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MARINETE LUZIA FRANCISCA DE SOUZA UMA ABORDAGEM DA POÉTICA ENGAJADA DE PEDRO CASALDÁLIGA Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT Instituto de Linguagem - IL CUIABÁ 2007

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MARINETE LUZIA FRANCISCA DE SOUZA

UMA ABORDAGEM DA POÉTICA ENGAJADA DE PEDRO CASALDÁLIGA

Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT

Instituto de Linguagem - IL CUIABÁ

2007

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MARINETE LUZIA FRANCISCA DE SOUZA

UMA ABORDAGEM DA POÉTICA ENGAJADA DE PEDRO CASALDÁLIGA

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem, do Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem. Área de concentração: Estudos Literários e Culturais Linha de pesquisa: Estudos Literários Orientadora: Profª Drª Célia Maria Domingues de Rocha Reis

Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT

Instituto de Linguagem - IL CUIABÁ

2007

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Dedico este trabalho àqueles com que

Pedro Casaldáliga trabalha, a quem chama “retirantes”.

E também, a meus pais Jordelino Gomes de Souza e Minervina Francisca de Souza.

(In memórian)

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Agradeço aos companheiros da república “cabeção” com quem moro desde 2005. À minha orientadora Profa. Célia Maria Domingues Rocha Reis. A Pedro Casadáliga pela disponibilidade com que fornece as informações que lhes são solicitadas. E, infinitamente, a Deus.

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“ES tarde / pero es nuestra hora. Es tarde / pero es todo el tiempo / que tenemos a mano / para hacer futuro. / Es tarde / pero somos nosotros / esta hora tardía. / Es tarde / pero es madrugada / si insistimos un poco."

Pedro Casaldaliga ( CG, p.38)

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RESUMO

SOUZA, Marinete Luzia Francisca de. Uma abordagem da poética engajada de Pedro Casaldáliga

Este trabalho é uma reflexão sobre o alcance da poesia de Pedro Marìa

Casaldáliga Plá, poeta e teórico, padre, conhecido por sua atuação junto aos movimentos

sociais, segundo orientação da Teologia da Libertação, com base em duas concepções

metodológicas: a estilística literária e a crítica sociológica. A análise textual apontou para a

conjugação de diferentes vozes e culturas como princípio construtivo fundamental, pelo qual

o autor faz um discurso poético fundamentalmente comprometido com o ser humano. No

discurso, busca o tempo e o espaço como elementos que permitem conhecer o homem de que

fala. Este estudo partiu da necessidade de identificar e reunir os principais temas aos quais

estão relacionados esses elementos, confrontando-os, e, com isso, e com isso levando-os de

volta à unidade constitutiva da obra, ou seja, o homem e a existência humana.

Palavras-chave: Pedro Casaldáliga, análise sócio-estilística, poética engajada, homem.

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ABSTRACT

SOUZA, Marinete Luzia Francisca de. Uma abordagem da poética engajada de Pedro

Casaldáliga

This work is a reflection on about the poetry of Pedro María Casaldáliga Plá. It is based on

literary Stylistic and sociological critique. Casaldáliga is a poet and a church father. He is

known by his participation in social movements including Liberation Theology. The textual

analysis of his poetry has shown the usage of different discourses and cultures as

fundamental. The poet makes poetical discourses engaged in human condition. His poetry we

can see time and the space as elements which allow its important the development of his

thoughts about in his poems. Because of that an identification and joint they min themes,

which are related to these elements is needed. The elements are I confronted with the themes

to reconstruct to the constructive unit of his work, understood as art.

Key–words: Pedro Casaldáliga, stylistic literary and sociological critique, poetical engaged,

man.

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LEGENDA DAS SIGLAS UTILIZADAS PARA REMETER AO LIVRO

EM QUE FORAM PUBLICADOS OS POEMAS CITADOS NA DISSERTAÇÃO.

TE-Tiempo y Espera

CL- Clamor Elemental

AT-Antologia Retirante

CG-Cuia de Gedeão

AT-Àguas do Tempo

FCV-Fuego y Ceniza al Viento

CM-Cantigas Menores

PU-Palvra Ungida

AR-Antologia Retirante

SNP- Sonetos Neobíblicos Precisamente

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SUMÁRIO

Dedicatória........................................................................................................................... iv

Agradecimentos ................................................................................................................... v

Epígrafe .............................................................................................................................. vi

Resumo ............................................................................................................................... vii

Abstract ............................................................................................................................... viii

Legenda ............................................................................................................................... ix

Introdução............................................................................................................................ 01

CAPÍTULO 1. A OPÇÃO PELO HOMEM .......................................................................24

1.1- A perspectiva humanista: aproximações teóricas ...............................................24

1.2- O homem e o tempo-espaço ...............................................................................29

1.3 - Da síntese poética ao eu-humanidade ...............................................................32

1.4 - Tempo de viver: a nomeação da vida ................................................................38

1.5 - O ser nativo: pegadas e presença do homem amazônida ...............................40

1.6-A palavra humana ................................................................................................42

CAPÍTULO 2. TEMPO E ESPRA .....................................................................................51

2.1- As imagens e a revelação do tempo histórico ....................................................52

2.2- Águas do sertão: o tempo físico e a marcação da temporalidade .......................65

2.3 - O lunar e o pascal enquanto representação dos tempos nativo e cristão ...........69

2.4 - O instante revela os seres ..................................................................................81

2.5 - A Solidão: tempo de conhecimento humano ....................................................83

CAPÍTULO 3. O ESPAÇO: AMAZÔNIA, MORADA DA HUMANIDADE ................. 91

3.1-A A constituição do espaço na obra de Pedro Casadáliga Plá ............................93

3.2-Contextualização histórica: telurismo e engajamento .........................................109

3.3- A terra e o “ser” feminino: mãe, chuva, mulher, morte .....................................116

3.4- Representações do universo: espaço regional e o universal ...............................121

3.5- A Amazônia: causa individual e coletiva-social ................................................134

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................136

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...............................................................................139

ANEXOS

Anexo 1:Notas sobre a trajetória de Pedro Casaldáliga ............................................144

Anexo 2: Entrevista com Pedro Casaldáliga .............................................................150

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INTRODUÇÃO

A literatura constitui um modo de conhecimento e de registro da realidade, mas é,

sobretudo, uma supra-realidade criada com base na primeira. Um estudo dessa catgoria prima

por conhecer a primeira realidade, que é histórica, e a segunda, que é fictícia. Ambas são

coletivas e dizem respeito à cultura de um dado povo, do qual o escritor testemunhou sonhos,

alegrias, adversidades e conflitos, nas mais diversas relações sociais, espirituais e emotivas.

Foi precisamente essa variabilidade de conteúdos que encontrei na obra de Pedro

Casaldáliga, sobretudo em sua poesia. Esse autor é uma figura bastante conhecida, tanto em

nível nacional como internacional, pelo seu intenso trabalho como religioso e por seus textos

teóricos. Sua produção poética, porém, é pouco divulgada.

Ligado à Igreja Católica Apostólica Romana, Pedro Casaldáliga é bispo emérito

da Prelazia de São Félix do Araguaia/MT1. Em 2005, aposentou-se, tendo recebido o título de

Doutor Honoris Causa pela Universidade de Campinas e pela Universidade Federal de Mato

Grosso.

A primeira motivação deste trabalho consistiu na curiosidade de conhecer a obra

desse padre-poeta e de apurar como reflete nela o seu discurso sócio-religioso, assim como a

compreensão e a fé no ser humano que determinaram tantos anos da sua luta. A segunda

motivação foi a de ter percebido, após uma leitura preliminar dos dezessete livros que

compõem a sua obra poética, a expressão de um significativo valor estético e humano.

É interessante ressaltar que, embora existam diferenças nos processos de

emancipação vividos pelos países da América Latina, existem, também, grandes semelhanças

nas experiências vivenciadas nos diferentes territórios. De igual modo, são perceptíveis

grandes semelhanças entre os pensadores dessas latitudes. Isso, porém, exigiria tratar com

intensidade os processos de ocupação e conquista de tais países pelos europeus.

A nós, no entanto, basta a constatação de que ocorreu um fenômeno de igual

intensidade no campo da evangelização, fato que reforça e explica o florescimento da

Teologia da Libertação nos países latino-americanos. Muitos foram os que escreveram e

escrevem retratando essa situação, dentre os quais Ernesto Gardenal, Bartolomeo de Las

Casas, Pablo Neruda2 e o próprio Pedro Casaldáliga que dialoga tanto com literatos, como

1 Ver notas sobre o autor no anexo I.

2 Ernesto Cardenal nasce em 20 de janeiro de 1925 em Granada. Em 1935, ingressa no Colégio CentroAmérica

dos Jesuítas de Granada, onde faz seus estudos até terminar o bacharelado. Estuda Letras na Universidade do

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com narrativas de testemunho e historiadores, os quais retratam o que sucedeu na hispano-

América durante o seu processo de ocupação pelos europeus, assim como num período

posterior, quando da formação de uma elite conservadora nesses países, que deu

prosseguimento à tomada de terras dos nativos e construção de nações baseada nos moldes

europeus.

Nesse sentido, o estudo da obra poética de Pedro Casaldáliga permitiu, por um

lado, a revisitação dos acontecimentos históricos, religiosos e sociais que marcaram a vida da

região do Araguaia e de nosso país, uma vez que a sua obra apresenta forte tendência para as

questões sociais e engajadas, em especial para os conflitos de terra que existiram e que ainda

se fazem presentes no espaço a que se refere sua poesia. Incluem-se também neste estudo

alguns antecedentes históricos que influenciaram a produção da obra.

Ao todo, foram analisados 28 poemas selecionados dos 17 livros que compõem a

obra poética de Pedro Casáldaliga.

O objetivo da pesquisa consistiu no estudo do estilo do autor, do modo como

emprega com criatividade e originalidade os recursos literários, líricos, identificando como

esses aspectos falam da realidade, da cultura, dos seres humanos e da sua luta pela superação

da exploração a que uns submetem os outros, isto é, como os elementos poéticos contribuem

para a exposição do conteúdo humano e engajado que os textos apresentam; a relação do

homem com a terra e como este se situa histórica e geograficamente nela; e, no conjunto, de

que modo a sua obra se assume como uma obra de arte.

Pela análise do contexto sócio-histórico da produção poética do autor, foram

colocados em diálogo diferentes teóricos da literatura e da sociedade.

México e literatura norte-americana na Universidade de Columbia (New York). Em meados de 1949, regressa à Nicarágua e começa a escrever poemas históricos. Sua militância política contra a ditadura de Somoza inspirou seus epigramas políticos. En 1954, participou de um movimento armado que intentou assaltar a Somoza no Palácio Presidencial, conhecido na Nicarágua como a “Rebelión de Abril”. Em 1956 resolveu fazer-se monge, continua, porém, sua atividade poética e militante, tendo assumido, após a revolução sandinista, o cargo de ministro da cultura. Entre suas ações, estão a fundação da uma comunidade em uma ilha no arquipélago de Solentiname, no Lago da Nicarágua, em que, por meio de cooperativas, criou uma escola de pintura primitiva muito conhecida. Segundo o site “en Nicaragua y en el extranjero, se creó un movimiento poético entre los campesinos, y lo más importante de todo fue el trabajo de concientización a base del Evangelio interpretado revolucionariamente”.

Pablo Neruda (1902-1973), poeta chileno que recebeu em 1971 o Prêmio Nobel de Literatura. Entre suas obras mais conhecidas estão El canto general (1950), quando sua poesia apresenta aspecto social, ético e político. Abre mão de sua candidatura nas eleições para presidente do Chile nos anos 70, para que Salvador Allende vencesse, pois ambos eram marxistas e acreditavam numa América Latina mais justa, o que, a seu ver, poderia ocorrer com o socialismo. (in: http://www.astormentas.com/din/biografia.aspautor=Pablo Neruda, acesso em 12/05/2007).

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METODOLOGIA

As tarefas metodológicas se dividiram em duas partes: pesquisa de campo e

bibliográfica. A primeira compreendeu uma pesquisa com o intuito de fazer o levantamento,

em acervos vários, da produção literária e não-literária de Pedro Casaldáliga, entrevistas3 com

ele, objetivando o conhecimento das suas concepções sobre criação literária, sobre aspectos

formais e temáticos do seu fazer poético, as relações entre esse fazer poético e a religião, e a

influência de teorias sócio-mentais no contexto de sua produção.

A pesquisa bibliográfica se constituiu na leitura e fichamento temático da

produção poética de Casaldáliga para a definição de critérios de seleção do corpus para a

análise, que veio a ser o conteúdo estético-literário: 1- emprego criativo e original dos

recursos de linguagem e 2- temas recorrentes; e na leitura e fichamento de obras para

fundamentação teórica da análise (ocorrida durante todo o processo), que resultou na

definição do método crítico de abordagem do corpus, pensado num modo de conjugação de

texto e contexto, uma vez que, como afirma Antônio Cândido (2002), “só podemos entender

[a obra] fundindo texto e contexto numa interpretação dialética íntegra [...]. O externo [no

caso, o social] importa como elemento que desempenha um certo papel na constituição

estrutural, tornando-se, portanto, interno”. Ou seja, ao longo do estudo foram utilizadas

contribuições tanto de autores vinculados pela crítica à abordagem externa da obra, como

daqueles vinculados à interna, com o intuito de chegar ao que, segundo informa Cândido

(2000, p.08), é chamado por Otto Maria Carpeaux, “método sintético”, que seria a fusão dos

elementos estilísticos e sociológicos, o que consiste no grande desafio para os estudos

literários, uma vez que levaria à superação da dicotomia entre interno e externo.

Em relação à abordagem interna, será feito uso dos pressupostos da estilística

literária, segundo Amado Alonso, na obra Materia y forma em poesía (1965). Nesse sentido, o

estudo da obra considerará como, de um modo geral, ocorre no poema o fenômeno da

linguagem, sobretudo no que concerne aos recursos de estilização da frase e da palavra.

A estilística moderna apresenta dois braços: de um lado a estilística da expressão,

que relaciona forma e pensamento; de outro, a estilística genética, individual, da qual resulta a

expressão com fins literários. Segundo Guirard (1970, 12), para Spitzer, o estudo estilístico

deve partir de um traço específico próprio de cada autor.

3 Parte de uma entrevista foi encaminhada para publicação na Revista Panorâmica nº 06, do IUA/UFMT, no 2º semestre/2006.

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São estudos variados que vão encontrar apoio em campos diferentes. Uns, na

visão da ciência da literatura, outros, no estudo lingüístico da expressão. Nessa perspectiva, o

estilo pode ser definido como: a) expressão de pensamento por formas lingüísticas; b) ordem

interna de toda a obra, que motiva e informa. Nada, porém, se presta a tanta ambigüidade

como a palavra estilo.

A critica idealista de Leo Sptizer, Damaso Alonso, Halmuf e Hatzfeld teve grande

repercussão no Brasil, especialmente na critica filosófica encabeçada pelo professor Fidelino

Figueiredo, e na sociológica, do professor Roger Bastide.

A Estilística moderna passa a ocupar o lugar e limite da retórica (que era ao

mesmo tempo ciência da expressão e da literatura) e assume seu duplo caráter: arte de

escrever e arte de compor.

Entendida dessa forma, a retórica atingiu as artes plásticas, os gêneros, os estilos,

os sons, as figuras ou meios de expressão e passou a estudar muitos aspectos da composição:

invenção, disposição, elocução, ação. A noção de gêneros tornou-se base da literatura pelo

que expandem em quantidades cada vez mais numerosas, sendo que, a cada um deles,

correspondem noções próprias de expressões.

A retórica consiste numa gramática da expressão baseada na ampliação, na

interpretação e na descrição. Embora negligenciada, conserva inteiro seu lugar na crítica

literária. É impossível, “emitir juízo de uma obra, sem se conhecer intimamente os fins que

tem em vista e os meios de que dispõe para realizá-los” (Valery apud Guirard, 1970, p. 33)

A retórica corresponde a uma compilação de regras que se ajustava bem à

sociedade do período em que foi elaborada, ou seja, o que entendemos por criação literária

corresponde à idéia que fazemos do homem e da sociedade: para o homem moderno, “é a

experiência que identifica e autentica o real, mas para o homem medieval, a sociedade e as

suas instituições eram absolutas”, segundo Guirard (1970, p. 39).

Temos, de acordo com ele, duas estilísticas. A da expressão considera a estrutura

e a relação forma- pensamento corresponde à elocução dos antigos; a dos indivíduos

investiga a relação das expressões com o indivíduo e com a sociedade que o cria. Esta última

praticamente abandona o plano da língua para dedicar-se ao fundo.

Quanto à primeira, sua originalidade consiste em reconstituir seu lugar na ciência

da linguagem. Apresenta-se a partir da linguagem como expressão da natureza do homem e de

suas relações com o mundo. Para Guirard, “à medida que pretende ser uma ciência da

expressão, ela pretende ser uma retórica” (1970, p.56).

Entre as correntes estilísticas estão:

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A estilística de Bally - trata-se de uma estilística da língua e não da palavra. O

objeto de seu estudo é constutído pela expressão efetiva da linguagem. Não se indaga sobre o

uso que faz o autor de uma determinada expressão. Identifica os elementos da expressão e os

classifica em efeitos naturais e efeitos por evocação.

Esses valores vocativos relacionam-se com: 1. o emprego de línguas diversas; 2. a

época - cada época tem seu vocabulário; 3. o estilo e a sintaxe de cada classe social; 4. a

manutenção dos dialetos. 5. a linguagem usada em cada período da vida.

A estilística genética e a gramática do indivíduo consideram o estilo individual

(autor, obra) ou o coletivo (estilo de época, gênero), e apresenta dupla perspectiva: o estudo

do uso individual de uma língua e o estudo da palavra em seu contexto e situação, uma

estilística aplicada à lingüística, outra, à crítica literária.

Recusa-se a divisão entre a língua e a literatura, lançando uma ponte entre

lingüística e literatura. Aparece num momento em que a crítica positivista é questionada pelas

correntes racionalistas que vão de Bergson4 a Croce5. Baseia-se nas idéias de que os estudos

literários devem partir sempre da obra e extrair dela todas as categorias. Sendo a obra um

todo, em seu centro encontramos o espírito do autor, pois a coesão interna implica e motiva a

obra, qualquer detalhe permite ascender ao seu centro, pertencente a um sistema maior, país

ou período. O desvio estilístico constitui um traço particular.

A estilística deve ser uma crítica de simpatia no sentido vulgar e no sentido bergsoniano da palavra... toma seu ponto de partida num rasgo da língua. Isto, porém, é arbitrário e poderíamos partir de qualquer elemento da obra. (Riffaterre, 1973, p.99-100)

Quanto a Sptizer, ele acentua a relação entre literatura e as demais artes. Assim,

entendia a estílistica como estudo de um desvio lingüístico que inclui a sociedade e sua época.

Em torno de Sptizer junta-se um vasto grupo nos Estados Unidos, denominado New Stylitic.

Surgem, também, seguidores em outros países; dentre os principais, destacam-se: Damaso

Alonso, Amado Alonso, Sporre e Katzeefeld.

4 Henri-Louis Bergson (Paris, 1859-1941) foi um filósofo francês influente na primeira metade do século XX. Em 1927 obteve o Prêmio Nobel de Literatura. 5 Benedetto Croce, personalidade intelectual de projeção universal, interessou-se por filosofia, história, história da arte, literatura, economia e pela política. Seus pontos de vista foram difundidos em La Critica (1903-1944), fundada por ele mesmo. O confronto com o materialismo histórico e a filosofia de Hegel levou-o a elaborar seu próprio conceito filosófico, o Idealismo Dialético, interpretado como uma visão otimista da história da humanidade, como uma evolução dialética rumo ao progresso do espírito objetivo e como uma história da liberdade. Entre seus textos mais conhecidos está Filosofia dello Spirito (1902-1917). Entre 1920 e 1921, ocupou, como político liberal, a pasta da Educação, redigindo em 1925, um manifesto contra o fascismo.

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A Estilística da composição, de Bally, estuda as formas gramaticais da expressão.

Agrupadas, elas resultam em artifícios classificados pela antiga retórica (invenção e

composição), integrando a estilística como “ciência da expressividade”, “nível

supralingüístico do discurso” (Guirard,1970, p.127)

Abandonando os preceitos da retórica, a literatura precisa ancorar-se nos

princípios naturalista-simbolistas. A escrita pode ser entendida também como valor,

linguagem autárquica dos partidos e ideologias e como linguagem de engajamento.

No que refere à significação dos conceitos de estilística e estilo, o autor dirá que

Roland Barthes os diferencia e os coloca, a ambos, como diferentes do idioma. O estilo,

linguagem autárquica, diz respeito somente à interioridade do autor. Não é, para ele, resultado

da intenção ou da escolha.

Segundo afirma Guirard (1970, p. 105), Spitzer dirá que o estilo é reversível e

equivalente a sangue da criação literária, e que é o mesmo em toda a parte, quer o tomemos na

frente das palavras, das idéias, do enredo ou da composição.

Em relação a Saussure, estudioso de tradição gramaticista, ele entra em conflito

com a gramática idealista, pois, apesar de estudar o estilo sempre no plano da língua,

considera que os grandes críticos não devem usar pretextos para o estudo da linguagem.

Haveria entretanto, para Guirard (1970, p.106), certos problemas que escapam às

abordagens estudadas.

Entres os estes a idiomatologia (estudo dos estilos nocionais em relação ao

idioma),“reflete a atitute particular de um povo”. Para os estruturalistas, porém, essa variação

se dá pelos sons e palavras, que são as partes mais débeis de um idioma; o sistema

morfológico resiste mais fortemete às mudanças; a explicação do texto (usual em escolas, no

caso das citadas na obra resenhada, francesas), mostrou por muitos anos, o vício cartesiano e

taineano que seria: história (acentuação em fontes biológica e histórica), analítica (separação

fundo e forma), lógica (liga-se a estruturas das idéias), no plano da língua, carrega valores

nocionais e de expressão; a estilística e estatística: refletindo sobre ela, Guirard (1970, p.109)

diz ser um método controverso. Poderia ser utizado quando se tratasse de elementos

claramente observáveis, porque “o idioma é uma entidade estatística”, “uma soma de

expressões”. Mas, sendo também a estatística o estudo de desvios, o autor julga ser justo tê-la

como possibilidade de estudo.

No último caso, a tarefa das estilísticas consiste em inventariar os meios de

expressão dos diferentes estágios do idioma, que são classificados de acordo com critérios

fisiopsicológicos, sociológicos e literários.

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Para a estilítica funcional, o estadodo idioma é composto de vários elementos: a

noção de impressão ou tema; tipos de estilos para narrar diferentes temas; fontes de

expressão.

Baseando-me em Riffaterre, tratarei mais especificamente da estilística estrutural,

que parte da base de que os fatores lingüísticos poderão ser apreendidos como estilo, desde

que destacados os seus fatos(1973 p.40).Trata-se de compreender que determinados traços

tornam a obra uma obra de arte, constituindo um plano mais especializado que o discurso

comum, havendo sempre tensão entre os eixos do sintagma e do paradigma.

por estilo literário entende-se toda forma de escrita individual com intenção litaréria, isto é, o estilo de um autor, ou de uma obra literária isolada (doravante chamada aqui de poema ou texto), ou ainda de um trecho isolável (...). O estilo é realce que impõe à atenção do leitor certos elementos da seqüência verbal, de maneira que este não pode omiti-los sem mutilar o texto e não pode decifrá-los sem achá-los significativos e característicos. (Riffaterre, 1973, p.32)

Elementos distintos podem servir ao fator lingüístico: o codificador - as

características lingüísticas de expressão devem ser substituídas pelos traços de insistência,

hipérbole, metáfora etc; e o controle de identificação - ao contrário do locutor, o autor é

consciente, assim, os recursos são previstos pelo escritor. Mas, segundo essa linha, há

elementos da decodificação que só podem ser realizados no receptor.

A partir desse ponto de vista, pode-se chegar a momentos em que o código e a

leitura nada tenham em comum. A estilística deve, então, manter o princípio da permanência

da modificação, simultaneidade do princípio da diacronia e da sincronia; deve pensar em que

medida um código permenece imutável, qual é a distância entre o código do autor e o do

leitor.

O estilista, a partir daí, deve reunir somente os traços do discurso que tratam das

intenções do autor, o que implica em julgamento de valores que são meta-estilísticos.

A permanência dos processos estilísticos no tempo dependem da percepção do

leitor, pelo que são ou não prolongados, sendo seu papel transformar os sentidos subjetivos

num objeto de análise. Nesse senso, há uma demarcação nítida entre o estilo de percepção e o

processo cultural que o compõe, havendo separação entre o traço linguístico e o estado de

espírito. A análise pode prestar-se ao papel de comunicador, exigindo, para assinalar os

estímulos do texto, um arquileitor (é uma ilusão criada no espírito do leitor, leitor

experimental).

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O arquileitor seria eficaz porque a abordagem de certos elementos do texto só

podem ser explorados, como é o caso, por exemplo, da perífrase, pelo sentimento que tem o

leitor de que se trata de um substituto do termo corrente.

O arquileitor apresenta dois problemas: a) a variedade de decodificação pode

levar a uma atomização do texto; b) suas respostas limitam-se a um determinado estado da

língua por ele conhecido (segundo o autor isso só interessa ao historiador de literatura e ao

estilista, quando estuda as constantes de uma época da língua).

Diante dessas limitações, o autor pergunta-se se é possível identificar o estilo em

qualquer desvio da norma. Juilland (apud Riffaterre, 1973, p.52) faz objeções: estilo não pode

ser pensado só a partir da norma, do contrário trataríamos só da fala e correríamos o risco de

descartar elementos que em outro contexto se tornariam importantes.

Para Riffaterre, o contexto desempenha um papel de norma e através dele nasce o

estilo: “O contexto estilístico é um patterns lingüístico rompido por um elemento imprevisível

e o contraste que resulta dessa interferência é o estimulo estilístico”. (1973, p. 65).

A formação do patterns obedece a elementos como continuidade e retroação, a

nova situação apresentada modifica o valor de elementos. O fenômeno repetido apresenta

diferente relação com o protótipo; quanto mais forte é o patterns, mais evidente é o contraste.

O contexto estilístico é limitado ao que acabamos de ler, e pelo que ainda vamos

ler, por isso é possível que seja criado, no decurso do texto um outro patterns, então o

contexto é o tempo necessário à decodificação do poema.

Enquanto a lingüística pode estudar todo tipo de linguagem, a estilística estuda as

linguagens em que a decodificação e a percepção são limitadas. São elementos estranhos à

norma, funcionam como rompimento do patterns. “Assim a função estilística faz tomar

consciência da diacronia dos níveis de linguagens que constituem dialetos e também das

relações expressivas entre sentido e som.” (Riffaterre, 1973, p. 144)

No verso, os contrastes nascem por irregularidades na concretização do metro e

pela divergência na realização do verso e do contexto, ao passo que, na prosa, ocorrem

contrastes com o estilo e a convergência dá-se em torno de um estimulo pessoal. Nesse caso, a

função da estilística é investigar os elementos e os enunciados como algo que traz a

personalidade do escritor e chama a atenção do destinatário, porque o objetivo da estilística é

o estilo literário, e deve estudá-lo do ponto de vista do decodificador.

Toda estrutura verbal provoca uma reação no leitor. A realidade, no caso da obra,

é a estilística por ela representada, e sua metaforização tem o papel de personificar os

conceitos.

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O próprio do poema é bastar-se a si mesmo, todavia, é lido conforme o estado da

língua e a mentalidade do leitor: “o que constitui o poético é o texto na sua forma acabada,

imutável e que não deixa mais perceber a evolução da qual ele é resultado” (Riffaterre, 1975,

p. 195)

Por mais fragmentado que seja um texto, o fragmento atua como uma gramática

poética. Segundo Jakobson (apud Riffaterre, 1973, p. 196,) quando a estrutura poética atua

nas palavras há um enfraquecimento da linguagem referencial, há uma sua predominância que

transforma a palavra.

No que respeita ao formalismo como tendência estilística, em 1960, reuniu-se na

França um grupo de escritores em torno de Roland Barthes, que apresenta a possibilidade de

ver a obra de arte como autônoma, como elemento arbitrário que não permite a personalidade

do autor e nem interferências internas. Eles retomaram o formalismo russo, movimento que

substitui o “estruturalismo”(descritivo e histórico) e que pode ser entendido, também, na

perspectiva marxista que “postula uma relação de causa efeito entre as estrutura sociais e a

estrutura interior da obra de arte” (Riffaterre, 1975, p. 249)

Seu pressuposto é de que o texto literário é um conjunto de signos infinitos, sua

descrição deve partir desse conjunto. Trata-se de estruturas correlacionadas. Querem

apreender a obra da mesma forma que a antropologia estrutural quer apreender o mito

(entendem-na como fruto de articulação da linguagem).

A crítica estruturalista subordina, quando estuda uma obra de valor estético

expressivo, todos os elementos a um conjunto de representações, que é a linguagem. Mesmo

que o texto não represente de modo direto a realidade, não deixa de ser imitação de “uma

mitologia verbal” (Riffaterre, 1975, p. 258). Assim, o texto deve ser modificado até encontrar

a justeza total.

O crítico deve partir da linguagem, perceber o isomorfismo que há nela e optar

por uma metalinguagem seja ela sociológica, psicológica, ou filológica, sendo que a escolha

do modelo de análise carrega uma subjetividade que é posta à prova pela obra.

O fato de uma palavra oferecer possibilidades para muitas interpretações, não faz

dela uma palavra simbólica. O autor entende que “nenhuma palavra pode ter uma unidade

estrutural sem uma unidade lingüística” ( Riffaterre, 1975, p. 259) Seu valor estrutural deve

impor-se aos olhos do leitor.

Os formalistas trabalham com a idéia de superfície e profundidade; todo elemento

textual é perceptível em nível dos significados, mas, por outro lado, afirmam que “os

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resultados não são igualmente perceptíveis, por causa de sua repartição entre um nível visível

e um nível oculto” (1975, p.268).

Sempre que há uma variante, o leitor é levado a perceber a diferença entre as

imagens do texto e aquelas que poderiam ser criadas. Riffaterre (1975, P.268) sentencia:

“foram eficientes ao combaterem os estudos de tendência à literariedade, mas não vão ao que

realmente interessa no texto, o estilo”.

Quanto à linha da estilística literária será tomada por referência a idealista, na versão que

lhe deu Amado Alonso. Para Sant’Anna (1989 p.10), citando o mesmo autor, a sua tarefa é examinar

como “é constituída a obra literária e considerar o prazer estético que ela provoca no leitor”.

Como recomenda Amado Alonso, estilista e filólogo espanhol, a obra é

entendida não apenas como conceito, mas como algo mais abrangente que engloba o emotivo,

o afetivo, o conceitual e o imaginativo, caracterizando-se por sua unicidade. Como “cosmo”,

encerra um mistério, e a sua análise depende da intuição porque são necessárias, como foi

acontecendo durante o estudo da obra de Casaldáliga, relações com conteúdos auxiliares, com

outros poetas e com símbolos culturais, podendo-se, no entanto, verificar cientificamente os

elementos que a constituem (Alonso, 1965, p. 12)

Significante e significado comportam respectivamente a idéia de imagem acústica

e física, de conceito e carga psíquica: um se liga de modo integral ao outro. Por significante

total se entende: a obra, o poema, a estrofe, o verso e o vocábulo (representação da realidade);

e, por parcial, os elementos que os compõem: o ritmo, a entonação, a sílaba, o acento

(elementos sensoriais que a representação comporta). Um estudo estilístico investiga as

relações entre os elementos parciais e totais.

Dados externos, históricos, ideológicos, psicológicos e geográficos englobam e

transmitem a idéia que o autor tem do mundo e se manifestam no valor estético da obra.

A relação primária entre realidade e criação poética é insatisfatória. São inúmeras

as experiências, os estímulos objetivos e inconscientes que saltam como inspiração. A obra

interessa pela visão de mundo do autor, pela sua natureza estético-poética e filosófico-

racional. Não consiste numa referência direta da realidade, embora queira traduzi-la. Plasma e

cristaliza o modo como ocorre uma visão de mundo. Para o autor (1965, p. 13, 16) “la

realidad es particularmente estructurada por el sentimiento que quiere expresarse liricamente”.

A poesia não apresenta necessariamente uma visão interpretativa do mundo. Os

aportes exteriores colocam-se por necessidade da livre criação do poeta, podendo haver poesia

com sentido, o que não lhe tira, segundo Alonso (1965, p.11) o “sentido original” dado pela

intuição poética.

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Sendo a palavra o material com o qual trabalha o poeta, sentimento e intuição

serão vozes naturais que se educam e se formam para representarem a realidade, por meio da

elaboração rítmica, fonética, semântica e sintática das palavras. Para Alonso (1965, P.25),

“Las palabras, además de significar, sugieren, gracias a complicados juegos de asociaciones

implícitas... tienen sus leyes propias: leyes de significación de sugerencia y de construcción”.

A estética estuda o modo como as forças sociais e históricas se harmonizam,

como funcionam construtivamente, como valiosos materiais são transformados em atos

estéticos. Permite pensar o que fez um determinado autor, com as fontes históricas que

possuíu, o que construiu de original.

A dificuldade de transpor a idéia para a escrita deve ser aproveitada pela estilística

nessa passagem, uma vez que a linguagem se apresenta de modo extra-lógico ou no domínio

do arbitrário.

Palavras e frases, por exemplo, têm um conteúdo indicativo e não significativo.

Através desses conteúdos, devemos distinguir o afetivo, o fantástico e o valorativo. São

signos da realidade. Duas frases podem ser iguais, embora possam carregar diferentes valores

significativos e afetivos, assim como diferentes momentos expressivos.

Como ciência do fazer literário, atende, a priori, ao quê de criação poética tem

uma obra, e ao quê de fazer criador tem um poeta. Por ser o prazer estético o

acompanhamento específico da criação artística, a estilística intenta chegar ao objeto pelos

efeitos prazerosos da obra de arte. Ou seja, o conhecimento metódico do poético na obra

literária é obrigação da ciência da literatura, verificando, assim, o sistema expressivo que a

compõe.

Uma abordagem complementar utilizada na análise, no que concerne ao estudo

interno da obra, é a crítica temática, que não constitui, como informa Bergez (1997, p.136 ),

uma escola crítica, provavelmente pelo fato de seus estudiosos não constituírem um grupo

específico.

Propõem eles a percepção sobre o todo da obra a partir de um tema que se repete.

Assim, é valorizada a intuição do leitor que, ao perceber esse tema, segue refletindo sobre o

mosaico que é a obra.

Sobre isso, Bergez afirma que “A obra de arte é o desabrochar simultâneo de uma

estrutura e de um pensamento (...) cuja forma, gênese e nascimento são solidários” (1997,

p.100).

Nesse caso, a orientação temática intentou: perceber se existe uma revelação

recíproca, em que o artista revelaria a sua obra, e por ela se construiria, e, como o leitor

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participa da emoção criadora, não confundir sujeito criador com sujeito histórico. Há uma

objeção em relação a este último. No caso de Casaldáliga, temos uma forte relação entre os

dois sujeitos: aquele que cria e o homem, Pedro Casaldáliga, a qual torna possíveis diferentes

prismas pelos quais se pode conhecer sua obra, estilo e biografia (que seriam ou seus escritos,

entre eles ensaios, cartas pastorais, poesias e tratados sobre espiritualidade nos quais se

poderia incluir estudos sobre a teologia e cultura e sua postura, ou a partir de sua atuação

como ativista e religioso). Nesse campo seria preciso, porém, entender como as redes de

relações do imaginário influem no todo da obra; e se é possível, como orienta Jean-Pierre

Richard ( apud Bergez, 1997, p.134), situar a crítica no momento primeiro da criação da

obra, verificando como a experiência humana constitui o texto e como a memória instala-se

no processo de criação.

Pedro revela-se como criador, quando se aproveita dos elementos dados pela

memória (marcados em sua obra pela alusão à casa materna e experiências de então, e pela

tentativa de reconstituição de períodos anteriores àqueles vividos) e pela realidade e

transforma-os em versos.

Nesse caso, as categorias tempo, espaço e sensação são determinantes; isso

porque, por meio de largo uso metafórico, a consciência criadora se revela.

O estilo é tido como uma questão de visão de mundo. O eu-criador realiza um ato

de auto-revelação da sua consciência que, como toda consciência, é consciência de algo,

produto da relação com o mundo.

Para o estudo das imagens poéticas também foram consideradas as obras O arco e

a Lira (1981) e O ser e o tempo da poesia (1980) dos críticos Octavio Paz e Alfredo Bosi.

Paz postula que “a unidade da poesia só pode ser entendida através do trato desnudo com o

poema”. Ele a coloca em simultâneo como fruto do cálculo e do acaso: a arte, como produto

do seu tempo. O estilo seria o ponto de partida da totalidade do projeto criado. Sendo o autor

servo das palavras, ele as transcende, criando imagens.

Paz (1992, p. 119 a 121) retoma discussões primordiais para o estudo de poesia,

entre as quais as definições de:

1) Poema – reside entre a espontaneidade da linguagem e a purificação do

idioma, recuperando pela poesia os seus valores plásticos e sonoros, afetivos e significativos;

2) Ritmo – pode ser representado graficamente, considerando as sucessões de

silêncio e a produção sonora (tempo interno da poesia);

3) Autor – o poeta nutre-se da vida de uma comunidade;

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4) Imagem –“Toda a imagem conjuga realidades opostas. O poeta nomeia as

coisas: pedras são plumas e plumas são pedras. Sem sofrer transmutação qualitativa, pedras e

plumas desaparecem em favor de uma outra realidade”. A imagem é “toda a forma verbal,

frase ou conjunto de frases, que o poeta diz, e que, unidas, compõem o poema”, partes

classificadas pela retórica, como figuras de construção. A imagem recolhe e exalta todos os

valores da palavra, sem que a pluralidade de significados desapareça. O poeta, então, não

descreve o objeto, coloca-o diante de nós.

Alfredo Bosi em O ser o tempo da poesia (1980, p.41), faz um importante estudo

a respeito da imagem, postulando que a experiência desta antecede a da palavra, que é

simultânea. “Toda a grande poesia nos dá a sensação de freqüentar impetuosamente o novo”.

Nesse sentido, a imagem recuperaria o intervalo entre tempo e espaço, que fora perdido

quando o homem deixou de se comunicar pelo desenho, que fala diretamente do objeto,

passando a codificá-lo pela palavra. O discurso centra-se nas idas e voltas, nas recorrências,

na decodificação. Pela compreensão das partes chega-se à imagem.

Quanto à crítica extrínseca, procedemos ao estudo literário, tendo como ponto

de partida para a análise o modo como elementos externos atuam sobre a obra, podendo ser

eles de natureza social ou psicológica.

Por ter a obra de Pedro Casaldáliga forte apelo social, permite que sejam vistas

nela influência de diversos grupos e de variados modos de pensar, dentre os quais o marxista e

o religioso. Nesse âmbito, fizemos uso da crítica marxista, especificamente por meio da obra

Manuscritos econômicos e filosóficos de Karl Marx (2005) e das obras de Antônio Candido,

de vertente social e literária, Formação da literatura brasileira (1975), Literatura e sociedade.

(1981) e Na sala de aula (2005). Em relação a Marx, apesar de termos feito uso direto de sua

teoria, o que foi exigido pela própria natureza da obra em estudo, como as categorias

marxistas de classe, mercadoria e hegemonia, tais conceitos foram tomados também de

autores que o lêem a partir da perspectiva latino-americana.

Segundo Cândido (1981, p. 10-12), há vários modos de conduzir uma abordagem

sociológica: a) classificação da literatura por períodos; b) verificação de como a sociedade

espelha as obras – corrente que se aproxima mais da sociologia; c) estudo da obra em relação

ao seu público; d) análise da posição social do autor; e) estudo das funções políticas da obra,

com fortes representantes entre os marxistas. O estudioso considera que todas as abordagens

são legítimas, desde que a obra seja entendida como um organismo.

Cândido (1981, p. 03) informa que a crítica sociológica se tornou, no último

século, chave para a compreensão da obra e do seu condicionamento social. A integridade da

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obra não permite adotar, em relação a ela, nem somente a visão interna, nem somente a

externa, uma vez que destas resultariam críticas dissociadas. O que importa, aqui, é averiguar

que fatores concorrem para a ordem interna das obras. Se entendidas, como recomenda

Cândido (1981, p. 07), como “elementos responsáveis pelo significado e aspecto da obra,

unificados para formar um todo indissolúvel”, psicologia e sociologia podem ser alinhadas à

crítica literária.

Conjugado a isso, na base da ação de Pedro Casaldáliga, encontra-se a Teologia

da Libertação que, refletida na sua obra poética e vista da perspectiva histórica, sociológica e

religiosa, acabou por se constituir num aporte à parte, no que se refere ao estudo e

compreensão do pensamento do autor. Nesses termos, tanto a Teologia da Libertação como o

Marxismo são manifestados em sua poesias.

Por sua vez, a Teologia da Libertação nasce, segundo Gutierrez (2000), sob o

signo da transformação da América Latina e da correção do massacre cultural e humano que

fora o seu processo de evangelização.

Desencadeada pela carta pastoral Lumem gencium (João XXII, 1965), que propõe

para o cristianismo um trabalho de evangelização integral, considera o homem não apenas no

aspecto religioso, mas também em outros aspectos que o compõem: social, afetivo e

antropológico, o que deve favorecer o crescimento humano. Sofre, mais tarde, influências de

duas outras cartas apostólicas: “Evangeli Nuntandi” (Paulo VI, 1972) e “Solicitio rei

Socialis” (João Paulo II, 1980). A primeira delas, contudo, constituiu o grande marco da

mudança de postura da Igreja latino-americana, na esteira da qual Paulo VI convoca o

Concílio Vaticano Segundo, que desencadeia uma série de conferências episcopais em todo o

mundo, dentre as quais as de Medelin e Puebla, na América. Em tais conferências, a ação, que

era, então, desenvolvida por muitos religiosos, entre os quais um bom número de bispos,

ganha um corpus teórico, passando de ação pastoral a postura teológica (senão mesmo à

“escola teológica”) nascida da prática, daí a designação de Teologia da Libertação.

Uma de suas maiores bandeiras constitui o valor que se dá ao martírio. Outra, a

grande significação da vida humana. Biblicamente, inspira-se em toda a escritura sagrada

enfatizando, entretanto, o Êxodo, as multidões gedeônicas6 e os Atos dos Apóstolos.

6 Gedeão e sua história encontram-se no livro de Juízes, capítulos 6, 7, 8. Segundo a informa a Edição Pastoral do Antigo Testamento costuma-se dividir os juízes em maiores e menores, os primeiros eram aqueles que em situações difíceis organizam as tribos, que resistiam ao modo de organização citadino, para lutarem contra as cidades-estado Cananéias; os menores eram chefes responsáveis por organizar o povo permanentemente. Sua função era, principalmente, administrar a justiça. Gedeão é um juiz menor, mas consegue, no entanto, reunir diversos grupos considerados minorias. A obra de Pedro Casaldáliga, a Cuia de Gedeão (1982) faz referencia a Gedeão e à cuia utilizada pelos retirantes para beber água. Na introdução ao livro, diz Casaldáliga: “este livro

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A teologia, como tal, passou por muitas transformações, sendo que, no decorrer da

história, ficou marcada por duas grandes correntes: a que a vê como sabedoria, postulando um

mundo superior do qual tudo provém; e a que a vê como saber racional (constitui-se como

ciência a partir de Aristóteles). Segundo informa Gutierrez (2000, p. 59), Tomás de Aquino

não a vê somente como ciência, mas como filosofia. Após o Concílio, aproxima-se mais da

segunda corrente, indo encontrar-se com as ciências sociais, com a psicologia e com a

biologia. Nos últimos anos, delineou-se como reflexão crítica. Porém, as suas fontes remetem

à teologia agostiniana que, pela práxis histórica, redescobriu a escatologia, ocorrendo

profundas mudanças no contemplativo, que passou a refletir os aspectos antropológicos da fé.

Para o mesmo autor (2000, p.63), não se trata de horizontalismo, mas da “redescoberta” da

unidade indissociável entre o homem e Deus, o que leva à opção, feita pela Teologia da

Libertação, de construir uma Igreja de serviço e não de poder.

A Teologia, por tal prisma, é ato segundo, originária da ação que, por sua vez,

advém da crítica, a qual parte da reflexão do mundo. A Teologia da Libertação considera que

os êxitos da humanidade são cumulativos e se refletem no campo teológico. Todavia, a

tomada de consciência da diferença entre países é própria do nosso tempo. Nascem muitas

propostas de desenvolvimento social e econômico a partir desses blocos. A Teologia da

Libertação pensa o desenvolvimento humano, refuta, porém, toda a teoria desenvolvimentista

que, em muitos casos, propicia melhorias aos que já se encontram em boas situações.

No contexto do que propõe essa corrente teológica, o desenvolvimento é

entendido de três modos: a) o homem é agente do seu próprio destino; b) exprime a

possibilidade de acesso de povos e países a bens econômicos, ou à não interferência de país

sobre país, o que não possibilitaria enriquecimento de alguns países face ao empobrecimento

de outros; c) permite pensar a libertação por meio da presença salvadora de Cristo que,

conforme lêem os evangelhos, foi humano (nascido de uma mulher), histórico (da

descendência de Davi) e divino (ungido e enviado pelo Espírito Santo).

Segundo Gutierrez (2000, p.84), a possibilidade de pensar o ser humano em si só

foi possível com a chegada dos séculos XV e XVI, épocas em que surgiu um grande número

de pensadores que refletiram sobre o homem, entre eles, Kant, Hegel, Karl Marx e Sigmund

Freud.

Kant (apud Gutierrez, 2000 p. 85) postula que os objetos não devem ser

regulados pelos conceitos, mas, sim, o contrário. Hegel acrescenta a História como tema: o

recolhe gestos, silêncios, lugares, e imagens, ansiedades noturnas e noturnas esperanças de minorias gedeônicas espalhadas por esse Brasil afora, pela América Latina e por outros cantos do Terceiro Mundo”.

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devir histórico relaciona-se com a paulatina libertação do homem, enfoque que dá início a

uma nova dimensão filosófica – a da crítica social. Karl Marx deixa de lado o idealismo e o

antigo materialismo por meio de um rompimento epistemológico. Por um lado, conserva a

objetividade; por outro, a capacidade criadora do homem. Cria categorias que permitem uma

ciência da história, dando um passo adiante no caminho do conhecimento crítico e da vivência

humana. Freud evidencia a repressão como elemento escravizador, descobrindo modos que

permitiram a análise do inconsciente humano, externa e internamente.

