteriormente, a câmera corta

para seu local de trabalho em Limeira, interior de São Paulo. Sua entrevista se dá em sua casa

com primeiros planos de sua esposa e filhos.263 Após perguntas sobre sua imigração para o

sudeste e sua vida atual, Coutinho questiona: “O que você lembra do filme, que cena você

lembra?”. Cicero responde: “(...) cobrindo aquela casa, você perguntando para mim assim, e

eu respondi: - O charque está muito caro, como é que a gente vai sobreviver?” O

documentário mostra então a cena do Primeiro cabra lembrada por Cicero.264 A voz off do

camponês transcrita acima é repetida na banda sonora, agora sincronizando sua fala na

atualidade com o seu diálogo no filme. Desde o início dessas lembranças de Cícero, a melodia

de um instrumento se faz presente. Quando não há mais voz off ela se afirma como trilha

sonora da cena de 1964.

Como já comentado, o uso das imagens da década de 1960 possuem diversas funções

no interior do documentário: ora se apresentam como “vestígios” da época – quando o olhar

se foca nas características da linguagem cinematográfica, assim como na busca de elementos

no “interior das imagens” – como na cena da UNE-Volante que contrapõem os camponeses às

petrolíferas estrangeiras265. Em outro momento se ligam à narrativa, auxiliando na construção

do enredo do filme, por exemplo, quando Coutinho conta a história de Galiléia e cenas do

engenho e dos trabalhos cotidianos são apresentadas. Já a contraposição da cena do Primeiro

cabra junto a fala de Cícero, visa construir um diálogo poético e inteligente entre os

depoimentos e as antigas cenas, prevalecendo aqui o caráter estético da antiga sequência.

Nesse sentido, cenas como essa reelaboram as imagens do Primeiro cabra, montando-as e

adicionando uma banda sonora para além da voz over (como diálogos de seu roteiro e trilha

sonora) prevalecendo a sensação de assistirmos ao filme de 1964. Nesse caso, mesmo

mediada inicialmente pela fala “atual” de Cícero, temos a sensação de continuidade do antigo262 Apesar das aparições no documentário sugerirem outra ordem, Coutinho comenta em uma entrevista quena verdade as primeiras entrevistas teriam sido as feitas em São Rafael (com Elizabeth e seus filhos) e somentedepois com os camponeses de Galiléia: “A primeira pessoa que filmei foi dona Elizabeth. (...) quando acabei defilmar a Elizabeth, já senti o filme com tal vida que decidi: Vamos direto para Pernambuco. (...) Dai nós fomospara Pernambuco e fizemos aquela cena da projeção”. OHATA, Op. cit. p.p.212-3.263 Cena 18 – 00:19:35264 Cena 19 – 00:21:02265A utilização de outras imagens da década de 1960, como as da UNE Volante, dos comícios das Ligas Campo -nesas e de Francisco Julião também possuem essas mesmas funções no documentário.

95

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filme por alguns segundos, principalmente devido a trilha sonora, que poderia inclusive, ter

sido a utilizada na montagem dessa cena no Primeiro cabra.

3.5 Primeiro e segundo encontro com Elizabeth Teixeira

Cena 20 – 00:21:53 Cena 21 – 00:23:22

Cena 22 – 00:27:10 Cena 23 – 00:27:25

Cena 24 – 00:28:36 Cena 25 – 00:30:54

96

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Cena 26 – 00:31:10 Cena 27 – 00:35:36

Assim como nas entrevistas anteriores, o primeiro contato de Coutinho com Elizabeth

Teixeira se dá pela sua identificação por parte dos expectadores na projeção em Galiléia. Na

sequência, imagens da paisagem e das estradas do sertão266 identificam o deslocamento

(geográfico e cronológico) de Coutinho à procura de Elizabeth, cujo paradeiro apenas Abraão,

seu filho mais velho, sabia. Como já apontado, uma sugestão de deslocamento “imaginária”

se analisarmos o itinerário das filmagens. Coutinho conta em over: “Elizabeth vivia em São

Rafael [povoado no Rio Grande do Norte] com seu filho Carlos, único que trouxe em sua

fuga. Ela tinha mudado seu nome para Marta Maria da Costa. Elizabeth não esperava a minha

chegada. Comecei nossa conversa mostrando as oito fotografias de cena que sobraram da

filmagem.”267 Ao seu lado seus filhos Carlos e Abraão e ao seu redor seus vizinhos e amigos.

Abraão assere: “(...) reconheço a abertura do presidente Figueiredo. Graças agradecer, né? (...)

Eu não tinha mais esperança, de nunca mais encontrar nem sequer meus filhos. (...) A

perseguição era grande, os caras tinham muita vontade de me exterminar.”

Elizabeth segue contando sua história de vida clandestina sem poder partilhar sua

identidade com a comunidade de São Rafael. Junto a sua fala em off, tomadas das fotos das

filmagens nas mãos de seus amigos, que tomam ciência de seu passado e do projeto do

Primeiro cabra.268 Abraão de forma incisiva novamente interrompe a entrevista269:

“Não é lhe orientando politicamente, todos os regimes são iguais, desde que a pessoa não tenha prote-ção política, todos são uns, todos são cústicos, violentos, arbitrários, dependendo das camadas, das situ-ações econômicas. Todas as facções políticas esqueceram Elizabeth, simplesmente, por que não tinhapoder. Está aqui a revolta do filho mais velho. Agora se o filme não registrar esse meu protesto, essa mi-nha veemência, essa verdade que falta a capacidade intelectual expressiva do coração de minha mãe.”

266 Cena 20 – 00:21:53267 Cena 21 – 00:23:22268 Cena 22 – 00:27:10.269 Cena 23 – 00:27:25.97

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Coutinho interrompe: “Eu registro tudo que os membros da família quiserem falar,

estão livres para falar”. Abraão responde: “Mas eu quero que o filme registre esse nosso

repúdio a quaisquer sistemas de governo. Nenhum presta para o pobre”. Elizabeth corrobora:

“Nenhum”.

Como já comentado anteriormente, em relação ao depoimento de Virginio em relação

ao debate parlamentar sobre a desapropriação de Galiléia, é possível aqui buscar nos

“discursos” do depoimento “vestígios” para o trabalho do historiador. As asserções de

Elizabeth e Abraão vêm mediadas pela abertura política e o significado do governo

Figueiredo, o que é compreensível dentro do ano da entrevista, 1982. A fala de Abraão, ao

mesmo tempo em que reconhece a abertura política - positivando a atitude do presidente que

supostamente permitiria a saída da clandestinidade de sua família - é crítica a todos os

“regimes”, que seriam “arbitrários” e violentos com as “camadas” sem poder político e

econômico. Sua fala se mistura com o ressentimento de “todas facções políticas” terem

esquecido Elizabeth e, por fim, nega “todos os sistemas de governo”, pois “nenhum presta

para o pobre”. Dessa forma, o posicionamento de Abraão se mostra contraditório: elogia a

atitude progressista do governo, ao mesmo tempo em que afirma uma ideologia “anti-

regimes” e um entendimento classista de sociedade, violenta com as “camadas” sem poder

político e econômicos. As falas de Elizabeth caminham ao mesmo sentido, elogiando

Figueiredo - “merece toda a dignidade nossa” - pois “graças a ele” estaria na presença de

Coutinho e dos filhos. De forma tímida aponta a perseguição que sofreu pelo latifúndio - “Os

caras tinham muita vontade de me exterminar” - mas não aponta claramente ligação disso

com o golpe militar ou com os seus governos.

Nesse trecho, é interessante também o clima da primeira entrevista, mediada pela

figura de Abraão. O filho mais velho deixa explicito em sua fala a necessidade de responder

pela figura da mãe - "essa verdade que falta a capacidade intelectual expressiva do coração de

minha mãe" - além de querer garantir suas afirmações políticas no documentário, seu “poder

de fala”: "Agora, se o filme não registrar o meu protesto..."; "(...) eu quero que o filme registre

esse meu repúdio (...)". Coutinho não "esconde" ou minimiza o espaço de "negociação" que o

interlocutor estabelece através de suas exigências, pelo contrário, explicita essas

“perturbações do discurso”. Uma montagem típica do documentário contemporâneo, sendo

Coutinho um dos responsáveis por sua incorporação no Brasil. 270

270 Como Fernão Ramos afirma sobre a história do documentário: “A partir dos anos 1960, com o aparecimentoda estilística do cinema direto/verdade, o documentário mais autoral passa a enunciar por asserções dialógicas.98

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Outro elemento interessante é o uso de fotos como recurso do resgate pessoal do

passado. Assim como as imagens da década de 1960 nas sequências anteriores, daqui para

frente o uso de fotos da época servirá como elemento de sensibilização e abertura do diálogo

com os entrevistados. Aqui em específico carrega ainda a função de mostrar para a

comunidade a história daquela camponesa, imagens que restabelecem a história de Elizabeth

diante de seus pares. Nesse sentido é importante compreender que o “resgate comunitário”

que a mediação de Coutinho estabelece, tem uma significação e alcance independente do

produto final do documentário, já reestabelecendo contatos e a saída da clandestinidade de

Elizabeth para sua comunidade. Um corte brusco abre a cena da projeção das cenas do

Primeiro cabra para a comunidade de São Rafael. A montagem contrapõem as cenas

projetadas a closes no rosto de Elizabeth e seus filhos. O cinema como dispositivo

sensibilizador e identitário fica explícito nos planos médios que focalizam Elizabeth ao lado

do projetor em funcionamento, enquanto ela identifica em voz alta o papel de Mariano como

João Pedro Teixeira. 271Assim como as fotos, a projeção também permite o resgate da história

de Elizabeth para a sua comunidade, um resgate de dimensão individual e coletiva.

A segunda entrevista de Elizabeth ocorre no dia seguinte, com perguntas que buscam

uma maior sistematicidade cronológica e de continuidade sobre a vida da família Teixeira.

Próximo ao “segundo modo” de utilização das imagens, cenas do Primeiro cabra são

contrapostas, ajudando na narrativa da história contada pela camponesa. Para dar continuidade

cronológica e temática ao relato, a montagem utiliza a voz em off de Elizabeth e trechos da

entrevista do dia anterior. Daqui em diante Coutinho utilizará essa forma de montagem que

mesclara as duas entrevistas de Elizabeth, privilegiando um encadeamento lógico da narrativa

sobre a história de vida da camponesa. 272

Coutinho segue suas perguntas sobre a migração da família Teixeira, chegando ao

trabalho de João Pedro no Engenho Masangana, em Cavaleiro, Recife. Nesse momento, são

apresentadas cenas do filme "Pedreira de São Diogo", capítulo de "Cinco vezes favela"

Assemelha-se então, ao modo dramático, com argumentos sendo expostos na forma de diálogos. O mundo pa-rece poder falar por si, e a fala do mundo, a fala das pessoas, é predominantemente dialógica. A tendência maisparticipativa do cinema direto/verdade introduz no documentário uma nova maneira de enunciar: a entrevistaou o depoimento. As asserções continuam dialógicas, mas são provocadas pelo cineasta.” RAMOS. Op.cit, p.23.Apesar da obra de Cabra marcado possuir diversos elementos do cinema verdade/direto, não compreendo essadenominação como totalizadora da obra. Esses elementos desde a década de 1960 se faz presente “perturban -do o método” dos documentários brasileiros. Para esse debate ver os trabalhos de Bernardet e Fernão Ramospresentes na bibliografia.271Cena 24 – 00:28:36.272 Cena 26 – 00:31:10 e Cena 25 – 00:30:5499

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dirigido por Leon Hirszman. 273 A voz over de Gullar, seguindo sua função de

“complementaridade” dos acontecimentos, narra a vida de João Pedro: “Foi lá que João Pedro

se tornou amigo de Manoel Serafim. Os dois eram vizinhos, frequentavam o mesmo templo

batista e trabalhavam na mesma pedreira. Manoel Serafim ainda trabalha na Pedra e continua

morando em Cavaleiro (...).” Sobre a voz de Gullar, surgem cenas de Manoel em seu ofício,

em uma montagem similar à da entrevista de Brás Francisco, com contornos de linguagem

“jornalística” e próxima ao documentário clássico, asserindo uma afirmação e demonstrando

sua veracidade através da “fala do outro”. Além disso, as cenas de seu trabalho parecem

pouco “naturais” possivelmente feitas a partir de um pedido de Coutinho para que Manoel

voltasse aos seus afazeres para o diretor poder filmá-lo.

Em uma montagem similar a anterior, a entrevista de Manoel mescla seus dois

depoimentos aos trechos das entrevistas com Elizabeth, em uma montagem que não privilegia

a cronologia dos relatos, mas sim o discurso sobre a personalidade, o trabalho e a militância

de João Pedro. Além disso, não há indicação do momento de realização dessa entrevista, se

ocorreu antes ou após o encontro com Elizabeth. Ao longo dos depoimentos sobre a migração

da família Teixeira, cenas correspondentes aos acontecimentos são apresentadas, como o

filme “Pedreira de São Diogo” e trechos do Primeiro cabra: da estação de trem de Jaboatão,

do retorno da família Teixeira ao campo e do trabalho no campo. Elas “ilustram” os

acontecimentos, auxiliando na narrativa da história da família Teixeira, mas agora não mais

através do formato de “ficção realista” do Primeiro cabra, e sim a partir de uma voz over.

É importante apontar ainda, que nessa sequência, pela primeira vez os dispositivos de

captação audiovisual se fazem presentes em frente à câmera de forma sistemática. Em seu

início, quando Coutinho percorre as ruas de São Rafael ao encontro de Elizabeth, a equipe de

filmagem aparece no enquadramento (Coutinho, um cinegrafista e o microfonista). Já a

entrevista de Elizabeth, diversas vezes é filmada em um plano médio que enquadra a equipe

de frente (Coutinho e o microfonista) e os entrevistados de costas (Elizabeth e Carlos),

independente de quem esta falando no momento 274. A ideia de mostrar o próprio aparelho

com que se cria a “representação do mundo” também é uma característica do cinema273 Amigo de Leon Hirszman, Coutinho participou na época das filmagens de Pedreira de São Diogo. Essas cenaspodem ser interpretadas sob dois aspectos: assim como as cenas do Primeiro cabra, servem para ilustrar a nar-rativa histórica e, além disso, constituem uma espécie de rememoração e homenagem à produção do CPC e aocineasta Leon Hirszman. Interessante pensar, no sentido dessa primeira utilização, que para quem não conheceo filme de Leon essa referência pode passar desapercebida, pois não se tem nenhuma referência sobre a ori-gem da imagem. Nesse caso, as imagens seguiriam apenas como “ilustrações” da voz over.274 Cena 27 – 00:35:36.100

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documentário contemporâneo e caminha no sentido de explicitar o filme em sua “construção

discursiva” e questionar seu estatuto de “captador do real”. Essa característica do

documentário de Coutinho também é parte da incorporação “tardia” de característica do

“cinema verdade” no Brasil que o cineasta Jean Rouch já propunha desde a década de 1960 e

que se consolida como um dos pilares da “ética” do documentário contemporâneo.

Por fim, essa sequência é finalizada com o depoimento de Elizabeth sobre João Pedro

organizando os camponeses em sua casa e na feira livre da cidade. As cenas do Primeiro

cabra correspondentes ao seu relato são apresentadas. Sequências da feira popular perdem a

voz off de Elizabeth, enquanto uma trilha musical introduz contornos do “terceiro uso das

imagens”, uma espécie de montagem do que seria a cena no projeto original.

3.6 A história de Cabra marcado e dos camponeses se confundem

Cena

28 – 00:37:34 Cena 29 – 00:37:40

Cena 30 – 00:38:20 Cena 31 – 00:42:33

101

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Cena 32 – 00:42:46 Cena 33 – 00:47:32

Cena 34 – 00:49:36.