A Teologia da Libertação toma para si muitas dessas formas de ver a sociedade e

o homem, as quais vão concorrer para a mudança no significado da fé cristã que deixa de se

referir apenas à esperança na misericórdia divina, passando a confiar no homem, como

indivíduo e como grupo. A leitura dos dogmas passa a ser feita a partir dos textos sagrados, do

local e da cultura de quem a faz, através de uma técnica denominada de “inculturação do

evangelho” (Gutierrez, 2000 p. 89). Ou seja, não é a sociedade que se deveria adequar à

Igreja, mas, sim, o contrário, o que requer, na realidade, a colocação na balança do que já

existe (a realidade social), o que propõe a Bíblia e a Igreja, e, por fim, pela discussão, chegar a

um modo de ver a vida daquele grupo. Apresenta um Cristo que desafiou o sistema social

(império romano), o sistema religioso (doutores da lei e fariseus que então estavam à frente da

sua religião – o Judaísmo), e o senso comum (filisteus e pessoas de seu tempo). Orienta para

que o cristão faça o mesmo, desafie o que está posto, ainda que sejam verdades cristalizadas

pelo próprio cristianismo, em grande parte, baseadas ou em dificuldades de adequação da

mensagem bíblica, ou em leituras equivocadas que, em alguns casos, são provenientes de

interesses de enriquecimento e dominação da igreja, as quais, por muito tempo, numa postura

autoritária, negou-se a revisar. Essa postura, com o passar do tempo e o esfriamento do

concílio, passou a ser controversa no interior da Igreja.

Pelo fato de a Teologia da Libertação ter nascido numa época de grande

insurreição política, tanto na América Latina como no resto do mundo, as idéias marxistas

foram as que mais a influenciaram, quando do seu surgimento. Momento em que grande parte

do continente vivia a experiência dos governos ditatoriais e as conseqüências da segunda

guerra mundial, e que, nos últimos anos, com o alargamento das fronteiras do mundo

desenvolvido, passava a ocupar uma posição pela qual os seus países se convertiam em

depósito de lixos tóxicos, resultado das variadas fábricas e filiais que a produção massiva lhes

impôs.

O impacto sobre a vida dos povos e sobre os dogmas cristãos foi sentido por todas

as igrejas desse grupo; daí o fato de a Teologia da Libertação possuir um caráter ecumênico,

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existindo nas igrejas, consideradas pelo Conselho Mundial das Igrejas Cristãs como

históricas: Igreja Católica Apostólica Romana, Igreja Católica Metodista, Igreja Católica

Anglicana, Igreja Evangélica da Confissão Luterana, e também por ter desenvolvido ações e

promovido o diálogo com as religiões dos nativos da América e da África.

Ocorre, além da Teologia da Libertação, uma percepção, por parte dos pensadores

destas latitudes latino americanas de que há qualquer coisa que os empurra a pensar e agir

com cabeça própria. Guadarrama cita, como um dos iniciadores desse movimento, José Martí,

para quem uma das formas de desalienar o homem é o conhecimento, advindo da ciência e

das forças da natureza: “Insistió en el necessario nexo permanente del hábitat natural, del cual el

ombre non podrá prescindir jamás, sino que unicamente se lo conserva e mejora, podrá asegurar su

supreviencia”(2006, p. 199).

O homem teria uma ligação preliminar com a natureza a que está ligado como que

por matrimônio eterno. “La naturaleza inspira, cura, consuela, fortalece y prepara para la

virtud del hombre. Y el hombre non se halla completo, ni si revela a si mismo, sino en su

íntima relación con la naturaleza”. (T. XIII: 25-26).

O homem, então, deve ter controle e íntima relação com seu ambiente natural e

social. Não em momentos restritos da História, mas, permanentemente, como uma força que

impulsiona o desenvolvimento humano. Uma tomada de consciência de suas potencialidades.

Guadarrama dirá que nada é o homem em si; o que o é, deve pô-lo em seu povo,

que com ele siga e sirva-lhe de voz e força e por ele ver-se-á encontrar com a vida e a

natureza mudando a condição humana. Assim, quando muda a condição dos homens, cambia

também a literatura, a religião, os relatos literários e poéticos (p.200, 2006).

O humanismo, como pensamento, está presente desde quando se discute a

humanidade. Entre filósofos latino-americanos, mesmo os não-comunistas, é criticado o

agressivo modo como o capitalismo se instala nessas terras, tendendo a certa defesa do

humano. Para o autor, (Guadarrama, 2006, p.201) a primeira geração de americanistas queria

o aperfeiçoamento, ao menos, ético dos seus respectivos países, ou do continente.

É natural que a distribuição das riquezas seja cobrada na América porque é o

continente em que faz maior contrasenso a grande riqueza virgem e a probreza. Citando Feijó

(1893, p. 225), Guadarrama afirma que, desde muito cedo, nas narrativas pré-colombianas é

possível encontrar mitos de reestruturação da sociedade. No período da Ilustração, foi

fermento para muitas utopias de pensadores europeus, servindo de espaço para muitos ensaios

de reconstrução social.

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Mas as utopias pareciam ter acabado com o comunismo soviético e a crença na

instalação definitiva do capitalismo, ou seja, havia antes uma crença de que tudo se resolveria

no Estado. Com o capitalismo, passa a haver a convicção de que tudo se resolve no mercado.

Para Guadarrama (2006, p.201), a idéia de liberdade não coincidiria com a de

libertação. Movimento começado por Leopoldo Zea, que postula que o homem dedicou muito

tempo à dominação da natureza, esquecendo de se dominar a si mesmo, com base na prática

Enrique Dussel (p. 232, 1974) afirmava que “una retórica de la libertación non lo libera por

si”.

Recuperando y retocando elaboraciones anteriores y de outros contextos, la teologia de la liberación vá replantear en este estricto sentido las questiones relativas a la utopía, a la escatologia e la unidade de la historia. Su preocupación antropológica és manifesta e se dá inmersa en una praxis de transformación mas o menos radical, efecto de una situación intolerable”. (Dussel, 1974, P.114)

Os cristãos apresentam, segundo o autor, grandes limitações no sentido de

enfrentar a história presente, como produto de longa tradição domesticadora, existindo ao

longo dos anos, que vão de 1930 a 1960 dois grandes movimentos, a Ação Católica e a

Democracia Cristã.

Contemporânea da Filosofia da Libertação, a Teologia da Libertação deve ser

vista como uma forma de reconciliação dos cristãos para com a história, assim carrega, em si,

uma história de conquistas e de erros de modo especial os relacionados com o mundo cristão e

cocidental.

Nascida da prática comporta, até estabilizar-se numa forma mais ou menos

homogênea, muitos modos de pensar. A crítica ao subdesenvolvimento é ponto de ligação

entre as diversas tendências. O encontro com a economia e com a sociologia da dependência

serviu como uma das formas de desprender-se um pouco da tutela da filosofia que até então

havia condicionado a teologia.

Para Cerutti (1983, p.126), a teologia não se move no espaço teórico aberto pelo

marxismo, a partir da crítica de Fauerbach, mas a idéia de utopia se vai construindo na obra de

Gutiérrez e dos demais teólogos da libertação, como possibilidade de reelaborar o discurso

cristão. Cumpre um importante papel de mediação entre fé e política. “la utopía se constituye

así en el ambito donde la fe e la política se encuentran, no que soñadores tergivesen la política

sino para radicalizar su compromiso”. (1983, p. 126).

A utopia é o último horizonte dos homens. Marx quis recuperar esse âmbito, então

perdido, em função do modelo positivista, quando disse que o homem não só é produto como

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também produtor do próprio destino. Para Casaldáliga, a utopia é algo inerente ao ser

humano, carregando-a, é dotado de espírito.

O ponto de encontro seria possível, segundo Negre (apud Dussel, 1968, p.152,)

por situar-se na prática, que diria respeito à transformação das condições materiais da

sociedade, “como punto de partida de la transformación del hombre”. É, ao mesmo tempo,

análise das estruturas e o agir sobre elas. Assim, define do seguinte modo a palavra libertação:

“Liberación debe entenderse...tanto en el sentido de “adquirir” cuanto en el sentido de

“recuperar”, la libertad é siempre una noción referida a una ausencia actual de libertad” (apud

Dussel, 1965, p.55 e 30).

Por terem a Sociologia e a Teologia foco no homem, em seu tempo, ocorre um

encontro entre elas. Enfim, o objeto da Teologia continua a ser o mesmo, o que muda é o

método; ocorre um redimensionamento epistemológico, que não diz respeito tanto ao

conteúdo como ao método de fazer teologia em “nuestra América”. Apresenta-se como

exegética e hermenêutica e enriquece o contexto com a experiência do homem de sua época.

É uma antropologia concreta, situada em um lugar político, social e geográfico também

concreto.

Quando Pedro busca no leitor um ser que pode ser conduzido às margens do

Araguaia, como em Beleza Perfeita 7(AR, p. 43), e, depois, num dado momento da narrativa

poética, fá-lo ter uma visão panorâmica do espaço que, alargando-se, coloca o plano real e o

do imaginário num mesmo patamar, provoca a distensão temporal. Fá-lo pensar no cenário

interno e, logo em seguida, em sua parte externa, indo do espaço íntimo ao desconhecido, do

contemplar ao agir. Ação ali caracterizada pela possibilidade de movimento no espaço.

O processo dialético tende à totalidade na qual o futuro e o externo, em relação ao

interno e presente, já existem. Deve pôr em crise aqueles que vivem a realidade sem

compreendê-la. Construção de uma filosofia que exige compreender o processo atual de

dependência e periferia e, ainda, a interioridade e a exterioridade que irrompem de uma dada

cultura, vão mostrando-nos “ la evolución dialética de un grupo social” (Dussel, 1974, p.

205).

O reconhecimento do outro e da exterioridade tornaria a filosofia uma dialética da

libertação a que Dussel nomeia analéctica. A realidade é captada como ação humana, práxis

do sujeito.

7 Poema analisada no capítulo 3 deste trabalho.

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Considera isso um caminho em direção ao outro antropológico indicado por

Fauerbac (1974, p. 205). Informa que o outro é a passagem para outro momento de si mesmo,

sempre “dialética”. O rosto do outro é análogos, é já a antropologia significante que se torna a

tarefa da filosofia latino-americana.

Aquele que queira ser filósofo, já deve estar envolvido no processo de libertação,

e a palavra lhe será dada no decurso de sua caminhada. O ponto de partida da filosofia da

libertação é começar por ser discípulo.

Não se pode ser, ao mesmo tempo, sujeito que vê e objeto visto. Somos, ora

sujeito, ora objeto e, quando contemplados por outros, ganhamos uma forma; assim, quando

alguém contempla e poetiza um dado espaço e dá voz a quem nele mora, em oposição a um

outro, cria uma relação de sujeito e objeto. Nesse caso, o posseiro, o indígena, os peões

passam a não mais serem forçados a aceitar a forma dada pela outra parte, porque, como

criadores co-participantes da poesia de Casaldáliga, passam a contestar a forma que lhes foi

dada e a constranger o outro a compreender que exerce um papel de opressor. O primeiro ator

então deve descer ao fundo da sua alma e perceber-se capaz de criar uma imagem do outro.

Quanto ao pensamento marxista, ele surge no século XX, período do pós-primeira

guerra mundial quando Karl Marx e Frederic Engels 8 desenvolvem teorias a partir da

sociedade de produção. Tendo a sociedade feudal passado a mercantilista, os meios de

produção concentrados, que estavam nas mãos da burguesia, vieram a se constituir em postos

de trabalho, o trabalho em mercadoria. Como, no entanto, o número de trabalhadores era

maior que o desses postos, o proprietário dos meios de produção necessitaria ressarcir apenas

partes das horas trabalhadas, fato que Marx chamou mais valia, ou seja, o lucro excede em

muito os gastos com a manutenção do negócio e com o valor necessário para subsistência do

proprietário.

De acordo com o Manifesto do Partido Comunista (2004, p.105), para superar

essa divisão, é necessário que se imponha uma luta na qual os proletários tomariam os meios

8 O economista, cientista social e revolucionário socialista alemão Karl Heinrich Marx, nasceu na data de 05 de maio de 1818, cursou Filosofia, Direito e História nas Universidades de Bonn e Berlim e foi um dos seguidores das idéias de Hegel. Participou de movimentos emancipadores em diversos países europeus. Sua principal obra é O Capital (1867), que tem como tema principal a economia. “Seu livro mostra estudos sobre o acúmulo de capital, identificando que o excedente originado pelos trabalhadores acaba sempre nas mãos dos capitalistas, classe que fica cada vez mais rica as custas do empobrecimento do proletariado”. Faleceu em Londres, Inglaterra, em 14 de março de 1883. Pensador e dirigente socialista alemão (Barmen, Renania, 1820 - Londres, 1895). Grande amigo de Karl Marx com quem escreveu muitas obras entre elas A Ideologia Alemã(1844-46) , A sagrada Família (1844), , e o Manifesto Comunista(1848). (Fonte :www.suapesquisa.com/biografias/marx/)

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de produção, passando, assim, da propriedade privada individual à coletiva, o que geraria a

mudança do modo de produção capitalista para o socialista, o qual conduziria ao comunismo.

Para Gutiérrez (2000, p.86), o grande mérito desses pensadores foi a mudança

epistemológica em relação à filosofia idealista que então se fazia e que tem por principal

pensador Hegel, que baseava sua filosofia na dialética e no subjetivismo. Conserva de Hegel a

dialética e o devir histórico, diferenciando-se dele por introduzir o materialismo, o qual, como

atesta sua tese de doutoramento, Diferencia entre la filosofia de la naturaleza según

Demócrito y según Epicuro. (1997), foi buscar no grego Demócrito9.

Para que seja possível pensar a sociedade nos termos comunistas, Marx propõe,

antes de mais nada, categorias que possibilitam a compreensão do mercantilismo, sendo estas

as de estrutura e superestrutura, hegemonia e ideologia. Servindo-se dessas categorias, caberia

às nações e grupos hegemônicos exercer fetiche sobre as demais nações.

Teologia da Libertação e Marxismo foram entendidos como manifestações do

Humanismo na obra de Casaldáliga, ou seja, o homem real (do nordeste de Mato Grosso do

Norte) é ali estetizado e revelado. Pedro não trata de qualquer homem, mas do homem Karajá,

Tapirapé, posseiro, Xavante, retirante. Homem que, ao mesmo tempo em que é localizado

num dado espaço, é universalizado por analogia a outros homens.

É daí que provém o tema geral deste estudo (que perpassa todo o texto), a opção

pelo homem, título do capítulo primeiro, que tentou reunir os vários olhares do poeta sobre a

vida humana, compreendendo-a desde a noção de existência em si, passando pela palavra,

pela solidão humana, por um modo feminino de compreender a humanidade, até a de morte.

Nesse contexto, interessa ressalvar como o poeta plasma tais idéias em poesia.

Do mesmo lugar, surge o segundo capítulo, que pensa o modo como esse homem

se coloca no tempo, histórico e poético, antropológico e religioso, mítico e real. É aí reunido

um grupo de poemas que contrapõem, sobretudo, o tempo da ancestralidade (mítico) e o

histórico ao tempo presente. Explica-se, assim, o título do capítulo “Tempo e Espera” 10.

Justamente por se tratar do estabelecimento do homem num dado espaço, a parte

da Amazônia brasileira conhecida como região do Araguaia, passo ao último capítulo

9 Demócrito de Abdera. Filósofo, historiador e cientista atomista grego (460 - 370 a. C).

10 Trata-se do título de uma das suas obras “El tiempo y la espera”. Ressalto que há um tom de esperança impresso nos textos, pela formação teológica e cristã do autor. Independente disso, a sua obra e pensamento apontam sempre para a resolução de problemas terrenos, ou não, na terra, porque o reino de Deus deve ser aqui construído. Diz Pedro que, de garoto, ouviu a frase: “a terra é o único caminho que nos pode levar ao céu”. E ainda hoje afirma: “é o único caminho, é pela terra, pela história e pelas lutas daqui que vamos chegar ao céu”.

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“Configurações de espaço: Amazônia, morada da humanidade”, para tratar do processo de

enraizamento do povo, das lutas por terra, e de como esse espaço incide internamente sobre o

homem e a poesia de Pedro. Baseia-se na discussão sobre o modo como a luta pelo espaço

social se deu na obra em estudo, obra que possibilita, de maneira detalhada, o encontro com

o modo de vida a que são submetidos homens e mulheres que habitam a região do Araguaia.

Vislumbra-se uma situação de empobrecimento, mas também de esperança na conquista da

terra que, como moradia, é aspecto inerente ao homem. É, nesse sentido, uma poesia de

caráter dialético e de constante manifestação da esperança (em vigília) na luta pelo

estabelecimento do ser humano na terra e de sua emancipação.

O texto – Uma abordagem da poética engajada de Pedro Casaldáliga- consiste

numa leitura que intenta perceber o homem cantado por ele, nas suas relações com o tempo e

o espaço, e como esses elementos (essa matéria) são poetizados.

O que pretendo, pois, é desenvolver uma espécie de arranjo e situar tão claramente

quanto possível cada um dos textos estudados, de tal modo que o poeta, admirado com as

belezas naturais que se impõem ao seu olhar de estrangeiro e com a discrepante diferença

entre ricos e pobres, não se sobreponha àquele poeta maduro e convictode sua mensagem, a

nós apresentado em muitos de seus textos, e, a meu ver, mais explicitamente revelado nas

obras El tiempo e la espera (1986), Clamor Elemental(1971) e Sonetos Neobiblicos

Precisamente (1996).

Essa ligação é tanto mais urgente quanto é certo que ao nosso olhar salta o

comprometimento com a causa da libertação dos homens, mulheres e do mundo:

preocupações humanitárias que pode lançar à margem as reflexões filosóficas, e a grande

gama de recursos estilísticos os quais compõem uma poética leve e autônoma, em relação às

ações do homem e religioso Pedro Casaldáliga.

À parte tais observações, a opção foi pôr em relevo, por meio do estudo estilístico,

essa sua vocação e empenho para com sua mensagem poética e, a parte as informações que

temos sobre sua luta pela promoção humana, perceber como ele a plasma em sua poesia

tornando-a comprometida.

O conceito de liberdade, caro em muito de seus textos, é teorizado na introdução

a Antologia Retirante quando, pela apreensão do sentido da palavra retirante que, no modo

utilizado, diz daquele que imigra do nordeste em busca de um lugar onde haja água e

melhores condições de vida, coloca-se como retirante da poesia hemenêutica, da palavra

narcisista e, claramente, de uma sociedade opressora.

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Tento demonstrar que a leitura do conjunto da obra permite compreender que a

liberdade, ou libertação proposta por Pedro, não é nem a espera de um Senhor que venha

portando a libertação, nem a de mercado, mas uma proposta emancipadora que, usando dos

conhecimentos que surgiram com o último século, como as idéias de Marx e Hegel, transmite

a idéia de que “o homem é um ser ativo”, e modifica a natureza pela sua atividade prática e

social, construindo, assim, dentro de condições determinadas (mas mutáveis) a sua “ história”

(Lefebvre,1980, p. 68).

A construção da história humana, jamais dissociada da natureza, faz surgir das

páginas de Casaldáliga um ser humano que com ela tem estreitas relações.

O estudo de sua obra exigiu sensibilidade para com sua poesia e abertura para sua

causa, e noções da Teologia da Libertação e da cultura local. Posturas que se revelaram

fundamentais, após o que, lendo seus textos, ainda que nos falte maiores conhecimentos sobre

o que se passou na região donde escreve , adentramo-nos nela.

Nesse senso, sua proposta encontra-se mais uma vez com o marxismo, porque,

como este, apreendemo-la quando abandonamos a leitura de sua poesia. Mais tarde, porém,

num movimento dialético, parece-nos que seria preciso conhecer de antemão os pressupostos

teóricos em que se apóia. Primeiramente viria a leitura de sua obra. Em seguida, ao

aprofundarmos em sua proposta poética e teológica, descobrimos tratar-se de uma obra

dialógica: ambos os movimentos conduzem ao que ela vem a ser.

Segundo informa Lefebvre, o pensamento de Marx é pleno de contradição,

“quando nada acontece na natureza e na sociedade, ou na vida individual, não há contradição,

nenhum fato surge, nenhuma atividade acontece” (1985, p.72). Parte do princípio de que as

forças só agem de modo eficiente quando encontram outras que se lhes opõem de modo

também eficiente.

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CAPÍTULO 1. A OPÇÃO PELO HOMEM

1.1. A perspectiva humanista: aproximações teóricas

De longe, toda montanha é azul. De perto, toda pessoa é humana. (Casaldáliga, “PERSPECTIVA11”, CM, p.56)

Estes versos revelam um direcionamento na poética de Pedro Casaldáliga: embora

aparentem ser uma conclusão simples, ela é resultado de um profundo interesse pelo ser

humano, uma busca incessante da superação da antítese entre a aparência, o “longe”, que leva

a generalizações que culminam no domínio físico-ideológico de uns sobre outros, e o ser, o

“perto”, a particularização, a valorização de cada ser humano em si e nas suas relações.

No âmbito da obra em estudo, o homem constitui a opção temática, o qual não

será entendido sob um ponto de vista abstrato, mas segundo uma perspectiva social no que ela

é influenciada pela religiosidade cristã – o Evangelho é aqui uma fonte de inspiração –, que

abarca a finitude humana e a solidão espiritual. Obra poética em que são focalizadas situações

específicas da sua história, natureza, espaço e vida.

A compreensão do homem inclui a do mundo que o circunda. Este mundo está

circunscrito à região da bacia Amazônica, mais especificamente, na porção denominada

região do Araguaia, que compreende a parte nordeste do Estado de Mato Grosso. A obra

focaliza os povos que ali habitam, os índios Xavante, Karajá e Tapirapé, os conflitos entre

posseiros, retirantes e latifundiários e toda a situação de exploração e resistência que os

envolve. Refere-se ainda a seus idiomas e costumes, dentre os quais a contemplação de

“acontecimentos naturais”, como o rio e a lua. E também apresenta elementos da cultura e da

história, principalmente dos fatos que marcaram o século vinte. Deste fato resulta o

cruzamento de algumas teorias como é o caso da marxista e da psicanalítica que emergiram na

História e que constatamos em sua representação poética. Como afirma o poeta, “todos nós

que vivemos no século XX fomos de algum modo influenciados por Freud, Marx...” 12. Essa

postura torna a sua obra híbrida e faz com que dialogue com a formação do homem moderno.

O modo como o homem é poetizado por Casaldáliga coloca-o como representante

da humanidade, caso do poema LA LUNA OCUPADA (estudado neste capítulo) em que o

11 11 A sigla à frente do título de cada poema refere-se ao livro em que ele foi publicado. Para melhor identificação, será incluída no anexo 1 deste trabalho uma legenda. 12 Trecho da entrevista realizada com Pedro Casaldáliga em setembro de 2005.

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“eu” ali implícito é representante dos demais seres humanos, e do poema “Pacu”, estudado no

capítulo terceiro:

¡El pan de cada día de este Araguaia, fértil! ¡Holocausto de Dios y de los hombres, Entre la brasa y la pimienta! (versos 11, 12 e 13, CL, p.82)

Outro exemplo disso é o poema sem título, vendi a terra/ neguei a mãe/fiquei

órfão da vida, em que o ser que vende a terra é individualizado. Denota-se um eu elíptico,

revelado pela desinência verbal “i”. Sabemos, contudo, que o problema do distanciamento das

raízes pela saída da terra consiste num fenômeno coletivo. Então, embora tenhamos um único

ser protognizando a ação, não se trata do homem individualizado, mas na medida em que este

revele os demais seres, na mesma situação, demonstra uma tendência do poeta ao

engajamento.

Os últimos versos do poema “Eu, o Araguaia e Tu13”

Não havia Funai, Sudam, nem Incra. eram Deus e as aldeias. (v.22 a 25, EU, ARAGUAIA E TU (AT, p.55)

São marcados pela referência ao momento anterior à entrada do capitalismo no

local de onde escreve, de modo que, pensando na forma como Pedro vê a existência de Deus,

entendemos que, a liberdade, por exemplo, é inerente a vida humana e, somente mais tarde,

são criados meios de retrição e coerção humana.

Existência que se realizará em plenitude, quando todos os homens tiverem seus

direitos equiparados. A realização do homem é condição para que ele se aproxime do criador;

quando realiza o ato de pensar (em Deus), passa a existir.

Procurei identificar modos semelhantes de compreender a existência humana e

encontrei em Karl Marx uma possibilidade de diálogo; trata-se de um pensamento bastante

evidenciado na obra de Casaldáliga. Embora discordantes do ponto de vista da relação

homem-Deus, os autores mantêm, na possibilidade de emancipção humana, um forte ponto de

ligação, sendo que foi a presença de algumas das categorias propostas por Marx na obra de

Casaldáliga que possibilitou serem trabalhados, em conjunto.

Ambos refutam o determinismo natural: a humanidade é norteada por questões

históricas e não por determinação biológica. (Marx 2004, p.20)

13 Poema estudado no capítulo 2.

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Quanto ao que pensa o marxismo sobre a compreensão de Deus, Marx (2004,

p.20) colocará que o comunismo não nega Deus, mas considera desnecessária tal mediação:

“parte da consciência teórica e prática do homem... Um ser só se considera autônomo quando

é senhor de si mesmo e só é senhor de si mesmo quando deve a si mesmo seu modo de

existência”.

Embora as categorias marxistas de estrutura e superestrutura (que se relacionam

ao estado como aparelho ideológico) sejam muito presentes, é principalmente a densidade

filosófica (a dialética), que permite que a obra de Casaldáliga coloque sempre presente a

história humana em destaque. Esta é uma postura trabalhada neste estudo, fundamentada a

partir da obra Manuscritos econômicos e filosóficos (2005), em que o autor discute as relações

do homem com a terra e com o trabalho.

Para iniciar, segundo Marx, a terra tem valor próprio, não é “para o homem

mediante o trabalho” (2004, p.11). Porém, à medida que o trabalho passa a ser entendido

subjetivamente (ou seja, como uma mercadoria a ser vendida aos donos dos meios de

produção), passa de força absoluta a abstrata. A terra não é mais diferenciada de qualquer

outra indústria. Tendo se transformado em sujeito, o homem passará a “não ser”, ou melhor,

a ser entendido como força de trabalho. A indústria abarca a sociedade fundiária, criando a

propriedade privada. A superação da sociedade privada constituiria a superação positiva da

alienação e um retorno ao social.

O capital está na base da existência do privatismo. Surgem daí muitas teorias

propositivas sobre o trabalho. Marx, no entanto, vai postular que a superação do capital se

dará pela superação da propriedade privada geral, em função da coletiva. Nesse sentido,

segundo este pensador, a relação homem-mulher pode ser tida como exemplar, podendo-se

depreender dela o nível da abstração da relação homem-homem, isto é, em que medida o ser

individual é ser coletivo. O homem é para si e para o outro, porque o caráter social é o

principio de todo movimento comunitário.

O retorno do homem ao homem lançá-lo-ia no ser humanista ou naturalista, o que,

para Marx (2004, p.21), resolveria a oposição essência-aparência. Nesse sentido, a sociedade

representa o humanismo da natureza e a naturalização do homem. Essa naturalização dar-se-ia

pelo pensamento, “pensar e ser são, pois, na verdade, diferentes, mas ao mesmo tempo,

formam um conjunto, uma unidade.” Marx (2004, p.16).

Já o sentido de ter aliena todos os demais. A superação da propriedade privada

seria, por isso, a emancipação de todos os sentidos humanos, que jamais se voltaria a

constituir de seres individuais, mas sim, de seres coletivos e sociais.

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A sociedade baseada no privatismo não sabe fazer da necessidade privada uma

necessidade humana. Fato que gera, pois, o aumento do capital. A relação da economia

política com a moral é arbitrária; a primeira apenas expressa, a seu modo, as leis naturais.

A proposta comunista baseia-se na igualdade de indivíduos de diferentes nações.

Para a sociedade capitalista, um indivíduo só existe para o outro, quando este se converte em

valor. O trabalho é, então, entendido como a essência da sociedade privada, como a sua

determinação real – a alienação em maior grau. Num estado avançado, todo o homem é

mercantil, e a propriedade privada é pressuposto de toda a troca. Contraditoriamente, os

economistas propõem o desenvolvimento social por meio de interesses particulares.

A existência da moeda, como valor de troca, pressupõe que os desejos do homem

não sejam somente inerentes a ele, mas a um grupo. Pelo fato de se colocar o dinheiro entre

objeto e necessidade, o ser é conforme o que pode possuir, gerando a troca de todas as

qualidades humanas. O modo como o objeto surge perante o homem constitui o seu gozo. A

afirmação desse objeto dá-se pelo espaço no qual o homem, ao possuir, também se realiza.

Na obra 18 Brumários a Luiz Bonaparte (2004), Marx coloca a forma como o

poder se metamorfoseia no decorrer da história, faz uma análise de conjuntura da situação

francesa da época de Luiz Bonaparte e de como aí se dá a manutenção do status quo. É dessa

obra que será retirado o conceito de hegemonia, tão caro ao comunismo, e que também é

muito presente na obra de Pedro Casaldáliga, na medida em que apresenta os que detêm o

poder, no caso o governo e os donos de terra, o autor estudado propõem que, pela libertação

(emancipação ou divisão dos bens), os demais seres também participem deste poder

(participação que, no caso das personagens trazidas por ele a cena poética, representa a

própria possibilidade de fazer parte da sociedade) o qual lhes é conferido pela posse.

Muitas são, em sua poética, as temáticas que remetem à realidade humana e ao ser

em si, entre elas a nomeação do mundo, o ser feminino (morte, mulher, lua), sendo variadas as

possibilidades de aproximação com a teoria marxsita.

Os elementos que remetem à espiritualidade não são contrários aos demais temas

de sua poética, uma vez que são reunidos, num único texto, elementos como a “lua”, adorada

pelos nativos da América e o “Deus” cristão, categorias interiores à pessoa e também sociais,

porque conjugam, como no poema SEDUZISTE-ME, SENHOR14, a voz humana e a voz

divina.

14 Poemaa estudado no capítulo 3.

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No texto Espiritualidad de la liberación (1992, p.04), Casaldáliga toma uma

posição quanto a isso, dizendo que os

conceptos de espíritu y espiritualidad como realidades opuestas a lo material y a lo corporal provienen de la cultura griega. De ella pasaron al castellano, al portugués, al francés, al italiano, e incluso al inglés y al alemán… Es decir, casi todo lo que puede llamarse «cultura occidental» está como infectado de este concepto griego de lo espiritual. No pasa lo mismo, por ejemplo en la lengua quechua o guaraní o aymara. Tampoco el idioma ancestral de la Biblia, la lengua hebrea, el mundo cultural semítico, entienden así lo espiritual. Para la Biblia, espíritu no se opone a materia, ni a cuerpo, sino a maldad (destrucción); se opone a carne, a muerte.

Sobre isso, afirma Zubiri (apud Casaldáliga 1992, p.11):

Dejamos a un lado el tema de la «psique», a la que, como nosotros tampoco llamaremos “alma”, «porque el vocablo está sobrecargado de un sentido especial archidiscutible, a saber, una entidad sustancial que habita “dentro” del cuerpo».

Nesses termos, o sentido de “espiritual” estaria ligado à motivação, seja ela

provocada por qualquer doutrina social, étnica, ou religiosa. Para manter vivo o conceito,

dever-se-ia, segundo Pedro Casaldáliga (1992, p.08), entender por seu sinônimo

sentido, conciencia, inspiración, voluntad profunda, dominio de sí, valores que guían, utopía o causa por las que se lucha”, sentimentos que alimentam los ideales y “la mística por la que vive y lucha”, “ la fuerza de unas motivaciones profundas, de una pasión que la arrastra, de un fuego que la pone en ebullición, o de una riqueza interior que la hace rebosar.

Características encontradas ao longo da sua obra, como, por exemplo, quando

metaforiza elementos do campo, da materialidade como “cinza”, “vento” e “Águas”, para

representar força interior e a superação de adversidades vividas pelo homem.

Capta, na sua poesia, minúcias dos modos de vida ainda nativos, dos costumes

que sobreviveram, e a constante luta social (que coloca em jogo diferentes culturas). Este é

um fato que torna os seus textos subversivos, do ponto de vista da teologia tradicional (que

incorporou elementos da cultura grega), mas não, contudo, do ponto de vista da hebraica ou

semítica na qual busca seu conceito de espiritualidade. Estes são acontecimentos que parecem

comunicar-nos que a cultura cristã/judaica sempre teve tendência ao sincretismo.

Haveria, na Teologia da Libertação, segundo Casaldáliga (1992, p.04), uma

sobrevivência do “mundo cultural semítico”, e da significação do termo espírito, advindo de

“la lengua hebrea”, compreensão que teria sido perdida pelo catolicismo ao longo dos anos da

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romanização. É, nessa perspectiva e no âmbito da compreensão católica, uma idéia

revolucionária.

Então, é lícito afirmar que Pedro Casáldaliga vai buscar, nas culturas nativas,

sedimentação para a sua experiência, assim como conhecimentos de espiritualidade, o que

comunica a possibilidade de uma síntese entre tão diferentes modos de ver a espiritualidade

cristã e a indígena. Tudo isso, para falar do ser humano e das suas motivações. Esta é uma

compreensão que parece nos dizer que o valor do eu é tão grande quanto o da comunidade. O

valor das culturas locais equivale ao daquelas consideradas ao longo dos séculos como

universais. Compreender a espiritualidade, num contexto geral, requer que a compreendamos

no contexto mais local. Em suma, a apreensão de si é intermediada pela idéia do outro, assim

como a do outro o é pela de si.

1.2. O homem e o tempo-espaço

A valorização do humano, conforme Leonardo Boff, em Grito da Terra, Grito dos

excluídos (2004), não precisa necessariamente significar aquele humanismo que colocou o

homem como centro do universo, dando-lhe a possibilidade de destruir ou construir aquilo

que lhe convém e criando “o mito do ser humano, herói desbravador, Prometeu indomável,

com o faroenismo de suas obras. Numa palavra: o ser humano está entre as coisas para fazer

delas condições e instrumentos de felicidade.” Boff (2006, p. 89)

O universo é, de acordo com esse modo de pensar, “uma rede de relações

envolvendo tudo e todos, especialmente os seres humanos” Boff (2006, p. 89). Cada ser

humano é único, ou seja, possui sua singularidade; é singular e sabe-se singular: “O

indivíduo-pessoa, quer dizer, um ser irredutível (indivíduo), mas sempre em comunicação

(pessoa), funda um milagre no universo e um mistério abissal” (2006, p. 91), sua Haecceitas,

como afirma, citando o filósofo e teólogo medieval João Ductus Scotus.

Quando há um encontro mínimo entre duas unidades, começa aquilo a que

chamamos de consciência. “Quanto mais rico é o encontro, mais complexa será a realidade e

mais importante o grau de consciência.” Boff (2006, p. 88).

Isso não significa que, por ser dotado de consciência, o homem não tenha de

pensar com responsabilidade. Toda realidade implica em dualidade, esta porém, não implica

em dualismo.

Cada um é portador de sua natureza, de sua “cultura”. Mas o é de forma singular e

sui generis, singular e irrepetível. Cada um faz a sua síntese da totalidade e pode transformar,

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a seu jeito, todas as experiências e conhecimentos num ato de acolhida e afirmação do

universo, numa entrega desinteressada ao outro, e numa abertura ilimitada ao Mistério que as

religiões convencionariam chamar Deus.” Boff (2006, p. 90).

A atual perda de uma relação próxima para com o planeta provoca uma crise

ecológica: modelo que apresenta uma potencialização suprema para atender as necessidades

produtivas, coisas que geram pobreza e um possível colapso do universo.

Riqueza e degradação se produzem mutuamente. De um modo geral, quando

surgem problemas entre questões ecológicas e as de desenvolvimento, opta-se pelo segundo.

Desenvolvimento que é mais crescimento, porque não respeita as diferenças. Em si ele não

existe, diz respeito à forma de condução de uma sociedade.

A idéia que o ser humano faz de si e de sua relação com o mundo é

importantíssima em sua relação com o universo e com seu destino. Segundo Boff (2006, p.

95) pensar que o ser humano “é a medida de todas as coisas”, como teria afirmado o filósofo

Protágoras de Abdera, prejudica a relação do homem com o universo. Para Boff (2006, p. 95),

o desejo de dominação fez nascer a razão instrumental que conduziu para a sociedade

moderna, tipo de relação que mudou radicalmente o modo de entender o espaço e o tempo.

O desejo de poder que tem o ser humano não é de primeira mão ruim. Pode

significar a vontade de estabelecer relações e de ser, mas pode tranformar-se em vontade de

dominação que se manifesta “ora anulando o poder (opressão), ora submetendo-o

(subordinação), ora cooptando-o e atrelando-o (hegemonia)” Boff, (2006, p.106).

Para o autor (2006, p.106), as sociedades ocidentais foram elaboradas no espaço

simbólico do judaísmo-critianismo. No afã de gerar a vida e fugir à entropia geral, o ser

humano se organiza centrado nele mesmo.

Foi com esse modo de pensar que o governo militar avançou, com base no mito

do vazio da região Amazônica, sobre ela. Mas, atualmente, sabemos que há sociedades que aí

vivem há séculos, as quais convivem com a terra de que resulta um longo tempo de

intervenção humana naquele ecossistema. Boff (2006, P. 125). A poesia de Pedro apresenta-a

como espaço povoado e faz constantes referências aos povos que por ali passaram. Por esse

motivo, e, por falar diretamente àqueles que ali habitam, reforça, a todo momento, seu

carácter engajado e libertador.

Compreender isso significa olhar de modo cuidadoso para a relação estabelecida

entre homem e terra em tal decurso temporal. O autor afirma, evidentemente numa

perspectiva cristã, que:

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O antes e o depois são determinações termporais. E o tempo é uma categoria deste mundo. Deus não criou o mundo no tempo, mas com o tempo. Antes do tempo há a eternidade, como antes da criatura há o criador. Mas de todas as formas, há a pergunta: o que haveria antes do vácuo quântico - a realidade temporal, no absoluto equilibrio de seu movimento, a totalidade da simetria perfeita, a energia sem fim e limite. Boff, (p. 199, 2006)

Segundo Boff (2006, p.188), a preocupação primeira da Teologia da Libertção

não era a Terra, mas os filhos e filhas da terra. Evidentemente que sua situação representa

também um desafio ecológico, mas “tudo isso era pensado dentro de um contexto histórico-

social mais estrito e no contexto da cosmologia clássica”.

À medida que os modelos antigos não conseguem responder aos desafios

surgidos, há uma quebra de paradigmas:

A mudança na estrutura humana vem imposta pelos fenômenos, pela própria natureza e em nenhum momento pela autoridade humana. Somente triunfa aquela revolução que é resposta à necessidade imperiosa de mudanças sem as quais as crises persistem, os problemas se aprofundam e as pessoas perdem a esperança e o sentido da vida. A revolução apresenta o que deve ser. O que deve tem força por si mesmo. Boff (2006, p. 253)

As mudanças abrem as portas para o novo, mas conservam alguns traços, de modo

a exigir tanto uma nova teoria como, em alguns casos, um novo paradigma. A espiritualidade

das igrejas e religiões tradicionais é pautada em modelos de vida (cosmologia) que já não

existem mais, deixando de corresponder à sensibilidade do atual.

No caso da Teologia da Libertação, a espiritualidade encontra toda sua existência

na realidade da vida.

A espiritualidade comporta, pois, um verdadeiro projeto que se confronta com a lógica da morte presente no processo atual de anulação individual e do mercado total. Uma das dimensões da espiritualidade está ligada ao espírito do tempo. Este é por excelência mais uma representação holística que um conceito delimitado e vigoroso. Por espírito do tempo, entendemos as motivações poderosas, as forças espirituais e morais que movem uma geração. Boff (2006, p. 26).

Tal espírito constitui, para quem naquele tempo vive, uma atmosfera comum,

onde todos respiram, sonham as mesmas coisas e partilham a mesma “racionalidade”. A

função desse espírito seria, pois, unificar nossa visão da realidade, religar de forma articulada

todas as experiências, conhecimentos e práticas. Boff, (2006, p.260).

Ilya Prigogine confirma essa posição quando diz que quem viveu na época em que

Mussolini, Hitler e Stalin dividiam entre si grande parte do poder mundial, não pode ter

deixado de dar-se conta da dimensão do tempo: “credo che l’essere passato attraversso quegli

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me abbia dato una forte consciencia dela realtà del tempo. Como ricorda spesso Popper, il

tempo non può essere un’illusione perché sarebbe come negare Hiroschima15” (2001, p.19)

È justamente o homem de um tempo em mudança que será cantado por

Casaldáliga, e ela decorre, de um lado, pelo avanço do capitalismo e, de outro, pela luta de

parte das personagens representadas pelo poeta, pela garantia de alguns direitos fundamentais

a vida humana.

1.3-Da síntese poética ao eu-humanidade

Segundo o poeta em estudo, a

Poesia supõe sempre uma tal intensidade e emoção, que suprime tudo o que poderia ser meio supérfluo... poesia cabe em dois versos. São “no-emas”. “Nó” em grego-pensamento. Pensamento em poema. Expressam um pensamento de modo forte e poético. 16

O grupo de poemas que serão analisados a seguir faz parte de um tipo de texto que

optei por chamar poesia “síntese” 17, porque parecem sintetizar o conteúdo trabalhado pelos

textos em que opta pelo versolivrismo. Diferem dos demais, justamente por serem, na sua

grande maioria, compostos por haicais, ou se lhes assemelharem, fato intrigante, porque,

justamente quando os poemas parecem retratar e até expor o homem construído pela cultura

ocidental, usa a composição nipônica, que, como informa Akashi (1999, p. 18), tem tom e

forma fixa. Originalmente, apresenta 17 sílabas poéticas, dispostas em três versos, os quais se

apresentam, no caso dos compostos em terras japonesas, de modo horizontal18.

São de caráter reflexivo e sintético, densos e ricos de sugestão, tendo sido

definidos (Akashi, 1999, p.110), por Matsuo Basho, um dos mais importantes haicaístas

15 Tradução livre: Creio que ter que vivido naqueles anos, deu-me uma forte consciência do que é a realidade do tempo, como recorda Popper o tempo não pode ser uma ilusão porque seria como negar Hiroschima. 16 Trecho da entrevista realizada com Pedro Casaldáliga em setembro de 2005. 17 Esse foi o nome que me ocorreu quando da leitura do conjunto de seus textos para a seleção do corpus. Do ponto de vista da forma poética consegui aproximá-los do haicai até porque ele os intitula “haicai”, “haicai da borboleta nacionalista”, por exemplo. A grafia haicai em detrimento de haikai segue as orientações de Akaski (1999, p.9) que informa que os termos são sinônimos podendo-se optar tanto por um quanto por outro. 18 O haicai é originário de tanka (tan-corda, ka-canção), em Português renga, da qual o haicai era parte ( haikai-renga), seus ideogramas hai e cai significam brincadeira e humor. Sofreu, mais tarde, influências do haiku ( o ideograma Ku é abreviatura de Hokku ), nome da primeira estrofe do tanka,, que tinha 17 sílabas (5,7, 5), abandonou assim o tom humorístico, que permaneceu em poucos autores. Sua mensagem ajusta-se bem à carga sonora e gráfica próprias dos ideogramas orientais (Akashi, 1999, p.110)

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japoneses, como “uma busca do instante poético”, teor presente em Pedro, caso, por exemplo,

do poema HAI-KAI DE LA LUNA OCUPADA19 (CL, p.66),

Cada vez que miro la Luna, Siento el pie de Armstrong20 En mi ojos21.

Este poema é caracterizado pela beleza, sutileza serena e humor, e o seu título é

composto pelo substantivo hai-cai, caracterizando a espécie poética com a qual será cantada

la luna, e indicando, por um lado, uma freqüência no ato de contemplação desse satélite,

conhecido por refletir a luz solar que, projetada, incide sobre a terra, provocando espetáculos

celestes encantadores, por outro, a cada vez que o ato se repete, o contemplador observa o

quanto esse satélite está “ocupado”, dominado pelo homem nas suas pesquisas científicas,

uma particularização de sentido. Essa distinção, que será convertida em generalização pelo

verbo “mirar”, dá um entendimento da Lua como uma entidade que reflete e projeta,

estimulando a contemplação. Nesse caso, o verbo referido, quando conjugado ao termo ojos, é

deslocado do seu campo semântico (ver, olhar), passando a sugerir uma comparação entre Lua

e espelho, ambos com o poder de refletir. Tal idéia traduz-se numa orientação estética que

segue o olhar sobre o fenômeno ora racional, ora afetivo. Comporta, como é próprio dos

haicais, um momento mais vivenciado que imaginado, sendo isso o que atesta o vocábulo

cada que, adverbializado, indica a freqüência de tempo com que o “eu”, elíptico no primeiro

e no segundo versos

Cada vez que (eu) miro la Luna, Siento (eu) el pie de Armstrong En mis ojos.

(porém presente pelas desinências verbais), mira la Luna.

Os verbos referenciados miro e siento, na primeira pessoa, conjuntamente com a

partícula mis, comunicam existencialidade. Noutro sentido, recordam a imagem (notícia) da

chegada do homem à lua, o que faz com que esse “eu” oculto represente também um ser

19 Muitos textos de Pedro trazem os títulos em maiúscula. No caso da obra Cantigas Menores em que está publicado este haicai, todos os poemas são apresentados assim. Não sei se por escolha da editora ou do poeta. Opto por reproduzir o modo como foram trazidos ao público. 20 Neil Armstrong foi o primeiro homem a pisar na lua. Fato que aconteceu em 2 0 de julho de 1960, quando a Apollo levou-o, junto Buzz Aldrin e Michel Collins até esse satélite onde fizeram experimentos científicos. 21 Há no livro Antologia Retirante uma versão desse poema em Português na qual, o poeta, que na maioria das vezes traduz-se a si mesmo, utiliza a expressão “pesar sobre minha cabeça” em substituição a “Em mi ojos”.

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genérico, pois o mundo teve notícia desse acontecimento. Sentir el pie de Armstrong é, então,

conseqüência do ato de olhar para o espaço, sobre o qual todas as pessoas, convocadas à cena

poética através da memória, têm participação efetiva.

O poema é composto por um único período, com duas orações – eu olho para a

lua e eu sinto os pés de Armstrong nos meus olhos, apresentando um fio linear, uma sentença

que pode ser dita de uma única vez, como é próprio dos haicais.