Nesse “bloco temático” em especial, a história da família Teixeira se confundirá com a

história política pré-1964 e a tentativa frustrada do Primeiro cabra. Em meio ao clima de

violência no campo e a radicalidade do golpe militar - que previa acabar com os focos

“subversivos” por todo país - essa sequência aponta como parte do mesmo movimento: a

interrupção do Primeiro cabra, o fechamento do cerco às lideranças de luta no campo, a fuga

de Elizabeth e a diáspora de seus filhos. Para estabelecer esses paralelos, a montagem recorre

a análise de cenas do Primeiro cabra feita pela voz over, junto a trechos da voz off das

entrevistas de Elizabeth. Nessa sequência o documentário mostra mais a fundo o material de

1964, bem como tece comentário mais substancial sobre a produção.

A primeira cena a ser visitada é a da negociação do aumento do foro entre os

camponeses e o administrador da fazenda. Gullar comenta: "(...) os diálogos e as sequências

foram criados pelos próprios atores através de uma improvisação feita antes da filmagem." A

cena se constrói em plongée e contra-plongée apontando a divisão espacial e hierárquica entre

o nível superior (o alpendre no qual o administrador se encontra) e o nível inferior (o quintal

102

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onde se encontra os camponeses).275 Outra tomada expressiva é o primeiro plano que

enquadra as costas do administrador e os camponeses em um nível inferior. Além de uma

diferenciação espacial hierárquica, nela o administrador mostra sua arma, intensificando a

divisão de poder existente na relação entre eles. 276 Abaixo, trechos do diálogo:

Administrador: "Que história é essa? Ceis não deviam ter vindo de comboio. Quando é para pagar oforo, só vem um só, isso é feio pra vocês. Eu vou mudar a situação da moradia de vocês, está muitoperto um do outro".João Pedro: "Nós estamos pagando direito, mas o senhor qué pra mais da conta".Administrador: "João Pedro, você é o cabeça, é quem vem com essas ideias".Camponês 1: "Ele não é o cabeça, é pelos alcance do acordo do que está ocorrendo ele pode fazer umapelo razoável com o que é merecedor."Camponês 2: "É necessidade que obriga nós a complicar o caso.Camponês 3: Óia seu administrador, é um caso que eu digo que estou muito agitado com o senhor"[Nesse momento o camponês parte ao encontro do administrador para agredi-lo, mas é detido peloscompanheiros](...)Administrador: “Não vê que senhor de engenho não morre? Administrador não morre? Só quem mor-re é camponês."João Pedro: "Seu Vieira, nosso caso não é brigar com o senhor, mas nós não podemos o aumento."Administrador: "Vocês sabem vocês são meus e eu sou de vocês. Quero que vocês fiquem satisfeitoscomigo. Eu não quero brigar, a terra é da gente todo. Mas essa ideia de não aumentar o forro não assi -no agora. Só posso assinar quando o patrão chegar da capital daqui uma semana. Eu tenho que cum-prir as ordens do patrão. “João Pedro: “Bom, pode esperar uma semana, não é? Conforme a resposta do patrão nós damos nossaresposta.”Administrador: “Vão pensar melhor para viver. A vida é doce. Vão para a casa, conversem com a famí-lia. Acabe com essa história, nós somos junto."João Pedro: "Então semana que vem a gente volta para saber a resposta."Camponês 4: "Ainda vai chegar o dia do senhor querer fazer do que tá fazendo e não poder."

O diálogo criado pelos camponeses é interessante em relação a dois aspectos que estão

interligados: a existência de palavras e expressões próprias aos camponeses, assim como a

construção de um discurso e espaço de enfrentamento e conciliação entre as partes. Essa

segunda questão se demonstra pela percepção de uma liderança no grupo e o rechaço do

administrador aos camponeses andarem em “comboio”, perigo alimentado pela proximidade

das moradias, elementos comuns e estruturantes na organização política de camponeses. Além

disso, o discurso do administrador se demonstra ambíguo, entre a provocação – “não vê que

senhor de engenho não morre? Administrador não morre? Só quem morre é camponês.”; “Vão

pensar melhor para viver. A vida é doce.” – e a identificação de unidade de interesses e o

“conselho cordial” – “Vocês sabem vocês são meus e eu sou de vocês. Quero que vocês

fiquem satisfeitos comigo. Eu não quero brigar, a terra é da gente todo”; “Vão para a casa,

275 Cena 28 – 00:37:34 e Cena 29 – 00:37:40.276 Cena 30 – 37:20103

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conversem com a família. Acabe com essa história, nós somos junto". Na fala dos camponeses

também se expressa a tendência ao enfrentamento ou a conciliação a partir das diferentes

subjetividades dos personagens e suas avaliações táticas sobre o conflito: “Óia seu

administrador, é um caso que eu digo que estou muito agitado com o senhor"; “Bom, pode

esperar uma semana, não é? Conforme a resposta do patrão nós damos nossa resposta.”;

"Ainda vai chegar o dia do senhor querer fazer do que tá fazendo e não poder."

Uma das cenas de maior singularidade no projeto do Primeiro cabra e de inovação

dramática em relação aos filmes da época – com sua metodologia participativa na construção

das sequências e do roteiro e com a participação dramática dos próprios camponeses - é

muitas vezes apontada como “sem profundidade” e “didatista” em relação à luta camponesa.

É o caso da leitura de Freire Ramos, marcada pelos apontamentos da “historiografia

consolidada” que aponta essa “dramaturgia participativa” dos camponeses como forma de

confundir a “representação histórica” da luta dos camponeses com a luta “real” dos

camponeses. 277 Chamo atenção aqui não para o fato dos “recursos neorrealistas” caminharem

no sentido estético e discursivo dessa diluição entre “história real” e “encenada”, mas para a

negatividade com que certa “tradição de linguagem” é apresentada. Além disso, a leitura de

Ramos aponta o filme como transposição imediata das ideias e do poder de manipulação

autônoma do cineasta, o que é questionável, pois do ponto de vista do roteiro há indícios para

compreendê-la como um experiência partilhada entre diretor e camponeses devido a sua

própria metodologia, como aponta a entrevista de Coutinho:

“(...) o roteiro só melhorou um pouquinho na preparação do filme. A gente fez um laboratório com eles, foi uma coisa maravilhosa. Aquela cena que está lá do feitor, não tem uma palavra do diálogo que não seja exatamente dita por eles. Pegamos um, o que faz o administrador, botamos seis caras em volta do refeitório da casa e ficaram dizendo. A gente gravou e eu selecionei as falas. Foi exatamente isso, às ve-zes podia mudar a atribuição da fala de um para o outro, mas basicamente até a distribuição foi exata. Se eu tivesse feito com todas as cenas realmente seria melhor, mas eu fiz com duas só.” 278

277 É o caso da leitura de Alcides Freire Ramos: “Cabra marcado para morrer teve seu perfil didático-conscien-tizador, já presente no roteiro, reforçado ainda mais pelo estilo próximo ao neo-realismo italiano do pós-guerra,incorporado pela equipe do CPC da UNE. A utilização desta proposta estética, somada ao fato de que recorreu-se à mobilização dos reais participantes do movimento, além das filmagens acontecerem nos locais em que efe-tivamente eles atuaram; tudo isso deveria, pelo projeto do diretor, produzir um efeito de tal ordem que para oespectador imagem e som teriam de ser confundidos com o próprio real. Entretanto, em nosso entendimento,tratava-se de uma construção discursiva feita por um intelectual/roteirista/cineasta que se colocava como opolo indutor e pensante. Cabra marcado para morrer foi um filme concebido e realizado de fora para dentro, sóque não se assumindo como tal.” FREIRE RAMOS, Op. cit. (sem página).278 Entrevista contida no trabalho de Altmann, que também traz uma leitura minuciosa dos planos procurandodemonstrar a prevalência do improviso na cena: “Os dois roteiros do Cabra de 64 têm 423 planos, sem divisãopor seqüências, contendo apenas indicações de cenas assinaladas pelo local e momento da filmagem, como,por exemplo, “interior-noite-casa João Pedro”. (...) Da transcrição de anotações manuscritas por Eduardo Cou-tinho, verificamos que do plano 96 – em que o administrador fala que “João Pedro é o cabeça, é quem pôs es -104

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Como argumentei, é possível compreender um diálogo de “enfrentamento e

conciliação” nessa sequência apenas através da transcrição das falas dos camponeses, não

parecendo coerente resumir o diálogo a “didatista” ou “maniqueísta”. Se incorporarmos a

nossa análise o fato delas terem surgido através de um “jogo de improviso” e aceitarmos uma

“responsabilidade compartilhada” mesmo que mínima entre cineasta e atores – ainda que

selecionadas, as falas foram elaboradas pelos camponeses -, esse argumento se fragiliza, pois

o “idealismo” e “didatismo” não seria uma visão própria apenas do cineasta, de sua

“impostura iluminista” ou de sua condição de classe.

Na continuidade dessa sequência ao menos cinco cenas do Primeiro cabra são

resgatadas (tendo sua banda sonora reconstituída) e ilustram, em diferentes intensidades, a

história contada pela voz off de Elizabeth: Cenas de João Pedro e outros camponeses

trabalhando na roça; a expulsão de camponeses de suas casas sem direitos; a morte de João

Pedro.

Outra cena vale a pena ser resgatada. Um plano aberto mostra dois camponeses

jogando pedras na porta da casa da camponesa. Eles se aproximam e encostam nas janelas. Na

sequência, planos médios de Elizabeth e seus filhos ao redor de uma mesa cantando um

“coco”. A banda sonora reconstitui a cantiga coletiva: “E olha o coco está bilu bilu bi olêle, e

olha o coco está bilu bilu bá. Minha senhora do que chora esse menino, chora de barriga cheia

com vontade de mamar.” 279 Essa cena, assim como a do administrador, traz a “voz popular”

através do ritmo e da letra do coco.280 Além disso, aponta que o Primeiro cabra, mesmo com

seu roteiro centrado na dimensão política, não deixou completamente de lado a dimensão da

vida privada de Elizabeth, de sua família e dos camponeses. A construção aqui está para além

da narrativa da luta no campo, mas visita a “cultura popular” e a música como expressão de

sociabilidade familiar e comunitária.

A partir dessas cenas é preciso complexificar as leituras que vem o projeto do

Primeiro cabra como reflexo mecânico e modelo da produção CPCista, não negando seus

“idealismos”, mas compreendendo suas singularidades. É coerente apontar, utilizando as

imagens do Primeiro cabra, que no geral os personagens possuem pouca profundida e

sas idéias na cabeça de vocês” – ao plano 111 – em que o camponês Bernardo responde que “ainda vai ter umdia que o senhor vai querer fazer o que está fazendo e não poder” – prevalece a improvisação.” Trecho da en -trevista e citações em: ALTMANN, Op.cit. p.92.279 Cena 31 – 00:42:33 e Cena 32 – 00:42:46280 Essa é uma das cenas passíveis de análise “etnográfica” apontada na leitura de Altmann.105

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complexidade psicológica, características de um personagem tipificado.281 Entretanto, há

limites na “historiografia consolidada” e nos trabalhos que a corroboram, que analisando sob

o paradigma da “distância” entre produtores culturais e massas e do CPC não ter “chegado ao

povo”, minimiza o processo de troca que existiu nesse processo. Além disso, essas leituras

dimensionam as criações artísticas como frutos de uma relação “de fora para dentro”, de uma

manipulação unilateral e de um “desconhecimento da cultura do outro” por parte dos artistas.

Percebe-se essas características na crítica de Freire Ramos, por exemplo, quando comenta a

produção do Primeiro cabra e seus personagens:

“(...) são personagens tipificadas que, neste caso específico, representam aqueles segmentos sociais que

sofrem exploração econômica e opressão política. Ademais, em consonância com os propósitos implícitos no

projeto, os diálogos foram produzidos de fora para dentro, sem conhecimento efetivo da cultura daqueles campo-

neses. (...) Dispunham de um roteiro pré-concebido, com personagens tipificadas e diálogos distanciados da cul-

tura camponesa que desejavam retratar. Era com base nisso que eles pretendiam iniciar as filmagens.” 282

É necessário compreender pelo trabalho historiográfico qual o nível e que tipo de rela-

ção esses intelectuais forjaram junto as camadas populares, assim como compreender que o

Primeiro cabra se inicia devido as necessidades e o compromisso político-militante da UNE e

do CPC. Entretanto, no sentido que Schwarz nos aponta em seu artigo visitado anteriormente,

é preciso ter em vista a troca profícua – e o compartilhamento do universo de lutas e aspira-

ções coletivas desses atores - que ocorreu ao longo do encontro entre as reivindicações popu-

lares e o movimento estudantil e cultural da época. Uma troca em meio a “novas formas cul-

turais”, que permitem inovações estéticas como uma “dramaturgia compartilhada” - ainda que

“precária” e “rudimentar” -, assim como a “voz popular” no improviso de uma cena de confli-

to ou em uma representação da vida privada, indícios que Cabra marcado não se tratou ape-

nas de uma criação de “fora para dentro”.

Na sequência do documentário, há continuidade das cenas do Primeiro cabra

continuam ilustrando a narrativa da voz off de Elizabeth sobre a perseguição do latifúndio a

seu marido e uma de suas prisões. Na banda sonora, novamente os tiros da cena da morte de

João Pedro. Corte para a manchete de Jornal: “Família camponesa ameaçada”. Segue-se

imagens da paisagem de Sapé e da estrada na qual João Pedro fora assassinado. Em off

Elizabeth comenta o crime: “Foi no dia 2 de abril, em uma segunda-feira que ele ia entrar em

281 Ver nota 265.

282 FREIRE RAMOS, Op. cit. (sem página)

106

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entendimento com o advogado (...) neste dia ele aproveitou e trazia o livro do menino mais

velho, que ia fazer admissão.” Corte para a primeira entrevista de Elizabeth, na qual Abraão

faz uma brusca interrupção: “Ele conduziu os livros de admissão, não é isso? Doutora

Elizabeth Teixeira, que isso é uma doutora para mim, isso é uma escola. É sobre tudo para

mim a minha força de existência, a minha razão de viver. De conversar com Eduardo

Coutinho, de brigar com ele por cem mil cruzeiros (...) Muito obrigado gente, a intervenção.

Continue.” A manutenção dessa intervenção na montagem aponta a existência de uma

negociação – de caráter pessoal e financeiro – entre Coutinho e o filho de Elizabeth. Como já

comentado, a exposição dessa mediação é um traço da metodologia e da montagem do

cineasta.

Elizabeth continua em off. “Quando ele foi assassinado naquela estrada, Café do

vento, os tiros atingiram até os livros que ele trazia. Não só os tiros como o sangue.” As

imagens sobre a voz são de uma câmera na altura dos olhos - câmera subjetividade 283 - que

com um movimento de chicote284 descendente imita o olhar de quem sofre uma queda. 285 Na

sequência imagens de jornais e a voz em off de camponeses asserem sobre a morte de João

Pedro: “E aquele nome surgia em uma notícia como se fosse um grande homem”. As notícias

resgatadas dos jornais tem um sentido afetivo e de exaltação de João Pedro: “Herói da nossa

terra”, “João Pedro viverá”. Enquanto Elizabeth segue relatando o assassinato de João Pedro,

sua foto é sobreposta: primeiramente em um movimento descendente de câmera e depois em

um movimento ascendente que se fixa em seu rosto.286 A banda sonora silencia. Primeiro

plano de Elizabeth calada. A montagem constrói através desses elementos uma lembrança

sentimental do camponês como líder popular, buscando também a empatia do espectador com

sua morte e o sofrimento de Elizabeth e seus próximos. Por fim, a voz de Goulart, seguindo

sua função de “narrador histórico”, comenta a morte de João Pedro Teixeira e a absolvição

dos envolvidos no crime. Jornais da época são apresentados atestando as manobras políticas

envolvidas nos trâmites judiciais. 287 Na banda sonora ouve-se, novamente, o ecoar de um dos

283 A Câmera subjetiva ocorre quando o enquadramento simula a perspectiva do olhar de uma pessoa.284 Chicote é um movimento panorâmico rápido de câmera.285 Cena 33 – 00:47:32286 Cena 34 – 00:49:36.287 Na época da morte de João Pedro, o latifundiário Agnaldo Veloso Borges foi apontado como um dos man-dantes do crime e teve sua prisão decretada pelo juiz de Sapé. Quinto suplente de deputado estadual, Agnaldose livrou da prisão após um deputado e quatro suplentes renunciarem a a ssembléia legislativa para sua posse.Os dois policiais acusados de matar João Pedro foram absolvidos por unanimidade pelo tribunal do júri.

107

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tiros da cena da morte de João Pedro.

Importante apontar que o assassinato do líder camponês é apresentado utilizando uma

série de recursos e uma forma narrativa a fim de gerar a aproximação do espectador com sua

morte. Essa construção se faz através dos tiros na banda sonora, do close em suas fotos, da

câmera subjetiva dramatizando sua queda, do relato de Elizabeth, do relato afetivo dos

companheiros e da importância atribuída ao camponês pelos jornais. Por último, pela quebra

do silêncio pela voz over que comenta a não punição dos agressores, apontando uma injustiça,

sem espaço para contraditório. Obviamente, os jornais aqui são “vestígios” dos

acontecimentos daquele momento, carregando em si o caráter de fontes históricas. Nesse

sentido, o uso desses e de outras fontes como os relatos não é uma manipulação apartada da

realidade e dos acontecimentos. Entretanto, é preciso reconhecer que a montagem é uma

forma de articular e propor narrativas e discursos sobre os acontecimentos. Por exemplo,

pode-se supor que nem todos jornais noticiaram a morte de João Pedro Teixeira como algo

relevante ou negativo, e nesse sentido, Coutinho seleciona e dá relevância para certos

periódicos. Feita essa ressalva - sem retirar o caráter de “vestígio” contido nessas “fontes” e

imagens” - pode-se afirmar que a montagem nos leva a busca de empatia com o personagem.

Um parêntese nesse bloco é a entrevista de João Mariano, o único dos atores que não

tinha participação no movimento camponês. Mariano é visitado sem aviso, no dia seguinte à

projeção em Galiléia, sendo sua entrevista concedida em frente ao armazém de sua

propriedade. O camponês declara: “É o seguinte, eu sou muito afastado de certos

movimentos. Eu cai nesse movimento, por exemplo, há dezesseis anos passados, que eu vinha

pelo Engenho, que chegou esse movimento revolucionário”. Coutinho interrompe a entrevista

e pede um momento devido a problemas técnicos com o microfone. Uma claquete aparece

indicando a nova tomada. Coutinho pede para o camponês retomar. João Mariano comenta

desconcertado:

“Eu creio que o senhor está por dentro do assunto, que eu não queria estar dentro desse negócio. Euestava no Engenho, por causa dessa reiga, dessas coisas, então eu sai do engenho porque não quis es-tar dentro disso, isso é uma prova que não queria viver dentro disso. Quando cheguei à cidade que osenhor me procuraram que ingressei dentro dessa carreira, mas quando entendi que era assim para vi-ver pelas propriedades, vamos dizer agindo, por terra, essas coisas. Eu não preciso de terra, que o pou-co que deus me deu eu vivo com, sem isso. (...). Quando o senhor chegaram aqui me procurou. Pelasua simpatia, pela bondade do senhor então, vou dar meu conhecimento mas não para ter ingressadonesse negócio de revolução.”

Coutinho responde: “Mas não tinha nada disso. O senhor vive como agora?” A

entrevista segue passando pela relação de João Mariano com a igreja Batista, da qual sofreu

108

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represálias pela participação no filme. Coutinho pergunta se o filme teria prejudicado

Mariano. O camponês responde: “Não fui prejudicado pelo filme, fui prejudicado pelo senhor

de engenho, lá, depois mesmo naquela revolução o senhor de engenho me perseguiu e tentou

me matar.” José Mariano termina comentando ter ficado “satisfeito de desfrutar” seu trabalho

no Primeiro cabra, “fruto do seu trabalho”.

É interessante identificar os conflitos, contradições e questões contidas na entrevista

de Mariano. Fica claro em sua fala a distinção que faz entre o movimento camponês e sua

participação no filme, no qual teria participado pela “simpatia” e “bondade” de Coutinho e

entendendo como um trabalho qualquer. Sua fala é incisiva em se desvincular de qualquer luta

por “propriedades”, “terras”, apontando a luta camponesa como “movimento revolucionário”.

Antes de participar do filme, o camponês havia sido expulso de um engenho, fazendo menção

a ter saído dele sem conflito como prova de não se relacionar em disputas no campo. Além

disso, ele demonstra uma expressão de desagrado diante da entrevista e de ter sido

interrompido, reação que Coutinho não “esconde” na montagem, pelo contrário, traz para a

“verdade do encontro”. Seu discurso também vem marcado pela resignação religiosa - “Eu

não preciso de terra, que o pouco que deus me deu eu vivo”. Interessante apontar também que

apesar de ter sofrido represálias de sua igreja devido ao filme, não se vê prejudicado por esse.

Essa entrevista será retomada a frente.

3.7 A fuga de Elizabeth Teixeira e a ofensiva ideológica da direita

Cena 35 – 00:58:11 Cena 36 – 01:03:56

109

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Cena 37 – 01:04:47 Cena 38 – 01:10:32

Cena 39 – 01:12:50 Cena 40 – 01:13:00

Cena 41 – 01:17:03 Cena 42 – 01:16:18

Após a entrevista de João Mariano, o “bloco” seguinte irá se debruçar sobre a ofensiva

ideológica da direita no momento pré-golpe, bem como o desbaratar do Primeiro cabra e a

perseguição aos camponeses que se segue. A sequência inicia-se com a história de militância

de Elizabeth junto as Ligas camponesas após a morte de João Pedro. A camponesa comenta

sua atividade política e sua prisão: “Nem parei, a marcha, entrei dentro do carro e fui com

eles. Quando cheguei lá eles foram fazer várias perguntas imbecil a mim. Perguntaram do

exterior como que eu convivesse com exterior.” Durante seu depoimento, a câmera focaliza a

110

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camponesa de perfil em seu primeiro dia de entrevista com crianças e amigos de São Rafael

ao seu redor. O ângulo e plano da câmera junto ao depoimento animado de Elizabeth atestam

a discussão já feita sobre sua reabilitação comunitária. 288

Sobre cenas de comícios realizados pelas ligas, Gullar assere historicamente: “(…)

respondendo as pressões do movimento camponês, o governo federal vinha estimulando nos

últimos meses a sindicalização no campo. Duas semanas depois dessa manifestação houve um

conflito perto de Sapé que impediu as filmagens de Cabra marcado para morrer na região.”

Corta para manchetes sobre as “Marchas da família com Deus pela liberdade” em Sapé e pelo

nordeste. Na banda sonora um tambor e um apito inserem tensão a cena, revestindo de

dramaticidade a ofensiva ideológica e a repressão sobre o movimento camponês narrada nesse

trecho, um prenúncio da “ruptura” e “repressão” que será apresentada. Corte para a última

cena rodada do Primeiro cabra, na qual João Pedro conversa com dois camponeses sobre a

fundação da Liga de Sapé. Em sua última tomada, Elizabeth volta da janela da casa e diz:

“Tem gente lá fora”. Na sequência seis camponeses aparecem repetindo essa frase em seus

contextos de entrevista. Além de ser muito difícil que todos dissessem a mesma frase em suas

entrevistas, por parte de alguns fica explicita a interpretação para a câmera. Assim como a

sequência anterior – que apresenta a morte de João Pedro - a montagem aqui trabalha diversos

elementos - as manchetes sobre “as Marchas”, o apito, o tambor e a encenação da fala “tem

gente lá fora” - a fim de criar certa apreensão no espectador diante da inevitabilidade dos

próximos acontecimentos, dramatizando a ofensiva ideológica e a “ruptura” do golpe.

Na sequência, os camponeses contam a chegada do exército na região, as perseguições

e como ficaram encurralados com a equipe de Cabra marcado. Sobre essas falas surge a

manchete: “Material subversivo apreendido”. Gullar comenta a trivialidade do material de

filmagem aprendido, comum em qualquer set de filmagem.289 Pela primeira vez surge um

terceiro narrador290 que lê uma longa notícia intitulada “Foco de Subversão”:

288 Cena 35 – 00:58:11.289 Cena 36 – 01:03:56290 Identificado pelos créditos como Tite de Lemos, esse é o único trecho de locução desse narrador. Por essaúnica aparição não é possível estabelecer uma função tão clara para sua “voz” como a que proponho em rela -ção à de Coutinho e Gullar. Levanto duas possibilidades interpretativas: uma questão técnica teria levado a ne-cessidade de inserção de uma voz durante a montagem, já sem a presença de Gullar, e não podendo ser a vozde Coutinho pelo conteúdo “falso” da notícia falsa. Outra possibilidade é a escolha de Coutinho por uma “ter -ceira” voz identificada com o discurso “anticomunista” e a manipulação da opinião pública por parte das autori -dades e dos meios de comunicação. A explicitação de uma “voz falsa” faz sentido se pensarmos no sentido geralda sequência de ironia e denúncia das informações tendenciosas da mídia.111

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“Foi talvez em Galiléia que o Exército apreendeu materiais mais valiosos do maior foco de subversãocomunista no interior de Pernambuco (...). Num casebre característico de camponês foi encontrado umfarto material que acionava o dispositivo de subversão ali montado pelos esquerdistas internacionais soba proteção o governo estadual (...).O filme, entre os inúmeros encontrados, que estava sendo levado nasemana do golpe, era o “Marcados para morrer”. A película ensinava como os camponeses deviam agirde sangue frio, sem remorso ou sentimento de culpa, quando fosse preciso dizimar pelo fuzilamento, de-capitação ou outras formas de eliminação, os “reacionários” presos em campanha ou levados ao Galiléia(...)”

Sobre essa narração, a montagem busca cenas do Primeiro cabra na qual os

camponeses trabalham e as crianças descansam em um momento de lazer, apontando uma

ironia diante da notícia veiculada pelo jornal.291 Essa ironia conclui um longo trecho que

engloba desde as declarações de Elizabeth sobre as “perguntas imbecis” da polícia – “como

que eu convivesse com exterior” -, até as notícias sem fundamentação do “foco subversivo”.

Surge aqui uma terceira função para as fontes jornalísticas: pela primeira vez elas são

apresentadas explicitamente em seu caráter ideológico, não mais ligadas a asserir os

“acontecimentos”, mas como veículos de irradiação de ideias “anticomunistas”, que se em

parte correspondiam com o que ocorria em Galiléia, em parte era sugestão.292 Dessa forma, se

problematização a mídia como portadora da “verdade”. Na sequência duas entrevistas contam

como foi a ocupação do exército na região e seus depoimentos para as autoridades. Zé Daniel

em um plano médio de dentro de sua residência assere:

“Ai pegou sargento Saraiva: - Seu Daniel, me diga onde tá as armas daqueles. Eu digo: - tirando aquelaarma que o senhor levou da minha casa e outras que tem por ai, espingarda de tapa de gato para mataralgum passarinho pros filhos comer, é as armas que cabe dentro da Galiléia. (...) que eu ouso falar emmetralhadora, mas nunca tinha visto, estou vendo agora na mão dos senhores (…) .”

Em seguida, João José, filho de Zé Daniel, dá seu depoimento sobre a invasão do

exército em sua casa e como conservou dois livros pertencentes à equipe de filmagem. João

José lê um trecho de um desses livros, o romance Caput, fazendo um paralelo da história do

livro à história do filme interrompido em 1964. O camponês conta: “O capitão do exército

pelejou para levar isso aqui, porque tem uma história da guerra mundial, da Rússia, não sei o

291 Cena 37 – 01:04:47292 Gervaiseau corrobora essa ideia: “Se, em diversos momentos do filme, a inserção de trechos de artigos oude reproduções de grandes manchetes tem por função seja atestar a veracidade da fala das testemunhas, sejafornecer um complemento de informação permitindo melhor contextualizar os fatos evocados, em outrosmomentos, esta inserção tem uma função diversa, levando o espectador a questionar, através da confrontaçãodos documentos escritos com o depoimento dos sobreviventes do drama, a veracidade das informações divul-gadas pela imprensa após o golpe de Estado, contribuindo, da mesma forma, para demonstrar o caráter falacio -so da propaganda que ela dissimuladamente veicula. Nestes casos, como quando se alude ao desaparecimentode dois militantes da Liga de Sapé, não há refutação explícita, por parte do comentarista, da versão dos fatosapresentada pela imprensa. A ideia parece ser a de levar o espectador a tirar ele mesmo suas próprias conclu -sões a partir da exposição sucinta dos fatos - ‘Os cadáveres nunca foram identificados’ - e da confrontação dasfontes.” GERVASIEAU. Op.cit. p.p.181-2.112

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que, ele pelejou para levar. Eu disse: - Não senhor esse livro é meu. Ele disse: - Não é seu,

esse livro é dos cubanos rapaz. (...)” Coutinho interfere: “Quem era os cubanos?”. João José

responde: “Era vocês, ele culpando vocês, pensava que vocês eram os cubanos, barbudo (...)

Então eu disse: - Não senhor, aqui não tem nada cubano, não tem comunista, está ouvindo.”

Na sequência, surge a mesma banda sonora utilizada anteriormente na apresentação

dos jornais “anticomunistas”. Uma nova notícia é apresentada: “(...) inclusive em Vitória de

Santo Antão, onde foram presos além de vários elementos das Ligas Camponesas, oito

estrangeiros falando idioma espanhol. Segundo fontes militares, pelo menos 3 são de Cuba.”

A cena retorna a entrevista de João José comentando a insistência do capitão do exército:

“Eu quero ver a de vocês, que Julião disse que tinha vinte mil armas para vocês fazerem a revolução aqui. E os comunistas estavam fazendo filme aqui para fazer a revolução aqui.(...) Eu disse: - Coronel, aqui não tem nada de comunista, nem cubano, nem nada. Tem um povo morrendo de fome, doente, so-fredor (...)”

Esses dois relatos e a notícia do jornal nos permite um debate sobre a “ameaça

comunista”. É fato que a imprensa ajudou a construir um clima de instabilidade no país com

sua propaganda ideológica de criminalização dos movimentos sociais e ativistas partidários da

esquerda. Nesse sentido, se demonstra pelas notícias que em alguns casos as “acusações”

pouco tinham ligação com os acontecimentos: a película que ensinava a matar a sangue frio

pelo fuzilamento ou decapitação; os três cubanos em meio aos oito estrangeiros. Em outros

casos, as notícias aparecem de forma capciosa: os materiais do “maior foco de subversão

comunista”, de um dispositivo de subversão do esquerdismo internacional sob proteção do

governo estadual. Já os depoimentos atestam que o exército ocupou a área não apenas

utilizando o “perigo comunista” das Ligas como bode expiatório, mas que de fato procurava

armas e um foco subversivo, insistindo na ligação de Coutinho e sua equipe com “os

cubanos” e a formação de guerrilhas rurais. Os camponeses negam a existência dessas

ligações, assim como apontam suas lutas a partir de questões primárias econômicas e de

subsistência: “[Aqui] Tem um povo morrendo de fome, doente, sofredor”. Se é certo que a

conjuntura da época trazia como referência para a esquerda – seja no movimento estudantil ou

em movimentos de trabalhadores – as experiências guerrilheiras e de lutas nacionais e

socialistas, essas referências não aparecem claras na memória dos camponeses entrevistados

aqui, ao menos na construção discursiva de Coutinho.