Quanto a isso, comparado com a estrutura tradicional do haicai, o poema

apresenta versificação livre, deixando de lado a construção em 17 sílabas e distribuição em 5,

7, 5. Esta é, segundo Akashi (1999, p. 75), uma das características desse tipo de composição

no Brasil.

Se entendermos a referencia à “lua” como intertexto com a cultura da região de

onde ele escreve, é possível que a lua para a qual ele olha seja a cheia, já que ali existe a

tradição de contemplá-la nesse período, fato que inauguraria uma referência às partes do mês

em que a lua se encontra nesse estado; tal interpretação tornar-se-ia possível, pelo fato de uma

das características do haicai ser a apresentação de grande poder sugestivo, assim como a

referência a elementos conhecidos pelo leitor.

Quanto ao fato de rememorar um acontecimento conhecido por um determinado

grupo, a introdução do nome de Armstrong, um dos astronautas que primeiro pisou na lua,

insere o texto na comunidade do ocidente (já caminhando para o mundo globalizado) e marca

oposição aos ideais de conquista do homem, nesse caso específico dos Estados Unidos, país

que investe muito na conquista do espaço. A metáfora pie de Armstrong22 que pesam sobre

olhos, desse eu generalizado (que é a comunidade humana globalizada) poderá, então, ser

entendida como os pés do império (USA), que, pela conquista do espaço sideral, intenta a

dominação do mundo, pisando sobre ele. A lua, espaço possuído, seria, assim, metonímia da

dominação do planeta por um dado país.

Nesse caso, teríamos implícito um profundo discurso sobre a dominação de países

sobre países, da qual, nem mesmo as populações de espaços considerados longínquos (como

são alguns na América Latina), que ainda têm o costume de contemplar a lua, poderão

escapar. E o fato é que ela já está dominada.

22 A chamada corrida para a lua consistiu numa batalha científica pelo domínio do espaço entre Estados Unidos e União Soviética que ocorreu durante o período da Guerra-Fria. Tendo os Estados Unidos chegado na frente, Armstrong teria dito que ele e seus companheiros sentiam-se símbolos da curiosidade da humanidade e que essa era uma descoberta da humanidade, definindo a lua como “oceano de tranquilidade”. A verdade é que plantaram lá a bandeira dos Estados Unidos.

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Concomitantemente, o domínio do espaço permite que possamos assistir a um

outro espetáculo, o da TV e das transmissões simultâneas que substituíram, em muitos casos,

os costumes de observação do céu.

Argumento que, pela proposição sintética apresentada, resulta num silogismo que

proporia, provavelmente baseando-se no fato de aquele país se ter convertido numa potência

econômica, as possíveis afirmações – toda a conquista é dominação/os Estados Unidos

conquistaram a lua /logo, é um país dominador.

Porém, como não é da natureza do haicai trabalhar com sentenças absolutas, mas

com sugestões capazes de provocar a captação do “instante” (pelo leitor), que é por si

desvelado “em seu núcleo de eternidade, ou melhor, de transitoriedade” Akaskhi (1999, p. 69)

apud Goga (1990, p.05), devendo provocar associações, o HAI-KAI DE LA LUNA OCUPADA

não constitui em si um argumento formal, mas convence por meio da ironia. Ou seja, propicia

a substituição do olhar contemplativo, no sentido de um olhar simples e ingênuo dirigido para

a lua, pela reflexão, o que gera certo efeito cômico, comicidade que, de acordo com

Akaskhi(1999, p.28), já foi, durante o período da constituição do gênero, característica desse

tipo de poemeto popular.

Numa primeira leitura, parecem versos de uma frase solta, ditos ao acaso.

Atentando melhor, percebe-se que há um sentir todo manifesto na primeira pessoa, o qual é

reafirmado pela inversão da sentença, que, em ordem direta seria: sinto os pés de Armstrong

pesar sobre minha cabeça todas as vezes que olho para a lua. Ou seja, todo o texto gira em

torno do “sentir” humano, sendo os pies de Armstrong o único elemento externo a invadir a

sua individualidade. Trata-se de um ser em vias de dissociação do seu modo tradicional de

ser, e sobre o qual incidem os efeitos da modernidade.

Por conseguinte, o modo filosófico e sintético como problemas relacionados aos

meios social e político são colocados, dispensa os longos discursos e oratória convencionais.

Indo ao cerne das questões, reúne dois modos de compreender a vida (o ocidental e o

oriental), fato que possibilita um diálogo entre essas diferentes culturas.

As problemáticas do ocidente são vertidas para o modo de poetar oriental que,

pela eficiente concisão, pode estar sugerindo a necessidade de que a reflexão se torne maior

no mundo em que se encontra o poeta.

Há ainda poemas-síntese que exploram, com maior intensidade, a natureza

humana. O encantamento diante da vida é, segundo Akashi (1999, p. 139), o que permanece

em todos os poetas brasileiros que aderiram ao haicai, opção que denota a referida liberdade,

no sentido de um olhar puro para o mundo, livre das amarras do mundo capitalista e de

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antigos costumes culturais e religiosos, aberto às respostas oferecidas pela natureza e à

reflexão perante a vida. Postura que não só aparece nos poemas-síntese, mas que permeia toda

a obra de Casaldáliga.

Fenômeno comprovado, por exemplo, no poema Ecologia suprema (CM, p.27),

que contesta o modo como, nos meios religioso e social, a idéia de imagem de Deus é tratada.

Historicamente, a imagem de Deus é tida como aquela que não deve ser

desrespeitada, que não deve ser chamada em vão, por se tratar de um ser superior. No poema,

a imagem “de Deus” é encontrada no homem.

É proibido poluir a imagem de Deus, que é o homem .

A imagem é algo que faz parte da cultura católica ocidental. Contudo, a sua

legitimidade, foi sendo questionada no decorrer da história por outras correntes cristãs. Assim,

o autor recupera o termo, dando-lhe uma conotação diferenciada, pois a ela é dada uma idéia

de coisa real e não do que existe apenas no plano da imaginação. O homem é real, segundo o

que expressa o poema, por isso, é imagem do criador. Este constitui o momento no qual o

texto passa a mais profunda idéia de espiritualidade: Deus manifesto nas coisas.

Há aqui uma representação humanista, a atitude de um saber, de um conhecimento

mítico-religioso sobre a idéia de liberdade e salvação do homem, idéia do distanciamento

entre Deus e o Homem, superada pelo conhecimento filosófico, isto é, pela discussão

imanência-transcendência, fato que gera a superação de equações míticas em direção à

Filosofia. Diálogo de culturas em razão de um conhecimento, ao mesmo tempo filosófico e

cristão, intencionalidade que foi dita “ecumênica” pelo homem do Renascimento. Nesse

sentido, o diálogo de culturas – localizáveis no tempo e no espaço-, sob a égide do

pensamento cristão, foi a condição fundamental para uma reorganização das ciências humanas

e práticas, objetivando a determinação do bem comum.

Para tratar disso, o poeta utiliza uma expressão exaustivamente usada na

década de 60. Geralmente colocada em locais públicos, a já existente forma proibitiva “é

proibido” foi tomada como palavra de ordem e tornou-se símbolo da repressão militar, mas,

no entanto, foi apropriada pelo movimento hippie.

O chamamento é para todos: ninguém deve poluir a imagem do homem. Por isso,

joga com o imperativo. Assim, a locução verbal é + proibido (forma nominal, particípio) +

poluir (infinitivo), derivada do chavão “é proibido proibir”, lembra a oposição ao modo como

os governos ditatoriais se colocavam diante da população, por meio da proibição expressa.

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Ambiguamente, a sentença convoca para uma ação, e lembra um fato histórico ainda instalado

na memória coletiva.

Nesses termos, o primeiro verso consiste num chamamento, mas também numa

ironia para com o autoritarismo, referenciado como uma atitude de poluição da imagem de

Deus. Esta é uma similitude que revela o desejo de descartar os modos autoritários como a

sociedade vê e compreende Deus, assim como também a grande oposição a tudo aquilo que

aprisiona o homem. Ao expressar o seu modo de olhar para o homem, o poeta imediatamente

refuta outras maneiras de vê-lo: mercantilista, cristã medieval etc.

Verso esse que é complementado pelos segundo e terceiro versos, eles dizem-nos

o que não pode ser poluído: Deus/que é o homem.

O uso da vírgula após o segundo verso parece sugerir tanto um trocadilho entre

Deus e homem, como também uma pausa para uma reflexão acerca da mensagem que até essa

altura do texto parece ser apenas repetição do texto bíblico (livro de Gênesis) sobre a criação,

no qual se afirma que o homem é criado à imagem de Deus. Mas, no texto, há uma inversão:

Deus é a “imagem do homem”, e o é somente após o momento em que o terceiro verso nos dá

essa informação, onde, e com um ponto final, o texto é encerrado.

Metaforicamente, ele chama ao homem, Deus, e a Deus, homem. Para perceber

a existência desses níveis de comparação, torna-se necessário olhar para além dos elementos

que poluem a imagem de ambos, visto que se trata de uma só imagem. A Ecologia é

qualificada no título do poema como suprema, não por ser apenas material, mas também por

não ser apenas metafísica. O olhar, então, deve perpassar esses dois modos de ver a mesma

coisa.

O olhar do poeta é capaz de, pelo símbolo poético, desnudar o mundo natural e

social. Casaldáliga comunica mitos e símbolos, ora católicos, ora nativos, e ainda os gestados

no decorrer do encontro entre tais culturas.

A poesia, por seu turno, é também símbolo e, por conseguinte, apresenta formas

canonizadas, dentre as quais o haicai, a que o poeta adere, assim como outras, casos do soneto

e das quadras populares23.

No desejo de compreender as características que marcam o seu modelo de

poetizar, percebi que há, em Pedro, um grande anseio de liberdade, mesmo quando recorre a

formas fixas. Contudo, apesar de em grande parte da sua poesia optar pela forma livre,

23 Curiosamente, Akashi (1999, p.80) informa que o haicai é uma composição de origem popular e que Afrânio Peixoto, em Trovas Populares Brasileira (1919) compara-os, em seu prefácio, com as formas populares brasileiras: “os japoneses possuem uma forma elementar de arte, mais simples ainda que nossa trova”, que traduz por “epigrama”. Conclui falando do grande poder sugestivo que tem o haicai.

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quando usa das fixas subverte-as, como faz, por exemplo, ao colocar um título no haicai, uma

forma poética que se caracteriza por não empregar títulos.

A respeito da opção composicional, o poeta Rinaldo Gama (2004, p.14) afirma, na

introdução a Sonetos neobiblicos precisamente, de Casaldáliga, que na escritura dos sonetos,

o autor teria alcançado grande dicção poética, e que a forma fixa, a que Gama (2004, p.14)

chama “régua do soneto”, lhe parece definir melhor “os contornos da sua sensibilidade

poética”. Creio que o mesmo é aplicável aos haicais, que, por se debruçarem sobre temas

bastante especulados pelo homem, como a solidão e a palavra humana, denotam um alto grau

de poeticidade, e dão à sua obra, características filosóficas. É como se a forma o deixasse

mais livre para se manifestar; o tema é a ela conformado e nela trabalhado. Essas formas,

sonetos e haicais, não aprisionam o conteúdo, ao contrário, são partes dele, manifestam-no.

Ou seja, mesmo nesses casos, o princípio da liberdade prevalece.

Quando fala de religião, o Pedro Casaldáliga também prima pela liberdade,

reafirmando os princípios do cristianismo puro, colocando-o em confronto com o mesmo

cristianismo, impregnado de poder quando da sua junção com o império romano. Parece haver

em Pedro, ao longo dos seus textos, um constante diálogo com as forças conservadoras que há

dentro da Igreja Católica e da sociedade. Este é um desejo de transgressão e liberdade, que, de

certo modo, pode parecer estranho num escritor/padre. Sobre isso, Gutierrez (1992, p. 04),

afirma que, ao falar de Pedro, e ao compará-lo com San Juan de La Cruz, essa liberdade

resulta da opção por um dado modo de escrita,

se evocaba (en San Juan de la Cruz) la figura de un gran místico que recibió además el don de la poesía y nos supo decir con belleza los afanes, las solicitudes y los gozos de la subida al Monte Carmelo. Libre como todo místico, y libre también como todo verdadero poeta.

Nesse sentido, tanto o modo de compreender o homem como o de entender a arte

serão baseados não apenas no cristianismo, ou na literatura regionalizada, mas numa liberdade

que pressupõe a valorização de ambos. Isso porque, ao mesmo tempo o particulariza numa

dada região, e o reúne, pelos efeitos metafóricos, próprios da poesia, ao conjunto da

humanidade.

1.4-Tempo de viver: a nomeação da vida

Em relação aos temas, há na obra de Casaldáliga uma conformação do conteúdo

humano e popular ao uso das diferentes espécies poéticas. Geralmente a mensagem salta à

vista, o que a aproximaria da referencialidade, mas é notório nos seus poemas o caráter da

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novidade, da surpresa. Em nível da linguagem, eles apresentam características da fala erudita

e da popular, das cantigas de roda, e, em alguns casos, referências diretas às cantigas (caso do

título do livro Cantigas menores e do poema Cantiga do feixe da foice). Nesse âmbito, ele vai

fazendo especulação filosófica (caso dos haicais), conceituação (como nos sonetos),

descrições (como em Estrada do sertão e Beleza perfeita)24, nos quais são descritos

progressivamente paisagens e acontecimentos), definições – como no poema “Pacu”25.

Existe um número bastante significativo de poemas que apresenta certa

disposição para nominar/definir as coisas, a vida, a existência. Nas palavras de Paz (1997,

p.132), fica evidente que esse é, de fato, o papel da poesia: “o poeta não descreve o objeto,

coloca-o diante de nós”. Note-se que os referidos objetos não apresentam um único sentido,

mas remetem a muitos outros.

O ato poético devolve a palavra à sua riqueza, à plurissignificação. Se lançadas

diante de nós no seu aspecto puro/ sintético, as mesmas palavras, que numa dada situação

compõem um poema, perdem, embora essa já faça parte de sua natureza, a mobilidade (Paz,

1997, p.133).

Essa distância deve ser recuperada pelo leitor de poesia, quando, e refira-se, por

exemplo, o caso do poema Vivir (TE, p. 80), a vida humana é definida. Cabe ao leitor

especular sobre muitos outros modos de compreender a vida e pensar a seu respeito.

Trata-se de questionamentos que não se separam da linguagem. O poema

representa uma tentativa de transcender o idioma, uma maneira que o homem tem de se

aproximar do objeto. Pela palavra poética se especula sobre o:

Vivir es ir poniendo El corazón y un pie detrás del otro Sobre el camino que se vaya abriendo.

Iniciado com uma locução verbal, o poema apresenta, no primeiro verso, a

estrutura clássica da metáfora, a definição.

O transitivo poniendo estabelece a necessidade de que os versos posteriores

estejam ambos encadeados, com o objetivo de responder ao que é a vida (ou, o que é o vivir).

Nesse sentido, os versos vão-se arrastando um ao outro, como que pelo camino a ser trilhado.

Assim, temos o objeto direto el corazón y un pie detrás del otro, para responder ao que se vai

poniendo; detrás del otro y sobre el camino.No fundo, dizem o como e o onde serão postos.

24 Os textos serão trabalhados no capítulo 2 deste trabalho. Também são analisados poemas que apresentam características das cantigas populares. 25 Estes poemas serão estudados no capítulo 2 deste texto.

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Por fim, a oração explicativa que se vaya abriendo, indica de que caminho trata o autor. A

predisposição para as formas nominais, de início, pareciam sugerir pouco movimento ao

poema, mas há, contudo e indubitavelmente, uma propensão para a ação. O vivir,

metaforizado pelo camino, toma dimensão de movimento, fazendo-se no dia-a-dia.

O compasso imposto pela leitura dos versos, lembra uma marcha, imposta pela

seqüência verbal, parecendo existir um assenhoramento do caminho, ou seja, assim como é

contínuo o caminho, são contínuas as ações: ir poniendo, vaya abrindo – seqüência que

permite um triplo paralelismo, a idéia de continuidade do caminho, manifestada pelo

encadeamento dos versos, pelos verbos já citados, e pelo próprio vocábulo camiño.

Tal recurso faz com que seja mantida a característica filosófica da composição

japonesa, porém, não mantém a sua materialidade estrutural (número de sílabas e frases

poéticas marcadas nos versos 5, 7, 5, unidas pelos sentidos, de modo a favorecer o uso da

elipse, em detrimento do encadeamento). O tom de definição faz parecer que há um

pressuposto de que seja o vivido, o acontecido, que propicia a definição das coisas, ou seja, a

coisa antecede a nominação.

1.5 - O ser nativo: pegadas e presença do homem amazônida

COLINA (TE, p. 87) Largos vientos la amasaron Como un pan de sumisión; Como un pecho que se entrega Un día los pies Xavantes La estremecieron, tambor. Y la luna se segaba Con los ritos de su hoz. Lluvias nuevas la revisten de terciopelo, y el sol la oblaciona luminosa, entre el cielo y el sertón. Y mis ojos la defienden Como el alto corazón que se arranca de estas tierras calcinadas de ambición. Colina! verde, colina Única; peldaño hoy De las Bienaventuranzas; Mañana, de la Ascensión.

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Invocando a ancestralidade nativa, o poeta recorre ao formato da colina, que é

duplamente comparada como un pan de sumisiòn e com um pecho que se entrega. Duas

comparações que, através dos vocábulos pan e pecho, indicam, ao mesmo tempo, que a colina

é uma alteração no terreno, mas que, porém, é menor que um monte, por isso o uso do termo

entrega, imageticamente indicando que, ao mesmo tempo em que emerge, de modo sutil, do

chão, continua, como que abandonada a ele, nele plantada.

Na seqüência, são descritos momentos da formação e povoamento da colina – na

primeira estrofe, largos vientos a amassaron; na segunda, un día los pies Xavantes/ la

estremecieron tambor, e, momento atual, lluvias nuevas la revisten/ de torciepelo...

A metáfora la revisten de torcipelo indica que, com a chegada desse novo tempo,

ou dessas novas chuvas, a colina, agora revestida com uma delicada capa, torna-se mais bela

(provavelmente verde).

Espacialmente colocada entre el cielo y el sertón – observação histórica e

espiritual, pois, segundo Chevalier (1992, p.199), colinas e montanhas sempre foram usadas

como locais propícios para a construção de castelos porque estabeleceriam a ligação entre o

celeste e o terreno –, a sua beleza torna-a digna de receber oblaciòn do sol que lança,

sinestesicamente, sobre o revestimento recebido da chuva, a sua luz.

Ocorre uma acentuação do ritmo, na segunda estrofe, em redondilha maior,

lembrando os tambores Xavante, acompanhados pelos astros:

Un día los pies Xavantes La estremecieron, tambor. Y la luna se segaba Con los ritos de su hoz.

O “eu” que observa e descreve manifesta-se na quarta estrofe: mis ojos la

defienden, ou seja, o eu lírico que assiste a todos os momentos pelos quais a colina passou,

protesta como a própria colina contra as injustiças: Y mis hojos la defiendem. Colina que,

personificada, é comparada a um coração que brota daquelas tierras, precipitando-se para o

alto: como un alto corazón/ que se arranca de estas tierras/ calcinadas de ambiciòn.

Das tierras queimadas (destruídas) pela ambição brota a colina. Brota, também, a

indignação do poeta.

Na última estrofe há evocação e definição – Colina! verde, colina. Há, primeiro, o

uso do vocativo, depois, da qualificação pela cor verde, para retornar ao nome colina, o que

caracteriza uma epizeuxe, interposição de um vocábulo no meio de outro, recurso que parece

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indicar que há um desejo de dirigir-se diretamente à colina, mas que também quer descrevê-

la.

Percebe-se certa multiplicidade nos modos de expressão utilizados: narrativo,

descritivo, evocativo, os quais permitem que a colina seja olhada por vários ângulos, fato que

a torna, aos olhos do leitor, surpreendente. A colina, que, então, era apreciada de longe, de

repente, passa, no último verso, a interlocutora do eu-lírico. Parece haver uma aproximação

do objeto observado. Essa multiplicidade não ocorre, porém, somente nesse texto, muitos

outros poemas do autor apresentam essa característica.

A “colina”, metáfora das bienaventuranzas e da mañana da ascensão, é signo da

comparação entre o tempo da ancestralidade e o tempo de Deus. Ou seja, o intertexto bíblico

assume aqui um papel quanto ao estabelecimento da ligação entre os primeiro e último versos.

A seqüência de metáforas (pecho, pan, alto corazòn) fazem com que,

alegoricamente, a colina corresponda a um significado no plano concreto (colina como

elemento geográfico) e a outro, no abstrato (colina como aproximação do cielo). Representa,

por meio de formas concretas, uma coisa, para, sob forma figurada, dar idéia de outra.

A montanha não é tanto um espetáculo de verde e esperança como também um

borbulhar interno na alma do poeta. É a evocação de um povo, o Xavante, com seu mundo e,

ao mesmo tempo, uma pintura dos esplendores naturais. Ele faz isso do ponto de vista da

retratação da natureza e da criação de imagens que resulta em símbolo epifânico e

escatológico, em linguagem referencial e poética.

A luta pelas terras índias é uma das bandeiras de Pedro Casaldáliga.

Mas, para além do fato de que são encontrados muitos outros elementos que

remetem à defesa dos direitos indígenas, pode-se pensar na valorização da cultura da América

Latina ou Ameríndia, que guarda, apesar dos processos colonizatórios pelos quais passou,

muitos dos seus traços nativos.

Nesse caso, a poesia ligaria o homem à realidade nela metaforizada, o que a torna

resistente. Graças à poesia, a palavra recupera os seus valores poéticos, sonoros,

significativos, neste caso, sócio-históricos: “em si mesma é uma pluralidade de sentido” (Paz,

1982, p.58.).

1.6-A palavra humana

A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são nossa única realidade ou, pelo menos, o testemunho de nossa realidade.(Paz, 1982, p..37)

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Se palavra e homem coexistem, o poeta os revela. São esses os temas, ou o tema

dos poemas: VA MI PALABRA (TE, p. 78), DECIRLO A SI (TE, p.37), e EL POETA (TE, p.

87).

No voy, va mi palabra. ¿Qué más queréis? Os doy todo lo que yo creo, que es más que lo que soy.

Utilizando-se da metalinguagem, o poeta afirma que o verbo, escrito ou não, pode

representar o homem, presentificar a pessoa. O uso vocabular gira em torno das variações do

eu, mi, va mi, más que lo soy, que se nega a um deslocamento físico, propondo um outro

elemento a deslocar-se de si, a palavra, remete à idéia de que a palavra e a crença o

transcendem, são maiores que ele, ou melhor, o são simbolicamente, porque o homem mesmo

(em sentido físico) pode não ir a lugar algum, mas vai em razão da sua palavra. A negação da

ida é apresentada também pela colocação motivada dos versos na página. O primeiro verso

recua na página, enquanto o segundo, que representa a ida da palavra, avança, ou seja, o

indivíduo fica, e a sua palavra segue, levando-o em essência, revelando o “que ele é” e “por

que é”, sua “substância” (Abbagnano, 2000, p.358), o que poderia ser tomado como sua

definição. O conjunto de palavras de que dispõe, que o definem, e toda a promessa verbal

impulsionam-no.

Os demais versos são colocados na mesma posição do primeiro, reforçando a

idéia de que o emissor deva ficar, enquanto a mensagem deve ir.

Outro vetor que “empurra” a palavra é a aliteração da labiodental “v”, que ocorre

entre os versos um e dois. O sopro lança a palavra para fora, quando produzida pelo

organismo, levando-a até outros ouvidos.

No voy, Va mi palabra

Em outras palavras, o sentido do som aprofundaria o da mensagem expressa no

texto. Isso, porém, faz com que haja no primeiro verso uma preterição, ao mesmo tempo em

que o sujeito diz que não irá. A sua palavra, já impulsionada pelo vento que emana do som de

“v”, já o levou.

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O quarto verbo, marcado pelo presente do indicativo doy (v.4), antecedido do

objeto os demonstra certo despojamento do eu em relação a si mesmo; é como se dissesse

dou-me, através da minha palavra a vosotros.

Por outro lado, a partícula doy, segundo Salamanca (1996, p.558), refere-se ao

verbo e à nominação das coisas do mundo, materializada na palavra. Nesse sentido, a palavra

carrega o que acredita o homem todo lo que yo creo, que resulta, hiperbolicamente, em ser

mais que ele próprio. Daí o fato da interrogação no verso três ¿Qué más quieres? ser

propositiva, significando uma afirmação. Alguns acreditam que, se o homem não está

fisicamente num determinado lugar, temos uma ausência; o poeta, no entanto, acredita que a

palavra carrega em si o homem. Esta ausência, faz com que o termo doy, que parece adquirir

um sentido dúbio (quando terminamos a leitura do texto) possa significar também quantidade,

ou o numeral “dos”, plural que representaria, homem e palavra. E se todo o que crê é más que

lo que soy, há uma espécie de junção entre esses dois seres, que coexistem.

As rimas, a externa, provocada pela combinação dos sons de voy (no primeiro) e

doy (no quarto), e a interna, pela de yo (no quinto) e soy (no sexto), assim como a assonância

da vogal “o”, também contribuem para que sintamos que esses dois seres têm identidade

próxima, senão unitária.

Caberiam aqui as reflexões de Otávio Paz (1982, p. 41), a respeito da palavra,

uma vez que ela é “um símbolo que emite símbolos”; nesse sentido, evoca e carrega

significados múltiplos, porque a sua essência é, como ele informa, “metafórica”.

O poema faz ainda um intertexto com a cultura da região do Araguaia, isto antes

de o capitalismo adentrar o chamado Brasil Central, ou Amazônia Legal, onde, como informa

Ribeiro (2001, p.73), a palavra do homem valia por um contrato, ou, como se diz ainda hoje

na região, “a palavra vale a honra do homem”, e ainda, “homem de palavra”.

O capitalismo, que trouxe consigo a sociedade do contrato e da escrita, gerou

muitas reações em contrário, porque havia uma tendência coletiva pela continuação da

sociedade da oralidade. Pedro capta esse pensamento e revela-o por meio da poesia. A sua

palavra é, então, lírica e de protesto.

Outro poema que segue a mesma linha de pensamento é PALABRA GUARANI

(TE, p.77), o qual, por um intertexto bíblico, fala do verbo, que, ambiguamente, poderá ser

tanto Deus, constante no Segundo Testamento, como o indígena, tantas vezes calado, ao longo

da história da Latino América.

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Envíanos tu verbo y en él habitarás en medio de nosotros. Tú eres tu palabra.

Os três primeiros versos tratam do envio do verbo que habitará em medio de

nosotros, ação praticada por um “nós” elíptico (enviamos). Esse pronome, quando retomado

por nosotros, contrasta com o tu, também reiterado por Tu, grafado em maiúsculo, que lembra

o Tu divino e a sua palavra, que, segundo a Bíblia, é fundadora do mundo. Isso consiste num

jogo que inaugura um sincretismo religioso e mítico entre o divino guarani (a que o título se

refere) e o divino cristão. Nesse sentido, o termo guarani, que participa do título junto ao

vocábulo palavra, tem importante função no conjunto do texto – destacar uma das culturas

comparadas.

Tu e tu são: um pronome possessivo e o outro pronome pessoal, mas,

gramaticalmente, de acordo com o lugar que ocupam nos versos, os dois se referem ao mesmo

sujeito que tem voz, palavra.

Composto de quatro versos, o poema apresenta duas frases poéticas, a primeira

encadeia-se até o terceiro verso. Encerrado esse período, há um ponto final que estabelece

uma parada temporal entre as primeiras ações, todas indicativas (no presente), para depois

sentenciar: tu eres tu palabra, ação também indicativa, referente à segunda pessoa do

singular. O último verso desse poema deixa claro, por meio do trocadilho tu eres tu palabra,

que a palavra (aqui personificada) é a pessoa, e não somente a sua representação. Assim,

estando as palavras presentes, elas modificam as relações entre os homens. A palavra, que, no

poema anterior, é agente de transporte das suas idéias para outros lugares, passa nesse poema

a dizer do próprio ser humano; cada homem carrega em si, ou seja, é embrionário da força

da mudança.

O uso repetido do pronome tu conduz, como já foi dito, ao fato de que,

biblicamente, Deus é a palavra que posteriormente se converte em homem, mas, num segundo

momento verifica-se que o primeiro Tu remete ao segundo: o tu Guarani abre a possibilidade

de que a maiúscula signifique a necessidade da valorização desse povo e da sua palavra. Estas

são palavras que lembram as lendas com as quais os diferentes povos contam os seus mitos de

origem, assim como as explicações orais do mundo representam o lado oposto das relações

científicas.

Tal postura demonstra a existência, no poeta, de uma consciência da diversidade,

da multiplicidade do mundo, e talvez, de certo panteísmo. Obviamente, não seria um

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panteísmo no sentido estrito do termo, mas no sentido de que todos os seres participam da

divindade una desse Tu que seria Deus.

Assim, o último verso consiste numa espécie de conclusão, ou esclarecimento. O

Tu enviado é a própria palavra. Intertexto bíblico com o evangelho de João (Capítulo 1),

quando trata da descendência de Cristo, que se situa, em primeiro lugar, na palavra: “No

começo era o verbo”. Verbo esse que, para fazer-se homem, informa a metáfora bíblica, é

proveniente de “Abraão”, “Jacó”, “Moisés”.

Do mesmo modo que a palavra é vista como fundadora dos povos, caso dos

guaranis, que parecem representar, no texto, todas as demais etnias, um desejo de

harmonização entre estas, ela também pode constituir-se como modo de inserção do sujeito no

meio social. É isso o que atesta o poema “DECIRLO A SI” (TE, p.37):

Decir la marcha y su sentido, lo por venir y lo vivido, decir la voz y la canción, decir las cosas como son, el Tiempo oscuro y redimido... ¡no por oficio, por pasión!¡

Composto por seis versos encadeados, e que se arrastam para formar o todo do

poema, o texto refere-se àquilo que deve ser falado, ou mesmo, denunciado. As partes desse

conjunto de coisas que compõem a sua luta são ligadas sindeticamente pela conjunção y. Isto

é, o poeta coloca todos os elementos referenciados num mesmo patamar, o da enunciação. La

marcha, lo por venir,, la voz, las cosas representam uma fração do que é enumerado, são

todos elementos que devem ser ditos, mas não ditos simplesmente; eles deverão ser

valorizados no que podem propiciar de mais interessante; assim, a voz permite a canção, o

passado vivido, permite planejar o futuro lo por venir, elementos interdependentes, mas nem

sempre valorizados. Recurso propiciado pelo uso exagerado da aditiva y, e pelo uso dos

artigos la, lo, las que permitem, uma, que o complemento (da idéia), vá no mesmo verso,

provocando um fluxo continuo de informação; os outros, que cada uma das coisas

referenciadas seja bem delimitada.

Na cadeia dos sentidos e da sintaxe, os termos utilizados atuam não como

subordinantes e subordinados, mas como complementares. Assim, o texto encadeia-se do

mesmo modo como se encadeia o universo, ligado por forças naturais.

Como no poema Palavra Guarani, os dois últimos versos quebram a estrutura

linear construída nos versos anteriores e conclui com no por oficio, por pasión, a questão da

liberdade interior de se desprender das coisas, de lutar por outra liberdade, a coletiva, expressa

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em todos os demais momentos do texto. Tudo deverá ser feito profundamente, com “sentido”.

Deverá ser um ato de coragem e compromisso, e não por necessidade de responder a desejos

de outros por oficio. Há de fato um ser que abraçou e assumiu a luta.

Dizer é denunciar. O grito provoca ecos como os provoca o uso (nos dois

primeiros versos) de palavras terminadas com a vogal i forte – decir, sentido, vivir, vivido e

do o fechado (nos versos de quatro a seis) cosas, son, oscuro, redimido, ofício, pasión. Sons

que, ligados pela partícula y, se tornam contínuos e servem também ao jogo rímico, no qual as

rimas são cruzadas, emparelhadas e interpoladas.

Os dois primeiros pares marcam ainda um vácuo temporal, isso porque temos

sempre um infinitivo dicir, vivir (mas que dá a idéia de presente por marcar a necessidade de

que essas coisas sejam ditas), e um particípio passado sentido, vivido. Ambos os tempos são

convergentes para o Tempo (em maiúscula) oscuro y redimido que, marcado por maiúscula,

converge para o tempo atual, em que há urgência na expressão (do dizer).

A referência ao Tempo oscuro y redimido remete, mais uma vez, para a expressão

da idéia de que a palavra deve ser expressa, mesmo nos momentos em que não haja clareza

(mesmo mediante obscuridade) das coisas, porque o ato de falar eliminaria a ignorância,

geraria a compreensão recíproca.

Outro fator a ser considerado, em nível da palavra e de seu uso gramatical, é o

fato de seus versos indicarem sempre uma presença (modo indicativo) e a possibilidade de

futuras melhorias (modo subjuntivo). Quanto a isso, José Maria Valverde (1986, p.8), no

prólogo a El tiempo y la espera afirma que:

en términos kierkegardianos diríamos que Casaldáliga escribe” “en indicativo” mientras los demás sabemos escribir “en subjuntivo” o “en condicional”: “quisiéramos”, o “queríamos” que algo “fuera” o “fuese”, cuando él “es”_ y lo respalda con todo su vivir.”

Essa é uma postura que vai ao encontro do caráter militante da sua poesia. Nesses

termos, esta poesia, antes de ser religiosa, isto é, em termos cristãos/católicos, compromete-se

com a vida e com a arte. No entendimento do autor, o “artista é um ser sensível à vida

humana26.

Da palavra, como emancipação do homem, passo à palavra poética ou do poeta:

EL POETA (TE, p. 87)

26 Declaração feita na entrevista realizada concedida a mim em setembro de 2005.

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“El poeta es su infancia.” Y el niño Rilke27 lo supo. Una infancia bien soñada. La que soñara e non tuvo. Todo poeta es un niño Que se niega a ser adulto. Podría crecerle as barbas de la ira e del orgullo. Y caérsele a pedazos el corazón ya maduro. Pero conserva los ojos deslumbradamente puros.

O poeta28 conserva sempre a perplexidade e a admiração diante das coisas. A obra

literária é o resultado desse olhar, por isso é reveladora. O escritor é tido como alguém capaz

de desnudar a realidade, captando sujeitos e situações no seu estado natural e dar-lhes, pela

palavra, elaboração artística.

Estruturalmente “El poeta” apresenta-se em seis estrofes todas compostas por

dísticos encadeados, os quais desenvolvem a primeira afirmação, el poeta es su infancia.

Depois exemplifica-o com a figura de Rilke que, a seu ver, soube ser aquilo que considera

que deva ser o poeta - um niño, idéia reforçada pelo jogo com os sons das consoantes nasais

presentes em infância (v.1), soñada (v.3) e niño (v. 5), palavras de campos semânticos que

lembram sonho e imaginação.

Por outro lado, há um outro grupo de rimas incompletas que se interpolam,

marcadas pelos vocábulos supo (v.2), tuvo (v. 4), adulto (v. 6), orgullo (v. 8), maduro (v. 10)

27Rainer Maria Rilke é considerado como um dos mais importantes poetas modernos da literatura e língua

alemã. Nasceu em Praga em 4 de dezembro de 1885. Segundo site http://www.culturapara.art.br/opoema/rainermariarilke/rainermariarilke.htm em consulta em 12/09/2006 Paulo Plínio Abreu afirma, em entrevista ao jornal paranaense Folha do Norte (1948) que Rilke é "Poeta fundamental, Rilke é a voz de uma época em transição. Talvez seja a última voz do seu tempo, aquela que anunciou o "fim dos tempos modernos", como quer Romano Guardini, e ao mesmo tempo a primeira voz e o primeiro poeta dessa nova era que estamos começando a viver.

28 Entrevista ao jornal catalão Mar de ajó (2006) quando perguntado sobre sua poesia, Pedro afirma: Bueno, la poesía es una forma de contar penas y alegrías. Hay cosas que no se pueden decir en prosa, pero se dicen en verso. La poesía es un desahogo emocionado en la que se vierte lo que se vive, se ve y se sueña. Hay una poetisa brasileña que dice: “No soy alegre ni triste, soy poeta”. Un poeta colombiano aseguraba que el poeta, si no comprende todo, al menos lo compadece todo. Sin duda, la poesía lleva aparejada un tipo de sensibilidad que nos permite establecer una conexión especial con el mundo.

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e puros (v.12) nas quais se destacam as vogais “o” e “u” que lembram os obstáculos à

decisão de se manter niño.

Nesse sentido, o subjuntivo podría, mantém, por sugerir apenas possibilidade de

crescimento, a afirmação Todo poeta es un niño. Manutenção que aconteceria por resistência,

ou seja, ainda que os sentimentos de orgullo e ìra, personificados em barba, crescessem,

mesmo que esses sentimentos lhe arrancassem a inocência, o corazón ya maduro

permaneceria criança. Nota-se a possibilidade de que esses fatos sejam conseqüência uns dos

outros, pela ordem sintática e também pelo encadeamento dos versos, propiciado pela ligação

estabelecida por y:

Podrían crecerle las barbas

de la ira y del orgulho. (v. 7 e 8) Y caésele a pedazos el corazón ya maduro. (v.9 e 10)

A metáfora ojos puros coloca o olhar como aquele sentido responsável por reter as

impressões do poeta, as quais, mais tarde, transforma em poesia. O termo puro lembra que, tal

como o modo como a criança olha para as coisas, a sua visão não deverá ser poluída.

O poeta descreve as coisas como elas se mostram diante dos seus olhos atentos de

aprendiz, os quais, pouco a pouco, vão sendo impregnados pela beleza da vida. Neste caso, a

poesia não passa ao largo do tema, articulando informações ou comentários, porque o uso

retórico pode fazer com que as coisas permaneçam inacessíveis, incapazes de se manifestar,

mas constituem, segundo Castro, citando Sussekind (2002, p.21)29 “o que se oferece ao

olhar”.

Chevalier (1974, p.653), dirá que, os olhos são universalmente “símbolo da

percepção intelectual” e “símbolos da inteligência do homem”. Costuma relacioná-los com

“foco de luz”. Ë também, comum o uso do termo “olho”, pelas teorias que tratam do

“inconsciente e de representações imagísticas”. A sua abertura seria “um rito de iniciação”,

uma abertura ao conhecimento. O termo irlandês “sul” coloca o olho como “o sentido que

resume e substitui todos os outros”, e que permite uma percepção com o “caráter de

universalidade”. Nesse caso para Chevalier (1974, p.656):

29 Trata-se de um comentário do autor que resulta no prefácio da obra Cartas sobre Cézane ao modo como Rilke se coloca diante da arte.

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“A imagem percebida pelo olho não é virtual, constitui uma cópia, um duplo material, que o olho registra e conserva... Por isso, metaforicamente, o olho pode abranger as noções de beleza, luz, mundo, universo, vida”.

Por fim, cumpre dizer que, como atestaram os poemas estudados, são muitos os

modos pelos quais a palavra é tematizada. Cito ainda o poema “Caridad” (TE, p. 31),

Verte la vida en liberación de canto vino y la paz y sangre y la refriega... se el verbo se hace carne verdadera No creo en la palabra que adultera.

A expressão el verbo se hace carne verdadera, remete-nos à metáfora bíblica

que, referindo-se à encarnação de Cristo, usa dessa expressão, e também, de modo analógico,

à sua crença na palavra, não numa qualquer, mas, sim, naquela verossímil, não creo en la

palabra que adultera. Prevalece sempre a idéia de intelectual/cristão engajado.

Tendo sido explicitadas na poética de Pedro Casaldáliga duas maneiras de

entender a palavra: a) a coexistência – o homem convive com a palavra - Decir la marcha y

su sentido, lo por vivir y lo vivido; b) a unidade – ela é o ser humano, ou o homem é a palavra

todo lo que yo creo, tú eres tu palabra.

A mesma palavra que é humana (e militante) é aqui também palavra poética.

Segundo Rifaterre (1973, p.195) em alguns escritores o que interessa no homem é

a condição humana: “num grande homem, os meios e a natureza de sua grandeza. Num santo,

o caracter de sua santidade. Em alguns traços que exprimem menos o caracter individual que

uma relação particular com o mundo”, postura que me parece presente em Casaldáliga.

Nesses termos, trabalha com o caráter onipresente da palavra, da morte e da

permanência do ser humano no tempo e no espaço. O eu de hoje não está em oposição ao de

ontem; é sujeito e objeto. Militante da libertação, seus textos possibilitam pensar como a

relação do homem com o homem modifica sua relação com o cosmo e cria novo mundo.

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CAPÍTULO 2. TEMPO E ESPERA

Há, em toda a obra poética de Casaldáliga, uma forte noção de tempo e

consciência histórica. Alguns dos personagens que cria – habitantes da região do Araguaia –

são comparados ao homem de todo o mundo e de determinados momentos que definiram os

rumos da História. Por exemplo, o latifúndio30 é entendido como resquício das relações

feudais, e os “peões”, como escravos; a migração sulista e nordestina são resultado dos

incentivos dos governos militares e da fuga da miséria. Nesse sentido, pode identificar-se

certa superação do tempo histórico (no sentido de datado), como indica o título deste capítulo,

tomado de empréstimo a uma das suas obras, publicada em 1986, na qual o substantivo

“espera” constitui uma marca da passagem do tempo, da crença no devir histórico, como

sucessão dos acontecimentos que se dão, à medida que são forjados pela luta. Nesse caso, é o

homem que protagoniza a história. Protagoniza-a pelo fato de, coletivamente, acreditar na

mudança; uma confiança que advém simultaneamente da religião e das lutas coletivas, as

quais são impulsionadas tanto pelo modo comunitário em que vive o povo (em sua maioria de

tradição indígena e sertaneja), como pelos grandes movimentos e teorias sociais que

permeiam os seus versos.

Esse conteúdo é expresso por recursos formais – pelo ritmo, um dos principais

marcadores temporais (Bosi, 2004, p.12), pelas metáforas espaço-temporais (dá-se por

concisão e pelo uso de elipses- e por meio de palavras que fazem referência ao tempo). No

que concerne às referências a este último, ele pode constituir-se como: físico, determinado

pelos ciclos naturais da estação das chuvas e da seca; em conseqüência deles, os rios, surgem

retratando como o tempo é sentido e vivenciado pelo homem, e como este determina as suas

ações em relação à imposição do meio, chegando mesmo a sugerir que a vida pode ser

pautada pelos rios, como nos poemas Nuestras vidas son los ríos31 (TE, 17), e, Las lluvias

(CE, 26), que poetizam o modo como é o sertão perante o fenômeno natural que é a chuva, e

como o ambiente é transformado face ao acontecimento – Está verde el sertón (CE, 21);

tempo físico, sincretizado com o religioso (no caso, o litúrgico); tempo histórico, que surge

30A exemplo disso a primeira documento pastoral escrito por Pedro “Relações feudais no norte de Mato Grosso” e (1970).

31 Verso que também pode referir ao poema Coplas por la muerte de su padre do poeta espanhol

Jorge Manrique (1440-1479).

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em diálogo – imagens do passado e do presente, valorização das tradições, havendo, então,

possibilidade de transformação via releitura do passado e via projeção do futuro.

Na medida em que a literatura constitui uma supra-realidade, esta análise

direciona-se para o “tempo interno” (do vivido), intersubjetivo, na tentativa de se verificar

como nele se manifesta o “tempo histórico”. Desse modo, não é perceptível, no poema, um

“historicismo” puro, como disse Bosi (1999, p.13). Pelos recursos utilizados, permite o “senso

histórico” e o que vai muito além dele, pela razão de o poema não ser, na visão desse autor, a-

histórico, mas possuidor de “uma dimensão transversal e resistente, que permite lê-los com os

olhos de hoje, assim como permitirá que outros os leiam com os olhos de amanhã”.

Nessa direção, a análise dos poemas foi pautada pela consciência da diferença

entre ler um poema, cercando-o de história "apertada" (ou seja, considerando acontecimentos

datados), encerrando-o na sua contingência imediata, e de o ler na perspectiva da história da

consciência humana, isto pela razão de que nenhuma fase vive apenas do contemporâneo, mas

também de lembranças e memórias.

Nesse ponto, assume toda a lógica levantar a seguinte questão: que experiências,

lembranças e sonhos originaram o que Bosi (1999, p.15) chama de “fio alegórico” do texto,

provocando a recorrência a um “nó existencial”?

Não se poderá retirar o “fio histórico” presente no texto, sem abdicar da memória

e da consciência daquele momento, que então reportava ao presente, mas que agora constitui

uma instância passada. Daí que seja necessário recorrer à memória humana, uma vez que a

poesia nos dá notícias das imbricações do sujeito e da trama social da qual faz parte.

Foi considerada também a contribuição de Nunes (1998, p.18) a respeito de

como as diferentes culturas, judaica, cristã, islâmica, para citar algumas, relacionam-se com o

tempo, na maioria dos casos a partir de um evento fundador, e também as classificações que

faz no que respeita ao tempo: “tempo físico”, dos eventos da natureza , e o “tempo do

vivido”, das experiências humanas.

2.1– As imagens e a revelação do tempo histórico

Torna-se necessário pensar de que modo o tempo histórico é retratado nos

poemas estudados, tempo que, para Nunes (1988, p.21) “representa a duração das formas

históricas”.

Consiste numa tarefa que requer perceber que, quando Pedro poetiza determinado

momento, ele o faz considerando a sua inserção nos fatos locais (entrada do capital na

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Amazônia) ou mundiais (como, por exemplo, os movimentos colonizatórios empreendidos

por Portugal, Espanha, Inglaterra e França e a globalização). Seus poemas refletem sobre o

modo de vida das sociedades submetidas a esses processos.

È, portanto, uma obra que têm diante desses fatos uma atitude de reflexão sobre o

modo como a sucessão histórica revela o tempo individual (do vivido), marcado pela

percepção e memória dos conflitos pessoais e coletivos, pensados a partir de si (eu lírico) e

dos demais personagens poéticos que povoam os seus textos. E discutem o tempo histórico

em si, o que, de acordo com Prigogine, é marcado pela “irreversibilidade”(2001,p.73), no caso

dos textos, porém, é pesando o que é possível fazer-se com a situação existente, como se

pode agir sobre ela. ESTRADA DO SERTÃO (AR, p. 31) e Nova colonização (AR, p.152 a 153) são

textos em que essa temática é poetizada.