É possível utilizar esses depoimentos como subsídio para escrever uma historiografia

sobre as Ligas Camponesas, principalmente no que toca a questão da relação existente entre

113

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sua base social, suas lideranças imediatas (como João Pedro, Virgínio e Zé Daniel) e suas

lideranças próximas ou orgânicas aos movimentos e organizações reformistas e

revolucionárias nacionais ou internacionais. Para isso seria preciso uma visita aos principais

trabalhos historiográficos sobre as Ligas Camponesas, assim como uma memória mais ampla

dos envolvidos nessa experiência histórica. Tendo em vista o formato limitado dessa

dissertação, fica aqui apenas meu apontamento da possibilidade de trabalho historiográfico.

Já em relação à “construção discursiva” e as fala de Coutinho é possível alguns

apontamentos. Coutinho assere sobre o movimento camponês e a ideia da “revolução” quando

conversa com Mariano e o tranquiliza que “não havia nada disso”. Além disso, sua montagem

não está isenta de aumentar o impacto de certas asserções, como quando encadeia

ironicamente a notícia do “foco subversivo” em Galiléia com cenas do Primeiro cabra em que

crianças descansam e os camponeses trabalham. Esses recursos, - junto à apresentação da fala

dos camponeses que não aparecem sendo contestadas ou relativizá-das por Coutinho - forjam

um discurso da experiência das Ligas Camponesas como afastadas do comunismo e de vias

revolucionárias. Dessa forma, a experiência de luta desses camponeses, assim como os

objetivos de Coutinho com o Primeiro cabra ganham contornos de um reformismo, não muito

pretensioso, movido menos por um apontamento de projeto político global ou revolucionário

e mais pela necessidade de resolução da precariedade econômica e social do cotidiano.

Importante apontar também a metodologia das entrevistas de Coutinho. Dois planos

evidenciam a equipe e o set de filmagem em frente à casa dos camponeses. Além disso,

durante as entrevistas, a família de João José se organiza em frente a sua casa, como se

pousasse para uma foto, um enquadramento repetido em quase todas as entrevistas.293 É

possível compreender a insistência desse plano no filme à luz da ideia de resgate da história

desses camponeses, que pousam para o “poder da eternização” contido em uma fotografia que

assim flexiona a “história oficial” e serve para resgatar os “vencidos” e sua história. Aqui em

particular, o resgate perpassa duas gerações que estiveram presentes nos acontecimentos. Na

sequência, uma nova entrevista de João Virgínio294, na qual conta sua prisão e tortura após o

golpe:

“Eu produzia aqui nesse sítio onde estou meio caminhão de mercadoria por semana. O exército pegoueu aqui, meteu na cadeia, cegou um olho, deu uma pancada eu perdi o ouvido, outra pancada eu perdi ocoração. Passei seis anos na grade da cadeia. O que foi que eu construí na grade da cadeia para a nação?(...) Tomaram um relógio, um cinturão, cinquenta conto em dinheiro, um jipe o exército tomou (...). Isso

293 Cena 38 - 01:10:32; Cena 39 – 01:12:50 e Cena 40 – 01:13:00294 Cena 41 – 01:17:03114

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é tipo de revolução, pegar de um homem lascado que nem eu, fico meus filhos todinho ai morrendo defome (...).”

Ao longo dessa entrevista, são mostradas cenas atuais de seu cárcere, a Casa de

Detenção de Recife.295 Uma câmera percorre suas escadas, celas e grades, conferindo

dimensão espacial a narração. 296 As imagens da casa de detenção e a trilha melancólica

aprofundam a intensidade dramática contida no relato do camponês, caminhando no sentido

de gerar a identificação do espectador com o sofrimento do cárcere. Além disso, é possível

inferir a partir de um depoimento de Coutinho que essa foi à primeira cena gravada em

Galiléia, antes das projeções das cenas do Primeiro cabra para a comunidade.297 Nesse

sentido, mantendo a “unidade temática” e a “intensão do autor”, o depoimento aguarda a hora

propícia para carregar de intensidade a denúncia sobre a repressão da ditadura aos

camponeses.

Na sequência desse “bloco temático” Gullar narra a história da fuga de Elizabeth após

a invasão de Galiléia. A camponesa conta ter se apresentado a polícia dois meses mais tarde e

afirma ter sido “bem tratado” na prisão. Ela comenta ter esclarecido as autoridades que fora à

Cuba visitar seu filho Isac, bolsista estudantil, a convite do governo da ilha. Coutinho

pergunta: “E acusava a senhora de invadir terra, essas coisas, não?” Elizabeth responde:

“Acusava. Não tinha conhecimento de invasão de terra, não. Se havia é porque havia algum desentendi-mento entre o proprietário e o morador. Que nenhum proprietário quer que o morador tenha direito, anada. Queria tomar mesmo, na marra. E o morador se vê obrigado a resolver o problema dele.”

Após quatro meses de prisão a camponesa é solta e vai morar na casa de seus pais.

Elizabeth conta sua fuga de sua segunda ordem de prisão: “Eu apanhei o carro dizendo a

papai que ia me apresentar, mas não era possível. Eu sabia que ia ser torturada, ou até morta

como o Alfredo, mais o menino”. Na sequência, Gullar assere sobre o sumiço de dois dos

fundadores da Liga de Sapé - João Alfredo Dias (Nego Fúba) e Pedro Inácio de Araújo (Pedro

fazendeiro) - após saírem da detenção. Um jornal da época sobre dois cadáveres de

“marginais” não identificados, eliminados pelo esquadrão da morte, é apresentado. A

montagem não deixa dúvidas sobre o desaparecimento político dos camponeses. Assim como

295 A Casa de Detenção de Recife é um prédio histórico inaugurado em 1855. Foi desativado como presídio em 1973 e transformado no ano seguinte na Casa da Cultura de Pernambuco, um ponto de turismo e cultura aberto a visitação pública.

296 Cena 42 – 01:16:18297 Coutinho comenta sobre a sequência: “Dai nós fomos para Pernambuco e fizemos aquele cena da projeção.Antes de começar a projeção, enquanto estávamos preparando as coisas, o João Virgilio deu aquele grandedepoimento, sobre a tortura, aquela história toda.” OHATA. Op.cit. p.213.115

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no início dessa sequência, a falsidade das notícias é apresentada pela sugestão da voz over e

da fala de Elizabeth sobre a morte dos camponeses.

Esse “bloco temático” se encerra com a primeira intervenção do filho de Elizabeth

Teixeira, Carlos, que permaneceu ao seu lado em todas suas entrevistas. O rapaz comenta que

a partir de agora revelaria o paradeiro de seus irmãos e procuraria os outros. A cena é

marcante, tanto como recurso narrativo – dá margem para o início da busca de Coutinho pelos

filhos de Elizabeth – como por marcar a postura ativa de Carlos em publicizar a história e o

paradeiro de sua família.

3.8 Coutinho em busca dos filhos de Elizabeth Teixeira

Cena 43 – 01:23:55 Cena 44 – 01:24:44

Cena 45 – 01:25:14 Cena 46 – 01:28:44

116

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Cena 47 – 01:34:29 Cena 48 – 01:37:09

Cena 49 – 01:40:26 Cena 50 – 01:45:15

Esse bloco temático tem como intuito apresentar a história da dispersão dos filhos de

Elizabeth e seus destinos. A camponesa conta o pouco que sabe sobre seus paradeiros: três

meses após o assassinato de João Pedro, Pedro Paulo sofrera um atentado do latifúndio e

Elizabeth não sabia se ele estava vivo; a filha Marluce se suicidara, sentida com a morte de

seu pai. Durante esse trecho de entrevista, fotos de Elizabeth com seus filhos novos e notícias

de jornal sobre esses acontecimentos são apresentados.298 A identificação dos filhos nas fotos

é feita através de closes e recortes nas fotos, acrescido de uma trilha sonora intensa - um

relógio e um ruído constante. Essa montagem permite a sensibilização do espectador diante da

história da família Teixeira.

Na sequência, o “set” da segunda entrevista de Elizabeth aparece sendo desmontado.

Os dispositivos de captação aparecem em quadro.299 Coutinho questiona Elizabeth sobre o

presente: "Mas a senhora agora depois do filme, a senhora vai voltar para o mundo, vai ver as

pessoas de novo, os filhos, ou não?" Elizabeth responde: "Vou voltar, para o mundo. Os

vizinhos, todo mundo já está tomando conhecimento que eu estou aqui no Rio Grande do298 Cena 43 – 01:23:55 e Cena 44 – 01:24:44299 Cena 45 – 01:25:14117

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Norte, agora eu vou ter contato novamente com aqueles amigos, procurar meus filhos, meus

pais”. Junto a intervenção de Carlos ao fim da sequência anterior, a essa fala de Elizabeth

atesta o compromisso de saída da clandestinidade. Esses depoimentos - frutos da troca entre

cineasta e entrevistados – atestam a “prática interventora” na qual o filme de Coutinho acaba

por constituir em seu processo, mesmo que o projeto inicial fosse apenas retomar o contato

com os camponeses da primeira experiência de Cabra marcado.

Na sequência, Coutinho indica seu deslocamento e a cronologia: "15 dias depois do

reencontro com Elizabeth fui a Sapé tentar descobrir as marcas do passado." Gullar em over

assere as poucas informações existentes sobre a vida de João Pedro e a história do monumento

erguido em sua memória no local de seu assassinato, dinamitado nos primeiros dias do golpe

de 1964. Um corte para a foto do camponês morto estabelece um efeito dramatizante que

perdura na próxima tomada. Nela, uma câmera subjetiva percorre vagarosamente a casa

cedida pelo pai de Elizabeth para o casal, espreitando portas e janelas fechadas. A trilha

sonora auxilia no efeito de expectativa da cena.

Nevinha é a primeira filha de Elizabeth a ser encontrada. Ela é professora de um grupo

escolar a quinhentos metros de onde João Pedro fora assassinado. Ainda caminhando ao

encontra de Nevinha, Coutinho pergunta: "A quanto tempo você não vê sua mãe?"300 Outras

perguntas se seguem: "E a senhora tem saudade dela?", "E seus irmãos, Abraão e Carlos?", "A

senhora chegou a conhecer seu pai João Pedro, chegou?", "Sua filha? Como chama?" A

próxima entrevista é com João Pedro Teixeira Filho, o Peta. Em seu depoimento agradece a

família, em especial seu avô, Manuel Justino, por ter cuidado dos irmãos. Após certa

resistência, Manuel Justino concede uma rápida entrevista, na qual comenta seu conflito com

João Pedro devido a sua militância política e sua tentativa de retomar o sítio cedido ao casal.

Ao longo das entrevistas as imagens buscam reconstituir os espaços dos acontecimentos, com

planos do monumento à João Pedro (reerguido por Peta) e a estrada a qual Elizabeth percorria

em suas marchas.

O próximo filho a ser entrevistado é Marta. Gullar assere em over: "Caxias, baixada

fluminense, estado do Rio de Janeiro. Outubro de 1981, oito meses após a filmagem do

depoimento de Elizabeth." A tomada é similar à do segundo dia de entrevista de Elizabeth:

Coutinho caminha a frente da câmera com sua equipe e adentra um bar. Pergunta a balconista

por Dona Marta, que se identifica: "Sou eu". Coutinho afirma ser muito amigo de Elizabeth e

300 Cena 46 – 01:28:44118

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retira de um envelope fotos da camponesa. Olha para a equipe e questiona: "Tem luz aqui?".

Coutinho mostra as fotos: "Esse é seu irmão Carlos, lembra dele? (...) essa é ela lavando roupa

no rio". 301 Com lágrimas nos olhos, Marta conta sua vinda para a baixada em 1971 e sobre

sua família: "(…) a família da gente é o seguinte, na hora que a gente mais precisa, (...) foi a

hora que eles não me deram a mão, principalmente meu irmão. Eu não tenho raiva deles, não

tenho, mas na hora que eu precisei mais de apoio, eles não me deram, principalmente meus

avós por parte de mãe." Coutinho questiona: "Você não tem magoa? da sua mãe não, né?".

"Não, não tenho, apesar dela ter me dado, ainda estava no berço dela, ela me deu para minha

vó (...) nós fomos doze, dos doze só a mim que ela deu." Na tomada seguinte, um plano geral

do bar de Marta. Sobre a mesa de sinuca um gravador reproduz o depoimento de Elizabeth

sobre seus filhos. Marta ouve emocionada a voz de sua mãe. Ao seu redor conhecidos e

muitas crianças da vizinhança. 302

A próxima entrevista é um rápido depoimento de Isac, que se encontrava em Cuba

cursando medicina. A pedido de Coutinho, uma equipe de filmagem da ilha realizou imagens

em dezembro de 1981 com o rapaz, que afirma lembrar do pai como um dos lideres que

organizou as Ligas Camponesas e bem-visto pela sua dedicação a luta do povo brasileiro.

Uma foto de Isac em 1964 ao lado de sua mãe é contraposta a entrevista junto a uma nota

musical dissonante insistente. Na sequência, a imagem de Coutinho e sua equipe em uma

estrada de terra. 303Ao encontrar um trabalhador e perguntar por José Eudes, Coutinho é

questionado: Você é de onde, da TVE ou da Globo? Coutinho responde: “Não, é cinema, é

tipo televisão, é reportagem, mas é cinema.” Gullar contextualiza: “Travessa da Avenida

Brasil no Rio de Janeiro, entrada para o depósito de uma firma de engenharia. Maio de 1982”.

Coutinho caminha no alojamento do depósito com o microfone em mãos para interpelar José

Eudes quando esse interfere: “Quem é o senhor Coutinho ai, por favor? Só o senhor pode

entrar que eu quero trocar uma ideia com o senhor”. A voz over do cineasta explica: “Depois

de uma longa conversa e de fazer algumas exigências, José Eudes Teixeira concordou em ser

filmado, mas fora do alojamento”. Segue-se a entrevista, na qual Eudes afirma ter sido criado

por seu tio e que não se lembra de seus pais, conhecendo Elizabeth apenas nas fotos que

Coutinho acabara de mostrar. Evidencia-se aqui, por parte do cineasta, o mesmo processo de

“sensibilização” através de elementos externos como fotografias. Contrapõem-se a entrevista

301 Cena 47 – 01:34:29302 Cena 48 – 01:37:09303 Cena 49 – 01:40:26119

Page 126: ALEXANDRE IRIGIYEN VANDER VELDEN5 O que seria uma “arte engajada” não é lugar consensual, nem para artistas, nem estudiosos da área, sendo um conceito que se transformou junto

um close em uma foto de Eudes ao lado de Elizabeth e seus irmãos quando crianças, junto a

uma nota musical dissonante e o som dos ponteiros de um relógio. Eudes afirma uma conexão

entre sua personalidade e a história da diáspora de sua família:” Inclusive morei com uma

mulher ai, ela falou para mim: - você é um cara diferente de todas pessoas (...) Tem dias sei lá,

que eu não falo com ninguém, fico assim revoltado pensando na minha família.”

A última entrevista com os filhos de Elizabeth ocorre em Olaria, bairro do Rio de

Janeiro. Marinês concede sua entrevista na porta de sua residência e comenta não lembrar de

sua mãe. Novamente contrapõem-se a entrevista a mesma banda sonora e a mesma foto de

Elizabeth e seus filhos em 1964. A pedido de Coutinho, a filha lê um trecho de uma carta de

sua mãe, na qual diz estar feliz pelo encontro que estavam marcando e faz menção a situação

política do país: “Graças a essa abertura política que vai fazer com que eu me encontre com

todos os meus filhos”. Sobrepõem-se a entrevista, cenas do Primeiro cabra, na qual Elizabeth

brinca com os filhos, junto a uma banda sonora animada de uma flauta, apontando um

possível reencontro feliz. 304

Nesse momento, há elementos para uma primeira crítica substancial sobre o método de

Coutinho e seu enquadramento em relação à história do documentário no Brasil. Conforme

debatido anteriormente nessa dissertação, há na história do cinema uma transformação na

maneira de entender o “estatuto das imagens” produzidas pela câmera, que era vista no fim do

século XIX como “incontestável”, “autêntica”, fornecidas por um princípio de “autenticidade

de registro” intrínseca ao poder da captação cinematográfica. Esse estatuto influencia a

linguagem cinematográfica tanto do cinema narrativo como documentário, se forjando a

linguagem “clássica” desses gêneros, marcadas pela “narrativa linear” e pela “montagem

invisível”. Ademais, em relação a “linguagem documentária clássica”, a voz over onisciente

se constitui como característica estruturante de um discurso detentor do “saber”.

Questionando essa estruturação, junto a novas técnicas e tecnologias, os cineastas modernos

experimentaram novas possibilidades para construirem suas narrativas, enquanto outros

apontam novas metodologias - ou os limites – da apreensão da “realidade” pela imagem

cinematográfica. É dentro desse panorama que devemos compreender os paradigmas e as

propostas de linguagem do “cinema direto” - a câmera em recuo - e do “cinema verdade” - a

câmera participativa -, assim como sua recepção no Brasil. É preciso ter claro que o

questionamento da forma de representação do documentário clássico, não é uma

304 Cena 50 – 01:45:15120

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transformação apartada das transformações sociais, políticas e econômicas do mundo

contemporâneo, nem que se opera apenas no “campo cultural”. Como demonstrei no item

“Cinema e história: notas teórico-metodológicas”, há simultaneamente ao “cinema moderno”

transformação nas ciências humanas em relação ao estatuto das imagens cinematográficas,

que deixam de ser compreendidas como “registros autênticos” e se tornam “fontes” passíveis

de análise historiográfica. É possível também afirmar uma proximidade entre o campo

artístico e das ciências humanas atentando para o fato que as leituras de Novaes, Gervaiseau e

Montenegro apontam o “fazer cinematográfico” de Coutinho como próximos aos caminhos

teóricos e metodológicos da antropologia moderna e da historiografia contemporânea.

Fernão Ramos, através da ideia de “ideologia contemporânea” tenta compreender

essas transformações, como afirma: “Na medida em que a ideologia dominante

contemporânea foi criada na desconfiança da representação objetiva do mundo – e na

desconfiança da espessura do sujeito que assume a voz de saber sobre o mundo –, a narrativa

que se locomove com naturalidade nesse meio sofre carga crítica.” 305 Nesse sentido, o

documentário contemporâneo buscará dar conta, junto a novas tecnologias e teorias, do

questionamento da representação cinematográfica como “apreensão da realidade”, assim

como da “voz” como detentora do conhecimento. O caminho encontrado é a postulação de

uma “mistura de vozes”, retirando da voz over sua exclusividade na asserção da “verdade”:

“Ainda temos a voz over, mas os enunciados assertivos são assumidos por entrevistas,

depoimentos de especialistas, diálogos, filmes de arquivo (flexionados para enunciar as

asserções de que a narrativa necessita).” 306 Agora as “diversas vozes” falam do mundo, e

também de si.

É certo que Cabra marcado foi fortemente influenciado pelo cinema verdade de Jean

Rouch, assim como pelos debates sobre os limites do “encontro com o outro” e da “verdade

da representação”. Nesse sentido, a metodologia e montagem do documentário desenvolvem-

se a partir dessas questões e apresenta respostas a elas: a “ausência” de roteiro, as entrevistas

sem conversação prévia e sem um local formal pré-determinado, a presença das negociações e

dos dispositivos captadores, a presença de falas dispares sobre os eventos e que questionam o

poder de seleção das falas na montagem. Podem-se entender esses recursos como afirmação

de uma alternativa a voz over “do saber” de documentário clássico, que busca deslocar a ideia

de “verdade representada” para a “verdade do encontro” ou para a “verdade da305 Idem, p.21.306 Idem. p.24.121

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representação”.

Parte desses recursos são inaugurais na história do documentário brasileiro, como a

presença das negociações e dos dispositivos captadores em cena, assim como há na montagem

uma manutenção considerável de falas divergentes e de questionamento do poder de

manipulação do cineasta (como na fala de Abraão). Faz-se inovador também os recursos de

sensibilização utilizados por Coutinho como a apresentação das cenas do Primeiro cabra, de

fotografias, de gravações e da leitura de carta.

Entretanto, a ideia de “ausência de roteiro” deve ser relativizada, mas não porque

Coutinho ou a historiografia negue um “plano geral” necessário a toda obra cinematográfica.

A questão é não contrapor essa “ausência” a uma suposta produção cultural “de fora para

dentro” da década de 1960, leitura marcado pelo balanço sobre os “intelectuais não terem

chegado às massas”, assim como pela ideia da obra artística como transposição absoluta das

ideias e vontades de seu autor. Apresenta-se nesse trabalho indícios contrários a isso, como os

pontos de contato entre os jovens e intelectuais da classe média com as lideranças, os artistas

e os movimentos populares, que se deu em meio a fundação do bar Zicartola, os festivais de

música da UNE e suas outras iniciativas como a UNE-Volante e as atividades do próprio

CPC. Em relação à discussão concreta sobre métodos artísticos que tencionam uma suposta

produção “de fora para dentro”, para além do “teatro de rua” de Vianinha, recapitulo as duas

passagens do Primeiro cabra. Obviamente, a cena do administrador no alpendre e da cantoria

do “coco” são exceções dentro do filme, mas demonstram uma experiência mais permeada

pela “fala do outro” e aberta a recursos inovadores na época do que a historiografia

consolidada e trabalhos próximos apontam.

Em relação à montagem do documentário, como demonstrei, Coutinho utiliza as

imagens da década de 1960 ao menos de três maneiras: como “vestígios de certa época”,

como recurso narrativo que auxilia o enredo e como imagens de caráter estético propriamente.

Também utiliza diversamente os jornais, que ora atestam “a veracidade” e cronologia dos

acontecimentos, ora são vistos como parte de um discurso falso. Nesse sentido, é preciso ter

claro também que as entrevistas estão envoltas em uma montagem que lança mão de diversas

outras tradições estéticas e “discursivas” como a linguagem jornalística e o uso de uma voz

over distantes (a narração de Gullar) próximas ao uso do “documentário clássico”. Nesse

sentido, não se isentam de apontar entendimentos pessoais e históricos sobre os

acontecimentos, utilizando para isso não apenas a “verdade do encontro” das entrevistas -,

122

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mas também os jornais, fotografias e um narrador “de fora” da trama. Esses recursos

“amarram” a historicidade da narrativa e propõem leituras e entendimentos menos “abertos”

do que um é apresentado em certos momentos das “falas contraditórias” ou de

questionamento do “poder da montagem” (como na fala de Abraão). Para isso, a montagem

não segue exatamente a cronologia das entrevistas ou da ordem das perguntas, mas caminha

conforme a necessidade de elaborar “temáticas” que percorra determinado encadeamento. É o

caso das entrevistas de Elizabeth, as primeiras filmadas por Coutinho, mas que aparecem em

um segundo momento na montagem devido a necessidade de contextualizar a história de

Galiléia anteriormente. Também é o caso do depoimento de Virgínio sobre sua prisão e

tortura, que ocorreu antes das projeções do Primeiro cabra em Galiléia, mas que é

apresentado no momento oportuno, junto a outros depoimentos sobre o mesmo tema,

aumentando seu impacto. Cabe lembrar ainda, como demonstrado, que há a utilização ao

longo do documentário de recursos – como a trilha sonora, os closes nas fotografias, a

contraposição de imagens - que buscam dramatizar os acontecimentos narrados, assim como

estabelecer a identificação do sofrimento dos camponeses com os espectadores.

Esses apontamentos não caminham no sentido de descaracterizar Cabra marcado

como um documentário contemporâneo e fortemente influenciado pelo cinema verdade, pois

essas linguagens não apontam o abandono completo da voz over e outros recursos, mas antes

a tomada das asserções necessárias por diversos outros “polos”. Atento aqui para o fato de que

o documentário não se constrói apenas a partir das entrevistas e de “falas contraditórias”, mas

em grande parte por uma montagem que utiliza diversos recursos estilísticos próximos aos

“efeitos de verdade” da linguagem cinematográfica clássica.

Tendo isso em vista, é preciso compreender que os atores sociais e a experiência do

Primeiro cabra estão envoltos no contexto da “estrutura de sentimento romântico-

revolucionária”, no qual os projetos ideológicos e políticos apontavam a necessidade de uma

obra que não só representasse a luta dos camponeses, mas que também ajuda-se na

“desalienação” e na mobilização tanto das camadas médias, como das populares. Já o projeto

e as necessidades do Segundo cabra se ligam a outra questão: trazer a público a história de

vida de quem foi “vencido” pelo golpe militar e sofreu com a repressão e a perseguição desse

regime. Para isso, é preciso conectar os acontecimentos e construir uma narrativa histórica de

denúncia, ainda que ela venha repleta de enunciadores e discursos “contraditórios”. Nesse

sentido, o documentário traz certos questionamentos sobre a “verdade do encontro” e o

123

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caráter discursivo da montagem cinematográfica quando evidencia os “dispositivos

cinematográficos”, mas não abre mão desses mesmos recursos de imagem e som para dar

inteligibilidade a história que quer contar, assim como para sensibilizar o espectador em

relação a sua denúncia.

Nesse sentido, a leitura de Menezes visitada anteriormente traz interessantes

apontamentos sobre o caráter de manipulação das imagens e como Coutinho busca criar um

“efeito de verdade”. O historiador argumenta que Coutinho tentaria iludir o espectador como

se “contasse” a história dos camponeses - e não “interpretasse” - junto a um narrador oficial,

que seria a voz over de Gullar: “Ao referir-se a si mesmo em terceira pessoa com frases como

“eu estive lá, vi e vivi...”, vai reforçando-se, e crescendo durante o tempo da projeção, a

sensação de verdade da narrativa, do narrador, da história e do filme.” 307 Em relação ao

narrador, Menezes aponta sua insistência em comentar as cenas, em uma montagem vacilante

que: “(...) parece indicar que as imagens não são suficientemente fortes e que precisamos

escutar algo para termos certeza do que estamos vendo.” Já a utilização de “participantes reais

da história” revestiria não só o Primeiro cabra de veracidade, mas também o documentário,

que se utilizaria ainda da emotividade expressa nos closes dos sofrimentos no rosto de seus

personagens: “(...) a montagem da trama faz questão de ressaltar como as imagens são sempre

cuidadosamente e naturalmente naturais. Por isto, a ingenuidade de querer conquistar nossa

emoção pela simples visualização da emotividade expressa pelo choro direto dos

personagens.” 308 Nesse sentido, Menezes compreende as falas de Abraão sobre manter suas

falas no documentário, não como recurso que traz ao debate o poder de manipulação da

montagem no cinema, mas forma de legitimar a veracidade de seu produto, atestada pela

manutenção da fala do próprio Coutinho: “eu registro tudo que os membros da família

queiram falar (...) estará registrado, eu garanto.” 309

Em relação às entrevistas, Menezes aponta os momentos de intervenção em que

Coutinho geraria certa “indução” das respostas, como na entrevista em que João Damião

conta a caçada aos camponeses por parte do exército. Menezes comenta:

”É visível como esta fala constrange alguém que gostaria de estar no centro da história de seu própriofilme. A reação de Coutinho não vai deixar margens a dúvidas. Ele assume a palavra, sem nenhuma mediação, ediz para Damião, bem como para todos nós: “o pessoal do filme eles queriam também mas não pegaram, nãoé!?” A câmera retorna para o camponês que então responde: “Esses é o que eles mais queriam, o povo do

307 MENEZES. Op. cit. p114.308 Idem. p.118.309 Idem. p.119.124

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filme”.310

Diversas outras passagens atestariam a intervenção do cineasta, o qual induziria os

depoimentos de acordo com seus interesses.311 A meu ver, a crítica necessária a Menezes não

diz respeito a negar seus apontamentos sobre a intervenção de Coutinho nas entrevistas e

junto ao material captado, mas a de atribuir um valor “absoluto” a montagem e manipulação

do cineasta, com se sua obra fosse à transposição imediata das necessidades desse. Dessa

forma, retirasse as tensões e as contradições que existem nas imagens do contato, que ocorrem

independente da “vontade” de manipulação do diretor, não restando à “verdade do encontro”,

mas apenas a “verdade da manipulação”. O maior perigo do sentido dessa leitura é o de não

compreender o alcance da “prática interventora” que Coutinho forja na “vida comunitária”

desses camponeses, assim como o impacto social para a “saída da clandestinidade”, expressa

na conclusão de Menezes:

“Expulso da vida sindical pelas balas que retiraram também sua própria vida, acaba por ser expulso umasegunda vez, agora do imaginário daqueles fatos longínquos de nossa história, mas sempre presentes nanossa memória, derrubado por uma percepção do mundo camponês que, ao usurpar suas falas, cala-osdefinitivamente, agora sem mesmo lhes dar o direito a ter o último direito que sempre nos resta, odireito de reclamar. Tomando a palavra do outro como se fosse a sua, acaba por condená-loirremediavelmente ao silêncio. Ao mostrar a fala dos que não a têm, Coutinho impõe o silêncio aos quenão falam pelas próprias palavras, mas pelas que ele acaba por colocar em seus personagens e queexpressam como ele os vê e não o que eles vêem de si próprios. Este exercício termina, através dosujeito que filma, impondo um silêncio mais profundo e mais vigoroso dos que antes não tinham espaçopara falar e agora têm a sua própria fala apropriada e deslocada, como um fake de si mesmos, muitomais perturbador porque, ao ser simulacro, impõe-se como verdade no lugar aonde antes era evidente,ao menos, a ausência. Expressão curiosa, portanto, de uma interessante interpretação da ideia decontrato onde uma das partes não foi nunca consultada, nada disse e, após isso, nada mais pode dizer.”312

As imagens de Cabra marcado, assim como a recepção do documentário vão no

sentido contrário a essas afirmações, como veremos na sequência.