Atalho dos pobres, linha do Roncador, vereda apenas. O sol, exasperado, quer fundir as pranchas trepidantes. Pó, gretas, bacadas, pó. Rompendo opressão do carrascal, Fulgem, como bandeiras, os muitos verdes vários, E as flores primeiras das primeiras chuvas quebram talvez albores de alguma profecia... E então conversamos, Milton e eu, do céu sertanejo: Com um cavalo branco para andar pelas nuvens. Seria céu um Céu sem cavalos? Uma ema, a nossa frente, Ajunta perseguida, seus dezoito filhos _trinta e oito pernadas mata adentro. Calor e sede, amargos. Os regatos sedentos como gargantas rotas. As pinguelas poderes como armadilhas. E um gole de cachaça, Como um cautério louco, peito abaixo. Sinto, como uma culpa assumida, a solidão de todo este povo . A barba do Badia, transparente de sal e de silêncio, podia ser a barba de meu pai! De quem é o Brasil? Que esperam esses homens? Por que esperam? (“_Deus já não voltará. Veio em seu dia! Só restam os gritos dessas armas!) Cada dor humana tem um limite. Vem do Norte, bárbaros domésticos, Vêm buscando a “bandeira verde,” A fanática voz de padre Cícero.

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Eu sou um comentário a frívola distância... Os periquitos verdes, sempre de dois em dois, Perseguem o idílio. E as palmeiras continuam gráceis, Inúteis? formosas? displicentes? Depois, enquanto relincham, Fora, como uma tropa, Dúzias de cavalos impacientes, Partilhamos a coalhada, Bebemos o café, como uma droga; e celebramos Missa... Sangue. Suor. E lágrimas.

Estrada do sertão remonta ao tempo do adentramento no interior do país e às

precárias condições em que se encontravam as estradas desse local, conforme mostram, no

primeiro verso, as metáforas por adjunto adnominal dos pobres, do roncador e a enumeração

de substantivos, no quinto, Pó, gretas, bacabas, pó.

A imagem, que então era estática, ganha, no segundo verso, movimento: Fulgem,

como bandeiras, os muitos, verdes vários. O poema, que na primeira estrofe apresenta, pelo

uso do assíndeto, ritmo ágil e tom descritivo, passa a narrativo quando, na segunda estrofe, os

versos se tornam encadeados: e as flores primeiras/das primeiras chuvas que, através do

quiasma (flores primeiras/primeiras chuvas), marca a importância das flores que chegam com

a estação das águas.

O olhar do poeta abarca a paisagem – flora, flores, fauna, a ema –, mesmo quando

se ocupa do diálogo – conversamos, Milton e eu, do céu sertanejo-. Em seguida, reflete

sinestesicamente a travessia do sertão, calor e sede, amargos.

Tanto o olhar lançado aos presentes como o lançado à natureza é contemplativo,

sinto como uma culpa assumida, /a solidão de todo esse povo/a barba do Badia/transparente

de sal e de silêncio, podia ser a barba de meu pai!. Esse fato é evidenciado pelas metáforas

por adjunto adnominal de sal e de silêncio. Há um eu capaz de, pela transparência da barba,

sentir a dor do outro, porque cada dor humana tem um limite, e, mesmo pelo fato de o Badia

ser um silenciado, privado do ato de falar, quase anônimo, o poeta participa da sua dor. Essa

capacidade de sentir revela certa confessionalidade, porque, como bispo, Pedro Casaldáliga

compartilha da vida do povo com quem trabalha, tendo adotado, inclusive, a moradia usual na

região, a casa de chão batido. Outro elemento que também estabelece a relação com a sua

atuação social e religiosa, é a enumeração bebemos café, como uma droga; e celebramos

Missa.../sangue. Suor. E lágrimas (v. 44 e 45).

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Note-se o fato de Missa, Suor, Sangue serem grafados em maiúscula, postura

própria da Teologia da Libertação32·, na qual a celebração é comum ao martírio e à luta, para

que chegue um tempo de justiça, a páscoa. O valor do sacrifício do Cordeiro de Deus (Jesus)

que se dá em pão e vinho para ser comido e bebido, equivale ao Suor e ao Sangue dos

homens.

Outro elemento importante é o fato de, no curso da caminhada, o poeta descrever

uma cena, extraindo dela, em forma de digressões, uma reflexão. Na sexta e sétima estrofe,

por exemplo, interrompe o curso normal do poema para falar de retirantes nordestinos –

Vêm do Norte, bárbaros domésticos, Vêm buscando a “bandeira verde,” A fanática voz de padre Cícero. (v. 31, 32, 33)

A bandeira é símbolo da busca por uma vida melhor, daí a reflexão (mais uma vez

em forma de digressão) no verso seguinte (o qual se refere ao descaso na gestão da nação e

constante privilégio que se dá a organizações internacionais, em detrimento do povo

brasileiro): De quem é o Brasil? / que esperam esses homens?. E, surpreendentemente,

referindo-se a si próprio e à luta pela terra, a qual apóia: “Eu sou um comentário a frívola

distância...”, verso que se encontra separado dos demais, constituindo-se numa estrofe,

provavelmente por inserir um comentário, distinto daquele que vinha sendo referido. Do

mesmo modo que o referido verso, a mensagem de Pedro Casaldáliga encontra-se, por ser

militante e contestar o que está posto tanto pela igreja ou teologia oficial como pela

sociedade, a frívola distância. A distância, por sua vez, pode querer representar também, uma

referência ao local onde está localizada a Prelazia de São de São Félix do Araguaia, uma

região do país, considerada. por muito tempo, periférica.

O décimo verso retoma a exposição do cenário natural e, numa referência ao

período romântico, descreve a fauna, comparando-a àquela que era cantada pelos poetas

daquele tempo: os periquitos verdes sempre de dois em dois perseguem o idílio e, num tom

irônico, alude às palmeiras, fazendo questionamentos: elas continuam gráceis/Inúteis?

Formosas? Displicentes? Ou seja, ainda que passe o tempo, desde o Brasil Império, até os

dias em que escreve Estrada do sertão, por volta de 1975, quando, historicamente, o país está

centrado na luta pela democratização, as palmeiras, para alguns, símbolo da nacionalidade

32 Essas idéias podem ser encontradas nos sites: www.prelaziasaofelixdoaraguaia.com.br e www.coinonia.org.br nos quais existem textos sobre a Romaria dos Mártires da Caminhada que acontecem de três em três, no Santuário dos Mártires da Caminha na cidade de Ribeirão Cascalheira-MT.

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continuariam na mesma posição de observadoras. Podem ainda ser metáfora de pessoas que,

inertes perante a situação do país, colocam-se como as paisagens, na posição de observadoras.

O sertão, apesar de lugar desejado, não é retratado de modo estático, mas como

um lugar onde existe ação e movimento, dado o número de verbos utilizados, uns para tratar

dos elementos naturais: as chuvas quebram, a ema ajunta, os periquitos perseguem, os

cavalos relincham; da ação humana, conversamos, partilhamos, bebemos e celebramos. Há

também um grupo de verbos relacionados a fenômenos naturais, animais e outros seres

(observados, pela entidade narradora a distância): rompendo, fulgem, quebram, vêm,

perseguem, continuam.

O que torna o texto marcante, no sentido da captação do momento, é o modo

extremamente equilibrado como o uso de verbos e substantivos surge, ainda que

abundantemente, revelando a simultânea intenção de narrar e descrever. São muitos os nomes,

entre substantivos, adjetivos, locuções adjetivas, metáforas. E o trocadilho primeiras chuvas-

flores primeiras, serve para frisar o período alegre (chagada das flores) que é o fim da

estiagem.

A seqüência sonora fulgem como bandeiras, os muitos verdes vários, em que a

aliteração da letra “v” se dá pelo uso do pleonasmo, sentido de infinitude ao verde adquirido

pela vegetação, com a chegada das águas, efeito caracterizado pelo uso de três adjetivos, dois

deles marcadores de intensidade. Ocorre, assim, uma repetição da idéia, embora não provoque

redundância, mas completude da imagem desse verde que também pode remeter à cor da

bandeira utilizada por Padre Cícero a quem os retirantes iam buscar, e, por fim, à vida que

pulsa ali, porque o termo verde é, segundo HOLLANDA (1986, p.1975), utilizado para

remeter à vitalidade ou à seiva (no sentido se sangue) das plantas. E, como sabemos, é usado

popularmente para simbolizar a esperança.

Como se os adjetivos não bastassem para dizer como as dificuldades são

provocadas pelas estrada do sertão, ele compara-os entre si: Os regatos sedentos como

gargantas rotas, lembrando a sede pela qual passam os retirantes; As pinguelas podres como

armadilhas, indicando que, em alguns casos, o desconhecimento dos costume do local pode

provocar dificuldades aos caminhantes; isso porque as pinguelas constituem uma espécie de

ponte feita de tronco de árvores que cruzam os riachos; estando podres, prejudicam os

passantes lançando-os na água; e, para suportar as intempéries da estrada, quase que num ato

de correção energética do organismo já cansado Um gole de cachaça/ Como um cautério

louco, peito, abaixo, cachaça que adentra o corpo “peito abaixo” queimando, assim como

queimam os venenos utilizados para cauterizar a terra.

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O fato de o texto remeter à partilha da “coalhada”, alimento comum na cultura do

Centro-Oeste e à “celebração” da “Missa”, em meio ao sacrifício, parece plasmar o

sincretismo entre religiosidade popular e cristã, comparação feita pelo autor em Espiritualid

de la liberaçiòn (1992), em que as contrapõe, ficando ali evidente que existem diferenças nos

dois modos de conceber o tempo, quando realça a existência, na tradição dos povos dessa

região, da propensão para a conjugação, “ao mesmo tempo”, de sofrimento e festa (fome e

carnaval, referindo-se ao fato de um grande espetáculo brasileiro ter como cenário de fundo

as maiores favelas da América Latina, morte e celebração, ao falar dos festejos indígenas ao

fim do período de luto). Diz, ainda, com grifo, do cafezinho oferecido às visitas a qualquer

tempo, nos lares de que fala. Ë justamente isso que parece expressar os versos que encerram o

poema:

Partilhamos a coalhada, Bebemos o café, como uma droga; e celebramos Missa... Sangue. Suor. E lágrimas. (v.42 a 45)

O tempo cristão, centrado na Páscoa, ou seja, passagem de uma vida ruim, de

pecado, para uma vida nova, onde haja alegria, não admitiria pensar simultaneamente em

festa e sofrimento (no sentido de tristeza; isso porque o admite apenas no sentido de sacrifício

pascal), porém, traz para o embate a possibilidade da saída do período de sacrifício,

rompimento da opressão do carrascal para um outro, onde haja a celebração da Missa que,

ainda que conjugada à do suor e das lágrimas, configura-se como um prevalecimento sobre o

momento histórico tão adverso, a esperança cristã. Os vocábulos que compõem a tríade

Sangue. Suor. E lágrimas provocam, por estarem separados por um ponto, uma significativa

parada melódica, transmitindo a idéia de que os caminhantes pararam para descanso e

reflexão, lembrando que nem sempre esses vocábulos são relacionados a festividades

(celebração).

Nesse caso, é possível remetermo-nos ao que diz Ricouer (1975. p.11), para o

qual o que o Segundo Testamento diz da História e da romanização desta, a partir do tempo

de Cristo, concorre para a compreensão de que, de acordo com o pensamento cristão, “a

História é tida como portadora de significação, havendo a partir de Cristo uma correlação

entre tempo e História”.

A palavra assume uma grande importância para o cristianismo. A mais conhecida

metáfora dessa doutrina é que ela se fez carne: matéria, tomou forma, ou seja, a promessa

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verbal do nascimento de Cristo é materializada no ser humano. E ainda, o mundo é

constituído por meio da ordem de Deus. É organizadora do tempo litúrgico (o qual tem os

seus ritos pensados em função da Páscoa). De acordo com o Anuário litúrgico (2006)33 são

cinco os tempos: a) o do Advento, que requer recolhimento, pois é tempo de preparação para

a vinda daquele que, como crê o cristianismo, salvará a humanidade, Cristo; b) da Epifania

(Natal), ou seja, a promessa anterior é cumprida; c) do primeiro dos tempos, Comum,

destinado ao anúncio, pelos fiéis, de que nasceu o menino que, para os cristãos, salvará o

mundo; d) da Quaresma, tempo de preparação para a Páscoa em que devem ser feitos

sacrifícios, recolhimento e pedidos de perdão, a fim de promover a purificação, já que se

cumprirá a promessa da morte e ressurreição, de quem veio, no natal, com missão de redimir

dos pecados o mundo; e) Tempo pascal: mediante a ressurreição são vividas cinco semanas de

festividades; f) Tempo comum: encerradas essas semanas, vem o Pentecostes (descida do

Espírito Santo) sobre os apóstolos, instala-se outra vez o tempo comum, o da pregação. Tarefa

para a qual o Espírito fortaleceu e enviou os cristãos e que deve ser comum aos fiéis. Em

seguida, de modo cíclico, o advento e o natal e, assim, sucessivamente.

A crença nesse modo de pensar o tempo é tomada pela Teologia da Libertação

que entenderá as melhorias na vida das pessoas como Páscoa, por isso, a celebração do

Sangue. Suor. E lágrimas representariam o martírio que, sendo recordado, encoraja a luta em

prol da superação das dificuldades diárias.

A inserção da figura de Padre Cícero no poema em estudo é outro fator que

lembra a religiosidade, agora popular. Fato historicamente datado, que é o surgimento desse

pregador na Cidade de Juazeiro do Norte (cidade da região nordeste pertencente ao Estado do

Ceará). Esse personagem tornou-se um mito naquela região, chamado por alguns de “meu

padim, padim Ciço”, já que, segundo crêem, quando apadrinha uma pessoa, esta consegue sair

das adversidades que por ventura lhes tenham sido impostas pela vida. Padre Cícero

profetizou uma terra prometida: Vem do Norte... /Vêm buscando a bandeira verde,/A fanática

voz de padre Cícero.

De fato vieram muitos nordestinos para a margem leste do Araguaia em busca de

terras e, ao que consta no documento Uma Igreja na Amazônia em Uma Igreja na Amazônia

em Conflito com o latifúndio e a marginalização social (1971), muitos testemunharam estar

33 Trata-se de uma publicação das conferências dos bispos de cada país ou continente que organiza o modo de vivenciar os vários tempos do ano litúrgico, que é iniciado com o Advento e só termina no mesmo período do ano seguinte. São determinadas leituras bíblicas, as ações (atividades missionárias) etc. No caso da conferência brasileira, há a Campanha da Fraternidade, no período da quaresma, e a Campanha missionária, no Advento.

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em busca do que profetizara o padre. Postura que não coincide nem com a da teologia

tradicional nem com da Teologia da Libertação, mas que mantém certa ligação com a idéia de

alegria (e esperança) pascal.

O uso do vocábulo Norte, em detrimento de nordeste, deve-se, provavelmente, ao

fato de que, quando perguntados de onde são os nordestinos, que moram nas margens do

Araguaia, dizem ser do norte, ou nortistas. Pode ainda ser um trocadilho para referir-se

também a nações que, como os Estados Unidos, por meio dos seus ideais capitalistas e neo-

colonizatórios, instalam-se nas mais diferentes regiões do mundo. Talvez isso justifique a

presença dos qualificadores bárbaros domésticos, ao referir-se àqueles que vêm. Acredito ser

o sentido dúbio, intencional, na medida em que encontramos, ao longo da obra poética de

Casaldáliga, o mesmo vocábulo para referir-se àquele país. Norte também é usado

popularmente para se referir à direção de uma caminhada, nortear-se.

Entendo ser lícito afirmar que Casaldáliga, quando centra o tempo no sentido

pascal, na esperança na vitória que, nesse caso, viria pela luta constante, trabalha

simultaneamente com o tempo datado, real (histórico) e com os tempos mítico (em função de

incorporação de lendas nativas e populares), e místico-religioso que, em teoria, seriam

incompatíveis, porque a crença (a esperança) tornaria o homem inerte, ou seja, ficaria

esperando pela promessa bíblica. Ao contrário, a sua poética constitui uma caminhada, uma

“marcha”. “Marcha” é um termo usado pelo próprio poeta para se referir à sua poesia.

Questionado sobre o que isso significa, ele respondeu:

...Poesia em marcha”, poesia feita das dores do povo, sentindo a caminhada do povo, sentindo as dores do povo. Tentando estimular essa marcha também. Então, decidi (mos) morar nessa própria marcha. Não é uma poesia que contempla o passado. Não é uma poesia arqueológica. Ë uma poesia militante, peregrina, mar-chante, de marcha.

Movimento também presente no texto Nova colonização (AR. p.152 a 153):

Onze peões e eu, na caixa desencaixada do velho Ford, três horas, eu peneirando ossos e Evangelho; e eles, ossos e paixão, e paixão. Sacode-nos contra os buracos o caminhão a sede queima o cansaço, e se amassa no barro o olhar e o coração. as garças são apenas garças. Eles riem, de soslaio, cúmplices, eu pobre, de mim,

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sou um padre, sessegrado, mesmo tentando a encarnação. Por entre os farrapos das nuvens chora uma acumulada desolação. Quebram-se a paciência E o velho Ford. Treze mil alqueires de terra possuída, Sete bilhões poupados, E faltando o suporte de uma tábua! “Mastro de solidão”, o tronco gris dessa palmeira talvez sobreviveu para ser eixo flutuante de todas as reinvidicações da floresta sacrificada sem compaixão. O vento traz baforadas de acre odor de vaca. Fome, sede e calor. E, logo, o horizonte, aberto, lanceado Por outros muitos restos de verde esquadra Que perdeu seus domínios, agredida pela cobiça da nova colonização. E a fazenda, ali, faceira, impune, com a carne desnuda e provocante de suas telhas de sol! (Fortaleza feudal, encostada de dinheiro sulista. Parque de tubarões, cevados de segregação...) Terra de quem? Verde terra infinita Roubada e abençoada pela lei! ...para os peões flutuantes do Norte, assalariada prisão.

A anteposição do adjetivo “nova” a “colonização” confere ao título dupla

possibilidade de significação. O segundo termo encontra, de acordo com Bosi (1992, p.09),

raízes no verbo latino colo, que evolui para cultus, cujo particípio passado é culturus,

utilizado no sentido de “eu moro, eu ocupo a terra e, por extensão, a cultivo”, remetendo a

dois tipos de “colonização”: a povoação e o lavorare do solo, e a dominação de um povo que

já o ocupe. Cultus, de onde derivou culturus, teve origem, pelo fato de a ação de lavrar a terra

lembrar o local onde estão plantados os antepassados, forjou, mais tarde, a expressão colere

(eu mesmo vou lavrando a vida), vetor de despojamento que ultrapassa o culto, alheio às

estâncias de poder, no que diz respeito ao humano. E, como informa Cevasco (2003, p. 9), só

mais tarde, quando a idéia de cuidar a terra é transferida para as faculdades mentais, o termo

será deslocado para o sentido de “cultura”.

Colocados os vocábulos que compõem o título-tema do poema, ocorre uma

localização no tempo do vivido, afirmando-se os acontecimentos como experiências internas:

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Onze peões e eu, Na caixa desencaixada do velho Ford. (v. 1 e 2)

Os sujeitos eu e eles (os peões) ressoam como cisão dos presentes, e estão ambos

na mesma situação – peneirando e riem, verbos que, referentes ao gerúndio e à terceira

pessoa do plural, situam-nos como companheiros de caminhada. E, como informa Martins

(1989, p.135), por serem transitivos, têm por função comunicar o que se passa num mundo

“em que o homem já está mais integrado num grupo, mais atuante em seu meio”.

As orações de que são compostos os versos, em sua maioria justapostas, permitem

trocadilhos:

Três horas, eu peneirando ossos e Evangelho; e eles, ossos e paixão, e paixão. (v. 3 a 5) Eles riem, de soslaio, cúmplices, Eu pobre de mim, sou um padre, segregado, (v. 11, 12 e 13)

Pensando que, assim como a peneira passa por seu crivo os objetos (ouro, fubá

etc.), os processos colonizatórios passam as pessoas, fazendo uma espécie de seleção daqueles

que lhes interessam. Restaria aos que ficam à margem do sistema, ou a inércia diante da vida,

ou a luta pela libertação. No poema, o ato de peneirar limita-se com os movimentos do

sacolejante, veículo que mexe com os corpos dos peões e do padre: os primeiros, eles,

peneiram a paixão, que pode ser pela vida, porque na busca de melhorias de vida digna se

sacrificam, como se sacrificou, em sua paixão, o Cristo; o segundo ser, eu, simbolizaria o

Evangelho quebrado por bruscos movimentos a que a sociedade e a Igreja o submetem.

Haveria redução das possibilidades de vida e de vivência do Evangelho, assim como uma

redução progressiva dos termos da frase, restando o mais significativo, o que ecoa mais na

vida deles, a paixão.

O fato de as orações estarem assim organizadas permite que sejam valorizados os

acontecimentos descortinados pelo olhar do poeta. Um bom exemplo disso são as estrofes

terceira, quinta e sétima, que contêm uma micro-narrativa na qual se desenrola uma descrição

da paisagem (cenário), onde se dão os acontecimentos gradativamente ampliados, de modo

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que, após o sétimo verso, não há retorno ao enredo, o que parece indicar que os homens, de

tão abandonados ao inóspito sertão, perdem-se nele.

A metáfora Mastro de solidão, com que é iniciada a sétima estrofe, é sinal da

passagem do ato de narrar para o de descrever. Ela refere-se a um sentimento coletivo, o de

uma exploração ilimitada da natureza e do homem, mas, mesmo assim, ainda não se descobriu

que a união seria uma força capaz de fazer frente a um tempo em que prevalece a solidão.

Porém, mesmo os solitários, como a palmeira, protestam e sobrevivem: o tronco gris dessa

palmeira /talvez sobreviveu/para ser eixo flutuante de todas as reivindicações /da floresta

sacrificada sem compaixão.

Na estrofe seguinte, a gradação Fome, sede e calor, o vento sopra na contramão

do que querem os retirantes e traz acre odor de vaca, sinalizando novamente as crescentes

dificuldades em que eles vivem. São seres à margem do ideal de sociedade (capitalista). Ideal

esse manifesto ali, na verde esquadra que se perdeu, metáfora por alusão, ao mesmo tempo, à

chegada dos europeus na América, trazendo consigo, segundo sugere Holanda, no texto

Raízes do Brasil (1995), um modelo de organização praticamente feudal, durante o qual as

capitanias hereditárias estavam divididas na medida exata do que eram as sesmarias34; e a

vastidão que representam as terras de que o poema fala: Trezentos mil alqueires de terra

possuída, /sete bilhões poupados.

Embora saibamos que a contextualização do poema requeira mais que o ato de

“datá-lo”, para Bosi (2004, p.14), a inserção de suas imagens numa trama já em si mesma

“multidimensional”, em que “o eu lírico vive ora experiências novas, ora lembranças de

infância, ora valores tradicionais, ora anseios de mudanças”, os termos Fortaleza feudal e

tubarões parecem metaforizar (pelas fortes imagens utilizadas) e ironizar o modo como,

historicamente, a fazenda e os seus donos se desenhavam, no período (meados da década de

1970) em que veio grande número de trabalhadores para atuar na região do Araguaia, frente

aos peões, a qual representa os locais fechados e os seus donos, colocando-se praticamente

como governantes (no sentido de mandantes). Postas essas imagens, o poeta, por meio da

ironia, contesta-as, fato que parece sugerir um futuro diferente.

Encontramos, nesse sentido, respaldo na crítica de Cândido (1977, p.144) sobre a

jagunçagem na obra de Guimarães Rosa, em que a “ordem pública mistura-se à privada”, ou

melhor, a “privada” comportava-se como “pública”, uma vez que esta última, não sendo

eficiente, delegava à outra o seu projeto de capitalização das terras. Parece que havia da parte

34 O termo “sesmarias” era utilizado para designar a medida de terra que continha os feudos, tendo sido usada, de modo ampliado, quando da divisão do Brasil em capitanias hereditárias.

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do governo, uma terceirização da segurança que acabava por se manifestar em violência,

situação que dialoga com acontecimentos reais desenrolados na região do Araguaia. Vindos

os peões do Norte (em caminhões chamados “pau de Arara” ou “caixa desencaixada do velho

Ford”), trabalhavam por volta de um ano para pagar a viagem, em troca apenas de comida35·,

e apelidavam tubarões aos fazendeiros. Metáfora que, segundo informa Martins (1989, p.93)

pode ser chamada de morta, pois foram muito utilizadas e guardam significado somente do

ponto de vista da História. Como, no entanto, são enriquecidas por comparação a outras

metáforas verde esquadra, nova colonização, fazenda faceira e impune, rejuvenescem-se.

O fato é que as metáforas supracitadas remetem a um dado fato histórico, o das

migrações de um grande número de nordestinos para a região do Araguaia, o qual só pode ser

verificado porque há no poema o que Ricouer (1997, p. 274) chama “representância”,

remetendo a um passado que intenta “ter-sido” e que é, segundo o autor, “memorável”.

Nesse caso, o histórico seria um construto que intenciona resolver o problema do

tempo, ou seja, é diante dos tempos mítico e físico, um terceiro tempo. O texto ficcional, por

seu turno, só atingiria efeito transformador (engajado) se baseado naquilo que tal autor chama

“condição” ou “consciência histórica”. Consciência que considero presente nos poemas,

Estrada do sertão e Nova colonização, principalmente nos versos:

Vem do Norte, bárbaros domésticos, Vêm buscando a “bandeira verde,” A fanática voz de padre Cícero. (Estrada do sertão, versos 31, 32, e 33)

(Fortaleza feudal, encostada de dinheiro sulista...) (Nova colonização, verso 4)

A marginalização a que são submetidos tanto os retirantes (do primeiro poema)

como os peões (do segundo) deve-se à capitalização da terra, caso em que, segundo Marx

(2004, p. 10), a economia política, cujo princípio é o trabalho, é colocada como “essência do

homem sob a aparência de seu reconhecimento”. Ocorre que, nesse caso, ela é negação do ser

humano, na medida em que ele próprio se encontra numa tensão interior, mediada pelo

conflito com esse modelo de sociedade, privada. Sendo a “propriedade privada uma essência,

o homem transforma-se em um não ser”.

Tendo passado pelos elementos que compõem a cena poética, retornamos ao título

do poema. Quanto a isso, Bosi (1992, p. 16) dirá que todas as vezes em que um processo de 35 Informação retirada da carta pastoral Uma Igreja na Amazônia em conflito com o latifúndio e marginalização sócia, de Pedro Casaldáliga (1971).

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“colonização” é colocado em curso, há uma crise na matriz mediada pela luta de uma

sociedade para reafirmar o seu domínio sobre a natureza (no poema “terra” ou “fazenda”).

Ocorre uma migração que carrega consigo problemas sociais e estruturais, pondo em ação

antigas técnicas, no caso das ocorridas na região de que tratamos, de “genocídios” e

“escravidão”.

São colocados em confronto dois povos. Aquele que chega e vê a sua cultura

como superior, estabelecendo o “tomar conta”, o que explica por que muitos grupos que se

estabelecem em terras estranhas com o objetivo de colonizar, sintam-se, depois de muito

tempo, pioneiros. E o que já habita o local, que, ou sentindo inferioridade se submete ao

estrangeiro, ou luta contra ele. Geralmente, um deles já passou pelo estágio de evolução em

que o outro se encontra, fato que atua em seu favor.

No âmbito da obra, o ser que deixa absorver-se do mundo presente vai tornando-

se futuro, na medida em que participa do desenvolvimento social. Nesse caso, o tempo

presente fala de si como uma sucessão histórica, entendida como aquela que deve ser feita

unicamente pelos atores sociais que daquele grupo fazem parte, uma progressão única e

“irreversível”.

O fenômeno fundamental do tempo é o futuro; sua constituição requer tornar ao

passado e passar em vista o presente, dando-lhe vida, o que não requer longitude porque esta

não existe. Como possibilidade futura, significa dar tempo ao próprio tempo e, claro, a

quantidade do tempo quando posto em função do “quando” e do “onde” (o espaço).

Significa a consciência de que o ser (homem) significa e tem um lugar no mundo

sabendo o que nele fazer, mas também observa e interroga, mediante a comparação e a

observação, em suma, o ser é determinado por ser com o outro e esse outro pode ser com um

outro ainda.

A palavra reveladora do outro é captada na semelhança com o outro e com a

natureza. O fato é que essa palavra toca a essência mesma do homem, sua historicidade e sua

racionalidade.

Não há conflito entre a história humana e a cristã, porque

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Para nosotros no hay dos historias humanas: una historia profana y al margen de Dios, y otra historia sobrenatural que Dios cuidaría, que Dios haría suya. Sin negar lo que tradicionalmente los teólogos han llamado “orden natural” y “orden sobrenatural»,” “naturaleza” y “gracia”, nosotros confesamos una única historia humana, porque el Dios salvador es el mismo Dios creador.(Casaldáliga, 1982, p.4)

2.2- Águas do sertão: o tempo físico e a marcação da temporalidade

As águas são, talvez, a maior metáfora temporal da obra de Pedro, sobre a qual

recai a idéia de ciclo e a lembrança da vida sertaneja, marcada por esse modo de contar o

tempo, baseada na mudança natural e na sucessão de fatos. Um dos seus livros, por exemplo,

tem por título Águas do tempo – águas que serão adentradas através do estudo de A ALMA DO

RIO (CM, 1979, p.41).

Passa a enchente, Baixa o rio, O dogma e a lei Vão e vêm, Permanece entre as beiras, No leito do povo, A alma do rio.

Ao contrário do que possa parecer, a alma do rio, que seria, no sentido estrito do

vocábulo, aquela que o anima, que lhe dá vida, não está presente somente nas cheias, não

segue com as enchentes, mas permanece na alma, no leito do povo. Baixando o volume das

águas, segue (mas imediatamente retorna) com elas o dogma e a lei, respectivamente os

conjuntos reguladores da religião e do estado. Esse movimento é captado pela disposição

gráfica do poema (após os dois versos iniciais há um recuo na página, o qual prevalece por

dois versos, voltando em seguida ao ponto de partida) “permanecendo...”, mesmo com a

vazante, a alma do rio,

Baixa o rio, O dogma e a lei Vão e vêm, Permanece entre as beiras, No leito do povo, A alma do rio.

Quando da leitura do poema, não são encontradas grandes mudanças na

significação do texto, pela razão de que, tratando-se o primeiro verso do título que parece

configurar-se como tal e o último, de versos paralelos, permanece o que é essencial ao rio, na

memória do povo. Além disso, há semelhanças entre os pares dos versos primeiro e segundo:

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Passa a enchente, / Baixa o rio; sexto e sétimo: No leito do povo, /A alma do rio, notada pelo

cruzamento metafórico que ocorre por transferência de alma, característica própria do ser

humano (povo), para o rio; e de leito para o ser humano (representado pelo povo, leito do

povo). Tal recurso, que constitui um paralelismo sintático, dá vida nova aos termos, e deixa

claro o profundo imbricamento que existe entre os seres, assumindo-se como uma

conseqüência das ações decorridas no primeiro par.. Ambos os versos são marcados pelo uso

de verbos no presente do indicativo, colocando o passar da enchente e a baixa do rio como

atos presentes e contínuos, fazendo-os tomar um status de estado, por estarem sempre

presentes na vida de quem habita as margens do rio – ato de permanência, reforçado pelo

segundo par, que incisivamente transmite a notícia de que a alma do rio ficou junto ao povo.

Por estarem recuados e interpostos pelos versos segundo e terceiro – dogma e lei e

vão e vem – sugerem um balanço das águas. Os versos citados são internamente ligados pela

aditiva e, reforçando a sensação de que há um exercício de ir e vir.

Instala-se aí um movimento dialético que se sustenta na negação e,

imediatamente, no retorno daquilo que é o rio, a sua alma ou substância, ou, do que é povo

que, estando à margem (marginalizado), sustenta-se das suas águas, um fato que gera a síntese

da tese inicial. Povo e rio compartilham uma mesma identidade, e a referência a eles dá-se por

um mesmo modo de funcionamento do pensamento (o dialético), que, segundo Abbagnano

(2000, p.273-4), como método, foi proposto por Hegel, mas, tomado por Marx e Engels, os

quais propuseram a sua transferência, a partir do materialismo, para o plano da realidade,

“para o mundo aberto da história e da natureza”

Assim, a história da natureza e a história humana estão em constante processo

de formação. Tudo o que existe é história, por conseguinte, nada é absoluto. O ato de ir

(“vão”) pressupõe a vinda (vêm); assim, segundo Ribeiro (2001, p.62), “na interação do

pensamento (teoria) e realidade (prática), o homem transforma-se, e, ao mesmo tempo,

transforma a realidade que o cerca”. A essa relação, muitos chamam práxis; para o autor,

contudo, “é a própria história da humanidade e do pensamento humano”, elemento que

aparece também na cultura, como é o caso da estreita ligação que têm os ribeirinhos com o

rio.

Tal movimento é necessário para que as imagens do presente reinstalem o passado

na memória; isto porque cada percepção requer um grande número de sensações, coexistentes

numa ordem determinada. É nesse sentido que Bergson (1999, p.159) chamará de “estados

fortes” às percepções do presente, e “estados fracos” às do passado, sendo que as segundas

necessitarão emprestar as forças que contêm o presente, para que se possam materializar em

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imagens. Ocorre uma invocação da memória coletiva; a alma do rio pode não existir

materialmente, contudo, habita um lugar entre a vazante e a cheia. Permanece, assim, no leito

do povo.

A manutenção da memória daquilo que é essencial ao rio, ou a resistência dos

que dele dependem (tanto para a subsistência material quanto para a manutenção de seus

mitos depende da marcação dos tempos da cheia (vazantes) e da seca como tempos que

provocariam diferentes costumes e tradições, ambos, caracterizados, nesse caso por símbolos

que recordam o período do ano em estão presentes, ou seja, pela permanência (ou duração).

Nesse caso, coincidem, no texto, o que Nunes (1998, p.18) chama “tempo físico”,

dos acontecimentos naturais e o “tempo do vivido”, aquele que remete para a temporalidade

humana, sendo o sincretismo, entre as diversas partes, o que determina o tom impresso ao

longo do poema. Os seres, povo, depositários daquilo que caracteriza as águas do rio,

parecem depender da força das águas para também permanecer. Rio e povo, termos

homônimos, estariam, mediante a mudança impressa pelo avanço do capital, ambos

condenados ao desaparecimento, mas resistentemente sobrevivem.

Por outro lado, o texto sugere um interdiscurso histórico, no qual ocorre a chegada

de um grande contingente de pessoas na região, quando, entre 1960 a 1980, o governo

brasileiro (no poema pode ser pensado pela lei que funciona como uma de suas estruturas de

poder), sob a égide do militarismo, promoveu ações que visavam a inserção do capital na

Amazônia, o que fez com que, através do grande desmatamento, ocorrido em função da

implementação de grandes fazendas de gado, a natureza sofresse “danos irreparáveis aos

ecossistemas, como erosão, perda de nutrientes por escoamento, encrostamento da superfície

e distúrbios no balanço de águas” (Kohlhepp,,200236). Esses distúrbios provocaram,

provavelmente, mudanças nos hábitos da população local, mas, como parece indicar o poema,

não levou a alma do rio, que permanece junto ao povo, ainda que no seu imaginário, entre as

beiras.

A consciência de que a interferência de outras culturas muda a relação natural

entre homem e espaço, representado, nesse caso, pelo rio, indica uma certeza de que a

formação desse lugar, desse ecossistema, exigiu um incontável período temporal. O mundo e

os demais seres estão dentro do ser humano, “através de arquétipos, imagens, simbolos”

(Boff, 2006, p. 288).

36Trate-se do artigo Conflitos de interesses no ordenamento territorial da Amazônia brasileira, publicado no site http://www.scielo.br/scielo. Phscript=sci_arttext&pid=S0103-40142002000200004 gerido pelo Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Acesso dia 05/10/2006.

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Nesse caso, há uma historicidade do universo. “Todos os fatores que entram na

construção de cada ecossistema com seus seres e organismos possuem sua latência, sua

ancestralidade e em seguida sua emergência... uma fundamental irreversibilidade, própria do

tempo histórico” (Boff, 2006, p. 288).

A estreiteza na relação entre homem e elementos fundamentais, água, fogo, terra,

marcam outros textos do autor, caso, por exemplo, de Tu tierra y mi lluvia

(TE-85):

Tempestad y bruma, mis iras, tus dudas.

Si es acantilado, la palabra abrupta.

Sementera fértil, tu tierra y mi lluvia.

Instalado o jogo entre os pronomes pessoais mi e tu, inaugura-se também uma

seqüência de metáforas que vão, ao mesmo tempo, na direção dos dois seres. Assim,

tempestad, bruma e acantilado, dizem, ao mesmo tempo, de ambos os personagens que

comparecem à cena poética.

Tempestad y bruma, mis iras tus dudas.

Nesse caso, a violência dos acontecimentos naturais provocariam, no ser humano,

confusão e obscuridade mental tornando simultâneas as iras do homem, e as dudas naturais.

Perguntamo-nos, onde localiza-se o tempo do humano e aquele da natureza.

Sendo o tempo, do ponto de vista da física, passível de ser medido, sua mensuração indica o

quando, o de quando-a-quando. As repetições são cíclicas, e todo período tem a mesma

duração temporal, sendo o tempo mensurável somente se entendido como homogêneo.

Ao interessarmo-nos pelo tempo, devemos considerar o príncipio fundamental da

natureza na sua concepção espaço-temporal. O tempo da natureza e do mundo é preliminar ao

da física.

Por esse prisma, seria preciso conhecer o ser e suas iras porque, conforme sugere

o citado pensador, o ser é o tempo, e o tempo é temporal, o que não significaria uma

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tautologia, porque o ser da temporalidade significa uma realidade diversa. Assim, teríamos,

uma tríade: o ser fortemente ligado à natureza; esta, ligada à criação do tempo e do espaço; e

o tempo relacionado ao ser.

A repetição da estrutura coordenada da primeira estrofe no último verso Tu

tierra y mi lluvia (retomada do título do poema), reforça e reitera a integração entre homem e

natureza, lluvia y tierra, mi y tu, e resulta na instauração, via adjetivação anteposta, de uma

sementera fértil – tempo em que o ser produz.

Haveria, então, um duplo movimento comparativo, de modo que a noção de

tempo fosse determinada pelos fenômenos naturais: o estado de ânimo é metaforizado em

Tempestad, brumas, acantilado; a gradação ocorre do momento de maior tensão até o de

grande fertilidade, mas não sem que seja quebrada por um acontecimento.

La palabra abrupta.

Anacoluto que abandona por um momento os termos qualificatórios para se referir

ao homem por uma de suas faculdades. A palabra poderia ser, então, fundadora do estado

vindouro, da produção (tempo produtivo para o homem e a terra) encampada por tierra e

lluvia. Do mesmo modo que em A ALMA DO RIO (CM, p.41) se fundem os tempos físico (v.1

a 5) e vivido (v.6), o que resulta na aproximação a uma temporalidade mítica.

Ricouer (1997, p. 181) informa que o tempo mítico tem a função de ordenar, de

acordo com os grandes ciclos celestes, o tempo dos homens que vivem numa sociedade e,

nesse sentido, reúne o “rito”, tempo que aproxima o tempo mítico da esfera profana da “vida

comum”, com o “mito”, que “amplia o tempo ordinário aproximando-o da ação”, isto é, faz

com que em sua função sejam realizadas celebrações festivas, dizendo respeito, desse modo,

ao mundo e ao humano. Evidentemente, a arte, embora apresente características reflexas às

do tempo definido por Ilya Prigogine (2001, p.28) como externo (relacionado ao universo e

com ele nato) é portadora de um tempo interno inerente à sua natureza e estrutura.

2.3-O lunar e o pascal como representação dos tempos cristão e nativo

Assim como as águas, a lua é metáfora recorrente nos textos estudados.

Entendendo haver uma analogia entre esse ciclo e o pascal, apresento quatro textos, com os

quais penso retratar esse fenômeno: A lua e a luta (AT, p, 29), EU, ARAGUAIA E TU (AT,

p.55), Com o calendário aberto (CM, p.31) e DE NOITE (CM, p. 31), poemas em que o tempo

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é tematizado (a partir de uma perspectiva intra e extra temporal), sendo que os três primeiros

são mais próximos entre si. Por fazer referência direta ao rio, o primeiro a ser estudado será

EU, ARAGUAIA E TU:

Eu, Araguaia e Tu. Um Tempo só. Abraamicamente numerosas, Nos garantem um sonho proibido as estrelas lá fora canceladas. O ipê batiza ainda com ouros gratuitos o silêncio que nós, ò Araguaia, conseguimos salvar dos invasores, Sempre ainda encontramos – eu e tu – a pergunta inquietante de uma garça, na beira, provocando respostas, acordando o mistério. ...Tu estavas no princípio, De acordo com Lua, sacerdotisa virgem, Alfronbando as cadencias do Aruanà sagrado. os potes karajá recolhiam teus olhos e os peixes costuravam de prata teu banzeiro. Ainda o Padim Ciço não mostrara tua bandeira verde aos retirantes. Não havia Funai, Sudam, nem Incra. eram Deus e a aldeias.

O seu título é composto por dois pronomes e por um nome próprio, marcando

respectivamente a referência a um ser humano (eu), a um ser natural (Araguaia) e a um ser

metafísico/mítico (tu) – seres nos quais, para o eu lírico, ocorre um encontro: Um tempo só,

tratando-se, assim, de uma trindade.

Contrasta o tempo local (do Araguaia) e o tempo nacional (do Brasil):

o ipê batiza ainda com ouros gratuitos o silêncio que nós Ö Araguaia conseguimos salvar dos invasores.

Evocado o Araguaia, começa a ser cantado um tempo já decorrido, porém não

inerte, porque, uma vez presentificado pela memória, lembra o silêncio batizado com ouros

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gratuitos (v. 8), momento anterior à chegada de instituições governamentais (do Brasil)

Sudan, Funai, Incra, no espaço de que fala o poema.

Os seres encontram-se conectados com o momento, eu e tu (v.23 e 24), em que a

lua alfrombando as cadências/do Aruanã sagrado (v.14 e 15) determina as cheias e as secas,

impondo o ritmo do rio. Como todos os demais elementos, a lua é personificada, assumindo

uma postura ativa no texto, descortinando um mundo no qual as ações partem de diferentes

seres: o momento presente é definido pelos indicativos – as estrelas garantem, Eu e Tu

conseguimos salvar; o passado, ação conclusa, é manifesto por potes recolhiam, peixes

costuravam; e o período que fica entre esses dois acontecimentos, o pretérito mais-que-

perfeito, ainda o Padim Ciço não mostrara /tua bandeira verde aos retirantes, resulta num

movimento prospectivo em relação ao presente, no qual se situa o eu e o Tu, enfim, o narrador

poético.

Segundo Thomson (177, p. 47), do ponto de vista da reflexão dialética, o tempo

(ontológico) é testemunho das mudanças históricas. Assim, trata-se de uma alusão a dois

acontecimentos historicamente comprovados, possibilitando um interdiscurso histórico, uma

vez que, recorrendo a fontes documentais, encontraremos a figura do Padim Ciço37, e teremos

notícias da implementação de ações governamentais, Sudam, Funai e Incra, na Amazônia

Legal. É a consciência de que os acontecimentos históricos apresentam uma

“irreversibilidade” (Boff, 2006, p.39), mas ela pode ser tomada como uma tese inicial para

uma melhor elaboração futura que ronda o poema.

37Padre Cícero Romão Batista era um aliado dos coronéis do Vale do Cariri que, a partir de 1912, lutaram contra a política de intervenções do governo federal e derrubaram o governador Franco Rabelo. Movimento considerado messiânico, pela arregimentação de grande número de fiéis para uma ação em geral contra a ordem social corrente. Tais movimentos tiveram importância em diversas regiões do país: no interior da Bahia, liderado pelo Conselheiro, em Juazeiro do Ceará, liderado pelo Padre Cícero, no interior de Santa Catarina e Paraná, liderado pelo beato João Maria e, novamente no Ceará, sob o comando do beato José Louren, somente foi possível devido a algumas condições objetivas como a concentração fundiária, a miséria dos camponeses e a prática do coronelismo, e por condições subjetivas como a forte religiosidade popular. Os grandes grupos sociais que acreditaram nos messias e os seguiram, procuravam satisfazer suas necessidades espirituais e ao mesmo tempo materiais.”. (In: http://www.padrecicero.com.br/ . Acesso em 23/09/2006).

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Sudan38, Funai39 e Incra40, autarquias governamentais, formam, por seu turno,

uma outra trindade, ligada também a um poder que se pretendia uno, o governo militar, que à

época tinha o objetivo de demonstrar, ante a especulação internacional, eficiência na

administração do país e que todas as partes do território eram bem geridas. Criou, com esse

objetivo, o Plano de Desenvolvimento Nacional (PDN), que comportava muitos projetos,

entre os quais os referenciados pelo poema. Todos os projetos funcionavam no sentido de

manter a ideologia dominante.

Esses projetos deveriam esconder os grandes conflitos que havia no país.

Refletindo sobre esse fenômeno, Stuàn Mesáros (2004. p.69), dirá que a burguesia tem meios

próprios para a manutenção da sua hegemonia, tendendo a

Produzir um quadro categorial que atenua os conflitos existentes e eterniza os parâmetros estruturais do mundo social estabelecido, compreende-se, pois que essa característica será mais pronunciada quanto maior for a importância dos interesses que motiva o confronto antagônico dos principais agentes sociais.

Assim, mesmo após o término da ditadura, essas autarquias continuaram usando

de uma postura autoritária, colocando-se não como responsáveis por serviços fundamentais

para a população, mas favorecendo atos ilícitos que, em muitos casos, descumpriam a lei.

Aliado a isso, convém mencionar os baixos investimentos do governo, que só nos

últimos anos implementou mudanças nos órgãos governamentais, tendo-se verificado uma (ou

certa) mudança de postura. Ou seja, foram provocados grandes prejuízos pela herança da

ditadura militar.

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A SUDAM (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia) (SUDAM) “órgão do governo federal do Brasil, criada no governo do general Castelo Branco em 1966, com a finalidade de promover o desenvolvimento da região amazônica, criando incentivos fiscais e financeiros especiais passa, atrair investidores privados, nacionais e internacionais”. Mediante a ligação do órgão com a corrupção compulsiva “lócus de oligarcas da elite amazônica e empresários do centro-sul” foi extinta em 2001 e recriada, com novo direcionamento em 2003. (In: http://www.global.org.br/docs/relatorioparaportugues.pdf. Acesso em 13/10/ 2006). 39 Criada em 1970 pelo então presidente general Médice a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) tem a função de gerir a demarcação de terras indígenas e acompanhar os conflitos indigenistas. Ao longo da história tem se mostrado omissa. Nos anos de sua criação a presença de seus agentes só agravava os conflitos. Segundo o site houve, nos últimos anos, consideráveis melhorias nos serviços prestados pelo órgão. ( In: http://www.ambientebrasil.com.br/composer.php3base=./indios/index.html&conteudo=./indios/escritorios.html Acesso em 13 /10/2006) 40 O INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) criado em 1964 pelo general Castelo Branco, então presidente do país, teria a função de gerir os problemas agrários e analisar a extensão das propriedades (baseadas no módulo rural que constituía num tamanho de terra capaz de sustentar uma família de quatro pessoas e variava de acordo com as condições geográficas e econômicas de cada região). Com agravamento dos conflitos pela posse terra na década de 80 o INCRA foi extinto e sua função transferida para o então Ministério Extraordinário de Assuntos Fundiários. Recriado em 2000 passa a ligar-se ao Ministério do Desenvolvimento agrário. (In: http://pt.wikipedia.org/wiki/INCRA . Acesso em 13/10/2006)

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Por seu turno, o grande número de movimentos messiânicos, existentes no nosso

país (Canudos, Padre Cícero, Cangaço), todos surgidos em períodos em que o país teve

governos repressivos, demonstram que, não havendo em quem confiar, a população busca

apoio na fé, agarrando-se a esta como a única esperança que lhe resta. Padre Cícero aparece

na primeira República quando, com a dissolução do império, a libertação da escravatura e o

grande contingente de imigrantes que, mediante a crise provocada pela primeira guerra

mundial, vieram da Europa (Itália, Polônia e Alemanha) e da Ásia (Japão), afloram os

problemas sociais brasileiros. Dentre os movimentos está o de Juazeiro do Ceará, que se

coloca do lado dos coronéis e reivindica a manutenção do modo de vida nordestino que,

naquele tempo, era substancialmente diferente do resto do país.

Segundo HOLLANDA (1985, p.05), isso pode explicar-se pela razão de que o

brasileiro mantém o gosto de mudar de estado para estado. Nas palavras do autor, “ainda hoje

somos uns desterrados em nossa própria terra”; isto porque, tendo a coroa portuguesa se

instalado no litoral, a população foi sendo, cada vez mais, empurrada para o interior do país,

fato que se repete nos nossos dias, com a abertura de novas fronteiras agrícolas, e que se

repetiu em inúmeros projetos amazônicos, quando da sua anunciação (a Amazônia era tida

como um verdadeiro Eldorado, tendo renovado a profecia de Padre Cícero, de que haveria no

céu “uma terra verde”. Esta era uma esperança baseada tanto na insubmissão do povo perante

o governo nacional, como na lealdade aos coronéis.

Contrariamente a Padre Cícero, a proposta de Casaldáliga (também surgida num

período de repressão), referida no texto Estrada do Sertão (AR, p. 31) pela expressão Eu sou

um comentário a frívola distância..., apresenta um caráter prático e concreto (próprio da

Teologia da Libertação), gestada no desejo de suprir carências nos campos social e religioso.

Como informa Iokoi (2003, p. 236), baseada nas obras de Leonardo Boff e Gustavo Gutierrez,

a Teologia da Libertação (TL) propõe “novas formas de entender e se relacionar com o nível

espiritual” em que é “possível transformar a potência em ato, produzindo a dinamização da

analogia, sua ação ativa.”

Por outro lado, há, por meio da práxis histórica, um encontro com a filosofia da

libertação, sobretudo no que partilha com Dussel a necessidade de fundação do homem da

América e de um modo de agir, pensar e ser que corresponda à sua natureza. Vendo-se como

outro, e ao outro em relação a si, fundaria, a partir de uma dialética análoga (análogos), uma

analética (1965, p.250).

Citando Martí, Casaldáliga dirá que:

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hay tiempos en los que la mejor manera de decir es hacer» (José Martí). Nosotros creemos que hay lugares donde la única manera de decir liberación -por ejemplo - es hacerla. Y deberíamos creer que, de alguna manera, en todos los tiempos y en todos los lugares la única manera de decir es hacer (...) Nuestro Continente, por no ser cartesiano, no es teórico. Por ser vivencial es práctico. Es una herencia indígena la «economía del don».Realidad in Teología de la liberación (1982, p.2).

Neste caso, a luta seria contínua, e, só assim sendo, possibilitaria a superação da

totalidade da opressão-libertação, que, segundo informa Iokoi, para Boff (2003, p.241) “são

elementos constitutivos um do outro e a possibilidade da sua superação, impede que ambos

sejam superados”. A luta deveria suster-se das dificuldades, das esperanças e utopias diárias.

O que se coloca diariamente, mais que a TL, é a luta pela libertação; nesse caso, “viver sob o

signo da liberdade é destruir continuamente a opressão, uma vez que ela aparece mais

explicitamente no nível econômico/político, mas age nos vários planos da vida humana”

(Iokoi, 2003, p. 242).

O grande diferencial dessa proposta da libertação é que ela caracteriza-se pela luta

constante e não por uma batalha ganha; não se trata de guerra frontal, mas de vencimento das

opressões diárias, informa Casaldáliga: “la utopía no es quimera. Debe afrontar la «increíble

inercia de lo real» (Guardini), «la insoportable levedad del ser» (Kundera). Fieles en el día-a-

día in Teología de la liberación (1982, P.1).

A sua poesia, alimentada pela ação engajada que desenvolve, adequou-se às

condições de lugar e tempo, e parece comunicar-nos que, sem justiça social, é impossível

existirem direitos humanos. Refuta “a paciência, a conformidade, e a esperança etérea”,

porque para ele “a terra é o único caminho que nos pode levar ao céu. É o único caminho. É

pela terra, pela história, e pelas lutas daqui que vamos chegar ao céu.41“ Assim, o mundo

almejado (talvez o céu) é o material onde haveria, como no princípio, de acordo com Lua,

sacerdotisa virgem, peixe, potes.

Compreensão que nos faz ver que há um tempo histórico que acompanha o

homem, pressupondo que este esteja inserido na natureza e não externo a ela, o qual está

como que perdido pelo paradigma tradicional muitas vezes refutado em sua obra.

Há, então, uma crença na vitória, mas que emana da luta. As conquistas históricas

não seguem um curso natural e linear, mas são forjadas pela luta coletiva e individual.

Quanto às imagens do passado (a partir da terceira estrofe), estas começam a

permear os versos. Os constantes encadeamentos exigem o uso de aposto e de coordenadas:

41 Ambas as citações são trechos da entrevista realizada com o autor em setembro de 2005.

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Tu estavas no princípio, De acordo com Lua, sacerdotisa virgem, Alfronbando as cadencias do Aruanà sagrado.

(v. de 13 a 15) E

potes karajá recolhiam teus olhos e os peixes costuravam de prata teu/ banzeiro. (v. de 16 a 19)

Constata-se um grande prazer na recriação desse passado que vem à tona por meio

de um fluxo contínuo de imagens, as quais, materializadas, parecem exaltar o tempo de que

são mensageiras. Concomitantemente, são variados os adjetivos que permeiam o texto, a lua é

sacerdotisa virgem, o Aruanã, sagrado, as estrelas, canceladas42, o ipê metaforizado em

ouros gratuitos, nomes que traduzem as memórias remanescentes de um local, captadas pelo

olhar e sensibilidade do poeta.

O verbo é impulsionado no sentido de inaugurar uma possibilidade de futuro, ou

melhor, a Terra sem males sonhada pelos Guaranis. O mito da Terra sem males é, ainda hoje,

bastante vivo entre os povos da região Andina, e entre as populações nativas brasileiras de

tronco Guarani. Oliveira (1947, p. 129) diz que, segundo a lenda, há uma terra após o mar

onde não existem “discórdias”. Hoje, tendo sido o mito atualizado, os indígenas ligam a terra

sem males ao momento (histórico) em que as suas terras ainda não haviam sido expropriadas

pelas nações colonizadoras, os invasores (v.9). Crença que é tomada pela Teologia da

Libertação para representar a terra onde haja distribuição de rendas. Em sentido bíblico, onde

jorre leite e mel.

O tempo pode ser pensado por diversos planos: um deles é o bíblico, que traz para

o embate a infinitude das estrelas, que, dispersas pelo espaço, são comparadas à descendência

de Abraão43. Sendo as estrelas os homens, o termo canceladas lembra a violência,

praticamente institucionalizada, contra os peões que trabalham na região do Araguaia. Em

entrevista ao Diário de Cuiabá, Casaldáliga (2003) declara, enquanto se pronunciava sobre a

fazenda Suiá Missu, a existência de um

regime de escravidão mesmo. Havia uma curva de estrada pouco antes de chegar à Suiá, com um precipício, uma espécie de grota como uma cratera. Na época mais dura da Suiá Missu, os peões diziam que aquele era o passeio do papai. Pegavam peões, matavam e jogavam os corpos lá.

42 Hilda Magalhães lê em sua obra História da literatura de Mato Grosso (2001, p.286) o termo (verbo) “cancelada” como uma derivação do substantivo “cancela”, que significa a porta dos currais, uma referência à presença dos grandes fazendeiros (e de seu) poder na região.” 43 Se tomada a compreensão da Teologia da Libertação, todos os homens são descendentes de Abraão; nesse sentido, a promessa de sua vasta descendência cumpre-se todos os dias.

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Outro plano é o que, analogicamente, faz a junção da promessa bíblica e da

experiência vivida pelo Araguaia, habitado por diversas etnias, entres elas as karajá e

Tapirapé, Eram Deus e as aldeias. Comunidades de guardadores do sonho da Terra sem

males e conhecedores da astrologia e da astronomia – a Lua sacerdotisa virgem, o que

remonta às reflexões de Lima (2006, p.80-9), o qual afirma ter encontrado no diário de Couto

Magalhães a seguinte informação:

Vivendo em climas ardentes como são alguns no Brasil, os que são navegantes preferem de ordinário a noite para a viagem. Viajei dezenas, talvez centenas de noites pelo Araguaia com guarnições de selvagens Carajás e sempre eles conheciam a hora da noite por meio de estrelas, com precisão que bastava perfeitamente para regular as marchas. Não me envergonho de dizer, que nesse tempo, eu conhecia, muito menor número de constelações do que eles. (...) figuram freqüentemente na contagem do tempo durante a noite.

Segundo Lima (2006, p.80 a 89), há no Brasil uma vasta literatura sobre o grande

número de elementos que determinam as marcações temporais conhecidas pelos nativos, o

que atesta que, desde o período pré-cabralino, eles tinham conhecimento da influência dos

ciclos lunares sobre os demais elementos da natureza. Alguns desses elementos são muito

presentes nessas culturas: Lua-mãe de todos os vegetais; o Sol-mãe de todos os viventes. Há

propensão para adorarem as estrelas, entre elas o Sol e a Lua.

Todavia, a construção Eram Deus e as aldeias demonstra não haver interferência

entre os planos divino e humano; as aldeias eram o reino de Deus. Haveria então uma

correlação entre os três primeiros e os três últimos versos do poema: os versos um, dois e três

em que homem e Deus são colocados no mesmo patamar um tempo só em que o Tu (v.2) é,

através do conectivo “e” é ligado aos demais seres. Pelo fato deste mesmo tu, estar

espacialmente à frente dos de Eu e de Araguaia, o Tu dá continuidade à linha por eles

iniciada no verso um, ao passo que nos três últimos versos ocorre uma inversão: Deus está no

plano superior, o que não gera obstáculo porque, segundo Hilda Magalhães (2001, p.286), “há

uma reprodução do esquema platônico. A fusão era possível porque não havia palavras (os

conceitos e a ciência), mas unicamente o silêncio” 44. Nesses termos, teríamos, no caso dos

três primeiros, uma inversão desse esquema.

A Lua que passeia pelos textos estudados divide o espaço com marcadores

temporais ligados à tradição cristã, uma característica que os torna, do ponto vista da

44 Na obra de Magalhães (2001, p.285) o “tu” do verso 2 encontra-se alinhado aos demais seres. Na publicação (edição) usada por mim há um espaço (citado na análise) entre eles. Penso que, se considerarmos esse modo de disposição dos versos, e a análise feita pela autora, teríamos na estrofe uma inversão do esquema platônico.

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representação que faz de diferentes culturas, híbridos. A LUA E A LUTA (AT, p. 29) é um dos

textos que testemunha momentos de equiparação entre essas culturas.

Unhada de esmalte Na noite a lua. Inútil foiçada No sonho maior das estrelas. Unhada soturna na carne foiçada na luta. criança a sonhar poeta a sentir humano a lutar na noite do dia que somos a estrela e a lua, o sonho, seu nome, um canto. a lua rotina surpresa diurna, noturna. vindo do Brasil volto ao Araguaia comungo a hóstia da luta, partida, pão da caminhada.

Os primeiros versos jogam com as palavras lua e luta, primeiro por serem

homofônicas e emprestarem às estrofes em que se encontram um interessante jogo rítmico,

formando uma unidade melódica bastante diferenciada daquela encontrada nos versos

subseqüentes. Sonoridade que, se conjugada à disposição dos versos, semelhante a escadas,

imprime movimento simétrico ao ato de ir e vir, metáfora da luta, da labuta humana.

As metáforas Unhada de esmalte/Na noite/a lua e Unhada soturna/Na

carne/foiçada na luta parecem remeter ao fato de que a lua esmaltada ilumina o sertão e

testemunha a luta e o trabalho que ali ocorrem, inclusive com a foice. A luta é diurna, é

soturna e é noturna.

Os termos unha e foice tornam fortes as imagens do poema exatamente porque

ambos remetem a marcas, provavelmente estabelecendo uma relação com as feridas sociais

que se entranham na vida do homem, ou referindo-se àquelas adquiridas na luta, a qual,

embora seja pela dignidade, pode, como a foice, ceifar, neste caso, a vida. Assim, a militância

social (possibilidade de vida) é agarrada tal qual quem, com determinação, como diz um dito

da região, “pega um boi a unha”, ao passo que Foice, signo ideológico da União Soviética,

marca ideologicamente o texto, por colocar o discurso poético de Pedro Casaldáliga em

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diálogo com o comunismo, isto porque, para Bakhtin (1997, p.31), tudo que é ideológico é um

signo. Sem signos não existe ideologia”. Ou seja, embora foice diga respeito a uma “realidade

material”, dá notícia de outra coisa.

A luta partida é materializada na última estrofe (verso vigésimo primeiro), a qual

é quebrada ao meio, isto é, as palavras luta e o seu complemento partida são colocadas em

diferentes versos. Essa divisão metaforiza tanto a luta partilhada como a fração do pão da

caminhada (hóstia). Mas pode lembrar a possibilidade de contratempos, interrupção,

caminhada (da vida) pela violência dos confrontos (com poderes governamentais “polícias” e

pistoleiros), aos quais são submetidos os movimentos sociais; pode lembrar ainda que, em

muitos casos, os líderes desses movimentos são obrigados a calar-se (a partir a luta) ou a pedir

àqueles que estão com eles que esperem por um tempo para, só depois, continuar a luta.

Bastaría repasar los libros que aquí se han escrito y enumerar las revueltas y los encuentros, los manifiestos y las consignas que vienen borboteando a lo largo y a lo ancho de nuestra historia. Se trata, ciertamente, de una herencia específicamente indígena. Los grandes libros sagrados de nuestros Pueblos primigenios son verdaderas biblias de utopía humana y social; y el mito fundante del pueblo guaraní -«la búsqueda de la Tierra sin males, con diferentes matices e intensidad, atraviesa la mitología y la ideología de antiguos y nuevos utópicos de Abia Yala/América Latina. (Casaldáliga, 1982, p.12)

Para o cristianismo (catolicismo) o que sustenta a luta é esse pão de que as

pessoas (cristãos) se alimentam, que é, segundo seus dogmas, corpo de Cristo. Compartilhar

as dores, alegrias, lutas, sofrimentos e pão sustenta a caminhada (vida). A Teologia da

Libertação vai considerar que tudo quanto é partilhado poderá ser tido como comunhão, pão

sagrado. O que a caracteriza é o fazer junto. Lido desse modo, a luta partida, que poderia

significar fragmentação é, na verdade, o seu sustento. Partida é anominação, derivada de

partilha. Os que lutam são enumerados pelos versos (9, 10,11): criança a sonhar/ poeta a

sentir/humano a lutar.

A quarta estrofe retoma o ritmo ágil apresentado na primeira, o ritmo de trabalho

frenético e contínuo que são as lutas sociais, diurna, noturna, resultado de sonhos, um canto

(no sentido de alento e clamor, ou de cantiga, hino que embala a luta).

Por fim, dialogando com o poema estudado acima, EU, ARAGUAIA E TU, por

estarem em diferentes processos e buscarem modos de vida díspares, este separa a região

nordeste de Mato Grosso do resto do país:

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vindo do Brasil volto ao Araguaia comungo a hóstia da luta, partida, pão da caminhada.

Nesse lugar sobrevive ainda um modo de olhar para a lua e ler o futuro; a lua

diz da noite do dia/que somos. De noite se vive, pensamento para o qual conduz o poema:

DE NOITE (CM-31)

A fé e o luar se vivem, só de noite

A existência desses dois fenômenos, fé e luar, dependeria de acreditarmos neles

ou não. São colocados em jogo dois modos de crença: a religiosidade popular, que vê

miticamente a lua, atribuindo valor a cada um dos seus quartos e, provavelmente a instituída

fé cristã. Assim, sabemos, por exemplo, que, para a crença popular, o corte de cabelo no

quarto crescente da lua provoca crescimento. Parece haver a idéia, reforçada pelas

condicionais se e só, com que são iniciados os versos dois e três, de que ambos os elementos,

são, na verdade, construtos culturais.

A simplicidade que emana dos versos faz lembrar, quando espontaneamente e

pela oralidade, falamos de coisas que não percebemos de modo concreto.

Por outro lado, a expressão se vivem pode significar que haveria no período

noturno uma vivência maior da fé e, ao mesmo tempo, que os que acreditam no ato de viver (e

vivem) são capazes de, nesse mesmo momento, contemplar o luar.

Ocorre um questionamento da fé, da coragem, da iniciativa da luta: a lua

determina os ciclos naturais, assim como a fé determina as mudanças sociais, mas ambas,

porém, vivem nas sombras, embora na penumbra possam ser tomadas como incentivos (é

evidente que nem sempre o são), momento de recarregar as forças para a dura caminhada que

se coloca frente ao oprimido, a superação ou diminuição das diferenças sociais entre ele e as

demais partes da sociedade. Esta arma-se de muitas estruturas de opressão; em alguns casos,

vale-se também da crença do povo para ludibriá-lo, ou das instituições responsáveis pela

manutenção da fé para mantê-lo submisso e confiante numa esperança etérea.

Ao contrário, é a ação (militância) contra o antagonismo entre as diferentes

classes sociais que dá segurança a quem acredita na luta, a qual deve ser empreendida

diuturnamente e, nesse sentido, o dia, personificado, protesta da Noite e COM O CALENDÁRIO

ABERTO (CM-31) descortina a manhã,

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Um dia vivido protestando da Noite, descortina a manhã do Amanhã. Ë preciso viver o dia e olhar para o ano todo, com o calendário aberto como bandeira na marcha...

A manhã e o Amanhã, o novo dia, é esperado impacientemente pelo dia que já se

foi, que, numa atitude de protesto, faz de sua espera vigília, declarando, ante o calendário

aberto, o seu anseio pelo momento, quando haverá pessoas dispostas, como a bandeira na

marcha, a insurgir-se (sempre) contra a injustiça e a ilegalidade.

Tecido em apenas duas estrofes compostas por um único período nominal,

prevalecem no texto os verbos (nominais) vivido, é preciso viver, e ambos convergem para

que este adquira tom de existencialidade e continuidade; isso porque o descortinar novo do

dia, o amanhã representa sempre a esperança, que traz consigo Como a bandeira na marcha...

sonhos e possibilidades de realizações sejam eles individuais ou não.

O uso de anominação entre as palavras vivido, viver, manhã, amanhã, confere ao

texto um interessante valor expressivo. No caso, manhã e amanhã funcionam ao lado de dia e

noite como metonímias particularizantes em relação ao todo; neste caso, ano, período, ou

intervalo temporal que o calendário é responsável por representar, ao final do qual se

celebram as alegrias e conquistas, e se planeja o futuro.

Além disso, por comportarem esses dois vocábulos duas consoantes nasais “m” e

“n” concorrem para que as demais palavras do texto participem duma unidade sonora na qual

prevalece uma idéia de tranqüilidade e luta serena, daquele que, confiante na vitória, a assume

(como se empunha uma bandeira), embalada por um canto, sentimento que comporta uma

contradição própria de quem tem fé. Casaldáliga resume a idéia com a expressão “paz

inquieta45”.

Segundo Ricouer (1997, p. 181) a função do tempo do calendário seria “ordenar o tempo dos homens”, uma “primeira ponte lançada entre o “tempo do vivido” (o dos homens) e o ‘tempo cósmico” (o do mundo), e que, tendo todo o calendário um elemento fundador encontraríamos na sua base um “tempo mítico” (o qual escala uma escansão única do tempo por um elemento, ou biológico ou cósmico). Nesse sentido haveria, conforme informa o autor, “uma dupla referência ao mundo e às experiências pessoais.”

45Expressão bastante utilizada por Pedro Casaldáliga pode ser encontrada na obra Espiritualidad de la liberaciòn.

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Racionalização útil do ponto de vista da organização das sociedades que pode

tanto ajudar a avaliar o que já foi conquistado e forjar o planejamento, como a mascarar o

processo de conquistas humanas; por isso, o uso da locução verbal é preciso indica uma

atenção necessária daqueles que estão em marcha... porque, como indicam as reticências, ela

é contínua.

2.4-O instante revela os seres

São vários os momentos em que o poeta flagra a natureza tanto numa visão

panorâmica como nos seus detalhes. Considerei a captação desse momento presente, como

um modo de conceber a temporalidade, conforme se torna evidente no poema BANANAS46 (p.

105) apresentado abaixo e que foi publicado em Antologia Retirante (1978), na parte que tem

por título “Criaturas irmãs”:

Pecosas. Verdinegras. Y doradas: de sol y de divisas. Al alcance de todos, proletarias. Codicia de macacos lamineros. Exhuberantes ubres tropicales.

-"De mañana, son oro"... ¿Y sólo de mañana?

Con las hojas cortadas a tijera ¿el bananal espera algún festejo?

Moisés recibiría, dando gracias a Dios, este primer racimo, de las manos alegres de Juan Paulo.

-Nuestras bananas de cada día, ¡dádnoslas hoy!

No poema, prevalecem imagens que tendem à coletividade: primeiro as bananas

com sua produção em pencas, que, posteriormente, são comparadas a ubres tropicales, os

quais remetem a glândulas alimentares dos mamíferos, indicando que banana é alimento

saudável e abundante nas regiões tropicais e subtropicais; definidas, porém como Proletárias,

significando ao mesmo tempo que a banana é desvalorizada, assim como são desvalorizados

46Há duas publicações desse poema, uma de em Antologia Retirante (1978) e outra em Clamor Elemental (1971). A segunda publicação apresenta modificações em relação a primeira optei pela segunda, do ponto de concisão poética, mais próxima do poema Beija Flor.

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os proletários e que é necessária, assim como são unidas as bananas, uma união daqueles –

Proletários do mundo uni-vos (Marx, 2003, p.53); em segundo lugar, o modo como o nome

Moisés é inserido inaugura uma comparação com o Maná, alimento sagrado que Deus envia

do céu, quando o povo hebreu (sob a liderança de Moisés) atravessou, segundo a narrativa

bíblica, o Mar Vermelho e o deserto; há, por fim, o uso da primeira do plural pessoa nuestras

indicando a partilha, a ação conjunta; a banana é diariamente dividida entre o povo. Naquela

situação, é alimento, que representa o pão de cada dia. São todas expressões que concorrem,

ou por adjetivação, ou por comparação, para que seja elucidado o valor da banana.

O primeiro verso é marcado por um movimento paralelo e, quando conjugado, os

demais complementam o título, repetição que se torna praticamente anafórica, como se antes

de cada palavra ou frase nominal fosse acrescida a sentença – as bananas são: pecosas,

vedinegras, doradas, Exhuberantes ubres tropicales, Codicia de macacos lumineiros-.

As bananas apresentam-se de vários modos, o que faz com que o bananal pareça,

pelo fato da disposição das “bananas” pontiagudas e viradas para baixo se assemelharem a

bandeirolas utilizadas nos festejos juninos, uma festa. Os demais versos reservam-se ao

convite, feito pelo eu lírico (pelo uso de verbos) a Moisés, para que, juntos, agradeçam tão

farto alimento démosle gracias ao Señor, e a pedir que elas estejam sempre ali dádnoslas,

assim como fue dado, el primer racimo ao povo hebreu.

Antiteticamente, a banana, de pouco valor econômico, é aproximada pela

expressão ...Y doradas/de sol e divisas a moeda, no sentido de que o termo douradas lembra,

além da ação do sol, o lastro de ouro com que é materialmente garantido o valor das moedas,

o que coloca o mundo da especulação financeira em frontal confronto com aquele em que as

bananas são soluciòn de emergência./Proletárias/vitamina de pobre já que, como sabemos, a

fome é justamente um dos problemas que assola os trópicos. Nesses termos, divisas consiste

noutra referência à economia, lembra divisão, marca que se costuma cunhar em moedas,

mercado de câmbio. Aqui, o fruto independe de valor mercantil; é ouro porque sustenta e

porque lembra um continente outrora rico em minerais e que hoje precisa de criar modos de

adaptação à situação em que se encontra.

São imagens (relativas ao sujeito, que, embora num mundo rural, está, mediante a

sociedade moderna em vias de dissociação), as quais, segundo Bergson (1999, p.75), devem

ser colocadas em função do tempo. Intercalam presente e o passado, nesse caso, representado

pelas lembranças da descendência de Moisés e pela rememoração de que aqueles lugares

foram ricos em ouro.

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São momentos que entram em contato um com o outro (o agora), permitindo que

haja, no momento presente, o reconhecimento de situações já decorridas, as quais não

estabelecem divisão entre o passado e o futuro, mas uma “duração”, isto é, o primeiro tempo

estende-se pelas imagens guardadas na memória sobre o tempo atual e projeta-se no futuro.

Para Prigogine(2001, p. 64), há um tempo que precede o universo e um tempo

que, marcando a materialidade, acompanha-o e o sucede.

Faz isso por tentativas de ligar momentos da existência humana, que resultam no

reavivamento de enormes períodos históricos, intervalos repetidos, o que, para Bergson,

(1999, p.245) conduz a imagens instantâneas e pitorescas.

2.5 -A Solidão: tempo de conhecimento humano

Em seu mundo interno, a seu tempo, pelas marcas guardadas em seu corpo social

e físico, o homem reúne sinais de sua evolução, até dar em sua inteiridade que só descobre

quando, num encontro consigo, considerando o modo como se relaciona com o mundo,

como se vê a si mesmo como parcela do universo, e como olha para as coisas que, residente

em si, dê notícias do conjunto dos seres, acha-se.

O ato de desvendamento do homem requer do poeta que fale da sua solidão, tema

bastante cantado pela poesia, ao longo dos séculos, e que transborda dos versos de “Solidão”

(FCV, p. 54) e “MI SOLEDADE SOY YO” (TE, p. 67).

Qual namorada impossível Faz-me a ronda a solidão. Quando a abraço me encontro Quando me encontro se foi.

Esperada e, talvez, até desejada, no jogo temporal de linguagem, pelo paralelismo

sintático e pelo quiasma, que acontece envolvendo os versos penúltimo e último, Quando (eu)

a abraço me encontro/Quando me encontro se foi, a solidão “ronda” o ser, permitindo que ele

se encontre. Retornando a si, a solidão que o rondava esvai-se.

Presente em três dos quatro versos do poema os pronomes eu e me reforçam a

idéia de que, quando solitários, estamos presentes em nós. Assim, sendo uma experiência

individual, a solidão é desejada por propiciar um retorno do homem ao homem. Sendo uma

experiência vivenciada por poucos, é qual namorada impossível. A solidão como

possibilidade de auto-conhecimento e encontro pessoal também é explorada pelo poema MI

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SOLEDADE SOY YO (TE, p. 66):

Mi soledad soy yo. No hay compañía que me acompaña todo. En honda gran medida vivir es andar solo.

O poeta retrata e define a solidão humana como a própria pessoa. Todavia, quando

o homem se encontra consigo, mesmo a solidão, como sentimento de ausência, é eliminada

porque, em última análise, vivir es andar solo, não sozinho, porque uma pessoa carrega em si

muitos outros seres. Esta é uma construção que apresenta um caráter qualificador da

existência, apresenta o que considera próprio dela: o andar, o pôr-se a caminho.

Embora o homem seja um ser coletivo, ele nasce só. Carrega em si uma

individualidade única, orgânica, e a sua jornada, as decisões que toma, dependem unicamente

dele mesmo. Cabe a cada um viver as conseqüências de seus atos, mesmo que outros sofram

conosco a nossa fome, a nossa insônia, os nossos desejos; temos de vivê-los em nós. A

solidão encontra-se no ser em si, e não no outro, porque a solidão não consiste em estar só,

mas em estar consigo mesmo.

A existência é um ato individual, requerendo de cada indivíduo convicções e

decisões sobre como deseja viver.

No caso do poeta, a solidão é acentuada, porque a sua vida não lhe pertence, não

pertence a nenhum lugar, é plasmação do individual e do coletivo. O poeta sente com o

pescador, com a mulher, consigo mesmo, isto é, o caráter peculiar de cada homem não deve

torná-lo individualizado (no sentido de sectário), mas único (original) – idéia que parece ser

elucidada pelo poema “EL CORAZÒN LLENO DE NOMBRES” (TE, p.100),

Al final del camino me dirán: —¿Has vivido? ¿Has amado? Y yo, sin decir nada, abriré el corazón lleno de nombres.

Conhecendo-se o sujeito, entende-se como, ligado a outros, solidarizando-se com

eles, promovendo o bem-estar coletivo, sabendo que isso é fundamental para que eles se

conheçam (as suas próprias solidões) e, assim, sucessivamente, a idéia do caminho se vai

fazendo, abrindo-se, com os pés e o coração.

Considerando esse dado, é possível inferir que não se trata da ausência física, mas

do fato de que cada ser é único, havendo uma pluralidade de pessoas que certamente guardam

semelhanças entre si, mas que, por mais próximas que estejam, não conseguem alcançar o

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íntimo umas das outras, mas, sim, ter projetos em comum, acerca dos quais comprometem

toda a vida, assim como o coração, que, como órgão principal do aparelho circulatório,

impulsiona, pelas veias, o sangue para todo o organismo. A função das veias e artérias (local

onde passa o sangue até chegar ao seu destino) pode ser analogicamente comparada a do

caminho que, como estas, são vias que transportam o homem, o que o nutre (sangue),

respectivamente, para o corpo e de regresso ao coração e a si mesmo.Desse modo, o poeta

reaviva a conhecida metáfora popular que o relaciona ao local onde são depositadas emoção e

afetividade.

No poema MI SOLEDADE SOY YO, os índices de primeira pessoa são bem

acentuados: mi, soy yo, me, constituindo uma enálage, variação do modo de referência ao eu e

mudança da posição sintática ocupada por este pronome, que determina, primeiro, posse: mi

soledad; e depois, a predicação, passando a núcleo do predicado sou eu e, por fim, ao objeto

direto me. Referem-se à individualidade humana. É um falar de si para revelar o outro, pois o

eu (eu lírico generalizador dos demais eus) é um exemplar do conjunto dos sujeitos.

O texto apresenta poucos verbos. Substantivos e adjetivos dizem o que é próprio

da existência e ligam-se ao eu tantas vezes, que a reiteram. Então, soledad, honda, medida e

compañia exercem um papel semelhante a gran e solo, e todos estabelecem o papel de indicar

a profundidade da solidão humana – ato de viver. Convergem para a definição na qual

incidem os adjetivos.

O ato de estar consigo mesmo também é personificado pelo interessante jogo feito

com as consoantes nasais “m” e “n” que marcam, a partir do verso dois, uma sonoridade

propícia à reflexão e à introspecção:

No hay compañía que me acompañe todo.

En honda gran medida vivir es andar solo.

Outro fator que concorre para a compreensão de solidão e encontro é a

anominação compañia e, ou seja, não há ninguém que adentre mais o nosso ser que nós

mesmos.

Por fim, devemos considerar que a idéia de que o homem não esteja relacionado

ao tempo pressupõe que estejamos fora da natureza que descrevemos. “L’uomo provieni del

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tempo; si l’uomo invece creasse il tempo, questo ultimo sarebbe evidentemente un schermo

tra l’uomo e la natura”47 (Prigogine, 2001, p.22)

Sendo ligados entre si o futuro do universo, assim como o do homem, não é

definido Mas, o que vemos diante de nós certamente apresenta uma evolução biológica da

sociedade e, na medida em que é evolução, uma história do tempo. Haveria assim, um tempo

que acompanha a vida e é transmitido de geração em geração.

No tempo da arte e da literatura, da poesia, por exemplo, há uma independência

muito grande, porque, enquanto a terra percorre cinco minutos de modo regular, a arte em

cinco minutos torna sobre o mesmo tema, evolui, faz antecipação de tema,estamos diante de

um tempo interno, muito independente daquele externo.

Trata-se, porém, de uma realidade subordinada àquela externa, depende de

acontecimentos como a energia, fluxo de energia e substância relativa. Ou seja, o tempo está

entre essas duas estruturas e nelas. Por sua vez, “la vita é o regno del non-lineare, la vita é o

regno dall’autonomia del tempo, è o regno della molteplicità delle strutture” (Prigogine,

2001, p. 28).

Para o autor, o tempo do universo é muito longo; então, é mais fácil observar o

fenômeno na vida social, o que não é um falso problema, porque há um tempo existencial,

caráter nomeadamente presente na linguagem poética. Quando olhamos um elemento natural,

como por exemplo, um cristal de neve, podemos saber em que estrutura temporal se formou.

Assim, do mesmo modo, podemos saber em que período histórico foi escrita uma obra, por

exemplo.

E cosi retorniamo a quello che é stato o l’oggetto della nostra conversazione, il problema del tempo. Como se iscrivi il tempo nella materia, in definitiva è questa la vita, è il tempo che se scrive nella materia e ciò vale non solo per opera d’arte. Prendiamo, l’esempio della scultura., della opera più antiche che noi conosciamo, i graffiti che l’uomo di Neanderthal scava nella pietra.”(Prigogine, 2001, p.33 ) 48

Nesse caso não sabemos nada, somente que a obra de arte é uma inscrição da

nossa assimetria, uma assimetria acentuada muito intensamente no tempo, na matéria, nesse

caso, na pedra.

47O homem provém do tempo; se o homem , ao contrário criasse o tempo, este último seria evidentemente um elemento de separação entre homem e natureza. 48Tradução livre: E assim retornamos aquele que é o objeto de nossa conversação, o problema do tempo. Como se inscreve o tempo na matéria, em definitivo, é está a vida, o tempo que se inscreve na matéria vale não só para a obra de arte. Tomemos, o exemplo da escultura, da obra mais antiga que conhecemos, os grafites que o homem de Neanderthal escavou na pedra.

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Aristóteles (apud Prigogine, 2001, p.39), depois de uma análise sobre o instante,

concluiu que o tempo é eterno, e que, na realidade, não se pode falar de seu inicio. Para ele, o

mundo não é um conjunto de coisas, mas uma coisa que caminha de modo linear e simples.

Para Prigogine, (2001, p.39), o tempo existe antes do universo, havendo um

tempo que o precede e um outro que o sucede; sendo assim, o universo resultaria numa

mudança de fase em grande escala.

O autor informa-nos que Newton (2001, p.51) concluiu que a matéria (produtora

de ordem e desordem ao mesmo tempo) corresponde na realidade ao espaço-tempo. É graças

à desordem que o universo se desenvolveu e que a matéria porta consigo o tempo. A

conclusão de Newton liga a curva do espaço-tempo à pressão e à densidade.

Cada momento da formação deve ser construído a partir de um ponto porque as

informações iniciais não são capazes de reconstituir a trajetória total no curso do tempo.

Assim, por hábito ou convenção, o tempo é contado a partir de um evento, o

nascimento de Cristo, no caso ocidental. O nascimento do tempo não é o nascimento do nosso

tempo, porque aquele já no início o precedia.

Leonardo Boff afirma, baseado em Ilya Prigogine (2004. p.39) que, nesse caso,

“ todos os fatores que entram na construção de cada ecossistema com seus seres e organismos

possuem sua latência, sua ancestralidade e em seguida sua emergência.Todos esses processos

naturais possuem uma fundamental irreversibilidade, própria do tempo histórico.” No caso do

clima, por exemplo, conhecemos a história através da história temporal”.

Modo de pensar o espaço natural, incluindo nele o homem, que muda o modo de

vê-lo, não a partir daquilo que Boff chama um antropocentrismo tradicional (que vê o homem

como dominador da natureza), mas como incluso num conjunto. Segundo Boff (2004, p.40),

“podemos dizer numa perfeita circularidade: o universo é direcionado para o ser humano,

como o ser humano é voltado para o universo donde veio” em que,

Todos os fenômenos estão sob o arco da temporalidade, isto é da irreversibilidade. Tudo está em evolução, veio do passado, se concretiza no presente e se abre para o futuro. O passado é o espaço do fático (o futuro que se realizou); o presente é o campo do real (o futuro que agora se realiza e que se mostra); e o futuro é horizonte do potencial ( a possibilidade que pode ainda realizar-se). (Boff, 2001, p.46)

A idéia de temporalidade é fortemente presente na obra estudada que, por

considerar o local, vê-o como espaço que deve ser respeitado, como a Gaia (um organismo

que não apenas comporta vida, mas que é vivo), da mitologia grega, ou Pachamama (a Mãe

de todos os seres das culturas Aymara, Quetchua) porque carrega consigo a história de sua

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relação com o homem que nela habita, a possibilidade de um futuro de relação solidária entre

o homem e a terra. Há um direcionamento dialógico: não considera apenas a matriz cristã-

ocidental, mas também as tradicionais; não considera somente os conhecimentos científicos

clássicos que traz de sua formação escolar, mas também os construídos no dia-a-dia. As teses

de uma cultura vão confrontando-se com as oferecidas por outras culturas. A palavra poética

articula os diferentes tempos e culturas nelas manifestados. Cada cultura humana carrega

consigo uma consciência, sempre potencial e que se manifesta a seu tempo.

Evidentemente a discussão ecológica postulada por Prigogine e outros de seu

grupo ainda não existia, quando Casaldáliga começa a escrever, mas os escritos de Pedro

Casaldáliga demonstram um profundo respeito pela terra, Pachamama, que, entendida como

universo, convida a pensar no tempo da evolução (ou da criação), dando a idéia de

ancestralidade. E, principalmente no presente e em suas implicações futuras, sugerindo a luta

pela emancipação humana, compreensão da realidade como construção social motivada por

valores, interesses e utopias, movimento que requer ser entendido em sua vertente social e

política e também, pelo modo como pela articulação de seus versos, comuncia-a.

A noção de práxis histórica vai além das relações norte-sul colocando a si e a seu

interlocutor lírico, como responsáveis pela manutenção das culturas e da longa tradição

humana que sobrevive ao tempo. A terra é tratada como um organismo vivo (Gaia) e o feito a

ela repercute em todos os demais seres. Sem a focalização no planeta, os demais seres perdem

todo o sentido.

Haveria um sistema de dimensões planetárias, que articularia todo sistema vivo

urdido por um único princípio. Nesse caso, a evolução, por exemplo, diz respeito a Gaia e não

aos organismos.

Recusamo-nos a ver a Terra reduzida a um conjunto de recursos naturais ou a um reservatório físico-químico de matérias primas. Ela possui sua identidade e autonomia como um organismo extremamente dinâmico e complexo. Se apresenta, fundamentalmente, como Grande Mãe que nutre e carrega-nos. É a grande e generosa Pacha Mama (Grande Mãe) das culturas andinas ou um superorganismo vivo, a Gaia, da mitologia grega e da moderna cosmologia (Boff, 2004, p.29)

Boff apresenta também a definição de J. E. Lovelock:

definimos a terra como Gaia porque se apresenta como uma unidade complexa que abrange a biosfera, a atmosfera, os oceanos e o solo, na sua totalidade esses elementos constituem um sistema cibernético ou de realimentação que ocupa um meio físico e químico ótimo para a vida nesse planeta (2006, p. 33).

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Nesse sentido, entendemos haver uma crise do paradigma atual, a civilização

hegemônica, a que a obra poética de Casaldáliga se opõe.

Os casos poetizados por Casaldáliga constituem uma clara luta pelo

reconhecimento de uma comunidade, numa dada região do planeta em que vivem

representantes de culturas não aceitas pelo modelo vigente, todavia constituem também um

grito frente ao isolamento dessa gente, como no caso do poema Nova Colonização em que

onze peões e o eu lírico, no meio da selva, parecem destacados da outra parte da comunidade

humana, e, com exceção do narrador poético, não integrados ao mundo natural.

É por esse prisma que vemos uma proposta libertadora na poética de Casaldáliga.

Do ponto de vista poético e do social, diz da libertação daquela comunidade, às vezes,

invocada por palavras como peões, posseiros, América, menina de mil sangues cruzados,

entre outros topônimos. A liberdade não deve ser apenas conquistada, mas diluída no corpo

social como um todo.

Existe, além da razão instrumental, a simbólica e cordial. “Junto a Logos (razão)

está o eros (vida e paixão), o pathos (afetividade e sensibilidade) e o adimon (a voz interior da

natureza)” (Boff, 2001, p.24), forma de pensar que daria ao homem a possibilidade de

escolher seu modo de relacionar-se com os demais seres.

A tomada de outros caminhos no que se refere ao pensamento humano implicaria

uma mudança de paradigma. Thomas Kuhn (apud Boff, 2001, p.25) apresenta dois sentidos

para a palavra paradigma: a)“ toda constelação de opiniões, valores e métodos, etc.

participados pelos membros de uma determinada sociedade”, sob os quais a sociedade

organiza seu conjunto de relações; b) exemplos de referências, as soluções concretas de

problemas, tidas e havidas como exemplares e que substituem as regras explícitas, a solução

dos demais problemas da ciência normal” e das gestões públicas e privadas.

Nesse sentido, a atual relação com a natureza passaria por conhecê-la e modificá-

la, cercá-la com “arames e títulos” (“Terra Nossa, liberdade” (AR, p.192). A temática da

terra, em Casaldáliga, sugere que nossa relação com ela possa ser feita considerando as

versões que as diversas culturas lhe deram, fato que nos ajudaria a melhor conviver com ela e

a preservá-la.

Em oposição a esse paradigma, brota, do seio materno da Terra-Mãe, o homem

representado por Pedro Casaldáliga. Homem mal saído do domínio das conquistas ibéricas e

que, não muito tempo depois, passou por um processo de democracia, em certo sentido, cópia

daqueles países há muito imersos no sistema mercantilista (embrião capitalista), e que

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maturou sua elite burguesa no sonho da liberdade, igualdade, fraternidade. É a esse homem

que é feita uma proposta de libertação e emancipação.

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CAPÍTULO 3. O ESPAÇO: AMAZÔNIA, MORADA DA HUMANIDADE

3.1-A constituição do espaço na obra de Pedro Casadáliga Plá

A reflexão sobre o espaço é outro assunto sobre o qual muitos dos textos de

Casaldáliga se detêm, tendo-se configurado como uma das possibilidades de revelar os seres

por ele retratados e um caminho para o estudo da sua obra. Fazendo uso do recurso da

personificação, apresenta espaços diferentes, mas volta-se, sobretudo, para o local – o lugar de

onde fala, em cuja construção verbal relata acontecimentos históricos, sociais, geográficos 49:

¡El pan da cada día de este Araguaia, fértil! ¡Holocausto de Dios y de los hombres, Entre la brasa y la pimienta! (versos 11, 12 e 13 de “Pacu”, CL, p.82)

E o sol de Mato Grosso faz-se tíbio para não calcinar tanta beleza.

(versos 19 e 20 de “Beleza Perfeita”, AR, p.43)

A representação se faz tanto de modo mais realista quanto com predomínio do

simbólico. Nos versos citados, há certa tendência para a referencialidade, ou seja, como

informa Alonso, (1965, p.11), não consistem numa referência direta à realidade, embora

queiram traduzi-la. O sentimento a ser expresso organiza, conforme o mesmo autor (1965,

p.160) “la realidad”, que é “ particularmente estruturada”. Percebe-se, do ponto vista do

conteúdo, a emoção do poeta nas imagens do rio Araguaia e do famoso clima quente de Mato

Grosso.

É dessa perspectiva histórico-social, geográfica e antropológica, que o poeta

entende e poetiza o espaço, o qual, à medida que avancei na leitura da obra, percebi como

elemento importante em seu discurso. Com a finalidade de melhor compreender a abordagem

feita, serão retomadas as teorias de Ilya Prigodine sobre Gaia e de Gaston Bachelard a

respeito do espaço literário, além das questões da estilística.

As noções de tempo e espaço estão intrinsecamente ligadas.

Do ponto de vista dos estudos literários, o estudo do espaço é, em geral, reservado

à análise de textos narrativos, sendo este aspecto estudado em poesia nos casos, por exemplo,

49 Os fragmentos citados pertencem a textos que serão analisados no curso deste capítulo.

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em que o espaço é o tema ou assunto do texto, ou no sentido da distribuição dos versos na

página, quando do advento da poesia concreta, dando continuidade às reflexões simbolistas.

Massaud Moisés (1985, p.43), diz que não é adequado estudar o espaço (como

temática) no corpo do poema, uma vez que, tratando-se desse tipo de texto, tal categoria não

remete a nenhum lugar. O poema é “a-geográfico”, podendo-se-lhe remeter somente de modo

metafórico, técnica que cria “o espaço ideal”. No entanto, quando a natureza é tomada como

matéria poética, é comum que o espaço seja considerado como categoria analítica, fato que

ocorre na poesia épica – aquela que narra um acontecimento, com o objetivo de enaltecer uma

nação. O povo é, na maioria dos casos, tornado herói.

Lidos, na seqüência, ou não, em que foram publicados, os livros da obra de

Casadáliga permitem conhecer o povo do qual fala e a região que tematiza. E, por assim ser,

lembra a idéia épica de herói coletivo. Não se trata evidentemente do heroísmo aristocrático

de Ulisses, mas de um povo empobrecido, que luta por direitos fundamentais da vida humana.