310 Menezes argumenta ainda um suposto imaginário e uma determinada forma de comunicação própria doscamponeses, um universo marcado pela visualidade da comunicação. Nesse sentido, Coutinho não compreen-deria que o sorriso de Damião na verdade é uma “crítica dissimulada” (a “crítica do subalterno reprimido”) quenão necessariamente expressaria uma concordância com aquilo que está afirmando. 311 Menezes cita como exemplos:“A Sra. casou e foi para o Engenho Massagana, não foi, como é que foi?”. “Osítio que você morava era de seu pai, como é que era?”. “O que foi escondido sob a pedra? O aparelho defilmagem?”. “Aí seu pai brigou com João Pedro, e então?”. “E quando jogavam pedras [na sua casa] a Sra. Can-tava coco com seus filhos, como é que era?”. “Como foi o atentado de Paulo? Ele ficou muito machucado?”.“AS-ra.ficou desesperada? Ficou como?”, ao perguntar da reação de Elisabeth à morte de João Pedro. “E eles nuncaforam punidos, não é?” MENEZES. Op.cit, p.122.312 Idem, p.124.125

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3.9 A “saída da clandestinidade”

Cena 51 – 01:47:43 Cena 52 – 01:48:02

Cena 53 – 01:48:35 Cena 54 – 01:50:52

Após entrevistar os filhos de Elizabeth, Coutinho busca mostrar a vida cotidiana da

camponesa. Sobre panorâmicas da cidade o cineasta comenta: “Nossas filmagens em São

Rafael, em fevereiro de 1981 significaram para Elizabeth Teixeira o fim de um longo período

de clandestinidade. Ao concordar em ser filmada ela deixava de ser Dona Marta e voltava a

ser Dona Elizabeth”. Segue-se a terceira entrevista da camponesa, dessa vez coletiva, junto às

amigas que dispostas em um meio círculo comentam quem era Marta Maria para elas.313 Dois

camponeses espreitam pela janela o interior do cômodo da entrevista. 314 Uma das amigas

comenta: “Agente se compadecia do sofrimento dela e notava que tinha ela tinha um

constrangimento, uma tristeza com ela mesma.” Elizabeth sentada ao canto da sala se

emociona.315 O “zumbido” de um instrumento de sopro toma a cena, estabelecendo uma

relação dramática com o sofrimento de vida da camponesa e suas lágrimas. As companheiras

313 Cena 51 – 01:47:43314 Cena 52 – 01:48:02315 Cena 53 – 01:48:35126

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assumem terem uma imagem fragmentada da camponesa que se complementava com as

novas informações, dando inteligibilidade a história e a personalidade da camponesa. Ela se

torna o centro das atenções, sentada ao canto da sala e exposta aos depoimentos das

companheiras que querem ser parte ativa de sua “reabilitação comunitária”. A “solidariedade

feminina” se faz no âmbito privado, enquanto os homens espreitam do lado de fora a janela.

Na próxima cena, a amizade de Elizabeth com o presidente do Sindicato dos

Trabalhadores Rurais de São Rafael é visitada. Entusiasmada comenta: “(...) conversamos

muito sobre o sindicato, como é que tá atuando o sindicato, agora, na época, atual.

Conversamos muito sobre os moradores do Vale do Açude, como eles vão ser indenizados

(…)”. A voz over de Gullar conta a “extinção” de São Rafael devido à construção de uma

represa em seu território pelo Departamento Nacional de Obras contra as Secas. Na sequência,

ao lado de Elizabeth, o presidente do sindicato comenta ter conhecido recentemente a triste

história da camponesa e de João Pedro Teixeira. Coutinho pergunta: “E a Dona Elizabeth

ajuda o senhor nesse trabalho?”. O líder responde: “Ajuda porque ela, eu converso com ela,

ela me orienta o que sofreu, eu oriento a ela o que estou sofrendo (...) Em contato com ela, ela

contando o sofrimento, e eu, a solidariedade com ela, eu alcancei que o sofrimento dele [João

Pedro Teixeira] é o sofrimento de todos nós, lideres sindicais, que somos perseguidos pelo

latifúndio, pelas próprias autoridades do município, do estado e do Brasil.” Elizabeth, por sua

vez, se expressa satisfeita em conversar sobre a luta dos moradores e as questões do sindicato.

Se na cena anterior, junto as suas amigas, os comentários sobre Elizabeth se colocam

no âmbito de sua “vida privada” e de sua “personalidade”, aqui se constroem no campo da

“representação pública” próprias de um sindicato e sua liderança. Nesse sentido, Elizabeth

reivindica sua interlocução nas lutas da cidade de São Rafael, afirmação que o presidente

corrobora. Diante desse comentário a camponesa demonstra certo “orgulho desconcertado”

em um sorriso e coçar de queixo. 316 Essas cenas, independente de qual fosse o desenrolar do

lançamento de Cabra marcado, sua recepção e seu impacto social, atestam que a prática de

Coutinho foi importante para a reabilitação de Elizabeth junto a sua comunidade e seus

familiares. Importante também no processo pessoal e político de “saída da clandestinidade”,

que envolve incertezas e inseguranças diante da abertura política. Aqui cabe ressaltar que a

leitura de Novaes que aproxima a “metodologia” de Cabra marcado a “antropologia

reflexiva” é coerente, tanto no que diz respeito a produção de conhecimento sociológico junto

316 Cena 54 – 01:50:52127

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aos depoimentos, como em relação a prática que ajuda na reconstrução pessoal e da memória

social desses camponeses. Por fim, é importante lembrar também, que o impacto social de

Cabra marcado, visitado aqui através de sua recepção das critica nos jornais e na acadêmia,

sem dúvida também auxiliaram na “reabilitação social” de Elizabeth, assim como na “batalha

da memória” dos “vencidos em 1964”.

3.10 O último depoimento: “A luta que não para, a mesma necessidade de 64 está

plantada.”

Cena 55 – 01:51:53 Cena 56 – 01:53:27

Coutinho se despede de Elizabeth: “Dona Elizabeth, vamos sair então, a gente vai se

despedir, que a gente vai arrumar a mala de equipamento, dai, vamos até lá fora então.” Em

frente a sua casa, a camponesa se despede em tom de discurso, como se aproveitasse para

fazer valer suas últimas palavras e prestar esclarecimentos não só para sua comunidade, mas

também para outros companheiros317:

“Eu tinha um desengano que não encontrava mais com vocês, nem com outros companheiros. Mas quehoje, vejo minha casa, né, a visita de meus companheiros passados, então para mim é uma grande coisa.Nunca esmoreci, nunca esqueci a luta. Fiquei recostada porque esse era o único jeito, mas hoje, nósagradece ao nosso presidente por ter concedido essa honra de hoje nós estamos conversando e pales-trando, encontrarmos com nossos filhos, nossos pais, nossos parentes.”

Contrastando ao “discurso”, em um segundo momento Elizabeth pede desculpas por

“alguma coisa” e comenta ter sido surpreendida pela visita. Na sequência, com Coutinho e sua

equipe já dentro da combi para ir embora, Elizabeth retoma o “tom de discurso” e faz sua fala

política mais longa apresentada no documentário. Um primeiro plano sobre o ombro de

Coutinho capta a insistência da camponesa:

317 Cena 55 – 01:51:53128

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“A luta que não para, a mesma necessidade de 64 está plantada. Ela não fugiu um milímetro. A mesmanecessidade tá na fisionomia do operário, do homem do campo e do estudante. A luta que não pode pa-rar. Enquanto se diz “tem fome” e salário de miséria, o povo tem que lutar. Quem que não luta? Pormelhora, de vida. Lutar. Quem tem condição, que tiver sua boa vida que fique ai. Eu como venho so-frendo tenho que lutar, até o último, eu tenho que dizer: é preciso mudar o regime, (…) porque enquantotiver esse regimizinho, essa democraciazinha ai.”

Coutinho intervém corroborando com Elizabeth: “Democracia sem liberdade?”

Elizabeth responde: “Democracia sem liberdade? democracia com um salário de miséria, de

fome? Democracia com o filho do operário e do camponês sem ter direito a estudar, sem ter

condições para estudar? Como a mim, agora mesmo eu tirei um menino para fazer a matrícula

lá é paga, não sei quanto né? Não pode, ninguém pode.” A voz da camponesa é silenciada na

banda sonora, sobrepondo-se um toque de alfaias e gongues. Coutinho tenta cumprimentar

insistentemente Elizabeth, que continua a “discursar”. Sua voz em off comenta a mudança da

camponesa e de Carlos para junto de Abraão, assim como seu reencontro com Nevinha e Peta.

Na última sequência do documentário, Virgínio é filmado ao lado de João José em um

domingo de carnaval. Coutinho em off comenta sua morte dez meses após essa filmagem e

seu enterro em Vitória de Santo Antão ao lado de Zezé da Galiléia.

A última cena com Elizabeth traz interessantes elementos para as últimas conclusões.

Primeiramente a insistência na ligação da figura do presidente Figueiredo com o processo de

abertura política que ocorria, falas que muitas vezes ganham contornos elogiosos por parte da

camponesa e de Abraão. Uma leitura desatenta pode-se espantar com o caráter “contraditório”

do elogio de uma família fragmentada e perseguida pelo regime militar a um general.

Entretanto, é preciso compreender essa fala no contexto em que as medidas concretas e o

clima de “abertura política” moviam tanto expectativas, como medos, e que a abertura se

manifestava como processo, ou seja, um movimento de disputas, de avanços e retrocessos.

Além disso, se sabemos que a história se faz por disputas e determinações que estão para além

dos “indivíduos”, a compreensão cotidiana das transformações da sociedade para as pessoas

também vêm encarnadas em figuras e lideranças. Nesse sentido, elogiar Figueiredo naquele

momento pode não ser propriamente condescendência com o regime militar, ou a

incorporação da “história oficial” como autocrítica de uma história de lutas do passado. Antes

pode ser entendido – ainda que encarnado na figura de um general - como elogio “a abertura”

– que permitia a Elizabeth retomar sua identidade e vislumbrar encontrar seus familiares, um

processo que não estava consolidado e envolvia inseguranças e incertezas, coletivas e

pessoais. Nesse contexto, é possível levantar a hipótese de que Coutinho mantém as “falas

129

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contraditórias” em sua montagem, tanto por um compromisso ético e metodológico, como

pelo peso que teria na consolidação da abertura política e da redemocratização no Brasil

naquele momento.

É a partir dessa questão que também se deve entender a recepção positiva do

documentário de Coutinho, assim como os elogios a sua “nova metodologia”. Nada mais

natural, após um longo período de exceção e perseguição as ideias divergentes, que a

reconstrução democrática seja pautada na afirmação da necessidade da convivência entre

“vozes dissonantes” e “contraditórias”. Nesse momento é preciso acreditar mais na

possibilidade da convivência de oposições, do que propriamente em “linhas justas”, “sentidos

inelutáveis” ou “leis necessárias ao desenvolvimento histórico”. A própria realidade parece

mais ambígua e complexidade do que um dia se acreditou, e por isso, devido à pressa e

certezas que lhe é próprio, parece “insuportável para o público juvenil” 318. Dessa forma,

apenas um olhar disposto a se mostrar enquanto discurso – um cinema metalinguístico –,

aberto a falas contraditórias, “sem assumir o caráter de mensagem fechada”, é capaz de dar

conta de “fazer brotar a metáfora”,319 e não impô-la. Dessa forma, se a realidade e a história

se apresentam como contraditórias e complexas, somente um “work in progress” permitiria

“representar a realidade de frente” e um “compromisso com a verdade”. 320 Nesse sentido, me

parece possível identificar aqui, em meio a uma complexa trama de disputas estéticas e

políticas, a afirmação de uma “saída ética” própria da ideologia contemporânea para a

“desconfiança da espessura do sujeito que assume a voz de saber sobre o mundo”, no sentido

que afirma Fernão Ramos:

“Poderíamos dizer: o recuo reflexivo é o ponto cego ideológico da ideologia contemporânea. É o pontocego onde a ideologia da ética contemporânea não consegue ver-se enquanto tal. Em outras palavras: éético mostrar o processo de representação; não é ético construir a representação para sustentar a opiniãocorreta (como defendiam Grierson, ou Eisenstein, em um outro parâmetro).” 321

Coutinho e a crítica flertam com essa “saída ética”, mas em meio a diversas outras

influências ideológicas, de linguagem e em meio a um ambiente político próprio. Nesse

sentido, Cabra marcado não se constitui apenas como um exercício puramente

metalinguístico ou de explicitação sobre o caráter discursivo do cinema, mas apresenta outros

compromissos políticos e sociais. O documentário é lançado em meio ao início de uma década

318 Citações referentes ao artigo de Chauí debatido no Capítulo 3. Ver nota 185.319 Citações referentes ao artigo de Bernardet visitado no Capítulo 3. Ver nota 199.320 Citações referentes a recepção de Cabra marcado nos jornais em 1980´s. Ver notas: 164 a 168 e 188.321 Estudos de Cinema SOCINE 2000, Porto Alegre, Editora Sulina, 2001, RAMOS, Fernão Pessoa. O que é

documentário? pp. 192/207. p.194.130

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marcada pela “nova classe operária” em movimento e seu desenrolar com a formação do PT e

a fundação da CUT. Mobilizava-se sonhos e perspectivas em um projeto “autônomo” da

classe trabalhadora, se forjando novas lideranças nacionais em um contexto de força força

social e política irrisória das “velhas esquerdas” e seus projetos. Além disso, para contribuir a

“intelectualidade” poderia se engajar a partir de seu lugar social privilegiado de fala: era

preciso “dar voz” a “história dos de baixo”, seja estudando e escrevendo ou produzindo filmes

sobre o “novo sindicalismo” e as lutas dos “novos movimentos sociais” 322. O filme de

Coutinho, apesar de se passar distante geograficamente dessa experiência, corrobora a

perspectiva, tanto desse “novo papel do intelectual”, como de um projeto autônomo de

política e história “dos de baixo”. As questões apresentadas nessa suposição correm no

sentido da necessidade de historicizar a recepção de uma obra de arte quando a trabalhamos

como fonte histórica, e dessa maneira, compreender melhor tanto suas “inovações

metodológicas” como a partir de onde se constrói a valoração dessas propostas. Dessa

maneira, espero ter demonstrado a necessidade de compreender que a história do cinema e da

linguagem não estão apartadas da sociedade e da política, mas antes constroem

“possibilidades metodológicas de representação do mundo”, que são legitimadas conforme

uma trama social complexa.

Uma última proposição. Ao longo de todo o documentário, através dos depoimentos e

da montagem, identificam-se em Elizabeth as marcas da perseguição política e da luta

popular. Em algumas passagens a camponesa postula um “tom de discurso” e nos deixa

entrever como sua identidade é marcada pelo papel social de “liderança popular”. Não é por

acaso que suas palavras de despedida sejam altivas e tentem sintetizar e “dar voz” a uma série

de afirmações políticas. Coutinho se despedindo concorda com a camponesa – “democracia

sem liberdade?” – mas sua síntese parece pequena perto do que Elizabeth pretende expressar.

“Democracia com um salário de miséria, de fome? Democracia com o filho do operário e do

camponês sem ter direito a estudar, sem ter condições para estudar?” A síntese da

“democracia” por parte desses “dois lados” não parece arbitrária, mas antes pode apontar o

significado da experiência que foi a ditadura para dois “setores sociais” distintos, tanto

individualmente como coletivamente. Visitamos nesse trabalho a trajetória de Coutinho, e

compreendemos sua carreira a partir da ruptura que significou o golpe militar de 1964 para os

projetos nacionalistas e desenvolvimentistas, assim como para a estética nacional-popular.322 Faço referência aqui às obras cinematográficas ABC da greve (Hirszman, 1979) e Linha de montagem (Tapa-jós, 1982).131

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Também compreendemos essa trajetória no decorrer da modernização conservadora e

autoritária que incorporou e profissionalizou, de diferentes formas, em meio a diferentes

“rearranjos pragmáticos”, intelectuais e artistas da esquerda. No momento da abertura

política, Coutinho busca revelar as trajetórias dos camponeses com quem havia partilhado

uma longínqua experiência, podendo reverberar suas histórias através da “opinião pública” e

do “espetáculo” do cinema, utilizando seu lugar privilegiado para “dar voz” ao outro, agora

sob outra ótima de “engajamento político”. Isso se explicita em sua entrevista quando

comenta a retomada de Cabra marcado na época de seu lançamento:

“Essa coisa não-terminada é uma frustração para qualquer pessoa, uma sensação de impotência e decastração. Então terminar isto é uma forma de “revanchismo simbólico”. Eu acho que o revanchismosimbólico é tudo que nos resta, a nós, intelectuais – a gente não quer prender nem matar ninguém – agente quer repor a história real, a história verdadeira, com os fatos e a sua interpretação.” 323

Nesse sentido, nos momentos finais com Elizabeth, Coutinho deixa entrever suas

preocupações em relação a “liberdade” necessária para a construção da “democracia”, questão

vinculada a como compreende seu papel social diante das transformações operadas na

sociedade.

Entretanto, a liberdade de Elizabeth se expressa também em outras reivindicações que

parecem estar mais próximas da ambicionada “aliança operária-camponesa-estudantil” e das

lutas da época do Primeiro cabra: “A luta que não para, a mesma necessidade de 64 está

plantada. Ela não fugiu um milímetro. A mesma necessidade tá na fisionomia do operário, do

homem do campo e do estudante. (...) “Democracia com um salário de miséria, de fome?

Democracia com o filho do operário e do camponês sem ter direito a estudar, sem ter

condições para estudar?” Nesse sentido, Elizabeth Teixeira aponta a diferença do lugar social

onde se coloca, assim como a diferença na sua compreensão das “necessidades” da

democracia.

3.11 Conclusão

Como demonstrei ao longo desse trabalho, o cinema pode ser utilizado como fonte

para a produção de conhecimento histórico, em um rico dialogo entre obra de arte, sociedade

e política. Isso porque todo processo de elaboração, realização e recepção de um filme possui

historicidade, não se tratando de um “veículo neutro” que “emana o real” ou um “reflexo da

realidade”. Trata-se, na verdade, de uma construção que envolve escolhas subjetivas (a sua323 Estado de Minas. Caderno dois. Belo Horizonte. 18.03.85.132

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linguagem artística e ficcional), assim como objetivas (pois registra e cria uma realidade

própria, ainda que ficcional, encenada em outro espaço e tempo) que flertam com o fetiche da

objetividade e do realismo existentes na sociedade. 324 Dessa forma, o cinema deve ser

entendido como encenação, porém, que não se faz em um campo apartado da realidade, mas

que também evidência o processo ou evento no qual está inserido. Sendo assim, para a

construção do conhecimento histórico junto ao cinema, procura-se aqui analisar esse objeto de

representação e evidência articulando seu “conteúdo”, sua linguagem e suas tecnologias de

representação junto a outras fontes e dados históricos.

Para subsidiar esse olhar, visitou-se o processo de “modernização econômica” que, a

partir da década de 1960, avança na substituição de importações, já na via da industrialização

pesada, junto a crescente demanda dos bens de consumo duráveis. A transformação da

sociedade é evidente, com a acelerada urbanização, o aumento do poder de consumo das

massas e a emergência de modos de vida metropolitanos. Uma efervescência inédita na vida

política e artística dos grandes centros fazia-se presente, com a mobilização de organizações

políticas, grupos artísticos e intelectuais dispostos a construir a “revolução brasileira” sob

diversas perspectivas. Esses meios compartilhavam uma “estrutura de sentimento romântico-

revolucionária”: uma visão de mundo romântica, pois de crítica à modernidade, responsável

pela perda de valores humanos essenciais “alienados” do passado; Revolucionária ou utópica,

pois se comprometia a construir um futuro de resgate desses valores, afirmando nas raízes

populares e nacionais as bases para a construção da revolução nacional e modernizante capaz

de romper com o subdesenvolvimento. 325 A experiência da UNE-Volante e do CPC deve ser

entendida dentro desse processo histórico, assim como sua produção cultural, no que interessa

a essa dissertação, em especial o filme Cinco vezes favela e a primeira tentativa de realizar

Cabra marcado para morrer.

Nesse início da década de 1960, a luta pelas “reformas de base” causou profunda

preocupação a diversos setores, principalmente os comprometidos com os interesses do

capital internacional. Nos instantes que antecedem o golpe militar de 1964, a base de

sustentação da legalidade se demonstrou vacilante, enquanto outros setores aderiram ao golpe.

Segue-se a repressão aos militantes de esquerda e o desmantelamento de suas organizações,

uma perseguição que se estende a civis e mesmo militares ligados à luta pelas “reformas” ou

324 NAPOLITANO. 2005. Op. cit, p. 235.

325 RIDENTI. 2010. Op.cit, p.87.133

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que se opuseram ao regime autoritário. Após o golpe, a crítica à ditadura perpassa diversos

setores, como a oposição pacífica e moderada do MDB, da Frente Ampla, de perseguidos

políticos e do PCB. Esse último advogada a tática de um amplo frentismo cultural e político,

que seria capaz de retirar as bases de sustentação do regime.

Junto a nascente “teoria do populismo”, outros setores criticam a política de

conciliação dos comunistas pré-golpe de 1964, “culpabilizando” o governo Jango por não

dotar de autonomia os trabalhadores e suas organizações, o que teria cobrado seu preço no

momento do golpe militar. Em meio a esse debate sobre as causas de 1964 forjam-se as

primeiras críticas sobre o cinema “nacional-popular”, com o trabalho paradigmático de

Bernardet, Brasil em tempos de cinema (1967) A experiência da UNE-Volante haveria

produzido obras “idealistas” e “didatistas”, comprometidas com “ilustrar ideias pré-

concebidas” passíveis de “uma compreensão e interpretação única”, uma “realidade

asséptica”: a estética era prisioneira da necessidade de demonstração da concepção

materialista de seus autores.326 Ademais, o frentismo cultural passaria a ser questionado no

fim da década de 1960 por figuras como Glauber Rocha, Zé Celso, Caetano Veloso e os

tropicalistas, em um momento de integração dos artistas à indústria cultural conjuntamente a

perda de referência nos realizadores próximos ao PCB. A estética “dos comunistas” é

apontada como integrada ao sistema e conservadora esteticamente.

A consolidação da indústria cultural se fazia a passos largos junto às diversas

modificações sociais e políticas no Brasil. Na década de 1970 o país se constitui

majoritariamente urbano, com o crescimento da expectativa de vida, do ensino básico e das

“classes médias”. Além disso, os meios de comunicação se nacionalizam e a televisão

sobrepõe-se a hegemonia do rádio, processo que conta com o aporte financeiro e o apoio do

Estado com a criação de órgãos de fomento na área de comunicação e de cultura. Artistas e

realizadores encontram possibilidades e estabilidade financeira e profissional tanto em órgãos

públicos como privados, sendo possível caracterizar em suas obras uma série de

“deslocamentos de discurso” e ambiguidades. Distante das propostas cepecistas e do

paradigma “romântico-revolucionário”, após anos contribuindo com jornais e escrevendo,

dirigindo e atuando em diversos filmes, Coutinho encontra estabilidade profissional na TV

Globo e aprofunda seu contato com a linguagem documentária. Como apontado através de

Seis dias em Ouricuri, os filmes no Globo repórter dessa época, apesar de mediados pela

326 BERNARDET. 2007. Op.cit, p.42-3.134

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censura do regime, conseguiram registrar diversos “temas sociais”, além de produzir

experimentações de linguagem devido ao processo relativamente autônomo do programa, que

escapava da “censura interna” da emissora.

Aproveitando suas duas férias acumuladas na emissora Globo, um financiamento da

Embrafilme e sua experiência de documentarista, Coutinho parte em 1982 a procura de

Elizabeth Teixeira e sua família, com outra proposta em mente para filmar Cabra marcado

para morrer. Não só as ideias eram outras, como o momento social e político do país. Desde o

fim dos anos de 1970 o Brasil assista a processos generalizados de greve que tiveram como

epicentro o ABC paulista e atingiram diversas categorias pelo país. Forjavam-se novas

direções sindicais e políticas de alcance nacional, assim como se estabelecia um “vínculo

orgânico” entre os cientistas sociais e acadêmicos - que tentavam compreender o fenômeno do

“novo sindicalismo” - e os envolvidos nas lutas operárias.327 Em meio ao “novo”, a

historiografia sobre a produção artística dos anos 1960 consolida uma visão com os trabalhos

de Chauí, Ortiz e Pécaut328 nas décadas seguintes, assim como sobre o cinema “nacional

popular” a partir da obra paradigmática Cineastas e imagens do povo (1985) de Bernardet. A

experiência ganha outros adjetivos como “encenação esquemática”, “paternalista e

autoritária”, “onipotente”, “maniqueísta”, etc. Além disso, há a generalização de certas

concepções estéticas – de Carlos Estevam principalmente – como sendo a do conjunto dos

atores envolvidos na experiência do CPC, assim como uma leitura, que ao procurar os

“esquematismo” dos enredos, perde de vista as tensões e contradições existentes nas obras de

arte.

Junto à recepção nos jornais, da crítica cinematográfica e da academia, esses trabalhos

forjam também uma leitura de que Cabra marcado para morrer seria o momento de

superação do olhar “idealista” diante do “outro de classe” devido as suas marcas estética e

éticas: um encontro com “o outro” marcado por entrevistas dialógicas; uma montagem que

não “esconde” as negociações com o entrevistado, nem as contradições entre os discursos

desses e do cineasta; um cinema meta-narrativo que ao colocar dentro de campo seus

“dispositivos” de captação denúncia a si próprio como fruto de um processo discursivo

munido de manipulação. Caminha nesse sentido a descrição do cinema de Coutinho nos

jornais e artigos da crítica: um olhar que compreende a “complexidade do real”, um “filme

sobre pessoas e não classes”, um “documentário preciso, conciso e dramático”, que “caminha327 BRAGA, SANTANA. 2009. Op.cit, p.p.300-303.328 CHAUÍ, 1983; ORTIZ, 1986; PÉCAUT, 1990.135

Page 142: ALEXANDRE IRIGIYEN VANDER VELDEN5 O que seria uma “arte engajada” não é lugar consensual, nem para artistas, nem estudiosos da área, sendo um conceito que se transformou junto

com o povo”, um “work in progress”, um trabalho de “mensagem aberta” de onde “brota a

metáfora” sobre o mundo. Essas leituras estabelecem a “positividade” do Segundo cabra em

contraposição a “negatividade” das experiências do cinema engajado anteriores,

principalmente no que diz respeito à produção artística “nacional popular”.

A partir da década de 1990, trabalhos como o de Barcellos, Miliandre Souza e Thiago

Silva apontam uma memória mais plural e conflituosa da experiência cepecista.329 Na

contramão da historiografia consolidada, esses trabalhos apontam as disputas internas

envolvendo os artistas e intelectuais no interior das entidades artísticas e estudantis, assim

como a troca e o contato profícuo entre intelectuais, artistas e as classes populares. Além

disso, novas análises apontam tensões e questões que perturbam o suposto “esquematismo” de

obras como o filme Cinco vezes favela. Essas pesquisas avançaram na compreensão da

experiência do CPC, principalmente por seu olhar empírico sobre os debates da época, assim

como as contradições presentes nas obras. Recentemente, trabalhos de maior alcance temporal

e bibliográfico, como o de Napolitano (Esquerdas, política e cultura no Brasil (1950-1970):

Um balanço historiográfico) tem surgido e demonstrado a ligação entre a historiografia sobre

o “nacional popular” da década de 1960 e sobre as transformações do campo cultural nas

décadas seguintes, com seus contextos sociais e políticos de produção.

É a partir dessas referências que analiso o que chamo de historiografia consolidada,

tendo em mente as transformações sociais e políticas que ocorriam no Brasil, momento não só

de distensão política, mas também da afirmação de novas lideranças e movimentos sociais.

Tanto nos discursos dos “novos sindicalistas” como no dos cientistas sociais, criticava-se o

“sindicalismo populista” e a “velha esquerda”, buscando legitimar-se o “novo” que viria “da

base” e seria “espontâneo”. A positividade da recepção de Cabra marcado, sem dúvida, deve-

se a suas inovações e seu valor no campo cinematográfico, entretanto, também deve ser

entendida a partir de seu forte diálogo com as questões e paradigmas da década de 1980 no

Brasil: um documentário sobre a luta “dos de baixo”, no qual suas diferentes visões sobre

passado e o presente seriam ouvidas “democraticamente”, em uma nova postura do intelectual

que se postula “ao lado” do “outro de classe” e não como detentor da iluminação; um filme

que resgata a experiência do CPC e da UNE-Volante, a fim de superá-la e não reproduzi-la;

um filme que não se propõem a apontar “a verdade”, entendendo-se e denunciando a si

próprio como discurso cinematográfico.

329 BARCELLOS, 1994; SOUZA, MILIANDRE G. de, 2002; SILVA, 2011.136

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É importante compreender a “reflexividade” de Cabra marcado também como

responsável pela sua recepção positiva e pelo seu estabelecimento como um marco na história

do cinema brasileiro. Aceitando a conceitualização de Fernão Ramos sobre a ideologia

contemporânea predominante no cinema documentário – a desconfiança da representação

objetiva e da espessura do sujeito enunciador 330 -, é possível afirmar que Cabra marcado é

pioneiro em deslocar a “voz do saber” - onisciente e fora de campo – para um jogo de vozes

enunciadoras diversas que falam sobre o mundo e de si mesma através de sua montagem com

elementos “ecléticos”. O trabalho “sem roteiro”, a demonstração dos “dispositivos” e das

“negociações” e as falas que questionam o poder do cineasta se somam as características

apontadas pela crítica como marcos da superação da forma representativa do cinema clássico,

marcado pela asseção “de fora”, de um “lugar do saber”, sem se problematizar como

construção. Essa dissertação busca apontar não apenas as diferenças e originalidades do

documentário de Coutinho, mas também compreender que a valoração de certa forma

representativa possui historicidade e não se desvincula de seu contexto social e político. Nesse

sentido, a crítica a “velha esquerda” se imbrica na crítica a “velha forma” na legitimação de

“novos atores” políticos e uma nova postura do intelectual. Essa dissertação postulou essa

hipótese, e caminhou demonstrando as ligações existentes entre o campo estético, social e

político, assim como a complexa “rede de legitimações” nas quais as obras de arte e os atores

sociais estão inseridos nas décadas que perpassam a tentativa do Primeiro cabra e sua

conclusão como documentário.

No entanto, compreender a inflexão de um contexto histórico sobre uma obra de arte,

não exime da crítica, a necessidade de propor uma leitura sobre quais são as inovações e qual

a importância de determinado filme. Estabelecer esses “marcos” perpassa tanto o campo da

história do cinema – quando nos atentamos de forma mais completa as transformações da

linguagem e das técnicas – como o da história social – quando colocamos um filme em

diálogo com sua época e o indagamos como fonte histórica. Nesse sentido, essa dissertação

propõem alguns apontamentos sobre a estética do Primeiro cabra e a experiência

cinematográfica ao seu redor, utilizando as imagens desse filme presentes no documentário de

1984. É possível afirmar que essa experiência se constituem em meio à “estrutura de

sentimento romântico-revolucionária”, momento no qual os militantes, artistas e intelectuais

buscam se aproximar das massas e das camadas médias da sociedade, com o intuito de

330 RAMOS. 2008. Op.cit, p.21.137

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desaliená-las e mobilizá-las em torno de reformas sociais e políticas, e assim contribuir com a

“revolução brasileira”. Nesse sentido, tem-se nas imagens do Primeiro cabra o “tributo” ao

nacionalismo da época, assim como ideologias ligadas ao compromisso de “modernizar” o

país, como o desenvolvimentismo. Entretanto, o documentário não atribui um signo

marcadamente negativo a essa experiência, diferentemente de Coutinho em artigos e

entrevistas, assim como diversas outras críticas, após o lançamento de Cabra marcado em

1984.