Todavia, a semelhança com esse gênero, a luta por vencer uma situação adversa e a esperança

na conquista da vitória, possibilita que tempo e espaço tomem importante dimensão na sua

obra.

Nesse sentido, as abordagens de espaço serão feitas, considerando, além dos

poemas estudados integralmente, o conjunto da obra de Casaldáliga.

Tratando-se da narrativa, o espaço poderá ser físico (lugares reais) ou psicológico

(lugares imaginados), vertical (místico) ou horizontal (espaço natural), atópico (ambiente

desconhecido), tópico (espaço do lar, segurança), ou utópico (espaço sonhado, imaginado)

entre outras categorizações (Moisés, 1985, p.43). O modo pelo qual tempo e espaço

aparecem nas obras está relacionado com o modo como o autor se projeta sobre eles.

À medida que, em minha primeira leitura, encontrei, na obra de Casaldáliga,

muitas referências a espaços, elegi-os como uma das categorias de análise. Transitar, todavia,

do espaço geográfico, do qual temos alguma noção; para os espaços que internamente

marcam o poema colocou-se-me como o maior desafio.

Temos, então, um ser situado num espaço específico, a América Latina, e, no caso

da proposta de Pedro Casaldáliga, nomeadamente a região do Araguaia, pelo que

trabalharemos para compreender como esse espaço influi na estrutura de sua obra, e como se

configura como espaço íntimo.

Denise Santana Alves; Carmem Omética Rosseto e José Milton Santana apud

Tuan Y. F.(2002, p. 82) definem no artigo (nome do artigo) espaço, juntamente com lugar e

paisagem. De acordo com os autores, a paisagem é uma totalidade que não permite ver os

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detalhes a não ser pela sensibilidade do expectador; o lugar é o concreto da paisagem,

significa a pausa para a observação e é nesta que são criados vínculos. As pessoas envolvem-

se “com ele, não apenas através dos sentidos, mas também, numa atitude reflexiva,

organizando-o para que possa atender as suas necessidades” (2002, p. 82). Parte-se assim para

uma relação topofílica, na qual o espaço passa a ser um “lugar”. “O espaço é a abstração e

sugere amplitude, liberdade, projetando-se para o futuro e convida à ação” (2002, p.82).

Como se vê, para se chegar a conceber um “lugar” é necessário ressignificar o espaço. Na

proporção em que este for dotado de valor, será possível a construção de conceitos.

A experimentação é o principal segredo da apropriação e da significação.

Contudo, há que se considerar que as coisas significam diferentemente para pessoas

diferentes, pois cada uma vem de um lugar, com oportunidades que lhe são próprias.

Segundo essa interpretação, “cada imagem sobre o mundo é composta de experiência pessoal,

aprendizado, imaginação e memória (...) cada pessoa percebe o mundo por meio de lentes

culturais, de costumes e fantasias. Todos somos artistas e arquitetos criando ordem e

organizando paisagens”.

Vemos na obra de Casaldáliga, por um lado, uma apropriação do que é o espaço,

(região nordeste de Mato Grosso) tanto da parte do eu criador como das personagens poéticas

que povoam seus textos. Não há neles uma distância clara entre homem e universo; uma

poesia que desconstrói a visão imposta pelo paradgima dominante ( o da dominação da

natureza).

Por outro lado, há por parte do eu criador um profundo exercício de

experimentação do local e, nesse sentido, a idéia de relação topofílica definida por Tuan

poderá servir de base para a compreensão da retratação dos espaços que vêm a processar-se.

Experiência que relacionei com a idéia de casa, como espaço de proteção, proposta por

Gaston Bachelard.

3.2 –Contextualização histórica: telurismo e engajamento Vendi a terra Neguei a mãe Fiquei órfão da vida! (Cantigas Menores,1979, p.29)

Neste poema (sem título), os versos um e dois se complementam à medida que é

mantida, em todos eles, a mesma estrutura, um paralelismo sintático. Todos são compostos

por um verbo transitivo direto e objeto (direto). Os verbos denotam ações simultâneas e

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gradativas. Ao mesmo tempo em que vende a “terra”, o sujeito perde-a, e, perdendo-a, fica

“órfão”. Os objetos constituem uma sinonímia, “mãe” e “terra” partilham do mesmo

significado, ou melhor, pelo fato de a “terra” ser aquela que sustenta, passa a ser tratada como

“mãe”. O ato de ficar, permancer orfão indicado pelo verbo de ligação reforça a sequanência e

o encademento de idéias.

O significado materno atribuído à “terra” tira-lhe o papel de mercadoria, expresso

pelo termo “vendi”. O sujeito elíptico, não tendo um papel ativo na venda, constata, somente

depois de negociar o objeto, que este lhe é caro.

Se relacionado ao primeiro, o último verso representa uma antítese, porque, no

âmbito da sociedade capitalista, quem vende deveria lucrar e não perder. Diante da forma

como as transações de terra são feitas na região, sabe-se que isso é possível, porque, segundo

Ribeiro (2000, p.73):

A terra, para o empresário, tem um valor quantitativo, enquanto que para o antigo habitante e para o posseiro, o seu valor é qualitativo. Para o capitalista, a terra vale o que ela pode produzir, ao passo que, aos olhos do colono ou do indígena, a terra é um instrumento que garante a sua existência. Do mesmo modo, o conceito de posse da terra é modificado, passando a posse jurídica a preceder a física, o que é incompreensível na cultura dos nativos. Para esses, a simples presença sobre a terra define a sua propriedade.

Como afirma Marx e Engels, na obra Manuscritos econômicos e filosóficos

(2003), quando o poder da terra se une ao político e ao de mercado, temos uma organização

que pressupõe pouco esforço do proprietário. É a junção da idéia de posse feudal e fundiária,

com a de posse capitalista, que faz do homem do campo um retirante, quando muito, um

assalariado mal pago.

O texto sugere, se pensarmos nos semas “mãe” e “órfão”, que o homem de quem

se fala está naturalmente ligado à terra, como se existisse um cordão umbilical unindo-o a ela,

o que resulta no questionamento do poder quase que hegemônico dos latifundiários

brasileiros, o qual gera grandes contendas agrárias.

Contendas essas geradas pela “compra” de grandes pedaços de “terra” ou pela

expropriação de terras indígenas, fato que traz para o embate poético o outro lado da questão,

a dos grandes proprietários que costumam “comprar” (sema oculto no poema, mas que pode

ser pressuposto, porque só há venda, havendo compra) dos pequenos proprietários o que lhes

pertence, negociação que gera, mais tarde, muito sofrimento (“orfandade”), porque o último

se liga de modo afetivo ao bem de que antes dispunha. Se recorrermos a Tuan Y. F. (2002,

p.82), citado anteriormente neste trabalho, podemos entender tal relação como topofílica.

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Historicamente essas situações ocorreram porque foram desencadeadas por muitos

programas que visavam à entrada do capital na Amazônia, dentre os quais, o Programa de

Integração da Amazônia Legal, iniciado pelos militares, e que davam continuidade ao projeto

de povoamento da região, iniciado em 1953, pela “Marcha para o Oeste”, no segundo governo

de Getúlio Vargas, a saber:

A Amazônia Legal compreende os estados do Acre, Amazonas, Pará, Roraima, Amapá, Mato grosso, Tocantins e oeste do Maranhão, totalizando 4.990.529 km2, o que representa 58% da superfície nacional brasileira. Definida pelo governo de Vargas em 1953, essa delimitação teve como objetivo circunscrever as áreas de interesses econômicos no Norte do país, implantando o capital numa região onde a economia se achava restrita às necessidades familiares. (Magalhães, 2002, p.07)

Esse governo tratou-a, conforme o presidente Médici, como “vazios geográficos”

e, com o slogan “Integrar para não entregar”, avançou desconsiderando as populações que já

habitavam a região, entre elas, as indígenas. Foi desencadeada a transferência de “excedentes

populacionais do Nordeste”, por meio da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia

(SUDAM), montadas empresas colonizadoras que atraíram, sobretudo, pessoas do Sul do

país, e, ainda, foram procedidas vendas, assim como concedidas grandes porções de terra aos

que apoiavam o regime. Outros, ainda, atraídos pelos baixos valores, compraram terras, a

maioria já habitada por pessoas que vieram na década de 50 e que não possuíam títulos.

Em Uma Igreja na Amazônia em Conflito com o latifúndio e a marginalização

social (1971, p.11), Pedro Casáldaliga informa-nos a respeito da localização da Prelazia de

São Félix do Araguaia:

A prelazia de São Felix do Araguaia, bem no coração do Brasil, abrange 150.000 km2, dentro da Amazônia Legal, no nordeste de Mato Grosso, e com a Ilha do Bananal em Goiás. Está encravada entre os rios Araguaia e Xingu, faz como espinha dorsal, de sul a norte, a serra do Roncador.

Muitos de seus versos apresentam a temática referente à terra de que trata o

fragmento, expressam os conflitos que o poeta testemunhou e viveu, surgindo, assim, um

modo de metaforização da Amazônia: telurismo, elementos geográficos, amor e luta pela terra

e a vida cotidiana do campo; categorias sociais e marxistas, religião e religiosidade. Em

Relações de poder na Amazônia Legal (2002, p. 81), Hilda Magalhães diz que as temáticas

recorrentes na sua obra são “religião e política”, de modo que aí encontramos “uma voz

melodiosa e encantadora que contrasta com imagens de destruição”. A “vida” que emana da

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“terra” parece ser signo do encantamento de uma religiosidade centrada na idéia de que ela

nutre a humanidade, e a orfandade se dá em razão da sua destruição.

A destruição empreendida pela idéia de posse capitalista, fará com que o homem

sem posses ou desempossado, seja, do ponto de vista da marginalização, comparado ao

operário, e o latifundiário ao capitalista, analogia endossada pela forte presença de referências

teológicas que retomam, via intertexto bíblico, a idéia de que “terra”, no sentido de mundo,

consiste numa criação divina, e, por isso, é de todos. Porém, se há dois lados, “Deus”

pertencerá a um deles. Deus se fez classe é o verso que encerra o poema “E o verbo se fez

classe” (CM, P.29), com o qual se explicita a dimensão da comparação operário-Homem

(camponês)-Deus:

No ventre de Maria Deus se fez Homem Mas na oficina de José Deus se fez classe

Composto de apenas quatro versos, o poema sintetiza um conteúdo denso e vasto.

Em nível estrutural, apresenta um paralelismo, repetição da estrutura sintática dos dois

primeiros versos nos dois últimos. A adversativa “mas” marca o contraste entre o divino

(ventre de Maria) e o profano (oficina) onde locais que determinam onde se deram os fatos,

valorizando tanto o local onde Ele se fez homem como onde se fez classe.

É no ventre que se chega à condição humana. Na oficina, pelo labor, o mesmo

homem atinge o estatuto de operário (onde se fez classe), que, na sociedade capitalista, vai ser

explorado pelo dono dos meios de produção, e que Marx vai denominar “classe operária”,

diferenciando-a da burguesa.

“Classes”, para Gandy (1980, p.106), são grupos definidos de acordo com a

forma como os homens se relacionam e com o modo de sobreviver, “por sua posição

econômica”. Assim o burguês teria, para com os meios de produção, uma relação de posse da

qual provém sua manutenção no lugar social em que se encontra, enquanto o operário tem,

para sobrevivência, sua força de trabalho. Em sua análise das sociedades inglesa e francesa,

Marx (apud Gandy, 1980, p.109) afirmou que, com o surgimento da sociedade

industrializada, os que ele chama “aristocracia da terra” ou “latifundiários” nunca saíram de

fato do poder porque ganharam “modos cada vez mais aburguesados”. E, à medida que

amadurece, o capitalismo “burguês” vem vem a ser sinônimo de capitalista, porque, em

primeira instância, o burguês possui, mas não explora (numa situação em que os baixos

salários não são considerados exploração mas preço atualizado do trabalho), ao passo que no

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sistema feudal os ali agregados não eram tidos como funionários, mas como beneficiários de

ajuda, e, por isso, deviam, sem muitos direitos, produzir.

Contudo, segundo o autor (1980, p. 114), para Marx, “O conceito de classe

acentua a relação de um grupo social com os meios de produção, mas nunca define

claramente o conceito. Para Marx classe é uma idéia sutil, mais complexa do que muitos

supõem”.

Por haver muitos interesses em uma mesma classe, o autor disse que não há

classes homogêneas. A esse fenômeno Marx chamou, baseado em Hegel, de classe “em si”.

Mas, à medida que as frações se juntam para atender a um interesse de classe, temos o que

Marx denominou “classe para si”.

Classe é, então, um processo que se realiza quando as pessoas começam a pensar

em conjunto, ou seja, a ter consciência de classe, acontecimento marcado no poema,

exatamente pela adversativa “mas”, vocábulo que marca, pelo viés marxista, a idéia de que,

apesar de tal luta sempre ter existido, é possível que ela, pela consciência de si, tenha fim.

Os vocábulos Homem e operário revelam, em primeiro lugar, a existência de uma

visão dialética no texto, ou seja, a compreensão de que, ao longo da história, o modo de o

“homem” olhar para si mesmo sofreu alterações no âmbito do significado. Em segundo lugar,

porque a palavra Homem, grafada em maiúscula, sugere não apenas a encarnação divina, mas,

num intertexto histórico, remete também ao momento em que, via Marxismo e outras

correntes filosóficas e sociais (a maioria delas surgidas no século XX), o ser humano trava

grandes lutas com as quais almeja ser protagonista do seu próprio destino. Quando da

passagem do segundo para o terceiro verso, a adversativa mas pode representar o fato de que,

apesar de humanos, somos classe, o que dificulta a condição anterior, pois esse modo de

organização pressupõe a não distribuição dos bens sociais, ficando poucos (a classe

dominante) com muito, e muitos (o operariado, composto de pessoas empregadas ou não) com

pouco. Nesse caso, a sociedade é vista como cindida, havendo dois lados: o burguês e o

proletário. Por outro lado, o conecctor “mas” (v.3) dá ao texto um sentido de resistência e

uma provocação da consciência de “classe”, o que pode sugerir o percurso da luta salarial até

à luta pela tomada dos meios de produção.

Ë notória uma sintonia entre estrutura e sentido do texto, que pode ser entendida

segundo Antonio Cândido (1991, p.191):

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Embora filha do mundo, a obra é um mundo (...) convém antes de tudo, pesquisar nela mesma, as razões que a sustêm como tal. A sua razão é a disposição dos núcleos de significados, formando uma combinação sui generis que, se for determinada pela análise, pode ser traduzida num enunciado exemplar.

Como demonstra o estudo das camadas lingüísticas do poema, sua temática recai

na reflexão social e engajada porque trata das lutas pela sobrevivência de seus indivíduos,

estabelecida entre diferentes grupos e, considerando o trabalho um dos elementos que remete

ao proletariado, insere o cristianismo (por meio de Cristo) nessa classe. Inserção também

presente tanto nos demais poemas de Pedro Casaldáliga como em sua ação político-social e

religiosa e não muito comum do ponto de vista da religião institucionalizada.

Ocorre, a já referida batalha entre os diferentes grupos sociais (que se encontrava

fortemente acirrada no período em que Pedro Casaldáliga começa a publicar sua obra), seus

poemas dialogam com um tempo (histórico), a luta pela democracia, e com um espaço

geográfico (específico), a América Latina.

Ou seja, sua produção tem início num difícil momento do mundo50 e da América

Latina, em que ocorre a disseminação dos governos militares ditatoriais por todo o continente.

Por isso, os temas de que trata, sendo sócio-políticos, guardam fortes relações com a literatura

hispano-americana, dentre eles, o fato de a Teologia da Libertação estar permeada de

elementos históricos e de outros referentes à espiritualidade. Nesse sentido, ocorre a

possibilidade de vê-la do ponto de vista da localização geográfica.

Vendi a terra (CM, p.56) e E O VERBO SE FEZ CLASSE (CM, p.29) são

poemas que tratam de um espaço ocupado e conflituoso, revelam uma das faces de região do

Araguaia (no que ele tem de Amazônico). Digo uma das faces porque nos poemas Terra

nossa, liberdade (AR, p. 192) e Beleza perfeita ( AR, p.43), sobressai-se (mais que nos dois

poemas estudados acima) uma veia telúrica, a qual é presente em praticamente toda a obra

estudada. Aqueles são dois textos que considerei emblemáticos para o tratamento dessa

temática.

Cabe, todavia, fazermos uma contextualização geral do período histórico no qual

se foram acentuando os conflitos entre as forças locais e aquelas que viriam a se configurar

como globais. Historicamente, segundo Ravelli (2006, p.06) Oltre il novecento, o século XIX

foi o século mais sangrento da história. A sociedade passou por uma total militarização, tendo

sido criado o conceito de guerra total que se acelerou cada vez mais com o processo de

50 Sua primeira obra, Palabra Ungida, foi publicada em 1952 quando morava em Madri. Os versos contidos nesse livro apresentam menor intensidade que os demais, de teor engajado.

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globalização. Os elementos de sua dinâmica são muito visíveis por apresentarem um lado

extremamente racionalizado e outro completamente irracional.

A destruição de vidas humanas mostrou-se completamente planejada, sendo que,

no coração da Europa, o nazismo e o facismo, fundaram (com a experiência judaica e as

invasões na África, Armênia etc.) o genocídio, fato que parece ter autorizado a matança e a

exploração de populações tradicionais em todo o mundo. Se analisarmos bem, saberemos

como o caráter paradoxal do regime capitalista, que então se fortalecia, justifica, através da

violência, os fins pelos meios - processo de militarização que, praticamente, minou a

proposta comunista -, nascida como a mais radical forma de humanismo secularizado de todas

as épocas.

O primeiro caso é sua aplicação real, posto em prática pela conquista do poder na

Rússia, quando a violência passa a ser justificada como meio de administração do próprio

poder.

Foi um dos períodos que mais colocou em causa o controle da natureza, a

segurança e a previsibilidade, sob uma escala de valores jamais vista, acabando por perceber-

se incapaz de prever e controlar seu modo de operar, sobretudo na esfera política.

Para o autor (2006, p.31), a fonte da desgraça do século estaria na limitação

humana, na desproporcionalidade entre objetos criados pelo homem e a incapacidade de geri-

los. Os eventos que culminam em Auschwitz demonstram uma tendência ao fim da

racionalidade.

O mundo, reduzido ao aparato, liga o homem à funcionalidade produtiva, à

atividade que quer portar cada um à perfeição do próprio fazer.

Do ponto de vista do trabalho, o século da revolução industrial coloca o operário

praticamente em uma situação de inseparabilidade em relação à fábrica. Paradoxalmente,

aquele que nascia para salvar o homem de sua alienação, convertia-se também num meio de

fragmentação.

Ocorre uma redução do variado e plural em uma experiência de individualização,

social e exclusiva, que prevalece e abarca grande parte dos seres, tornando-os parte de uma

massa composta por indivíduos inacreditavelmente semelhantes entre si. Há, do ponto de vista

social e do antropológico, uma visão unificante do sujeito. O operário ganha forma única e, ao

unificar-se, endurece.

O trabalho passa a interferir em todos os campos: no modo de vestir, na

gestualidade, no modo de olhar, no modo de representar-se (da pintura para a fotografia, do

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teatro para o cinema). Há uma inteira tranformação do espaço que o faz se assemelhar ao

ambiente do trabalho (Ravelli, 2006, p. 45).

Num movimento em direção à colonização de todo modo vital (atingindo a moral

social e familiar), a fábrica vai fazendo do homem seu apêndice. Em sentido próprio, há um

novo sistema social organizado em torno da produtividade: a lógica da fábrica, como

fundamento social, como se não houvesse separação entre as esferas produtiva e a

reprodutiva, entre o âmbito do trabalho e o da vida, entre o operário e o homem (Raveli, 2006,

p. 46).

O fordismo proclamará, segundo informa Gramsci (apud Ravelli,2006, p.247) a

necessidade de que seja criado um novo homem, mais condizente com as formas de trabalho

existentes. Apresenta uma situação de tabula rasa social, em cuja organização não pode haver

interferência externa.

Com o avanço do capitalismo, o acesso à produção e à redistribuição passa a

pauta. Neste modo de governo, a forma do estado consiste em manter a configuração de

mercadoria dos detentores individuais. Assim, a confrontação de capitais tornou-se uma

prática comum no imediato pós-guerra.

Ocorre uma inédita entrada do estado no corpo social, o que gera uma grande e

desconhecida dependência do indivíduo. Aquele, por seu turno, esforça-se por apresentar

uma falsa imagem de independência das classes. Com o tempo, os trabalhos marginais e a

desocupação ganham um aspecto de reivindicação, mas, paralelamente, os centros de decisões

distanciam-se das pessoas. O “estado social” acaba por tornar-se a mais a-sociale (Ravelli

2006, p.249) de todas as condições humanas. Ocorre uma visível divisão de tempo, de lugar,

de relações.

A sociedade organizada (institucionalizada) a partir da produtividade entrará em

ação contra aquelas organizadas espontaneamente e auto-organizadas, a partir dos sujeitos

sociais (Ravelli 2006, p. 76)

O primeiro tipo de sociedade deseja que a família deixe de ser um núcleo

artesanal e agrícola para aderir ao sistema mercantil fordista. Em segundo lugar, promoverá

uma campanha para que haja, ao mesmo tempo, um consumo médio de bens industrializados,

o que resultaria em alguma garantia estratégica da parte do estado.

O século referido oferece muitos testemunhos de destruição de sociedades

tradicionais, esforço comparado àquele bélico que contribuiu inclusive com o cinema, o qual

criou estereótipos com objetivo de eliminar a resistência existente nas classes ditas

subalternas.

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Mercado e estado se unem para condenar à solidão tudo aquilo que não entra no

esquema estabelecido. Uma sociedade na qual a intimidade das coisas foi perdida.

Os anos 60 abriram uma fresta no fordismo, ocorrendo, justamente no espaço que

o tinha minado, um reencontro da coletividade. Começa a luta por resguardar um espaço de

troca por meio de muitas manisfestações, chegaram-se a grandes êxitos, todavia parece que

muitas das lutas foram sendo, aos poucos, incorporadas pelo sistema capitalista.

Muitas vidas voltaram-se para a revolução (entendida como uma necessidade

histórica), tendo ocorrido praticamente uma anulação de si mesmas diante do único elemento

que pode permanecer – a organização social –, ou ainda, a sua efetivação num espaço diverso

daquele que parecia ser a única possibilidade de realização – o da fábrica.

Informa o autor que a história era, para Marx, citando Marleau Ponty (2006,p.34),

uma possibilidade de realização humana de modo dialético. O homem entendê-la-ia como

uma realidade mutável, jamais fechada em si, uma totalidade aberta jamais fechada ao

humano.

Devemos entender bem os movimentos da história, fora da qual as mudanças não

se realizam porque ela não é feita de uma realidade externa “che utiliza l’uomo per realizzari i

propri fini, come si fosse una persona independente” (Ravelli, 2006, p.115)

In un contesto, cioè è, in cui per definizione il “no-ancora”-che non c’è e che deve essere prodotto-comanda sul “già stato”, (lo destituisce di legittimità e di valori) decide di qui ed ora (del momento della decisioni e della azione) in cui potremo dire-non sono più i produttori a decidere della sorta dei prodotti, ma al contrario sono i prodotti, gli eventi a venire (l’uomo di domani, il futuro stesso) a decidere della sorte dei produttori: di che concretamente opera e agisce nel proprio presente senza tuttavia avere il controllo del intero processo successivo, mangiando realtà aperte a sviluppi plurimi (a una multiplicitá di possibilità) ma destinate a una volta fattesi Storia, a solidificar-se in un unico evento. (Ravelli, 2006, p.118) 51

Movimento que, pela razão de ir apenas numa direção, provoca uma aceleração da

História, que, configurando-se como uma criação do capital, se apresenta no confronto com o

sujeito como mercadoria que não sabe se deve conformar-se ao destino pensado pelo capital,

ou se deve rebelar-se, de modo que o confronto entre passividade e luta, heroísmo e

indiferença, revolução e positivismo, marque o século. Ravelli (Ravelli, 2006, p.119) considera

51 Tradução livre: Em um contexto, no qual aquilo que ainda não é, comanda sobre o que já está, e praticamente o anula de legitimidade e valor. Não é mais o produtor, ou a massa dos homens em geral a decidir sobre o produto, mas sim o produto a comandar o homem de amanhã, a decidir sobre sua sorte: este opera e age no presente, sem todavia ter controle do futuro, do inteiro processo de desenvolvimento; usa das possibilidades abertas pela realidade que, embora relacionadas com o desenvolvimento plural, permanece distante da possiblidade de fazer História, a qual se solidifica num único evento.

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que, nascido nesse tempo, o comunismo é fruto de três grandes rupturas temporais: o primeiro

pós-guerra, a primeira revolução russa e o marxismo.

Os poemas a seguir demonstram como o poeta capta o avanço proposto pelo

modelo de desenvolvimento capitalista, mais usado no século dezenove, em direção à região

de onde escreve; como ocorrem os confrontos que pertencem à comunidade tradicional do

Araguaia e os que propõem a implantação do capital.

São dois os poemas: “Terra nossa, liberdade” (AR, p.192) centra-se mais na

questão política de distribuição “da terra”. “Beleza perfeita” (AR, p. 43), nos seus elementos

naturais, numa espécie de captação da beleza de um momento, como diz o próprio eu

poemático – Quero escrever a alma desta hora-. O primeiro dos textos encontra-se na

primeira parte da obra Antologia retirante (1971), e o outro, na quinta. Acredito ser, dentre o

conjunto dos escritos aqui tratados, o livro em que a palavra poética ganha maior teor

engajado e em que o elemento terra, na sua acepção de universo, é mais presente. Isso porque

muitos outros elementos são poetizados nesse textoe a maioria deles parte da terra: o homem,

a fauna, a flora, as cidades, etc. São, nesse caso, metonímias da terra,micro-universos.

BELEZA PERFEITA (AR, p. 43) Quero escrever a alma desta hora, Como quem prega na lapela de festa a borboleta última _creme, limão, canário_ que acaba de pulsar entre meus olhos bêbados de formosura... A beleza perfeita destas águas amigas; a vida exuberante da floresta múltipla: o sarã rasteiro chapinhando, o alto louro moço, a inaúba- figueira de lapela virada , o vermelho estendido e a taboca fiandeira de filamentos amarelos e de lancetas verdes-claras. Revoa um papagaio travesso de alegria. cruzamos ilhas, lagos, enseadas. As nuvens lassas dão ao rio quieto um tom de transida madrepérola. E o sol de Mato Grosso faz-se tíbio para não calcinar tanta beleza. O barco pára. Falam os meninos do tão falado amor. e riem duas mocinhas morenas, na margem, descalças, despenteadas, pura beleza índia em bruto. Outra vez se adiou o casamento! Ronca o motor de novo. A menina de mil sangues cruzados

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- Ásia, África, Europa: Ó América!- me sorri com dentes espaçados e umas tranças minúsculas, emoldurada na luz, pela janela aberta à flor do rio. Depois, entre as páginas do livro -a palavra e margem paralelas- uma inhuma de peitilho branco alça vôo, inefável, dessa areia eriçada de um verde calafrio.

Este poema inclui fatos internos dos quais o autor participa. Há, por força da

evocação, ou mesmo dos diálogos do eu lírico, provavelmente consigo mesmo, rasgos de

discurso direto, caso dos versos 4, 29, e 35. As entradas diretas dão-se no espaço vasto da

floresta e o barco donde contempla até a focalização na menina de mil sangues cruzados, que

lhe sorri, e na qual vê e percebe a América (Ásia, Europa, África) metaforizada.

É um texto rico em poeticidade, composto por três estrofes. A primeira delas

apresenta um espectador que observa uma paisagem exuberante e rica, as suas formas e cores,

as quais quer captar pela palavra. A visão é o principal sentido de percepção das coisas nesse

momento. Os elementos, qualificados, são expressos em cores, como nos versos 3, 4 e 5: -

creme, limão, canário/que acaba de pulsar entre meus olhos/bêbados de formosura... .

Ganham cor: as nuvens lassas dão ao rio quieto um tom de transida madrepérola, sol tíbio, e

movimentos que ocorrem porque a flora ganha atributos humanos, fia, arrasta: taboca

fiandeira, o sarã rasteiro chapinhando. São dois recursos que deixam claro que não se trata

de uma natureza morta, mas de seres que compõem um espaço cheio de vida.

No primeiro verso da segunda estrofe, somos surpreendidos com a construção o

barco pára, momento a partir do qual se verifica um corte no que vinha sendo dito. Só então

sabemos que o observador se encontra num barco. O foco deixa de ser a paisagem natural e

passa a ser uma cena, na qual se acrescenta a presença de pessoas: “mocinhas morenas à

margem do rio” (v.23), que mais tarde, na terceira estrofe, descobrimos ser uma

personificação da América, em sua povoação étnica de mil sangues cruzados (v.29). O barco

ou barca, símbolo da travessia, pode lembrar, nesse contexto, a passagem que fazem os

homens de continente para continente, ou, a própria vida: cruzamos ilhas, lagos, enseadas.

Para encerrar o poema, o autor, pelo viés da observação da natureza, retorna à

questão da escritura do texto, ou do mundo da escrita: Depois, entre as páginas do livro/ - a

palavra e margem paralelas – /uma inhuma de peitilho branco/alça vôo, inefável, desta

areia /eriçada de um verde calafrio... .

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Ressalta-se o fato de o verso retomar o mundo da escrita, porque, no início do

texto, quando o poeta diz querer escrever a alma da hora, faz uma alusão a esse mundo, como

que pedindo inspiração. Há então uma comparação que evidencia semelhanças e diferenças

entre os seres comparados: as margens do livro e as do rio. O expectador olha para a

paisagem, além das margens do rio, enxergando na exuberância daquela natureza um

continente que não cabe num livro, e que lhe ultrapassa as margens. Trata da paisagem de

uma região do país e da mestiçagem do povo latino-americano, mas que também é de

natureza metalingüística. Povo hibridizado cultural e etnicamente, mas que, também o é

porque as suas veias são teluricamente tecidas, forjadas pela forte relação que mantêm com a

terra. “Nascem” da “terra” e por ela lutam, comprometimento que o poema “Terra nossa,

liberdade” ( AR, p.192) demonstrará:

Esta é a Terra nossa: a Liberdade, humanos! Esta é a Terra nossa: a de todos, irmãos! A Terra dos Homens que caminham por ela, pé descalço e pobre. que nela nasce, dela, como troncos de Espírito e de Carne. que se enterram nela como semeaduras de Cinzas e de Espírito para fazê-la fecunda como uma esposa mãe. que se entregam a ela, cada dia, e a entregam a Deus e ao Universo, em pensamento e suor, em sua alegria, e em sua dor, com o olhar e com a enxada e com verso... Prostitutos cridos da mãe comum, seus malnascidos! Malditas sejam as cercas vossas, as que vos cercam por dentro, gordos, sós,

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como porcos cevados, fechando, com seu arame e seus títulos, fora de vosso amor aos irmãos, (Fora de seus direitos,

seus filhos e seus prantos e seus mortos e seus braços e seu arroz!)

Fechando-os fora dos irmãos e de Deus! Malditas sejam todas as cercas! Malditas todas as propriedade privadas que nos privam de viver e de amar! Malditas sejam todas as leis, amanhadas por umas poucas mãos para ampararem cercas e bois e fazer a Terra, escrava e escravos os humanos! Outra é a Terra nossa, homens, todos! A humana, terra Livre, irmãos!

A presença do autor é marcada por um discurso em tom retórico, praticamente

exortador, exprimindo, assim, uma dialogia em relação ao leitor.

No caso, por exemplo, da expressão porcos cevados, faz construir em torno da

metáfora uma ironia, contrastando os sentimentos presentes no poema e a realidade exterior.

Há contradição de termos entre os relacionados ao homem, entendido como detentor natural

da terra e aquele outro homem que a proclama propriedade. O tom é evocativo em relação ao

primeiro e descritivo em relação ao segundo. Diferença que se caracteriza como um elemento

gerador de contradição.

Tais fatos situa o interlecutor (do eu que escreve) no texto, havendo, assim,

elementos que dão forma tanto à estrutura aparente como à estrutura profunda do texto. A

“Terra”, como vocábulo que o compõe, tanto pode ser relacionada ao incorpóreo (estrutura

profunda), ao etéreo, entendida praticamente como a progenitora humana, que, quando

agregada ao possessivo “nossa”, reforça esse sentido de lugar maternidade onde cabem todos

os dela gerados. E, como bem ou mercadoria (estrutura aparente).

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“Terra Nossa, liberdade” tem seis estrofes com versos e métrica irregular nos

quais o poeta retrata não apenas a terra, mas os problemas sociais que decorrem da sua má

distribuição. Todavia, para dizer que esse não é o procedimento mais humanitário, o poeta

começa dizendo nas duas primeiras estrofes que a terra é de todos: “nossa”. É importante

ressaltar que se trata de uma posse, mas uma posse coletiva, como propõe Karl Marx e

Frederich Engels na obra Manuscritos econômicos e Filosóficos (2005). Assim, há uma

valorização desse pronome, repetido algumas vezes no decorrer do texto, e ainda as anáforas

que ocorrem nas duas primeiras estrofes pela repetição do verso “Esta é a terra nossa”, “a

terra dos homens”.

No curso da terceira estrofe há um outro movimento de repetição do pronome

pessoal ela. Pela figura denominada poliptoto, transforma-se em dela, nela e ela novamente,

tudo para evidenciar o contato, a proximidade do homem com a terra. Pela comparação, a

terra é tratada, do ponto de vista da produtividade e da maternidade, fecunda como uma

esposa mãe.

Também fica bastante latente a repetição do pronome que, usado nos versos 9,

11,13, e 15:

a Terra dos Homens que caminham por ela, pé descalço e pobre. que nela nasce, dela, como troncos de Espírito e da Carne. que se enterram nela como semeaduras de Cinzas e de Espírito, para fazê-la fecunda como uma esposa mãe. Que se entregam a nela.

Tal pronome, introduzindo as orações, reforça e representa o sentido de “terra”,

para expressar a relação de proximidade do homem para com ela. Não canta qualquer

homem, mas aquele que nasce da terra, relação que vai se intensificando a partir do verso 17,

quando é usado o último que que compõe a seqüência desse pronome, cuja função é

estabelecer a profunda ligação entre esses dois seres: Homem e Terra. Praticamente

abandonado à Terra, o ser humano desenvolverá suas demais ações:

que se entregam a ela, cada dia, e a entregam a Deus e ao Universo, em pensamento e suor, em sua alegria, e em sua dor, com o olhar

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e com a enxada e com verso...”

Em seguida, há uma seqüência de orações coordenadas, marcadas pelo síndeto,

que vai gradativamente completando o sentido do verso 17: a entregam a Deus e ao

Universo; assim, os versos citados dizem como essa entrega é feita, com todos os sentidos do

homem: dor, alegria e trabalho. De modo encadeado, o verso Que se entregam a ela constitui

uma espécie de conclusão à qual são agregadas todas aquelas coisas que necessitam ser ditas,

e, ditas pelo verso, sobre a relação humano-Terra, podemos, pois, considerá-lo como uma

verdadeira ponte entre a dor sentida e aquela versificada, um caminho para ascender à

realidade poetizada. A ligação dos versos pela conjunção “e” insinua uma interferência entre

os sentidos da realidade e o da arte e uma nítida continuídade da relação que, no decurso do

tempo, intensifica o processo criativo e a convivência entre o ser e o meio.

Os vocábulos Espírito e Carne, Cinza e Espírito parecem representar, ao mesmo

tempo, o que está no campo da matéria e o que está no do espírito. O segundo representaria a

“força” e a resistência desse Homem que, encravado nela (na terra), nasce, dela, /como

troncos de Espírito e de Carne. /que se enterram nela com semeaduras de/Cinzas e de

Espírito, resiste à sua capitalização, daí o vocábulo Cinza, termo que lembra resíduos e

renascimento: é o homem que se liga à terra tanto material como espiritualmente.

A terceira estrofe, iniciada pelo vocábulo prostitutos, referindo-se à corrupção da

terra pelos que a detêm e fazem dela propriedade privada, deixa claro que há uma oposição

entre os modos de ver a terra: há homens que a tomam para sobrevivência e os que a vêem

como meio de produção e acumulação de capital, explorando-a e aos que a têm por meio de

subsistência. Então, ele amaldiçoa tudo o que lembra a propriedade privada individual. Isso

fica claro por meio dos substantivos cercas, arames, títulos, os quais segregam os homens e

os dividem entre os que possuem e os que não possuem propriedade, Fechando-os /fora dos

irmãos/ e de Deus!, e dificultando as relações de trabalho. Veja-se pelo trocadilho nos versos

58 e 59:

e para fazer a terra escrava e escravos os humanos!

Retornando ao pronome de posse inicial “nossa”, o eu lírico diz que outra é a

terra, nossa, uma terra livre e humana. É claro o intertexto bíblico da terra prometida (Livro

do Gênesis) e a idéia do Espírito Santo que, de acordo com a metáfora bíblica, é vento que

varre as cinzas e, no texto, é quem conduz os filhos da terra, unindo-os. Função que se opõe à

da cerca, já que, no caso desta, mesmo os que a constroem - vos cercam por dentro-,

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endurecem o coração e a mente e são mantidos segregados, num tipo de sociedade que

impede a aproximação e o crescimento coletivo.

É interessante ressaltar que, na última estrofe, o termo “nossa” volta a aparecer,

reafirmando a idéia expressa no nome do poema, a de que na relação com a terra não cabe a

divisão entre os que a detêm por título e os que nela vivem.

Em síntese, o texto centra-se na antítese proprietário-trabalhador. Os substantivos

gordos, porcos, cevados, prostitutos são usados para se referirem aos que, pelo título, detêm a

terra, e os verbos caminham, nascem, entregam, enterram para indicar aqueles que a usam

como um bem natural, nela trabalhando e não a explorando, evidenciando a harmônica

convivência.

A anáfora provocada pela construção Malditas sejam todas, presente nos versos

primeiro, terceiro e sétimo da penúltima estrofe, marca o repúdio às dificuldades a que são

submetidos os homens. São frases que iniciam três períodos paralelos:

Malditas sejam todas as cercas! Malditas todas as propriedades privadas que nos privam de viver e de amar! Malditas sejam todas as leis, amanhadas por umas poucas mãos para ampararem cercas e bois e fazer a Terra, escrava e escravos os humanos!

Essa construção, por expansão de frase, vai intensificando gradualmente a

proposição de que a terra deve ser livre. A primeira completa o sentido de Malditas sejam

todas, apenas com as cercas; a segunda já conta com três versos, sendo que o segundo e o

terceiro têm uma oração objetiva indireta – o papel de dizer do que nos privam as cercas; a

última das sentenças refere-se aos objetivos da empresa privatizatória.

A recorrência de uma palavra apresenta por si só maior valor expressivo que uma

palavra colocada em destaque no texto. Para Riffratere (2004, p.213), quando repetida, uma

dada palavra ou expressão não carrega somente ecos da primeira vez em que foi inserida no

texto, mas recebe também influências da estrutura, porque, a cada vez que a estrutura atua

sobre um determinado contexto, o resultado é diverso. Cada traço de estilo relaciona-se em

busca de novo significado. Nesse momento, é a linguagem referencial que impera sobre a

estrutura.

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Seleção e combinação são os dois principais eixos organizacionais do discurso,

sendo o paralelismo modo de expressão inerente à poesia. É uma coisa dita várias vezes de

vários modos, e qualquer mudança provocaria também uma mudança na estrutura. Assim,

uma obra se lê gradualmente, porque os novos valores atribuem nova significação aos antigos,

havendo elementos, cuja função é atribuir um destaque às estruturas e aos possíveis

caracterizadores de leveza textual, ou seja, o poema é como um “microcosmo, com seu

próprio sistema de referências e analogias” (Riffratere, 2004, p.295).

Essas referências dão-se pela repetição e criação de imagens. Riffratere afirma

(Riffratere, 2004, p.297) que Jakobson acredita “que toda reiteração ou contraste de um

conceito gramatical o transforma em poético”, o que, de outro modo, quer dizer que o sistema

das relações métricas das classes morfológicas e das construções sintáticas atualizam a

estrutura e criam efeito poético. (2004, p.34).

Prova disso é que, posteriormente a Vitor Hugo, a poesia tenderá à formação de

um sistema autônomo, a criar um sistema arbitrário, e a leitura exigirá uma prática de

recriação. (IDEM)

3.3- A terra e o “ser” feminino: mãe, chuva, mulher, morte

São freqüentes as referências, na obra de Casaldáliga, à Terra, à Morte, à Igreja,

que, para o poeta, são elementos femininos. No poema “Ella” (FCV-57), há uma sugestão de

que a morte, como a mulher, está sempre por perto, “como uma casta amiga/que evito e me

espera”.

Noutros momentos, é a terra que é chamada Pachamama, Abiayala, ou a Terra

Sem Males que retomam o mito Aymara, Quetchua, e Guarani 52da maternidade que brota da

terra.

52 Existem várias dezenas de línguas na região andina, sendo a dominante a Quechua-Kichwa falada no Equador, Bolivia, Peru e no norte da Argentina e Chile. Atualmente, treze milhões de pessoas a falam em toda a área andina. É a lingua oficial do Equador, do Peru e da Bolívia. O Aymara é também uma das línguas dominantes na região do altiplano andino (Peru e Bolívia). Quanto aos Guaranis, povos que habitavam a Argentina, o Brasil, o Paraguai e o Uruguai, tinham por língua dominante aquelas do tronco Tupi-Guarani, que influenciou fortemente o Português brasileiro, e é falado por diversos tribus nos quatros países, tendo ganhado estatuto de Língua Oficial. O mito Guarani da Terra Sem Males relaciona-se aàbusca de suas terras perdidas, que, por ser interpretado por alguns indígenistas como uma busca utópica passou a não resultar em conquistas reais, mas, a ser tratado como mito. Informção retirada do site: www. Wikipédia.com em 04-09-2007.

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Abiayala é o nome indígena para América Latina. Para todos os povos indígenas a terra é mãe, que significa terra fértil, terra fecunda, mulher fecunda. Terra. Mãe. Mulher... Para todos os povos indígenas a terra é mãe53.

A Gaia grega consiste num termo usado para se fazer referência ao planeta, não apenas ao

solo, mas também ao conjunto das coisas (animais, pantas, ecossistemas, seres humanos e não

humanos) que a compõem. Um gigante vivo que, ao se distender, funda o espaço e o tempo (à medida

que passa o tempo, o planeta se vai formando, ou, enquanto ele se forma evolui o tempo – não há

sucessividade, mas simultaneidade, o tempo está nas coisas e não fora delas). É a consciência disso

que faz com que os que sustentam o mito de Abiayala assim a definam, no entanto, o termo

diferentemente do grego, remete também a uma porção de terra, em sentido geográfico,

porque faz menção à América pré-colombiana, habitada por povos que tinham uma cultura

comum (hoje parcialmente conservada por povos que deles descendem), e que compunham

uma única fração dela. São marcas de territórios de diferentes nações, agora divididos (em

países), mas que carregam semelhanças culturais entre si.

Na prática, o sonho da Abiayala ou Pachamama se converteu na esperança de uma

unificação política na América Latina e do reconhecimento de que há, para além das civilizações Maia

e Inca, uma identidade cultural comum.

Há, nos dois sentidos, uma consciência de que a Terra é uma espécie de

mantenedora humana, uma vez que é fecunda, e remete, como já explicitado, a um sistema

cultural específico, mas esquecido pela cultura dominante atual, e, assim, o mito em torno de

si o alimenta e o traz para a luz. No poema, por lembrar fecundidade, os sentidos de terra e

mulher são análogos. A mulher, como aparece no poema “Beleza perfeita”, quando nativa da

América, é descrita com cabelos negros, é metáfora do continente. Dirigindo-se, nesse poema,

a uma mulher, o eu poemático diz: “Europa, Ásia, África/Oh! América.”

Opto, assim, pelo estudo de poemas que se detêm sobre o feminino a partir dos

vários modos pelos quais o poeta o personifica, a começar por “A prostituta” (AR, p.73) em

que a mulher, personagem poética em estado nativo, é captada pelo seu olhar num momento

banal, o que ele transforma em matéria de poesia:

Como uma dor passada de paciência, Ela é morena escura. A franja limita no olhar Com uma leve cicatriz antiga. E com uma cruz de ouro falso pende sobre o peito, Sobre o forte lilás do vestido. Leva o liso cabelo de índia solto. (As bonecas baratas de meus tempos de menino

53 Fragmento da entrevista realizada com o autor em setembro de 2005.

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se vestiam como ela. ) Será um relógio-pulseira De um rico esportista bandeirante? Será de um pobre, duro, caminhoneiro? Ela se senta na borda, ausente. Vem, a hora de comer, à popa; Dou-lhe um copo d’água; E retorna, discreta. Maria Madalena no barco de Pedro, Se sentava aos olhos do Senhor, e o Senhor a mirava. A ribeira é mais tenra Que os vasos de arroz de quinta santa. E o rio é como um óleo, Sob as muitas nuvens apeadas.

Apesar de a balada, segundo D’Onofrio (2002, p.349), espécie poética que se

assemelha a uma micro-narrativa, não ser uma constante na sua obra, Casaldáliga usa desse

tipo de composição para falar da mulher comum, a quem estuda e minuciosamente descreve.

Os dois versos iniciais marcam uma digressão (ou analepse) em relação ao resto

do poema Como uma dor passada de paciência, /ela é morena escura, figura que informa

sobre o estado de espírito da personagem poética. Depois que faz essa comparação, o poeta

localiza a personagem: Ela se senta na borda, ausente, e continua a descrevê-la com base nos

detalhes que mais lhe chamam a atenção. Entre os temas de que trata em todos os poemas,

convém destacar: a cicatriz (sofrimento), a cruz, as relações interpessoais, a comida e a

bebida, o óleo de unção) –imagens daquilo que vê, através das quais nos coloca diante de nós

símbolo daquilo que quer representar como, por exemplo, “A prostituta”:

Uma franja limita no olhar com uma leve cicatriz antiga E como uma cruz de ouro falso pende sobre o peito sobre o forte lilás do vestido.

São imagens sinestésicas. O seu olhar direcionado para os detalhes faz com que o

leitor possa imaginá-la, imaginar as suas arredias ações.

A mulher é apresentada, gramaticalmente, por categorias nominais, sob o recurso

da sinédoque, pequenos detalhes de configuração do visual: o substantivo franja, em relação

ao cabelo, do modelo do corte utilizado; o forte lilás do vestido, a leve cicatriz, cruz de ouro

falso sobre o peito, liso cabelo de índia. E, ainda, o relógio-pulseira, sobre o qual se verifica

uma especulação acerca de quem o teria dado, antítese entre um rico esportista bandeirante

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ou de um pobre, duro caminhoneiro. Estas são figuras que revelam a idéia de que a terra em

que vive essa mulher é uma terra de passagem. A relação com o masculino é de comércio, no

sentido de prostuição e de tutela, isto é, o homem é aquele que possui o poder aquisitivo “Será

um relógio-pulseira /De um rico esportista bandeirante /Será de um pobre, duro, caminhoneiro”,

cabendo à mulher, ou o casamento, ou os trabalhos de baixa remuneração, ou ainda, a

prostituição. No caso da mulher representada, sua postura parece, aos olhos do eu lírico, uma

pessoa que está esperando por alguém que por ali passe, ou do retorno daqueles que a

presentearam.

Comparada por intertexto bíblico a Maria Madalena, os versos que lhe são

dedicados terminam com duas sentenças: a ribeira é mais tenra/que os vasos de arroz de

Quinta santa/E o rio é como um óleo, /Sob as muitas nuvens apeadas, os quais denotam a

abundante vitalidade da mulher.

O rio, comparado a um óleo, passa por ali, como passa a vida, sem interrupções,

característica que fica clara pela expressão sob as muitas nuvens apeadas. As nuvens são

duplamente qualificadas: muitas e apeadas, indicando que, apesar de possíveis adversidades,

tanto a mulher como o rio se alimentam delas, e seguem seu curso. O rio, aqui, sugere uma

dádiva, um óleo sagrado que unge e tranquiliza os que a ele se entregam.

A alusão do poeta ao feminino, como Morte, é perpassada pela idéia de

ressurreição e acompanhada da idéia de martírio. O martírio é presentificado quando os seus

textos são encomiásticos. Num dos seus livros, intitulado Me Llamaran subversivo (sem

referências), encontramos homenagem a pessoas como Evaristo Arns, Ernesto Cardenali,

Ernesto Che Guevara e muitos outros que, como revelam os versos, se a causa pela qual

lutaram permanece viva, vivem também. Essas pessoas são consideradas mártires. O martírio

consiste no sofrimento o qual as pessoas optam por viver, em sustento de uma fé ou de uma

causa. Para a Teologia da Libertação, à medida que a vida é dedicada a uma causa, a pessoa

pode ser considerada mártir, havendo, assim, muitos mártires vivos, a maioria dos quais,

anônimos.

A fronteira entre morte e vida é muito tênue, tanto para os que abraçam a luta

pelos empobrecidos54 como para estes. Na sua poesia, no entanto, morte é vida “eterna”, o que

não redime o homem de não ter lutado pela melhoria das condições de sobrevivência. Essas

idéias podem ser evidenciadas respectivamente no Hai-cai: “Me encuentro siempre/entre el

instante e la muerte” (FCV,1984, p.14), em que trabalha a proximidade da morte, colocando-

54 Pedro Casaldáliga estabelece uma diferença entre pobre e empobrecido: pobre é aquele desprovido material e espiritualmente. Empobrecido é aquele de quem foi usurpado o que tinha.

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se à disposição da vida (no sentido da luta pela melhoria da vida de uma comunidade, mesmo

que isso o ponha em perigo, e também, da vida como percurso fisiológico vivido pelo homem

– revela a consciência de que a morte é, diante da vida, possibilidade; em “La palma de tua

mano” (FCV, p. 90) faz referência ao aconchego e amor do pai (no caso, o Deus cristão):

tendo o sujeito do texto caminhado por toda a vida - dia-, descobre, ao chegar a noite, - morte-

, que caminhou todo o dia sobre la misma palma de tu Mano; No “Pequeña profesòn de

esperanza total. Cielos nuevos” (FCV, p.91), pensa, pela metáfora nueva tierra-rios, garzas,

hombres!, um reino material, no qual se daria o paraíso, resultante da superação da morte no

sentido de sofrimento e exploração. A superação é signum credibilitatis/dela nueva Creaciòn

e também de interrogaciòn, a garça comparada a uma vela de tantas orilas, manifesta pelo

trocadilho em mi Gracia/gracia, blanca, Creacòn, a possibilidade de paz e tranqüilidade,

noutras palavras, o mundo livre dos conflitos sociais geradores da morte está aí, posto pela

natureza. Natureza que também é apresentada como morta, quando se trata, por exemplo, das

queimadas, embora seja a sua vitalidade e “Gratuidad” (TE, p. 27) que encanta o poeta: No

sólo de el progreso el Hombre vive/vive también de Dios y de la Luna que, por intertexto com

a expressão bíblica não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra de Deus, manifesta

gratidão à Luna que curza el Araguaia, fazendo com que os olhos dos hijos do céu sejam

livres para cantar Su Nombre/y el Uni-verso.

Enfim, há muitos textos nos quais esse é o tema. Há, também, aqueles em que

essa discussão emerge da sua estrutura. Um deles é o soneto “¿dònde esta, oh muerte, /tu

victoria?” (SNP, 2000, p. 67):

¿Dónde está tu victoria, Muerte extraña? ¿Dónde está tu derrota, Muerte amiga? Nos llevas, te llevamos, en la entrañas, Grano en tu surco, de tu surco espiga. Juntos crecemos. Tú hacia el acaso, Cumplida la misión que nos fecunda. Nosotros hacia el día, por él “paso” De tu garganta abierta. La profunda soledad de tu abismo se ha llenado con el grito de Dios crucificado, con tu muerte en Su muerte redentora. ¡Vitoria derrotada en Su agonía, oh hermana temporal, vientre del Día, umbral de los “levantes de la aurora”!

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Do ponto de vista formal, o poema possui versos decassílabos, em que o acento

recai na sexta e na décima sílaba, rimas que se alternam entre ricas e pobres, interpoladas nos

quartetos, emparelhadas e interpoladas nos tercetos. A pergunta com que é iniciado o texto

determina o seu caráter questionador, especulativo. Assim, os dois primeiros versos da estrofe

primeira

¿Dónde está tu victoria, muerte extraña? ¿Dónde está tu derrota, muerte amiga?

constituir-se-ão em anáforas, insistência na inquirição feita à morte, qualificada

como quando vitoriosa = estranha, derrotada = amiga, simetria que dá num paradoxo. A

vitória, que deveria lembrar alegria, é estranha; quem venceu foi a morte; a amizade. Há

paradoxo na morte, por ela conter em si vitória e derrota, dimensões que o poeta procura

compreender em ambas. A chama estranha, quando vence, é amiga, quando perde,

possivelmente por seu carácter de presença, continua na vida humana.

O homem leva-a como algo que o determina (surco) que, introduzida na sua alma,

cresce com ele - Nos llevas, te llevamos, en las entrañas (v. 3, estrofe 1). Nesse caso, morte e

vida (día) caminham juntas, enquanto que a primeira, Tu, cumpre a sua tarefa hacia el acaso,

/ Cumplida la misión que nos fecunda (v. 1 e 2, estrofe 2).

Evocada pela interjeição oh, a morte é a interlocutora do eu, a quem, no último

verso, ele se rende identificando-a como levantes de la aurora.

A pergunta contida no título - “¿dònde esta, oh muerte, /tu victoria? - é então

respondida pelas espressões, “vientre del día”, “hermana temporal”, que nos acompanha no

decurso da nossa existência, como se o dia representasse o existir, e, estando a morte no

ventre, é sempre possibilidade e ajuda a sustentá-lo. Nesse sentido, é referida como o

próprio ventre que manteria a vida, modo de compreensão que recebe uma contribuição da

cultura do local onde mora o poeta, em que muitas culturas indígenas, como é o caso da

Bororo, têm relação tranqüila com a morte, entendendo que a vida dos antepassados

permanece em seus descedentes. 55Contribuição também explicitada no poema “Cain”56

(SNP, 2000, p.21), que considera destino a imanência que vida e morte teriam entre si. Assim,

como “Cain”, o homem do Araguaia e todo homem, estaria condenado a:

55 56 Poema apresentado apenas a título de ilustração do tema. O texto integral encontra-se no anexo 1 deste trabalho.

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Há cruzado la Isla, el Araguaia, La sociedad, el tiempo, el mal.

E ainda assim continuaria:

Condenado a vivir su vida muerta. Si ha violado la ley, la paz presunta, A él hemos matado la paz cierta.

A vida marcada pela morte é justamente aquela pela qual o ser não vive

integralmente, sendo como que um condenado a não participar dos direitos fundamentais,

saúde, alimentação etc, uma situação que permanece por séculos, ainda que sejam cruzadas

islas, la sociedad, el tiempo. O ser já teria sido previamente condenado a isso, tal como se não

fosse “humano”. Carrega esse “destino”, conforme o segundo verso do poema, muerto el

amor y la tristeza viva.

Segundo Abbagnano (2000, p. 683), a morte pode ser vista por dois ângulos. No

primeiro, é considerada como falecimento natural; no segundo, na sua “relação específica

com a vida humana”. Se pensada como início ou como fim da existência humana, seria tida

como possibilidade. O conceito bíblico aproxima-a do pecado original, que teria fragilizado o

homem frente a doenças e, assim, limitado a sua vida. Este é um modo de pensar que,

segundo Abbagnano (Abbagnano 2000, p.684), será retomado por muitos filósofos, dentre os

quais Heidegger, que considerou a morte como “possibilidade existencial”, uma concepção

que é compartilhada pelo texto “¿dònde esta, oh muerte, /tu victoria? (SNP, p. 67).

Estabelece a estrita relação entre vida e morte: Grano en tu surco, de tu surco espiga, em

que, pela metáfora contida neste verso, remete, sobretudo, com os termos grano (semente,

gemem,fruto,gramínea) e surco (fenda, prega) e espiga (cachear, espigar) a uma diferença de

sentido: numa parte os verbos estão na segunda pessoa do singular (tu) – grana ,espiga, no

sentido de que a ação, a fazes tu espontaneamente, e, já pelo sentido, assume tom imperativo.

Num dado momento da vida surco (fenda) é gerada, no ser, a morte.

Há ainda, no conjunto da obra de Pedro, constante referência à ancestralidade

nativa - os mortos permaneceriam por seus costumes e ações-, a exemplo do poema “Colina”

(TE,1986 p. 87) em que há referência a pies Xavantes que um dia pisaram as terras onde está

localizada a colina descrita, e que, agora, embora ausentes, não foram vencidos pela morte,

continuam, por meio do testemunho de sua passagem, por parte de quem os vê, na colina,

vivos. Por fim, a referência ao Monte Carmelo, metáfora de morte criada pelo poeta

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castelhano San Juan de la Cruz57, um dos poemas de Casaldáliga é intitulado Preguntas para

subir el Monte Carmelo (TE, p.31).

Vislumbra-se, no soneto, o ser feminino, do mesmo modo em que esse mesmo ser

é aludido sob a forma de mãe, chuva, morte, terra e igreja, metaforizadas de alguma maneira,

provavelmente porque referem-se à natureza (vida e morte) e à terra, como a mãe maior,

procriadora do mundo, que alimenta a existência e é multiplicadora da vida que vem

personificada em chuva, igreja, etc.

São textos ricos em conteúdo, expressos por uma linguagem bastante elaborada,

uso de anáforas, de paralelismo sintático, e por imagens fortes e propositivas. E, como já foi

evidenciado pelas análises, trata-se de uma compreensão histórica e dialética da existência

humana que, no caso brasileiro, apresenta a questão da mestiçagem, da má distribuição de

renda e da natureza idílica.

3. 4 - Representações do universo: o espaço regional e o universal

PACU (CL, p.82)

-"Del otro lado es más bonito aún", dice, sabio, Agripino, el zagal victorioso, campeón pescador de pacuzinhos. Y levantan sus manos todo un ristre de búcaros de plata.

Pacú, pez etiqueta; estilizada gracia nadadora.

Le ha planchado los ojos la corriente; y el vientre tiene forma de corazón anclado, pulido por la lima de la tuna.

¡El pan de cada día de este Araguaia fértil! Holocausto de Dios y de los hombres, entre la brasa y la pimienta!

O eu criador observa peixes e pescadores, elementos cotidianos na vida da

população ribeirinha das margens mato-grossenses e tocantinenses do Araguaia (Ilha do

Bananal).

Se considerarmos o poema como uma micro-narrativa, veremos que,

descritivamente, ele apresenta, primeiro, o pescador Agripino e a sua destreza quanto ao ato

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de pescar; depois, o peixe (em espanhol “pescado”) com sua estilizada gracia nadadora

(elegante e gracioso nadador), pies etiqueta (pés únicos, em tradução literal etiqueta, marca) e

el vientre tiene forma de corazón anclado (o ventre assemelha-se a um coração ancorado). Ancorados,

ali vivem homens e peixes; mesmo sendo o lugar espaço de “holocausto”, têm ambos os pés e o

coração fincados naquele lugar. Por outro lado, a metáfora pode estar aludindo ao fato de que,

sendo o peixe agora pescado, está entregue ao homem que nele tem seu alimento.

Apresenta em simultâneo, um recorte espacial e um alargamento desse espaço,

característica presente já no primeiro verso: Del outro lado es mas bonito aún, indicando que,

para existir o lado referido (o de lá), é necessário que seja estabelecida uma comparação entre

os lados. A expressão destacada é índice da apresentação de dois universos: o Araguaia como

espaço de tranqüilidade e convívio com a natureza (um local de aconchego, idílico,) e o

Araguaia participante do mundo (como um todo) que carrega, em si, conflitos, sejam eles

econômicos ou religiosos, e, no caso específico do “holocausto”, fazendo referência à

Segunda Guerra Mundial.

Enquanto, por um lado, são cantadas as belezas naturais – la lima de la luna (as

belas e polidas imagens) também, valorizado o homem caracterizado pela redundância dos

termos sábio, pescador, Campeón, el zagal victorios, como aquele que se relaciona com o

meio em que se encontra, por outro, aparece apenas a referência “holocausto”, que é

justamente o fator que une os dois mundos.

O peixe era o símbolo representativo dos judeus perseguidos e aniquilados.

Ocorre, assim, uma analogia em relação ao peixe (símbolo de uma cultura religiosa) que é

sacrificado, aqui, por todos, para sustentar o sertanejo. Trata-se de um sacrifício aceito.

Para Gaston Bachelard (2003, p.64), um espaço deve ser pensado como evocação

de muitos outros, sentidos e vividos. A casa é vista como o espaço do (mundo) conhecido no

qual o homem se forma. Para ele (2003, p.23), a idéia da casa como refúgio está muito

presente no homem, aludindo ao tratamento dado ao tema pelos poetas, “a palavra de um

poeta toca o ponto exato, abala as camadas profundas do nosso ser”. É o que parece

acontecer, quando Casaldáliga fala, de modo tão íntimo, ao Araguaia, transmitindo-nos uma

idéia de lugar vivido, de casa materna. Ao mencionar (em entrevista, concedida em 2005)

isso, diz:

Não só o poeta, mas romancistas, no fundo, sempre os escritores, partem daquele subsolo que é a própria infância, a própria história, tudo o que você escreve sobre arte. Um poeta alemão chamado Rilke sempre dizia que o melhor cantor é aquele que canta em seu próprio tronco genealógico. Ou

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seja, eu tenho um poeminha que diz que quanto mais vamos mais voltamos.58

Prevalecem, em toda a obra poética de Pedro Casaldáliga, dois modos de entender

o espaço, os quais se poderão configurar como interno e externo. Este último, representando o

mundo como sistema social, e o primeiro, como relativo à Amazônia (espaço natural). Nesse

sentido, a Amazônia dialoga com acontecimentos nacionais e mundiais (como experiências

históricas e com menção a um elemento nomeadamente de carácter geográfico). Configuraria

a casa (o próximo ao homem) e o mundo, na sua acepção de sociedade de mercado, o espaço

externo relacionar-se-ia ao alheio ao homem, cantado por Casaldáliga - o posseiro, o

retirante, o indígena habitante duma parte da Amazônia Legal.

Há, por meio de uma parada, “Del otro lado es más bonito aún", dice, sabio, Agripino,

el zagal victorioso, campeón pescador de pacuzinho”, um olhar distanciado do eu que expõe,

demonstrando também uma familiridade do pescador para com o meio. Por parte do poeta, seu olhar

atento provoca apropriação, ressignificação do espaço e criação de vínculos, a qual, no dizer

de Santana (apud Tuan 2002, p. 82) se rege pela apreensão de imagens que correspondem ao

aprendizado e à construção de significados. Isso ocorre quando o eu-lírico é coletivo,

expresso na segunda pessoa do plural, e quando o poeta dá voz à população da região (alguns

críticos designam este fenômeno de “outramento”).

Quando o eu fala apenas em primeira pessoa, há um sentir profundo da dor do

outro e, em alguns casos, tende para as lembranças da casa materna, fator presente em

muitos dos seus poemas, mas que fica ainda mais evidenciado na obra Ainda respiro em

Catalão, livro no qual todos os textos remetem à infância e aos aprendizados que trouxe de

então.

Expressa, no caso do poema “Pacu”, uma localização espacial do homem, que

ocorre de modo local e universal. Do ponto de vista do local, fá-lo geograficamente:

“Araguaia fértil!”; do geral, fá-lo historicamente: “holocausto”.

A sentença Holocausto de Dios e de los hombres pode ser entendida como

metáfora da destruição a que o ser, diante da sociedade, é submetido. Haveria, nesse sentido,

um massacre (holocausto), uma vez que ocorre a opressão do ser humano, aqui comparado a

peixes com forma de corazón anclado como que entregues à situação em que se encontram. Este

acontecimento retira Deus de cena, falta que nos leva a inferir que, para o eu lírico, não

58 Não foi possível identificar um poema que tenha exatamente esse verso. O poema “Irei até as fronteiras”, publicado na página 11 de A Cuia de Gedeão, parece expressar essa mesma idéia.

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existindo Deus, vivem as chacinas da natureza (pesca predatória) e do homem (mortes

encomendadas quando lutam por terra, e/ou sobrevivência).

São “holocaustos” que ocorrem, mesmo sendo o “Araguaia” gerador de vida,

“fértil”. Essa fertilidade está anunciada no título, uma vez que o peixe por si só está associado

à água e, segundo Chevalier (1992, 703), à “restauração cíclica” e à “fecundidade”.

O significativo uso de adjetivos corazón anclado, lima de la luna, búcaros de

plata (jarros de prata), sábio Agripino, estilizada gracia nadadora, propicia (principalmente

no caso dos dois últimos exemplos quando vêm antepostos), por trazerem características da

natureza, sutileza, transparência e até certo romantismo, por assim dizer, ao texto. Fato que

faz com que apresente forte teor engajado, mas, por passar ao nível da imagem captada pelo

olhar do poeta, à nominação, tende a discutir o fazer poético, porque faz coincidir o termo

lima para descrever uma imagem emoldurada pelos reflexos lunares, com a idéia de limar,

polir o estilo, e, para que fique belo, tal como são graciosos peixe, pescador e luar.

Conjugação de matéforas que dá ao texto um tom denso como se os búcaros,

cheios de peixes, também estivessem sempre plenos dessa possibilidade, que é a poesia. Um

modo profundo de olhar a vida e a arte também explorado (sob a forma de definição) no

poema “Perspectiva” (CM, DATA 1979, p.56), em que a “pessoa” recebe a denominação de

“humana”, e a “montanha” de “azul”. Nesse caso, porém, o uso do mesmo recurso nos dois

versos de que é composto o poema, funciona como ironia:

De longe toda montanha é azul. De perto, toda pessoa é humana.

O poema joga com a antítese perto-longe, colocando tais termos numa relação de

proximidade, elementos vistos sob um mesmo prisma – o do senso comum. É usada a

estrutura clássica da metáfora, a definição. Por considerar que, sob os olhos de um observador

desatento, toda montanha é azul, e que, a priori, toda a pessoa é humana, a repetição poderia

constituir-se como um pleonasmo. No entanto, isso não ocorre quando é feita a leitura dos

dois últimos versos. É justamente por aparecer sob formas paralelas que a construção anuncia

um resultado – a comparação, mas acaba por dar noutro – numa antítese.

Segundo Riffaterre (1973, p.222), quando o texto permite verificar a construção da

metáfora, temos “uma metáfora em movimento”, porque ela se configuraria em uma

transferência de sentidos já conclusa.

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O fato de a pessoa ser caracterizada como humana, passa a não constituir, no

plano do conteúdo, um pleonasmo, já que nem todas as pessoas são tratadas como humanas,

constituindo, a dignidade, um direito natural retirado de muitas delas.

O que é comparado é o modo como o senso comum vê os elementos que

constituem o mundo. Os advérbios perto e longe fazem com que a idéia expressa pelo

primeiro verso seja contrária à exposta pelo segundo.

O que foi referido dá conta do valor que o título tem para o poema. Segundo o

dicionário, a palavra “perspectiva” lembra que o modo com que vemos uma coisa depende,

em grande parte, do olhar que lançamos para ela, constituindo a arte de representar sob um

determinado ponto.

Depreende-se da leitura que a distância esconde sempre a essência e que a

proximidade a revela, o que pode ser lido como elemento contrário à definição prévia

proposta pela metáfora.

O título do poema “Perspectiva”, serve ao assunto principal do texto, criticando a

forma como as pessoas se enxergam. O modo como um ser vê os demais é geralmente

pautado por orientações sociais, na maior parte das vezes de acordo com as regras que regem

a sociedade, e que, em muitos casos, compreende o homem de acordo com o que produz, ou

com o seu poder de consumo, ou, de acordo com a sua aparência física. Quem olha de uma

perspectiva, percebe apenas um dos lados que compõem o todo.

Nem pessoas nem paisagens podem ser iguais. As pessoas, sempre “humanas”, e

as paisagens, sempre “azuis”. Miradas de determinadas perspectivas, revelam detalhes,

diferenças e semelhanças.

É interessante notar que o termo “perto”, colocado no último verso, pode

representar afinidade no sentido de relação, de identificação e valorização do outro, e não

exatamente de aproximação física. Do mesmo modo, a “montanha” parece ser tomada apenas

como um exemplo dos diferentes olhares que podem ser lançados para a realidade.

A estrutura construída no primeiro e segundo versos é repetida nos últimos.

Estruturação que apresenta um caráter de conclusão - reúne e ironiza-, sob a égide da forma, a

idéia de igualdade, já que o pensamento uniforme objetiva, geralmente, a construção de

opiniões massificadas. Sabemos que, contrariamente ao exposto, é exatamente pelo

entendimento e valorização das diferenças que se gera uma sociedade igualitária e

democrática, e não o contrário. Nesse sentido, a idéia de aproveitamento do espaço da página,

dialogando com o conteúdo através da marcação de distâncias (iguais) entre os versos um e

dois, três e quatro, também pode concorrer para essa significação, porque o fato de os versos

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um e três estarem recuados, diz da posição do observador que, na verdade, ao contrário do

que critica o poeta, não muda. Por outro lado, apesar de os advérbios serem contrários entre

si, também permitem verificarmos que o fato de não examinarmos bem a realidade pode

levar-nos a não contestar o modo padronizado com que, em muitos casos, somos levados a

pensar sobre as coisas, aceitando verdades já cristalizadas.

Sob o aspecto da luta de classes ou da sociedade moderna, o termo “pessoa

humana” poderá constituir uma refutação à idéia de dominação expressa pela célebre frase

proferida por uma das personagens da obra Revolução dos bichos (ORWEL, 1971, p.95):

“todos são iguais mas alguns são mais iguais”.

Considerando esse nível de comparação, entendemos que pessoa humana não

constitui redundância, uma vez que o vocábulo humano significa, nesse contexto, que todas as

pessoas possuem direito à vida, a bens e serviços que favoreçam a saúde, a moradia, a

educação, o acesso à comunicação e à ciência.

3.5 - A Amazônia: causa individual e coletivo-social

A luta pela terra, a defesa dos povos nativos e dos posseiros é transfigurada num tipo

de poesia que reflete o forte apelo que sente ( e faz as demais pessoas) o eu lírico por esse

trabalho, o qual é não apenas individual, mas coletivo: enquanto, num grupo de textos, os

questionamentos interiores plasmam uma capacidade de sentir a dor do outro, esta será

transformada, noutro grupo, em convite àqueles que ainda não sentem a necessidade de

comprometimento com o mundo.

São textos que reproduzem, no nível da forma (com refrões e paralelismos), a

intensidade desse sentimento. Eis os textos: “SEDUZISTE-ME; SENHOR” (CM, p.35) e “Na

roda” (CG, p30):

“Seduziste-me, Senhor E eu me deixei seduzir” Desde que aprendi teu Nome No balbucio de casa. “Seduziste-me, Senhor E eu me deixei seduzir”

E queimei a mocidade

No fogo de tua espera. “Seduziste-me, Senhor E eu me deixei seduzir” Em cada novo chamado

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o que vinha do além mares. “Seduziste-me, Senhor E eu me deixei seduzir” Até os limites do dia, Até as fronteiras da morte. “Seduziste-me, Senhor E eu me deixei seduzir” Em cada rosto do Pobre A procura do teu Rosto. “Seduziste-me, Senhor

E eu me deixei seduzir”

Numa luta desigual Dominaste-me, Senhor E foi tua a vitória

Seduzimo-nos, Senhor!

Trata-se de um poema contemporâneo, cuja temática é religiosa e social engajada,

que contrasta imagens interiores às exteriores ao eu lírico, a partir da sua visão, a da primeira

pessoa do singular. Do ponto de vista formal, o poema compõe-se de sete quartetos, todos em

redondilha maior, metro bastante usado nas cantigas populares, o que pode significar

influências da cultura brasileira no estilo do autor; isso pelo fato de tal metro não ter sido

encontrado nos poemas escritos pelo poeta, antes de ele ter vindo para a América do Sul

(Brasil), assim como nos escritos dos primeiros anos da sua estada no continente.

“Seduziste-me, Senhor E eu me deixei seduzir” Desde que aprendi teu Nome No balbucio de casa.

Pelo fato de o título e os dois primeiros versos constituírem uma transcrição literal

de um versículo bíblico do Livro de Jeremias, nomeadamente o versículo sete do vigéssimo

capítulo, aparecem entre aspas. Repetido em todas as estrofes, um refrão influencia os

seguintes aspectos: a) constitui-se na temática central do texto, a tese que vai ser desenvolvida

ao longo do poema; b) reforça a idéia de sedução, materializa-a, pela insistência na audição do

chamado; c) determina o número de sílabas poéticas dos demais versos e favorece uma pausa

no final de cada verso e no final do refrão.A interposição alternada do refrão entre os versos e

a sua quebra é uma espécie de voz que lembra ao sujeito, a todo momento, o chamado, a

sedução que veio do Senhor. Esses aspectos ligam-se ao título da obra, Cantigas Menores,

metáfora usada por alusão bíblica aos profetas ditos “menores” no Primeiro Testamento ( e

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também nos versos estudados) , no qual profeta é quem preconiza mudanças e, a exemplo de

Moisés, ajuda o povo a se organizar.

O refrão dá o mote para as demais repetições; a do terceiro verso da terceira

estrofe, em cada novo chamado, e a do terceiro verso da quinta estrofe, em cada rosto do

pobre. Essa última construção é uma outra forma de chamamento, uma metonímia, imagem

que atrai o eu lírico, impelindo-o a sair do seu interior, e partir para onde habitam outros

rostos, que dele necessitam. E, por fim, a ocorrência do mesmo fenômeno internamente, na

quarta estrofe, entre os dois últimos versos, até os limites do dia/até as fronteiras da morte.

A alternância entre os dois últimos versos e o estribilho permite verificar que a

relação Deus-homem é um valor explicito na manutenção de um ritmo marcado pela

exposição da proposta feita pelo primeiro agente nos dois primeiros versos e a resposta nos

dois úlitmos que, por força da entonação daqueles, livremente a segue, dando maior valor à

proximidade e tranqüilidade que ronda esse ser na sua relação com o Senhor. Há um

cruzamento de ações e características cujos resultados já estavam determinados pela estrutura.

A estrutura ajuda a ascender aos significados, porque, ao primeiro olhar, a camada

verbal do poema (adjetivos e substantivos) é mais definida em relação aos sentidos. Depois de

decodificados os vocábulos e a sintaxe, ocorre uma internalização textual que permite a inter-

relação dos planos lexical e estrutural e a estabilização dos elementos semânticos. Os versos

iniciais, então, permitem a evolução rítmica e sígnica do texto, ou seja, a recorrência de

palavras sinônimas têm correspondência no ritmo.

A repetição rítmica corresponde a um ir e voltar no sentido dos significados, a um

não situar-se em elementos específicos e, sim, a buscar o sentido do texto como um todo. O

uso constante do refrão em todos as estrofes faz com que os nomes tenham valor acentuado.

Como portador de variados significados, o poema guarda sempre um mistério como que

anunciando que não foi feito para ser traduzido

Os últimos versos de cada estrofe intensificam e exemplificam a forma como o

eu-lírico acolhe e tenta responder ao chamado que o interpela. Convite que aparece desde a

primeira estrofe, no balbucio do teu nome (último verso), até o momento da entrega, na última

estrofe: Seduzimo-nos, Senhor, /numa troca desigual/e foi nossa a vitória.

Os recursos formais são, em boa parte, oriundos da estética clássica, como a

métrica, o uso do refrão e a organização estrófica. Contudo, o tratamento dado à temática, a

ausência de rimas, a correspondência entre ritmo e conteúdo, os enjambements

(encavalgamentos), demonstram que o poema é de característica moderna.

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Os enjambements constituem, na maioria das situações, metáforas espaciais. A

construção que vinha do além-mar, o além-mar, constitui uma alusão à América Latina que,

personificada, alarga a visão do eu poético, chamando-o, retirando-o do espaço interno –

aquele que se encontra no primeiro momento do poema, o do balbucio de casa-, e convida-o a

lançar o olhar para essa América Latina com todas as suas vicissitudes.

Remetendo aos sentidos carnais, a exposição do conteúdo vai se fazendo por

sinestesias gradativas, nas quais se pode perceber a existência de uma dicotomia na relação

homem-Deus.

Na primeira estrofe, o aprendizado da língua se dá pela escuta, constituição

(balbucio) e repetição do signo lingüístico. Trata-se de ouvir e pronunciar o nome de Deus (

Teu Nome). Na segunda, a presença do fogo metaforiza a angústia de quem está frente à

decisão de seguir o chamado. É o fogo que arde e queima. O verbo queimar, que constitui

uma metáfora sinestésica, lembra aquilo que, à medida que é consumido por um espírito ativo

que insufla a vontade de ir ao encontro daquele que está além mar, arde em desejo de chegar a

uma resposta à interpolação que lhe é feita. Parece significar que a vida pode ser dedicada a

dar respostas ao chamado ouvido, o qual é espiritual e geográfico. Trata-se de ouvir o

inaudível, a voz da consciência de um eu-humano na qual habitaria um eu-divino. O chamado

ressoa do interior, daí ser inaudível. Denota-se um sentido duplo: o Senhor que habita as

alturas – o mundo invisível dos cristãos-, e o Senhor que habita a alma do homem, sem a qual

não pode entender nem responder ao chamado, relação que pressupõe haver identidade entre

esses seres. Não se reconhece fora o que não está em si.

Simboliza também a própria dificuldade de reconhecer a voz que vem de seu

interior, o que torna demorada a resposta, e dolorosa a tomada de decisão, sendo necessários

muitos outros indícios da existência do convite.

Na terceira estrofe, o convite vem do além mar e volta a perturbar, porque, agora,

quem chama não é apenas o seu interlocutor, o Senhor, mas, outros povos que se encontram

noutros continentes.

Essa voz vai se intensificando gradualmente até a terceira estrofe, quando são

eliminadas as fronteiras do mundo. Na 4ª estrofe, na construção até os limites do dia/até as

fronteiras de morte, há uma insistência nessa eliminação, que gera a passagem da simples

escuta para a preocupação em transpor os conflitos interiores provocados por aquilo que o eu

ouve (a mensagem). Porém, é importante notar que há, na construção, uma metáfora por

comparação, operando transferências de sentido, usando elementos de natureza diferente.

Uma comparação simples poderia apresentar dia contrastando com noite, ou morte

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contrastando com vida. No entanto, temos dia contrastando com morte. São elementos de

campos semânticos distintos, configurando-se, ao mesmo tempo, como comparação e

paradoxo. Comparação, porque pode haver relação de paridade entre limite, que vai significar

a fronteira entre o dia e a noite, o crepúsculo, momento de descanso, após o trabalho diário,

exigido de quem recebeu o chamado, e morte, da mesma forma, pode significar limite da vida.

Paradoxo por valorizar a oposição entre dia e noite reconhecendo-os como diferentes

momentos do existir. A narratividade poética amplia os sentidos do texto. Segundo Salvatore

D’Onofrio (2002, p.22), “todo poema é uma micro narrativa”, alguns, porém, apresentam

maior proximidade com esse gênero. No poema em estudo, para falar do chamado até à

vitória, o autor usa a gradação das idéias e acontecimentos, o que permite uma aproximação

com tal gênero, por meio dos verbos presentes no refrão: “Seduziste-me, Senhor -E eu me

deixei seduzir”, pois a ação de um dos interlocutores exige outras ações do eu lírico

interpelado: prendi, balbucio, espera, procura, seduzimo-nos, troca etc.

Há ainda a presença de dois personagens: um eu lírico e seu interlocutor – o

“Senhor”, que é quem conduz. Ao final, ambas as personagens, “eu” e ”tu”, se fundem em

“nós”. Esse recurso é denominado enálage, possivelmente indicando que os dois (suas vozes)

tiveram ao longo do “enredo”, o mesmo peso.

Há, evidentemente, um tempo que rege essa micro-narrativa. Inicialmente é

interno. Diz respeito a como ele, o ser interpelado, sente o mundo externo representado

através da noite e do dia, através das viagens, e do além-mar. Todavia, à medida que o espaço

e o tempo se ampliam, o tempo interior passa a exterior, o curso de uma vida, havendo uma

forte alusão a esses dois tipos de tempos, não uma morada em nenhum deles, mas, sim,

movimento, passagem (durante o curso do texto) de uma situação a outra, o que não altera o

propósito do eu lírico. Tal como o espaço, o tempo é passageiro, possui uma crescente

mobilidade no texto poético.

Deve-se considerar, também, a constante intertextualidade presente na obra

poética de Casaldáliga, a qual ocorre com textos diferentes entre si: a) o intertexto freqüente é

o bíblico, como foi dito pelo refrão, que retoma o chamado de Jeremias e a questão do

Espírito Santo nos dois últimos versos da segunda estrofe; b) com o conhecimento histórico e

geográfico do interlocutor de Casaldáliga (leitor de seus textos) de que há um mundo além-

fronteiras (em relação sempre as fronteiras européias) – superadas pela personagem poética;

c) com a Teologia da Libertação, movimento caracterizado pela práxis, reflexão que deve

gerar ação e vice-versa. Nesse sentido, depois de ouvir o chamado do Criador, o eu lírico

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procura compreender em que situações da sua vida Deus se manifesta, como quando permite

que, no rosto do pobre, este eu o veja além das fronteiras do seu olhar.

A questão religiosa é tratada de forma moderna, pois o fato de o homem e Deus se

seduzirem, tornou-se somente aceitável a partir do último século (Marï & Hazasa 2000, p.

551), no qual o homem redescobriu o seu próprio valor diante Deus. Tal descoberta advém,

em grande parte, da Renascença, passando por Descartes e pela cultura positivista na qual o

homem coloca-se, mediante as suas possibilidade científicas, como criador. Nos momentos de

encontro entre a cultura ocidental e a americana, resvalou em novas culturas (continente) e

novos modos de entender o sagrado.

Aplicando-se ao texto a teoria da união homem-Deus, advinda da segunda fase da

Renascença espanhola (Marï & Hazasa 2000, p. 551), nota-se certa correspondência entre as

vias propostas pela teoria da poesia ascético-religiosa. Num primeiro momento, da primeira à

terceira estrofe, a Via Iluminativa; da quarta à quinta, a Via Purgativa, e na última estrofe, a

Via Unitiva. Contudo, esse caminho não seria protagonizado somente pelo “eu”, sujeito do

texto, mas pelo próprio mundo ocidental, na sua forma de compreender, estabelecendo uma

relação bilateral e vertical (de cima para baixo, do divino para o humano) com o divino, que

esteve no centro medieval, e o humano, em voga na Renascença. Na concepção do texto em

que a relação é horizontalizada, ambos estão no mesmo patamar, não há interferência entre os

planos, mas uma fusão deles – a Via Unitiva.

A Via Purgativa é, nesse sentido, o olhar do homem lançado a outras direções e a

percepção de que há um espaço maior que o seu pequeno mundo. Esse é o processo pelo qual,

segundo a Teologia da Libertação, devem passar os cristãos e a própria humanidade. Isso

deve fazer com que se acabem os medos que possam ter existido entre o Ser Superior e os

seres humanos, o que levaria, mais tarde (pensando na criação do mundo como obra de Deus

e que, sendo os homens seus filhos, seriam partícipes da criação), a uma redistribuição dos

bens naturais. Hilda Magalhães (2002, p.301) afirma que, para a Teologia da Libertação, essa

redefinição poderá dar-se, inclusive, pelo confronto físico.

Nessa direção, o texto passa, assim como toda a obra de Pedro, por uma

tematização do ser individual ao coletivo. Mikhail Bakhtin (apud D’Onofrio, 2002, p.21)

considera dialógicas ou ideológicas as obras que partem dos anseios de um grupo,

caracterizando-se pela não conformação ao pensamento dominante, dialogando com outros

modos de entender a vida, sendo, portanto, polifônicas:

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“Expressões dos anseios de um grupo social que acredita nos valores humanos e

nas possibilidades de conhecimento da verdade bem como no triunfo do complexo de virtudes

que compõem a ideologia social”.

D’Onofrio (2002, p.21) afirma que, nessas obras, são comuns os usos de

oxímoros, paradoxos, irreverência e descrença nos valores éticos, religiosos e sociais, postos

pela sociedade vigente. È o que ocorre no poema que tratamos – uma desconstrução da forma

convencional de ver o mundo e a religião cristã, em função da construção de outras verdades,

através de metáforas que proporcionam abertura ao desconhecido e dá ao texto sentido de

coletividade. Sentido, que será aprofundado pelo estudo do poema NA RODA (CG, p30):

Na roda. nesta roda viva, se me das à mão se eu ajunto o pé, se ele traz a voz, se nos unimos na dança, na marcha, no grito, na luta... a roda avança a roda se firma e, um dia, se impõe. a roda do povo.

Em NA RODA, está contida a segunda parte da obra A cuia de Gedeão (CG, p.

30), cujo título é “Cantigas de pé no chão”. De apenas onze versos, o poema reúne um

conteúdo próximo ao daquele estudado anteriormente: apela ao convite para que haja luta por

algo, que se entre na roda.

Haverá um encontro entre os dois textos, do ponto de vista do conteúdo, veiculado

pelas imagens que representa, de modo que há recorrência, no sentido de repetição ou

paralelismos, segundo Jakobson (apud Nöth, 1999, p.18), base semiótica da poeticidade.

Ao iniciar com o demonstrativo nesta, o eu lírico convida o leitor para visualizar a

roda, efeito intensificado nos versos seguintes, quando ele vai convidando a todos para a roda

que vai sendo composta. Ocorre aí uma metonímia, troca do todo pela parte. O interessante é

que o jogo parte-todo é feito por reiteração: as partes são o “eu”, o “ele” e o “nós”, pronomes

pessoais com os quais os versos dois, três e quatro são iniciados. E também, por “mão”, “pé”

e “voz”, que representam partes do corpo dessas pessoas.

Da primeira à quinta estrofe, há a convocatória para um mutirão: as pessoas, parte

de uma sociedade, são chamadas por um eu lírico, que, oculto nos dois primeiros versos Na

roda/Nesta roda viva, parece que vai apenas apresentar a roda por meio de um olhar exterior,

sendo revelado nos demais: “me”, “eu” individualmente, até dar em “nós”, fenômeno

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possibilitado pela referência à parte do corpo delas, cada uma com sua vocação e com

diferentes possibilidades de contribuir.

O mutirão poderá ocorrer na dança, na marcha/no grito, na luta. São duas

estrofes que sintetizam o poder de união consolidada -....a roda avança/ a roda se firma/e, um

dia, se impõe/a roda do povo. Não é qualquer união, mas a do povo.

O ritmo do poema é marcado pela continuidade e por leves pausas, no final de

cada verso, encerrados por vírgula, o que sugere uma roda, isso porque as paradas não muito

bruscas permitem que o ritmo cresça e decresça no decorrer do texto. Começa lento e vai se

intensificando da sétima à nona estrofe, diminui, outra vez, à medida que a roda do povo se

impõe.

Se pensarmos nas cirandas nordestinas, a roda em si já propõe esse tipo de ritmo.

E, como a cruz, constituem símbolos: as primeiras, da união manifesta na tradição popular:

rodas de viola, roda de samba, roda de tereré, e as brincadeiras de rodas que se ligam às

evocadas Cantigas de pé no chão, título da parte do livro em que está o poema, e a última, do

cristianismo. Isso nos remete ao que diz Otávio paz (133, p.1982), “antes de ser medida

vazia, o ritmo é inseparável de uma idéia concreta”.

A medida rítmica, junto a outros recursos de linguagem, permite que haja

valorização da pluralidade dos significados próprios da palavra poética. Assim, ao mesmo

tempo em que o pé é isto, pode ser também aquilo, a roda.

Nesse poema, como em outros de Casaldáliga ( por exemplo, em “Beleza

perfeita”, “Terra nossa, liberdade” e “Seduziste-me Senhor”, já estudados), o autor recorre ao

uso de construções sem subordinação entre termos. Em Se nos unimos /na dança, na

marcha/no grito, na luta..., por exemplo, o conjunto dos versos iniciado pela condicional

“se”, vai, como que deslizando para os demais, até terminar com as reticências. O mesmo

ocorre nos versos posteriores: “a roda avança /a roda se firma/ e, um dia, se impõe/a roda do

povo” que mantém sempre a estrutura, artigo-substantivo-verbo de ação. O fato de passar de

um verso a outro sem pausa longa, a curta extensão dos versos, o não uso de muitas

conjunções torna ágil a leitura do texto, dando impressão de que, após a entrada na roda, ao

assumir a causa coletiva, o ser não consegue mais sair dela, a luta o conduz.

Ë justamente essa idéia de luta contínua que permeia toda a obra de Pedro

Casaldáliga. Idéia de continuidade que se resolve, ao mesmo tempo, no plano da forma e no

do conteúdo. No que se refere à forma, apresenta tendência para a parataxe, fenômeno que,

para Castro (1997, p.11), tem por si só, caráter poético, e transgride a propensão normal da

Língua Portuguesa – a hipotaxe, possuindo “força renovadora no tecido poético da língua.”

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Segundo o autor,

a parataxe tende a fundir num só espaço polivalente os eixos sintagmático (horizontal) e paradigmático (vertical) definidos por Saussure, criando uma condição sintoparadgmática, onde a comunicação se realiza instantânea e sinestesicamente, isto é, poeticamente, como disse Roman Yakobson ao conceber a projeção do eixo paradigmático sobre o sintagmático. (CASTRO, 1997, p.15).

Além da parataxe, há ainda o uso das metáforas absolutas (aquelas que não

parecem ser comparativas, mas qualificadoras, como Mãe África e Pachamama, para designar

respectivamente África e América Latina, meios de expressão que estão mais presentes na

obra de Pedro, quando a sua poética incorpora termos locais, próprios das regiões do Araguaia

e da América Latina.

Mas, mesmo havendo uso desse tipo de metáforas e, constantemente, como já

evidenciado nas análises anteriores, de recorrência, foi possível perceber que, em muitos dos

poemas estudados, como é o caso de “Terra Nossa, Liberdade”, a maioria das construções

concorrem de modo acentuado para a significação do texto, o que valoriza o seu papel na

frase.

Nessa direção, rejeita (ou faz pouco uso dela) a subordinação, em termos

lingüísticos, do mesmo modo que o faz no que se refere à sociedade. Em “Na roda”, rejeita a

idéia de individualismo, formando, no plano do discurso, a corrente que, de modo circular e

igualitário, faz surgir a roda do povo. Além de termos de considerar essa condensação e

economia de palavras também temos de ter em conta o estilo do autor: um modo imposto no

ocidente do poetar - que culminou nos concretistas-, de que o poema, para ser bom, não deve

ter nada sobrando.

O fato de o poema ser encerrado com o vocábulo povo abre diversas

possibilidades de significação, podendo ser: a) pensar que o conjunto de pessoas (os pobres e

excluídos), geralmente chamado de povo, deva integrar-se à roda, nesse caso, metáfora de

sociedade; b) que a roda é a luta de um grupo que estaria à parte; c) por fim, como já dito,

marca a já analisada estrutura circular do texto.

Se tomarmos roda como metáfora da luta do povo, perceberemos que os seus

textos dialogam com a pintura de Cerezo Barredo59, de quem apresento um dos quadros, o

qual considero que, além de uma fidelidade na retratação plástica e estilização de

59 Cerezo é espanhol, nascido em 1932. Já pintou em diversos países, muitos da América Latina, e mais da América Central. E ainda, na África e nos Estados Unidos. Lecionou Belas Artes em Madri, Roma e na Universidade de Salamanca (CASALDÄLIGA, 2005, p.75).

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características da América Latina, também apresenta a idéia de continuidade sugerida, função

de colocar junto a seus leitores o convite à entrada na roda, no engajamento coletivo.

Trata-se de um afresco do pintor “Da Libertação”, que, em comparação com os

poemas de Pedro Casaldáliga Plá, também retrata uma temática engajada e social, visto que

recorre a temas políticos, religiosos e referentes à natureza, terra, água, fauna e flora, como

ponto de convergência. A obra plástica analisada faz parte de um mural da catedral de São

Félix do Araguaia-MT (decretada patrimônio cultural do Estado de Mato Grosso em agosto de

2005), tendo sido produzida em 1977 e, atualmente, publicada junto a outras imagens do

mesmo artista, numa obra intitulada Murais da Libertação, pelas edições Loyola60.

Por tratar de outro tipo de linguagem, pensei que seria importante e necessária a

busca de um corpo teórico no qual me pudesse sustentar, algo que fizesse a aproximação entre

diferentes manifestações de arte. Nesse sentido, lidar com o poema é lidar com a imagem

verbal, o trabalho com afresco situa-se no campo do visual.

Dorfles (1992, p.08) afirma que o estudo de imagens contempla as mais diversas

áreas, entre elas, a semiótica, as artes e a literatura.