Em relação a sua linguagem e roteiro, Cabra um segue o modelo de representação

clássico do cinema realista, com enquadramentos convencionais, “personagens planos” e um

roteiro escrito por Coutinho e pouco discutido internamente entre os membros do CPC. No

entanto, há cenas que destoam dessas características e foram desenvolvidos de maneira

original para a época. É o caso do conflito entre os camponeses e o administrador do engenho,

que teve seu roteiro construído a partir da seleção de falas de Coutinho sobre um jogo de cena

com os camponeses, que construíram diálogos a partir de uma temática. A cena, muitas vezes

utilizada para demonstrar o “didatismo” do filme (a figura do administrador em plongée como

lugar de poder, em contraposição a fragilidade dos camponeses vista em contra-plongée) na

verdade demonstra além de uma “dramaturgia compartilhada”, falas que tencionam a

negociação, entre o conflito e a conciliação, tanto dos camponeses como do administrador.

Nesse sentido, o argumento que trata-se de uma cena própria da “impostura iluminista” é

questionável, tanto no sentido discursivo da cena, como na argumentação de que o

“idealismo” deve-se ao “lugar de classe” de Coutinho, pois o “outro de classe” contribuiu para

as falas, ainda que sob a seleção do cineasta. Outra cena na contramão da suposta “tipificação

dos personagens” presente na obra, é a que apresenta a vida privada e a cultura popular

através da canção “coco” cantado por Elizabeth e seus filhos.

Essas cenas não estabelecem o Primeiro cabra como marco de um “novo” cinema

engajado, nem o diferencia substancialmente das produções desse ambiente da época. O que

aponto são pequenas inovações que vão no sentido de “dar voz ao outro”, questão na qual a

historiografia consolidada se apoia para criticar a “distância” entre intelectuais e as massas,

assim como a ausência “dos de baixo” da produção da sua própria representação. Essa

dissertação apontou que há indícios de um profícuo contato entre os jovens do CPC e da

UNE, assim como de intelectuais das classes médias com as bases e lideranças de diversos

movimentos artísticos e políticos através das atividades da UNE e de movimentos artísticos

138

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urbanos (como a UNE-Voltante, as atividades do CPC, os festivais da canção, o bar Zicartola

e os debates em torno da reforma universitária e das “reformas de base”). É importante ainda

apontar que o contato entre essas partes direciona e conforma as produções artísticas, sendo

sua linguagem e imagens indícios desse “contagio”, não se sustentando a ideia que essas

criações artísticas são obra apenas do “intelectual” , devido ao fato da escrita de um roteiro ser

construção de seu intelecto.

Além disso, esse debate atenta para o fato de que não há determinada linguagem que

abarca a realidade da maneira mais “verídica”, mas sim tradições estéticas que representam de

diferentes formas o mundo e que são valoradas conforme uma complexa trama, que envolve

não apenas “como” olhar e representar “o real”, mas também atores em busca de legitimação

social e política. Dessa forma, é importante atentar que a linguagem da representação do

cinema clássico no contexto da historiografia consolidada é aproximada da suposta forma

“idealista” e “de fora para dentro” que o cinema engajado da década de 1960 supostamente

possuiria. Essa valoração negativa é melhor entendida justamente quando atentamo-nos para o

fato de que é simultânea tanto a crítica as “velhas esquerdas” e as “velhas formas”, como a

positivação de uma “nova esquerda” e de um “novo método”. Nesse sentido, Cabra marcado

pode ser entendido como marco de uma recepção “tardia” das ideias cinematográficas do

cinema moderno em meio a um contexto específico (e explosivo) de luta social e política,

contribuindo na legitimidade da crítica ao “velho”.

No entanto, como já comentei, para além de compreender a trama na qual está

envolvido a legitimação de nossa fonte histórica, é preciso compreender as características

principais, o que há de inovador e quais são as ligações de certo objeto com seu passado.

Minha análise aponta como Cabra marcado confere “poder” ao cinema com a contraposição

constante ao longo do documentário entre as projeções do Primeiro cabra, os camponeses

como expectadores e as entrevistas contando suas sensações diante do filme, em um

movimento de revelação, sensibilização, identificação e mobilização dos envolvidos na

experiência cinematográfica. Nesse sentido, Coutinho aponta o cinema como prática

interventora através do jogo projetor/expectador e esse “poder” se concretiza tanto nas

imagens do documentário – que registra a saída da clandestinidade de Elizabeth e seu resgate

identitário e comunitário, assim como o de sua família – como pela repercussão social do

filme na época. Esse poder da imagem também fica claro nos enquadramentos dos

camponeses que aparecem ao lado de suas famílias pousando como para um retrato, como um

139

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resgate da “história dos vencidos”. Cabra marcado como um filme de memórias e de

identidade – do cineasta, da família Teixeira e dos camponeses –, é um lugar comum tanto na

crítica da década de 1980 como na crítica contemporânea do filme, visitada nos diversos

trabalhos ao longo dessa dissertação. 331

As imagens de arquivo, assim como a trilha sonora, possuem várias utilizações em

Cabra marcado para morrer. Em certos momentos são utilizadas como “vestígios” do

passado, atestadoras de certo período histórico ou de certa linguagem cinematográfica, caso

das imagens da UNE-Volante e do Primeiro cabra. Essas mesmas cenas são utilizadas em

outros momentos para acompanhar a narrativa, auxiliando a voz over a “contar” os

acontecimentos passados, embrenhando a história de João Pedro Teixeira e dos camponeses

com a representação de sua história filmada em 1964. Outra utilização das imagens ocorrem

quando são montadas junto a determinada trilha sonora, proporcionando uma sensação similar

a o que seria assistír cenas do Primeiro cabra caso houvesse sido concluído. Uma música

regional, um estampido, um instrumento de sopro, entre outros sons, constituem uma trilha

sonora ativa na dramaticidade das cenas junto as imagens, fotos e manchetes de jornais.

Também é diverso o uso das fotos, dos recortes de jornais e outras fontes escritas. Elas

servem tanto para marcar cronologicamente os acontecimentos, como atestam a “veracidade”

da voz over, sendo que muitas vezes não acrescentam elementos para a narrativa. Esse último

caso ocorre quando apenas as manchetes dos jornais ou o roteiro do Primeiro cabra são

apresentados rapidamente, assim como a carteira de associado das Ligas Camponesas, não

havendo qualquer uso reflexivo sobre seus “conteúdos”. Além disso, as fotos servem em

diversos momentos tanto para gerar um sentimento de empatia com o espectador, como nos

closes nas fotos do corpo baleado de João P. Teixeira e dos filhos falecidos de Elizabeth,

Marluce e Pedro Paulo. Por fim, pode-se apontar o uso de fotos entre outros recursos

audiovisuais como forma de sensibilização dos entrevistados do documentário. É o caso das

fotos do “set” e a projeção das cenas do Primeiro cabra, assim como a leitura de uma

correspondência (entrevistas de Marinês) e a reprodução de uma gravação sonora com a voz

de Elizabeth (entrevista de Marta).

Em relação ao uso da “voz over” atenta-se ao menos para três diferenciações: a voz de

Gullar que assere sobre “fatos históricos” de maneira mais distante, não só apontando

acontecimentos, mas também sintetizando e concluindo movimentos, ajudando assim na331 BERNARDET, 1985, In: OHATA, 2013; SCHWARZ, 1985, In: OHATA, 2013; MONTENEGRO, 2001;

GERVAISEAU, 2003.140

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inteligibilidade da narrativa. Já Coutinho assere de um universo da “experiência”, mais

próximo dos camponeses e arrogando a si o papel de sujeito daquela história - “Eu vivi”; “Eu

vi”. Essas funções das falas se confundem poucas vezes, sendo nítida as suas funções

diferentes. Um último narrador tem apenas uma inserção no filme – identificado nos créditos

como Tite de Lemos – funcionando como uma “voz falsa” e “ideológica” que assere notícias

sobre o suposto foco revolucionário em Galiléia, desmascarado pela montagem do

documentário.

Outro aspecto interessante ligado a voz over é a presença de diversos estilos e

tradições linguísticas do filme. Em diversos momentos o narrador enfatiza ou repete

determinada fala, em uma linguagem próxima a jornalística. Além disso, é possível afirmar a

“encenação” contida em certas cenas, como no caso de Manoel trabalhando ou da repetição

por diversos entrevistados da fala: “Tem alguém lá fora”. Nota-se ainda que, mesmo não

sendo a tônica do documentário, as diversas vozes que asserem em over ao longo do

documentário, principalmente nas asserções de Gullar, enquadram-se na utilização

característica da “voz impessoal e onisciente” do cinema documentário clássico. Entretanto,

sem dúvida, a linguagem mais marcante é a próxima ao “cinema verdade” francês e ao

documentário contemporâneo, como as “multiplas vozes” asserindo, o uso de elementos

ecléticos na montagem, as abordagens das entrevistas sem combinados prévios e a existência

ao longo do filme das “negociações” e dos “convencimentos” que ocorreram. Essas cenas se

mostram nas asserções de Abraão sobre sua negociação financeira com Coutinho e em sua

cobrando que certa fala permanecesse na montagem. Como argumentei em minha hipótese,

compreendo que essa “recepção tardia” da linguagem característica do “cinema verdade” é

um dos motivos de positivação do documentário pela crítica na época de seu lançamento, pois

caminha no sentido de dar respostas ao paradigma moderno de “desconfiança da espessura do

sujeito”, momento no qual se afirma a necessidade de “denunciar” a própria obra de arte

como construção discursiva.

Nesse sentido, é importante apontar que toda obra cinematográfica pressupõem em seu

processo de elaboração e montagem determinado “poder” de manipulação do diretor. Sendo

assim, é possível apontar as “necessidades” e “intensões” de Coutinho a partir do

encadeamento entre imagens e sons de Cabra marcado. Diversas passagens buscam carregar

o tom dramático dos acontecimentos e gerar empatia com determinados “personagens”, e para

isso utiliza montagens em paralelo, intercala falas conforme convêm (rompendo com a

141

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cronologia de captação das entrevistas) e, como já apontado, utiliza a trilha sonora conferindo

determinada intensidade das cenas. É o caso da sequência que assere sobre a morte de João

Pedro Teixera, no qual vemos uma câmera em chicote (simulando a queda do camponês) e

closes em sua foto baleado. Também é o caso da sequência que denuncia a “ofensiva”

ideológica da direita: um apito confere dramaticidade sobre manchetes das “Marchas da

família com Deus” e a invasão militar de Galiléia, enquanto se contrapõem imagens e falas

que denunciam como falso as notícias veiculadas. A montagem desmascara o discurso

ideológico contido nos jornais sobre “a película que ensinava como os camponeses deviam

agir de sangue frio” quando fosse preciso “dizimar pelo fuzilamento, decapitação ou outras

formas”, assim como a falsidade da notícia da morte de Nego Fúba e Pedro Fazendeiro pelo

esquadrão da morte. Nota-se nessa sequência também certo encadeamento da fala off de

Coutinho e do depoimento de Elizabeth, que sugere um contato pouco orgânico entre as lutas

camponesas e as organizações e mobilizações revolucionárias internacionais. Em outros

momentos a busca de empatia e identificação se dá por uma montagem eclética e artística,

como na leitura do romance Caput por João José e a sugestão de Coutinho ao camponês que

haveria um paralelo dessa história com o filme. Talvez o momento de maior impacto da

montagem na dramatização das cenas seja o depoimento de Virgínio sobre seu cárcere, no

qual ocorre a quebra cronológica dos depoimentos do camponês junto a uma montagem em

paralelo com cenas do presídio em Recife no qual ficou detido.

Como debatido na introdução dessa dissertação, não deve-se compreender uma

imagem cinematográfica como “exata” ou o “reflexo do real” determinado por um “princípio

de autenticidade de registro”, ou seja, certo método de captação e manipulação332. No sentido

contrário, atento para as sequências acima, pelo fato delas explicitarem a “interferência” de

Coutinho conjuntamente as imagens e sons, conferindo certo “sentido” a narrativa e sugerindo

determinada “sensação” ao espectador. Entretanto, também não deve-se tomar a obra

cinematográfica como transposição direta das ideias e dos anseios do cineasta, como se a

manipulação do diretor criasse uma realidade paralela e independente do encontro no qual se

constituiu seu contato com o entrevistado. Esse raciocínio esvazia o caráter “vestigial” da

“verdade do encontro” que existe nas imagens, independente da vontade do diretor, além de

transformar certa mediação específica - própria do encontro com o “intelectual” ou quando

esse fala sobre “o outro” - , em um silenciar “do outro”, supostamente inerente a natureza

332 Ver Cinema e história: notas teórico-metodológicas na Introdução dessa dissertação.142

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“desigual” de um encontro.333 Essa “mediação” e “fala”, na verdade, podem se expressar de

diversas formas e em diversos graus de autonomia ou autoritarismo, sem necessariamente

advogar-se a “neutralidade”. Além disso, está contido nas imagens e sons cinematográficos

uma serie de “vestígios” que escapam a suposta “intenção” de Coutinho, possuindo as

imagens um “carater polissêmico”.334

Característica marcante ainda do documentário, valorizada pela crítica para legitimar a

inovação e o valor do método e da ética do filme, é a presença de falas diversas e

contraditórias ao longo do filme. É o caso da negação de Brás de seu passado na luta

camponesa e a afirmação de Mariano de ter participado do filme devido a “bondade” do

diretor, sendo que não queria qualquer ligação com o “movimento revolucionário”. As

entrevistas com os filhos e o pai de Elizabeth também atestam essa multiplicidade de

memórias divergentes sobre o passado, em depoimentos marcados por sentimentos de afeto e

rejeição próprios da experiência traumática de dispersão forçada. Eudes, apesar de não se

lembrar da mãe, diz ser marcado por uma revolta interior devido a sua história. Marta

demonstra mágoa pelos parentes não ajudarem “quando mais a gente precisa”. Já Justino

tenta escapar da entrevista e não cita o nome de João Pedro Teixeira em seu depoimento.

As falas mais marcantes no aspecto da contradição são as de agradecimentos de

Abraão e Elizabeth ao presidente João Figueredo em contraposição a suas falas contra o

regime e sobre a luta popular. Essas falas devem ser entendidas no contexto de “distensão

política” de um regime autoritário, no qual coabitavam esperanças com a abertura política

conjuntamente a inseguranças e possíveis reveses. Nesse sentido, essas falas não devem ser

vistas como elogios ingênuos, mas antes parte do processo dialético de negociação da saída da

clandestinidade, tanto da família Teixeira, como de uma série de militantes e ativistas

perseguidos pelo regime. Além disso, a valorização do documentário devido a presença de

uma “diversidade de vozes” deve ser compreendido no contexto político nacional marcado

pela necessidade de trazer não só a história “dos vencidos” ao debate público, mas também de

construir um espaço político “democrático”, aberto a diversidade de posições e aos discursos

contraditórios.

Por fim, cabe lembrar que uma dissertação, apesar de suas hipóteses, sempre é um

trabalho aberto e inconcluso. Levando em conta os limites de uma ligeira pesquisa, esse333 A leitura de Menezes (1994) visitada aqui caminha nesse sentido.

334MORRETIN, 2003. Op.cit.143

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trabalho espera ter avançado em relação a compreensão do “cinema engajado” e do campo

cultural brasileiro pós década de 1960 no Brasil, assim como ter contribuido para uma crítica

mais atual sobre o tema. Entretanto, ainda faz-se necessário aprofundar os estudos empíricos e

a elaboração teórico para a construção de uma históriografia para além de modelos que

dicotomizem a questão e generalizem determinada produção artística a fim de positivar outra.

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Filmografia

Cabra marcado para morrer. Rio de Janeiro, 1964-1984, 35mm, cor/pb, Im; realização/rot:Eduardo Coutinho; fot: Fernando Duarte (1964), Edgar Moura (1984); mont: EduardoEscorel; som direto: Jorge Saldanha.

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