Para Bosi (1981, p.10), o estudo da imagem vai além da definição do termo

“imagem” que vem do latim parecer, parecença. Ele observa que, ao longo do tempo,

diversas significações vão sendo atribuídas às obras, e estas, desde a pré-história, talhadas em

madeiras ou pedra, têm a função de comunicar. Isso ocorre mesmo que, em alguns momentos

da história, tal função não fique em evidência, ocorrendo mais acentuadamente quando

saímos, como afirma Fussém (2002, p.11), do domínio imagético para o da conceituação, da

“idolatria” para o da “textolatria”. Para MANGUEL (1997, p.21) as imagens: “Variam

constantemente, figurando uma figura feita de imagens traduzidas em palavras, e, de palavras

traduzidas em imagens, por meio das quais tentamos abarcar e compreender nossa própria

existência”.

Desse modo, elas podem estar no domínio das representações visuais:

desenhos, imagens, fotografias, imagens televisivas e cinematográficas; ou no domínio das

imagens imateriais, representações mentais: fantasias, imaginação. São partes que dependem

umas das outras, pois, para existir uma materialidade (ou representação), é preciso que exista,

antes, imaterialidade, ou melhor, uma idéia. Quando esses dois elementos se unem, temos um

signo ou representação. Nesse sentido, Santaella e Nöth (1980, p.17), afirmam que, para

60 É um livro no qual há também textos de Casaldáliga escritos para acompanharem as imagens, os quais o autor chamou pés poéticos.

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Pierce, representar é “estar para”, quer dizer, algo está numa relação tal com o outro que, para

certos propósitos, é tratado como tal. Os conceitos de signo e de representação são similares,

geralmente tratados como sinônimos pelo autor. Daí a razão de Pierce ter introduzido,

segundo Santaella e Nöth (1980, p.18) o conceito de representamem, ação de representar.

Em Filosofia da caixa preta, Vilém Fussém (2002, p.10), explicita as relações

entre imagem e imaginação:

A imaginação tem dois aspectos: de um lado permite abstrair duas dimensões do fenômeno, de outro, permite construir duas dimensões abstraídas da imagem. Em outros termos: imaginação é a capacidade de codificar fenômenos de quatro dimensões em símbolos planos e decodificar as imagens assim codificadas. Imaginação é a capacidade de fazer e decodificar imagens.

Considerando que se trata de um estudo que vai diretamente ao texto, vendo-o

como pertencente ao campo da matriz visual ou da imagem plástica, penso que a primeira

parte desse quadro funciona como uma metáfora, sobreposição das duas idéias que dão título

ao mural: “A páscoa de Cristo e a páscoa do povo”. Consiste num efeito que permite a

comparação com o poema “Na roda”, ato de carregar a cruz (em mutirão), presente no quadro,

e que lembra o fato de o poema remeter às diferentes pessoas que compõem uma sociedade e

as partes do corpo delas, cada uma com a sua vocação e com diferentes possibilidades de

contribuição. A união, por esse prisma, possibilitaria a saída de uma vida de dificuldades para

uma de partilha, “a páscoa do povo”. Esse fato estabelece mais uma possibilidade de diálogo

com o poema, pois, segundo Chevalier (1974, p.185):

a roda participa da perfeição do círculo mas com uma certa violência de imperfeição, por que ela se refere ao mundo do vir a se, da criação contínua...é um símbolo privilegiado do deslocamento, da libertação das condições de lugar e de estado espiritual que se lhe é correlativo.

Ao tratar especificamente de um tipo de roda, denominado “roda de nóia” (um

tipo de símbolo que lembra uma cruz traspassada em todas as direções e indicando sempre o

centro, usado por antigas civilização celtas), Chevallier (1974, p.308) fá-la corresponder a

uma convergência para o meio, a um “retorno ao centro do ser”. Nesse sentido, o ato de se pôr

em círculo, próximo à idéia de passagem, por revelar possibilidade de construção contínua,

estaria evocad, também, pela cruz61 que lembra a Páscoa. Cruz que, segundo o mesmo autor,

61 Há uma variedade de tipos de cruz, sendo que muitos deles se assemelham a um círculo, algumas apresentam dois braços, outras seis. Como eram muitas, foram usadas para diferenciar os membros da hierarquia católica e para determinar o projeto arquitetônico das igrejas que desenham uma cruz onde posicionam-se os fiéis. A catedral em que se

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tem grande significado para as mais diversas civilizações. Tendo passado ao cristianismo

como uma alegoria, ao mesmo tempo do sofrimento e da vitória de Cristo, tornou-se, para

ele, um de seus mais importantes símbolos. Como informa Chevallier (1974, p.309):

Para todos os pontos cardeais, a cruz é em primeiro lugar a base de todos os símbolos de orientação, nos diversos níveis da existência do homem. A orientação total do homem exige um triplo acordo: a orientação do sujeito animal em relação a ele mesmo; a orientação espacial em relação aos pontos cardeais terrestres; e finalmente, a orientação em relação aos pontos cardeais celestes.

O fato de Cristo ter sido nela crucificada, representaria um desejo de abraçar o

mundo, sentimento que é transferido para o povo, que passa agora a carregá-la.

Figura1:

Observando a imagem, percebemos a presença de pessoas com rostos redondos,

vestimentas simples e pés no chão, carregando a já citada cruz. Esta cena trespassa a paisagem

de um lado ao outro como um recorte, de modo que as pessoas, “os pobres”, saem do local

onde estavam antes, casas pequenas e rústicas, para conquistar outra parte da terra, separada

por cerca.

O uso em abundância da cor vermelha que, para o Cristianismo, é sinal de

martírio e sangue derramado, reforça a idéia da luta de pessoas que assumem a própria luta de

Jesus Cristo, simbolizada pelo fato de carregarem a cruz.

O povo ocupa o plano central, onde os indivíduos passam a ser grupo, recurso

utilizado como síntese da idéia de que os homens fazem a sua própria história. Os demais

elementos são colocados em perspectiva, com dimensões que facilitam a visão do plano

encontra o afresco estudado tem formas arredondadas, é talhada em madeira e os pilares que a sustentam assemelham-se a troncos de árvore.

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principal, ligando o signo ao que ele representa, isso é, destacando por este plano principal a

mensagem. A isso Santaella (2001, p.148) chama “figura como convenção: a codificação”.

O livro Murais da Libertação traz os seguintes recortes do Mural A páscoa de

Cristo e a páscoa do povo (imagem 1):

Figura 2 Figura 3 Figura 4 Figura 5 Figura 6

As partes representam e acentuam características marcantes do conjunto: os pés

(figura 2) indicam que a luta é material e terrena; o Cristo, o cristianismo (imagem 3); a cerca

ao redor da terra representa a propriedade privada (figura 5); a pomba (figura 6), intertexto

bíblico, representa o Espírito Santo, força invisível que não aparece na imagem analisada

(figura 1), sendo retratada apenas quando o artista fragmenta (em quatro) para fins de

publicação seu próprio afresco; a figura 6 constitui, assim, uma figura elíptica.

O quadro analisado é apenas um exemplar da obra, afresco em que se nota um uso

bastante acentuado das cores e um delineamento maior dos rostos em relação às demais partes

do corpo, expressões que, por serem arredondadas, lembram as etnias nativas da América

Latina. No dizer de Casaldáliga (2005, p.77), é uma sinfonia de cores e, por assim ser, parece

aproximar a pintura do artista à pintura daqueles povos, já que suas representações artísticas

são marcadas por cores fortes. Os dois elementos aqui destacados, uso de cores muito vivas e

retração de rostos símiles, as feições das etnias da América Latina, aparecem na maior parte

dos seus trabalhos (refiro-me àqueles expostos na Prelazia de São Félix do Araguaia),

compondo o estilo do pintor que representaria alusão ao conjunto dos povos latino-

americanos ou da roda e mutirão.

De acordo com a forma como Sataella (2001, p. 146) trata a imagem, ressalto que

a estudiosa divide as formas visuais em formas não-figurativas (o abstrato, por exemplo),

figurativas e representativas que, não estão separadas entre si, formando um conjunto. Numa

representação, no entanto, uma das formas sempre se destaca; em nosso caso, destaca-se a

representativa.

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3.5-Das configurações espaciais ao dialogismo e à intertextualidade

Encerrando, observo que a poética de Casaldáliga é rica em construções

que trazem metáforas e alusões ao espaço geográfico, fenômeno evidenciado principalmente

no estudo dos poemas “SEDUZISTE-ME, SENHOR”, “Pacu”, e no haicai “Vendi a terra”. É

metaforizado em “terra”, “além mar” e marcado por fronteiras, o “lá”e o “cá”, o “perto” e o

“longe”. Trata-se, pois, de um lugar que comporta o homem. Questionado sobre o assunto,

numa entrevista, respondeu que, com a sua poesia, não luta pela terra em si,

...estou lutando pela terra para, pela terra habitat. Eu estou defendendo a casa, pela família que habita nessa casa. Não a casa pela casa. Eu não estou defendendo a casa arqueologicamente, eu a estou defendendo porque foi moradia de um povo, porque passou uma história humana por lá e não simplesmente porque é uma construção e ficou aí. Mesmo uma construção feita no século XIII e largada tem um valor humano de construção... ...Interessa muito mais o povo da Amazônia em si. Interessa a Amazônia, sobretudo como habitat da humanidade, do povo amazonida...

Considerando que Bachelard (2003, p.61) entende o espaço do conhecido como casa,

ela seria, nesse contexto, formadora do homem. Idéia confirmada quando da leitura e análise

de um conjunto de textos de Pedro Casaldáliga. Uma boa parte deles apresenta metáforas

relacionadas à questão do local, como, por exemplo, os títulos de algumas das partes dos seus

livros Geografia decorada, El vuelo del Quetzal62, Espiritualidad en Centroamérica (livro

cuja temática é a espiritualidade nicaragüense), e dos poemas: “Campesina”, “Señora de la

ciudad”, “Romance guadalupano”, “Nossas vidas são o Araguaia”, entre outros, que remetem

a lugares tanto no título como no corpo do texto.

São, então, textos poéticos que lidam sempre com espaço interno e externo, o local e o

universal, acordando no leitor de poesia, o desejo de estabelecer até onde vai o verossímil.

Por transitar do próximo ao geral, o poeta passa pelo diálogo, entre vários modos de vida

e sociedade, o nativo e o ocidental (cristão), o moderno e o primitivo, o capitalista e o comunista, o

individual e o comunitário, fato que o faz estar em constante intertexto. Ë justamente essa propensão

para uma vertente dialógica que revela na sua obra.

Em Problemas na poética de Dostoievski, Bakhtin (1981, p.10) postula que o papel da

obra polifônica ou dialógica é criar, de variados materiais, uma obra de arte una e íntegra. A sua

62 O Quetzal é uma ave da Amazônia, cujas penas lhes eram retiradas pelos povos indígenas (locais) para ornamentação, e que, por esse fato a ave está à beira da extinção, sendo das mais raras da Amazônia. O título da obra é sugestivo dessa raridade e dessa espiritualidade, como se a sua ausência fosse sentida em espírito, uma vez que material e fisicamente a ave quase não se encontra presente.

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principal função é a afirmação do eu do outro como sujeito e como objeto sobre o qual reflete. Esse

sujeito, que é o objeto sobre o qual se debruça o poeta, não se subordina ao estilo e tom pessoal, mas

influencia na criação de um texto multifacetado, povoado por muitas individualidades. Propicia a

criação de obras poliestilísticas, ou, no entender do autor (1981, p.15), por apresentar tantos estilos,

poderiam ser consideradas sem estilo, sendo que, pela comparação do princípio composicional e

multiplicação de centros de consciências, chega a ser polifonia. O princípio dessas composições (1981,

p.09) é a “subordinação dos elementos diametralmente opostos à unidade do plano filosófico” duma

obra, projeto que creio existir no caso da obra de Pedro – a retratação e valorização do “homem”, tanto

do ponto de vista dos espaços que ocupa, como do modo como lida com o tempo. Nesse sentido, ele

considera que o poeta não cria idéias do mesmo modo que os filósofos. Cria imagens de idéias vivas

ou ocultas, que são fortalecidas quando colocadas em diálogo. Capta as relações entre elas.

O termo “polifonia” foi, segundo o autor (1981, p.13) importado da música, por

Leonid Gossman, que o aplicou à obra do russo Dostoievski – o mesmo princípio da mistura

de arranjos que já fora denominado por estudiosos dessa arte “polifônica”, de modo que,

passando pela unificação das matérias heterogêneas se chega à chave da polifonia.

Assim, baseando-me em Bakhtin, penso que a voz que emerge dos textos poéticos

de Pedro Casadáliga, não é uníssona, mas polifônica, porque o eu lírico, quando coletivo,

representa o povo do Araguaia, o sertanejo, o Karajá e o Tapirapé. São vozes que o poeta

conjuga e representa pela própria voz, ainda assim, continuam sendo vozes de outros. Em

alguns casos são constituídas por forças, como o ideal marxista, o cristão católico, o

existencialista, mitos locais e descobertas freudianas, que pareciam carregar inseparáveis

abismos entre si. Além disso, a necessidade de reunir muitos eus – ecológico, religioso e

místico, social, mítico (parecendo querer dar num ser integral) –, possibilita que existam, em

seus textos, a reunião desses diferentes corpos filosóficos.

Foi nessa perspectiva, que o vi como, além de um poeta militante e um Teológo

da Libertação, interlocutor de pensadores latino-americanos que, como exposto no capítulo

primeiro, primaram pela diversidade. Sua voz se soma a tantas que intentaram e ainda

intentam criar um pensamento que responda às especificidades do continente americano.

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CONSIDERAÇÃOES FINAIS

Desde o início da pesquisa, uma das coisas que mais me inquietaram foi a

necessidade de descobrir como desligar-me da figura emblemática que é Pedro Casaldáliga e

adentrar seus versos; isso porque, sendo ele muito conhecido por sua atuação social e

religiosa, os elementos externos poderiam vir a influenciar o estudo, que objetivou, em

primeira mão, fazer o movimento de depreender do texto a temática e o estilo do autor, e o

exercício de revelar o que há de poético em sua obra. Inquietação que me acompanha sempre,

porque não são raros os momentos em que me deparo com o desejo de colocar em primeiro

plano, em detrimento de sua poesia, o homem engajado que é Pedro.

Não há um descolamento entre a vida e a obra de Pedro. Há, sim, na segunda, para

além do que sua história pode nos dizer, um intenso jogo metafórico.

De fato, foram as metáforas fogo, cinza, vento e as constantes referências aos

pronomes eu e nós, um indicativo de individualidade, outro de coletividade, que primeiro se

insinuaram como possível resposta à pergunta: que elementos caracterizam a poesia desse

padre-poeta?

Seria sua poesia simplesmente instrumento (no sentido de panfletagem) de sua

luta social, ou seu engajamento residiria na manifestação profunda dos “eus” e dos “nós”

(como plural de “nó”) que povoam seus textos? “Eus” que, marcados pela retirada da terra a

que são teluricamente ligados, mantinham, como diria um de nossos ditos populares, “nós” na

garganta, agora liberados pela voz do poeta.

Insistentemente plural, sua poesia colocava-se para mim como possibilidade de

conhecer o homem contido nesse conjunto de seres (os “eus”) que é o Araguaia e também de

perceber como, por meio de imagens, poetiza sua fauna e sua flora.

Mais uma pergunta surgia: que elementos revelam o homem? Pensando em que

categorias poderiam ser, ao mesmo tempo literárias e humanas (no sentido de social), cheguei

ao espaço e ao tempo, que se colocavam como fatores inerentes ao ser humano. Pensei,

primeiro, no espaço geográfico e no tempo histórico; depois, mediante algumas leituras e a

tentativa de descoberta do significado simbólico dos termos cinza, vento, e águas, percebi

como o tempo e espaço iam se fazendo como categorias internas a cada indivíduo e como os

vocábulos referidos lembram ao mesmo tempo sua resistência, sua luta, seus sentimentos

interiores.

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Observei, ao longo da leitura, que sua obra, sendo manifestação de um grupo, é

manifestação também de uma cultura. Nesse caso, ela é, por força dos muitos momentos em

que entrou em contato com outras, mista. Para o poeta, em entrevista concedida em 2006:

cultura é a cosmo-visão, o ideário, o conjunto de valores que configuram um povo concreto. Toda cultura é dinâmica, processual e hoje, pela mundialização acelerada, esse dinamismo de intercâmbio com outras culturas é mais intenso.

Nesse sentido, fica clara a opção feita por ele de sair em busca de temas que

emerjam de uma experiência coletiva. São manifestações disso as inúmeras cantigas

dedicadas à lua, ao rio, e à terra, que dizem da natureza de cada uma dessas coisas e de como

as sente. Segundo atesta a introdução que faz aos livros - Cantigas Menores, “essas cantigas,

eu as recolhi rodando de ônibus por estas estradas, ouvindo falar o Povo, sentindo a Terra e,

um pouco, o Céu”; à Cuia de Gedeão, “este livro recolhe vozes, silêncios, gestos, lugares,

imagens, ansiedades noturnas e noturnas esperanças de minorias gedeônicas, espalhadas no

meio de nosso povo”; à Antologia Retirante, “quero que minha poesia seja retirante como é

esse povo” (1978; p.13) Coloca-se como retirante de um mundo que deixa à parte a maioria

dos homens; de uma “certa igreja” que pactua com isso; no Brasil que, segundo ele, escolheu

por pátria, onde é retirante, mas não estrangeiro, “porque Homem algum é estrangeiro na

Terra dos homens”.

Sou também, naturalmente retirante, retirante da poesia hermética, da Palavra narcisista, da Ópera aristocrática dos que se negam a profanar-em-serviço-fraterno os implutos braços de sua lira. Dos que cantam apenas Canção e não cantam a Vida, o Dia e a Noite, o pranto da Terra, a luta do Povo, a Esperança do Homem, a no da Boa Nova do Senhor. “Antologia Retirante (1978; p. 13)”

Sendo retirante, passa por muitos lugares e culturas, o lugar da religião e da

religiosidade popular, o do conhecimento científico e dos saberes tradicionais, das lutas

espontâneas e das articuladas por via das teorias sociológicas (no caso, pelo marxismo), dos

sentimentos coletivos e de como estes influem na existência individual. Sendo muitas as

possibilidades de desdobramentos desses temas, muitos os seres, homens de diferentes

culturas e diferentes ideais de sociedade, sua poesia faz-se polifônica.

Para alcançar o objetivo de perceber o modo como Pedro constrói esse seu

mosaico poético, pensei ser necessário elucidar o método. Sua poesia oferece-se naturalmente

à análise sociológica, esteticamente a uma abordagem em nível dos sentidos ofertados pelo

conjunto de signos que a compõem. Chegava-se assim ao que Antônio Cândido (2000. p. 9 )

chama, seguindo as orientações de Otto Maria Carpeaux, “método sintético”.

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Isso posto, seguimos as orientação de Cândido e Alonso que nos coloca, um que a

obra literária revela o “mundo”, mas que é, também, em si mesma um universo. Outro que,

para chegar à poesia, é preciso atravessar o curso das palavras. Dessa forma, fomos às

palavras porque, segundo Alonso (1965, p.25) “Las palabras, además de significar, sugieren,

gracias a complicados juegos de asociaciones implícitas. Las palabras pues, tienen sus leyes

propias: leyes de significación de sugerencia y de construcción”.

E é nisso que resultou o estudo, uma abordagem sócio-estilítica da poética de

Pedro Casaldáliga Plá. Abordagem essa que considerou a crença no homem, ato de esperança

e de luta-vigília. O corpo do trabalho é claramente um olhar primeiro sobre a sua obra e,

depois e, ao mesmo tempo, o seu comprometimento com a causa social coletiva. Na medida

em que o estilo do texto exigiu, fui buscando os elementos externos indicados por Cândido e

os exigidos por teorias do tempo e do espaço, para aprofundar o estudo feito.

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ANEXO I NOTAS SOBRE A TRAJETÓRIA DE PEDRO CASALDÁLIGA

Pedro Casaldáliga, Pere Maria Casaldàliga i Pla (em catalão), Dom Pedro, ou

simplesmente Pedro, como prefere ser chamado, nasceu a 16 de fevereiro de 1928 en

Balsareny (Barcelona). Filho de camponeses, ingressou em um colégio claretiano e foi

ordenado sacerdote em 1952.

Após sua ordenação, trabalhou como orientador num seminário de Madrid e,

posteriormente, foi transferido para a Rússia, onde, além do trabalho pastoral, atuava num

programa de rádio no qual fazia discussões sociais. De regresso à Espanha dedicou-se a uma

escola claretiana de Barcelona.

Chegou ao Brasil em 1968, na época mais dura da ditadura militar, durante a qual

passou um tempo numa casa de preparação, em São Paulo, que, então, recebia os missionários

estrangeiros dando informações e preparando-os para a dura realidade que encontrariam. Foi

ordenado bispo em São Félix do Araguaia, exatamente, e, por sua escolha, às margens do

Araguaia (Estado de Mato Grosso), em 23 de outubro de 1971. Antes de tornar-se bispo,

escreveu um documento denomindado Escravidão e Feudalismo em Mato Grosso, porém, foi

com sua primeira carta pastoral, Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifundio e

marginalização social (1971), que seu compromisso com a causa dos pobres ficou conhecido.

Nessa carta denuncia a situção de exploração que então havia naquela região. A

carta inicia-se como um testemunho, de modo que, ao terminar sua leitura, temos

praticamente um retrato da região e da situação retradas.

Depois de três anos de “missão” nesse norte de Mato Grosso, tentando descobrir os sinais do tempo e do lugar, juntamente com outros sacerdotes, religiosos e leigos, na palavra no silencio, na dor e na vida do povo, agora com motivo da minha sagração episcopal, sinto-me na necessidade e no dever de compartilhar publicamente, como que a nível de Igreja nacional e em termos de consciência publica, a descoberta angustiosa, premente.

Esta é uma introdução que demonstra que, desde o início, acreditou na

sensibilidade daqueles que leriam essa carta e na força e na luta pela transformação daquela

situação. O texto, muito detalhado, é dividido em seis partes: situação geográfica (na qual fala

da localização da prelazia), panorâmica sócio-pastoral (em que descreve o povo e sua

condição de vida), latifúndio ( em que relaciona todas as grandes fazendas da região

especificando o número de hectares, de funcionários, assim como também quem são os

donos), posseiros (relacionados por munícipios, com o número de filhos e de anos em que

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estão naquela terra), índios (parte na qual fala de todas as nações que habitam a região, dos

programas da Fundação Nacional do Indio e da Missão Salesiana, incluindo o papel do

Vaticano), peões (na qual descreve a situação em que se encontram os funcionários das

fazendas, que, tratados como escravos, são trazidos em caminhões de outras regiões do país

para trabalhar em regime de escravidão, muitos dos quais para pagar a viagem), política local

( em que fala da prática de troca de favores e das baixas condições de sobrevivência

existentes).

Sua atuação explicita o esforço por ajudar a população e por retirar o que então

era chamado “prática da desobriga” – cada vez que um padre ia a uma região batizar e realizar

todos os demais sacramentos, para, oficialmente, tornar a todos cristãos”. Casaldáliga opõe-se

a isso, a favor de uma conversão voluntária. De fato, essa carta tornou os seus livros mais

lidos, provocando a fúria do governo militar, o qual, segundo Francesc Escribano (1999, p.

16), quis mandá-lo de volta para o seu país, tendo sido necessário que o então papa Paulo VI

mandasse um comunicado ao governo do país dizendo-lhes que “quem mexe com Pedro mexe

com Paulo”.

Foi alvo de muitas ameaças de morte. A mais grave, em 12 de outubro de 1976,

ocorreu no povoado de Ribeirão Bonito (Mato Grosso). Ao ser informado de que duas

mulheres estavam sendo torturadas na delegacia local, dirigiu-se até lá em companhia do

padre jesuíta João Bosco Penido Burnier. Após intensa discussão com os policiais, padre

Burnier ameaçou denunciá-los às autoridades, sendo em seguida agredido. Posteriormente, os

policiais pensaram em agredir o bispo, e atigiram o padre com bala na nuca.

Talvez em função disso tenha se tornado mais conhecido pela sua luta humanitária

que pela sua poesia, uma vez que, nesse tempo, os textos que mais se destacaram em terras

brasileiras foram suas cartas pastorais, entrevistas a jornais e revistas e, ainda, as letras das

cantigas feitas para a Missa dos Quilombos. Dos dezenove livros de poesias que publicou, a

maioria nas décadas de 70 e 80, e noutros países, com destaque para a Espanha, somente três

foram publicados no Brasil, nomeadamente Antologia retirante (1978), Cantigas menores,

(1979) e A cuia de Gedeão : poemas e autos sacramentais sertanejos (1982). Após 1985, os

livros começaram a ser publicados, simultaneamente, no Brasil e na Espanha.

Sempre defendeu uma reforma da Igreja, tendo participado do pós-concílio

Vaticano II (1965), junto a um grupo de religiosos, entre os quais Cerezo Barredo, que

pressionaram a congressão dos Missionários Claretianos a abrirem novas missões na América

e na África, movimento que resultou, de fato, na abertura de novas casas e na sua vinda para o

Brasil.

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Entre os aspectos da sua postura, convém destacar que defende a ordenação de

mulheres, a extinção do celibato, e a negação da visita trienal a Roma, tendo sido convocado e

interrogado pelo vaticano em 1986 (especificamente pelo então presidente para a Doutrina da

Fé, o cardeal Joseph Ratzinger), pela sua postura. Durante o seu tempo de episcopado, foi

uma vez a Roma, tendo escrito uma carta a João Paulo II, naquele momento Pontífice

Católico, questionando o seu apoio a Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos, durante

a Guerra Fria ; segundo ele, o fato de o papa ter recebido Reagan, demonstrava claramente o

apoio a um desses lados.

Um dos motivos pelo qual foi convidado a ir ao Vaticano foi o fato de ter decidido

visitar a Nicarágua em 1985, que vivia um momento político difícil, em virtude de os Estados

Unidos financiarem guerrilhas com o objetivo de enfraquecer a Revolução Sandinista. Nessa

ocasião, viajou por toda a Nicarágua que, do ponto de vista cristão, vivia a chamada

Inssurreição Evangélica. Como naquele momento as Comunidades de Base (pequenas

comunidades que, a partir da proposta da Teologia da Libertação, formam como que células

da Igreja) apoiavam a revolução na Nicarágua, o Vaticano decidiu não mais apoiá-las. Pedro,

por sua vez, vai até junto dessas comunidades, celebra com elas e as ouve. De retorno ao

Brasil, passa por outros países da América Central, publica as anotações que foi fazendo

durante a viagem, numa obra intitulada Nicarágua, Combate e Profecia (1986).

Quando foi ordenado bispo, adotou como lema para sua atividade pastoral: Nada

possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar (consiste num lema

que todos os bispos devem adotar quando do ato de sua sagração, e que devem levar no

brasão da casa episcopal). Além disso, não aceitou o anel que por tradição usam os bispos,

tendo adotado em seu lugar uma anel de tucum, que veio a converter-se no símbolo daqueles

que abraçam a luta pelos empobrecidos; também decidiu morar numa casa de chão batido em

conformidade com o modo como habitam aqueles que residem na Prelazia.

Além dos dados esparsos que encontramos sobre sua vida, é possível conhecer

com maiores detalhes a sua trajetória, por meio da obra Descalso sobre a terra vermelha,

escrita originalmente em catalão por Francesc Escribano, vertida para o português por

Antônio Carlos Moura Ferreira, e publicada pela Editora da UNICAMP.

Além disso, em nível de estudos acadêmicos, conheço parcialmente a dissertação

de mestrado de Águeda Aparecida da Cruz Borges que estuda a carta pastoral Uma Igreja da

Amazônia em conflito com o latifúndio e marginalização social, tendo por referencial teórico

a análise de discurso de linha francesa; e conheço também o estudo feito por Hilda Gomes

Dutra Magalhães, já citado neste trabalho.

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Como poeta e escritor, publicou muitos livros (cartas pastorais, ensaios, tratados

sobre espiritualidade, discos e vídeos e livros de poesias) sempre com o perfil da Teologia da

Libertação.

Em 2000 recebeu o título de Doutor Honoris Causa pelas universidades Estadual

de Campinas (UNICAMP), e pela Federal de Mato Grosso(UFMT). Ao título recebido pela

universidade de Campinas quis chamar passionis Causa. Justificando essa nomenclatura diz:

(...) devo traduzi-lo como passionis causa, deixando de lado o honor. Uma paixão escandalosamente desatualizada, nesta hora de pragmatismos, de produtividade, de mercantilismo total, de pós-modernidade escarmentada. Mas que é, com outra palavra, a paixão da Esperança; e, em cristão, a paixão pelo Reino que é a paixão de Deus e de seu Cristo. Uma paixão que, em primeira e última instâncias, coincide com a melhor paixão da própria Humanidade, quando ela se quer plenamente humana, autenticamente viva e definitivamente feliz.

Posteriormente, em 2006, recebeu o Prêmio Cidadão da Catalunha.

Apresentou sua renúncia à Prelazia, em conformidade com o Código de Direito

(uma espécie de legislação do Vaticano), em 2005.

Atualmente, continua morando na prelazia de São Félix do Araguaia, onde se

dedica a alguns trabalhos pastorais e à revisão de sua obra. No caso da poética reorganizou-a

em uma antologia que saiu na Espanha com o nome de Antologia Personal (2006) ; quanto às

cartas pastorais, receberam organização e publicação pela Editora Vozes, tendo saído com o

nome de Cartas Marcadas (2005).

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BIBLIOGRAFIA LITERÁRIA DE PEDRO CASALDÁLIGA COMENTADA

Entre os escritos de Casaldáliga encontraremos narrativas epistolares, diários de

viagens, relatos de experiências vividas na região onde habita e textos dramáticos, entre os

quais Missa dos quilombos e Missa da terra sem males, o nordeste de Mato Grosso. Seu

texto mais conhecido é, no entanto, a carta pastoral Uma Igreja da Amazônia em conflito com

o latifúndio e marginalização social (1970) que tem 122 páginas dedicadas à demonstração

detalhada das relações de poder na região e evidencia a distribuição das terras e as precárias

condições de vida de sua população, sendo que sua obra poética ainda não foi totalmente

catalogada pela crítica. No levantamento realizado, encontramos63 até o momento as seguintes

publicações:

a) Os publicados a partir da década de 80: 1)Orações da caminhada (2005)-

consiste de textos que misturam poesia e oração, ou são orações em forma de poesia; 2)

Murais da Libertação (2005)-é uma coletânea de textos sobre os afrescos que há nas igrejas

da prelazia de São Félix do Araguaia de autoria de Cerezo Barredo64, e que foram

denominados pelo próprio autor “pés poéticos”. 3)Sonetos neobíblicos precisamente

(1996)-é um conjunto de 25 sonetos, a maioria deles com temática bíblica, mas também

social nos quais parece haver uma síntese das duas principais temáticas abordadas na obra

desse autor -religião e política; 4)El Vuevlo Del Quetzal (1988)-misto de tratado sobre

espiritualidade, livro e poesia, tem por tema a espiritualidade na América Central; 5)El

tiempo e la espera (1986)-traz reflexões sobre a mudança e transformação da história, além de

demonstrar atenção aos elementos do cotidiano; 6)Fuego e cenyza al viento (1984)-apresenta

63 Serão relacionados aqui somente os livros de poesia, a maioria, dos quais tematizam o Brasil, mas

foram publicados na Espanha. Os negritados são aqueles que já foram lidos na integra. Quanto aos demais gêneros que compõem o conjunto da obra do poeta, sendo o interesse conhecer seus ideais e trajetória é importante sua leitura Creio na Justiça e na esperança (que é um diário de viagem) Escravidão e feudalismo no nordeste de Mato Grosso, e Carta a Juan Pablo II , Crônicas de mi viaje a Roma por Ms. Casaldáliga, Democracia religião e diálogo, Questão agrária:uma questão política, Espiritualidad de la liberaciòn, Democracia e religião:diálogo com Daniel Ortega, Declaração de amor a revolução total de Cuba, Ameríndia morte e vida (parceria com Pedro Tierra), La interpretaciòn de las Iglesias latinoamericana e la Europa pós-moderna y las Iglesias européias, Conversaciòn com Pedro Beijamin. E ainda os filmes Menina do Araguaia e Anel de Tucum para os quais escreveu o roteiro. A maioria desses livros foram publicados em Esponhol e em Português, alguns traduzidos para o Inglês e o Italiano. De outros autores: Pedro de los Pobres da polonesa Zofia Marzec, Descalço sobre a terra vermelha, de Francese Escribano, a tese da pesquisadora Águeda Aparecida da Cruz Borges que faz análise discursiva dos textos jornalísticos que comentaram a carta pastoral Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e marginalização social, e o artigo que resulta de trabalho de iniciação cientifica de André Luiz Rauber (1998), publicado na edição 1 da Revista Panorâmica, do Instituto de Ciências e Letras do Médio Araguaia. Por fim, a crítica de Hilda Gomes Dutra Magalhães em História da Literatura de Mato Grosso (2001) e Literatura e poder em Mato Grosso (2003). 64 Cerezo Barredo é missionário claretiano, assim como Casaldáliga, e artista plástico. Suas pinturas relacionam-se à Teologia da Libertação.

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textos de temática social, que, observados por um eu individual, canta os pequenos

acontecimentos da vida, como “o pacu”, “as bananas” etc; 7) Cantares de la entera libertad

(1984)- escritos que se referem à Nicarágua louvando as lutas e peculiaridades do povo

daquele país; 8) A Cuia de Gedeão (1982)- de caráter acentuadamente militante, apresenta

maior preocupação com o ritmo e com as demais características formais; 9)Águas do tempo

(1980)- é um misto de antologia e de poemas inéditos ; ocupa-se, sobretudo dos elementos

naturais que caracterizam a marcação temporal: como a lua, e elementos como a imbaúba e

as barragens que testemunham as transformações históricas que vão se desenrolando.

b) Os textos publicados de 1970 a 1955: 10) Cantigas Menores (1979)- é uma

coletânea de textos que, segundo o próprio autor, recolheu rondando de ônibus por essas

estradas, ouvindo falar o povo falado, sentindo a Terra, e um pouco o céu. Os poemas

apresentam uma espécie de captação de acontecimentos e paisagens, as quais metaforizam as

relações sociais; 11)Antologia Retirante (1978)-recolhe os textos de temática mais

acentuadamente social; 12)Tierra Nuestra Liberdad (1971)-Versão Argentina de Antologia

Retirante tendo sido publicado primeiro naquele país. 13)Clamor elemental (1971)-

Apresenta de modo reflexivo os clamores dos seres humanos e dos elementos da natureza

diante da exploração sob a qual vive a terra; 14) Palabra Ungida (1955)-leitura social do

Evangelho, apresenta, em relação aos demais textos, um nível menor de engajamento.

c) Textos sem nota de editoração: 15)Llena de Dios (SND)-Antologia Mariana

reúne os diversos textos já publicados em outras obras, em louvor a Maria;16) Me Llamaram

subversivo (SNE)-livro de homenagens, traz a público, em forma de antologia, todos os

textos escritos para amigos e pessoas que em um momento foram consideradas

subversivas;17) E Encara avui respiro em catalã - que traz poemas que retomam a infância, e

Cataluñia, como espaço onde a viveu.

Todos esses livros são divididos em partes, geralmente cinco ou seis, que

expressam nos títulos as idéias de espera “Salmos de vigília”, tranqüilidade e

aconchego”Canto Llano”, temporalidade “Las Águas Del Tienpo” e de humanidade

“Creaturas hermanas”, “O povo falado” e de localidade “geografia decorada”.

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ANEXO I I

Nessa entrevista, feita em São Félix do Araguaia em setembro de 2005,

Casaldáliga fala sobre criação literária, sobre aspectos formais e temáticos do seu fazer

poético, com alusão constante ao cristianismo, apresenta fragmentos de seus poemas para

ilustrar suas considerações e cita pensadores como Sigmund Freud e Karl Marx no contexto

de sua produção.

Por Marinete Luzia Francisca de Souza65

D. Pedro Casaldáliga é bispo emérito da Prelazia de São Felix do Araguaia. Sua

produção consta de vários gêneros, todos sobre a realidade social latino-americana. A obra

poética apresenta quinze livros, a maioria publicados no Brasil.

A tônica de seus textos é o engajamento social, traduzindo amplamente postura e

pensamento do autor. Nesse sentido, é comum que seja estudada a sua vida e suas ações

pastorais. Ao contrário dessa posição, estudo o valor artístico de sua obra, a fim de verificar,

por meio de recursos da língua e da literatura, como exprime valores humanos. Com objetivo

de conhecer mais a sua obra, o modo como concebe o processo de criação, busquei um

diálogo com o autor, cujos resultados apresento parcialmente nessa entrevista, na medida em

que os dados coletados foram muitos.

Por questão de ordenamento metodológico organizei as falas em duas partes. Uma,

destinada a apresentar reflexões do fazer literário, desde os aspectos formais, estilísticos à

formação literária do autor. Outra, dos aspectos temáticos, com referência ao contexto

histórico-social em que produziu. A intenção é perceber como tais elementos atuam uns sobre

os outros, para perceber o conjunto, pois, como afirma Antonio Candido, só podemos

entender a [obra] fundindo texto e contexto numa interpretação dialética íntegra (...).

Sabemos ainda, que o externo [no caso, o social] importa não como causa, nem como

65 Professora da Rede pública Municipal de Barra do Garças/MT e mestranda em Estudos Literários e Culturais do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem/IL/UFMT, em Cuiabá. O conteúdo dessa entrevista faz parte da minha dissertação de mestrado, iniciada em 2004, que tem como objeto a obra poética de D.Pedro, estudada na perspectiva crítica sócio-estilística.

ENTREVISTA D. PEDRO CASALDÁLIGA PLÁ

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significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição estrutural

tornando-se, portanto, interno.

Seu texto mais conhecido é a carta pastoral Uma Igreja da Amazônia em conflito

com o latifúndio e marginalização social (1970), que tem 122 páginas dedicadas a demonstrar

minuciosamente as relações de poder na região, a distribuição das terras e as precárias

condições de vida dessas comunidades. Mas a sua obra poética, extensa, ainda não foi

totalmente catalogada pela crítica. Dos livros de poesia podemos relacionar, em ordem

decrescente:

A) Publicações feitas a partir da década de 80: 1)Orações da caminhada

(2005)- textos que misturam poesia e oração, ou, são orações em forma de poesia; 2)Murais

da libertação - coletânea de textos sobre os afrescos que há nas igrejas da prelazia de autoria

de Cereso Barredo, e que foram denominados pelo próprio autor de “pés poéticos”; 3) Sonetos

neobiblícos precisamente (2000) - um conjunto de 25 sonetos, no qual parece haver uma

síntese das duas principais temáticas da obra deste autor, religião e política; 4) El Vuevlo Del

Quetzal - misto de tratado sobre espiritualidade e poesia, retrata a espiritualidade da América

Central; (1988); 5) El tiempo e la espera (1986) - traz reflexões sobre mudança e

transformação históricas, além de demonstrar atenção aos elementos do cotidiano; 6) Fuego e

cenyza al viento (1984) - apresenta textos de temática social, que, observados por um eu

individual canta os pequenos acontecimentos da vida, como “o pacu”, “as bananas” etc; 7)

Cantares de la entera libertad ( 1984) - escritos que referem à Nicarágua, louvando as lutas e

peculiaridades do povo daquele país; 8) A Cuia de Gedeão (1982) - de caráter

acentuadamente militante, apresenta maior preocupação com o ritmo e com as demais

características formais; 9) Águas do tempo (1980) - é um misto de antologia e de poemas

inéditos, ocupa-se sobretudo dos elementos naturais que caracterizam a marcação temporal,

como a lua, a chegada da águas (chuvas) e ações como a construção das barragens, que

testemunham as transformações históricas.

B) Textos publicados de 1970 a 1955: 10) Cantigas Menores (1979) - é uma

coletânea de textos que, conforme o próprio autor relata, foram recolhidos “rondando de

ônibus por essas estradas, ouvindo falar o povo falado, sentindo a Terra e, um pouco, o céu”.

Os poemas apresentam um espécie de captação de acontecimentos e paisagens, as quais

metaforizam as relações sociais; 11) Antologia Retirante (1978) - recolhe os textos de

temática mais acentuadamente social. 12) Tierra Nuestra Liberdad (1971) - versão argentina

de Antologia Retirante, tendo sido publicado primeiro naquele país; 13) Clamor elemental

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(1971) - apresenta de modo reflexivo os clamores dos seres humanos e dos elementos da

natureza diante da exploração que sofre a terra; 14) Palabra Ungida (1955) -leitura social do

Evangelho que apresenta, em relação aos demais textos, um nível menor de engajamento.

C) Textos sem nota de editoração: 15) Llena de Dios (SND) - Antologia Mariana

que reúne diversos textos já publicados em outras obras e que louvam a Virgem Maria; 15)

Me llamaram subversivo (SNE) – livro de homenagens, traz a público, em forma de antologia,

todos os textos escritos para amigos e pessoas que admira, pessoas que em algum momento

foram consideradas subversivas, entre eles, Che Guevara, San Juan de La Cruz, Leonardo

Boff, Augusto Cesar Sandine.

Como foi visto, as temáticas mais freqüentes em seus escritos são a terra, as

questões sociais e econômicas segundo algumas categorias marxistas. Permeando todas elas, a

religiosidade, manifestada de muitas formas, por exemplo, em idéias de espera, como em

“Salmos de vigília”, tranqüilidade e aconchego, como em”Canto Llano”, temporalidade, em

“Las Águas Del Tienpo”, humanidade, em “Creaturas hermanas”. Ressalto que as expressões

entre aspas são títulos que nomeiam partes dos seus livros, todos eles geralmente divididos em

cinco ou seis.

Em nível estrutural sua obra apresenta formas fixas, o hai-cai, composição

japonesa de dezessete versos, que sintetiza um vasto conteúdo, e sonetos, de catorze versos,

divididos em dois quartetos e dois tercetos, e poemas irregulares. Os poemas de forma fixa

são denominados, em sua maioria, como tal, “Sonetos” ou “Hai-cais”. Os de forma irregular

apresentam títulos temáticos.

Trata o geral, que é o homem, a partir do local, expresso pela geografia, uma vez

que suas imagens naturais remontam a região do Araguaia. Contudo, mais que elementos

telúricos, ele apresenta a terra do ponto de vista social. Como afirma Hilda Magalhães

(2002:65) em Literatura e Poder em Mato Grosso é uma voz “melodiosa”, evidenciando as

relações de poder existentes na região.

Observar se o que foi depreendido da obra é confirmado ou não pelo autor, se ele

aponta outros caminhos, é rico processo de aprendizagem. Nesse sentido, a fala de

Casaldáliga demonstra a mesma intenção de valorização da humanidade que percebemos em

seus escritos poéticos. Daí a valorização da arte e de tudo que entende valorizar a vida:

valores cristãos e filosofias que perpassaram o século em que vive. Apresenta valores

estéticos e humanos. Estéticos porque, ao longo do texto, reflete sobre sua própria escrita

poética; humanos por engajar-se nas lutas do povo.

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Assim diz das coisas cotidianas e macro-estruturais com a mesma intensidade com

que escreve. Conhece o ambiente de onde fala, e, ao mesmo tempo, vê os seres e paisagens

por eles cantados. Tudo isso nos faz refletir e nos colocar, de modo melhor articulado, diante

de sua poesia, intensa e sensível.

A ENTREVISTA

Dos aspectos formais ao exercício literário -

“A poesia é a palavra emocionada. Por ela a gente se diz e diz o Universo, o Próximo, o povo, a morte, vida e Deus, calidamente. A poesia é a palavra sensibilizada a tudo e a todos num encontro, que pulsa alma e compromete as opções”66

ML - Pelo fato de sua poesia, no conjunto, retratar com bastante propriedade a região do

Araguaia e considerar o povo como uma espécie de herói “épico”, há nela uma proximidade

com o que hoje os críticos têm chamado de prosa poética?

PEDRO - Eu acho que é poesia. A prosa pode ser prosa poética, mas não ser necessariamente

poesia. Poesia supõe sempre uma tal intensidade e emoção, que suprime tudo que poderia ser

meio supérfluo, que deixa sempre um âmbito para um mistério, para uma interpretação, para a

procura. Numa prosa poética eu posso falar muito normalmente, numa poesia, geralmente

poesia, eu falaria mais “cientificamente” (com mais cuidado). Um texto em que se vai ver isso

é “Dizer Teu nome Maria”, publicado em Orações da caminhada (p. 55) Dizer teu nome,

Maria,/ É dizer que a pobreza cumpre aos olhares de Deus./Dizer teu nome Maria/É dizer

que a promessa vem com leite de mulher.Uma prosa poética diria: “dizer teu nome Maria é

dizer que a promessa de Deus de uma aliança que através de: (cita exemplos) uma mulher...

nascido de uma mulher...”. Aqui, não. Aqui diz resumidamente “vem com leite de mulher...”.

É sempre mais condensada, mais explicitada, mais intensamente misteriosa, a palavra poética.

Ë poesia. Agora tem muita poesia hoje que não é rítmica, não é rimada. Mas é poesia.

ML - Percebo em seus textos a presença de poemas mais longos e poemas pequenos, mais

sintéticos, como os hai-cais, de origem japonesa. Gostaria que falasse sobre esses últimos.

PEDRO - Eles viabilizam um pensamento (poesia) bastante forte. Eu tenho um deles, por

exemplo, que diz: Esta é a nossa alternativa,/Vivos ou ressuscitados! Se me perguntar o que

significa isso, eu vou ter que explicar: alternativa para minha fé, que acredito na ressurreição.

Estar vivo ou estar já ressuscitado são caminhos ou possibilidades. Isso em poesia cabe em

66 Resposta ao Editor livro Águas do tempo de sua autoria, o qual compõe a coleção autores mato-grossenses, para a pergunta: o que representa a poesia para você?

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dois versos: Esta é a nossa alternativa/Vivos ou ressuscitados. São “no-emas”. “Nó” em

grego-pensamento. “No-emas” são pensamentos em poemas. São, fundamentalmente, poemas

condensativos. Expressam um pensamento de modo forte, poético. Me lembro agora de mais

um poema que diz: A canoa da lua/ Atravessa a noite. Isso diz que não é a lua cheia. A lua

cheia não pareceria uma canoa. A lua minguante ou crescente forma uma canoa. A canoa da

lua/atravessa a noite. Ela vai andando, a sensação é de que a lua vai andando, em forma de

canoa e atravessa a noite. Por exemplo, aqui temos outro poeminha de páscoa (poema

publicado no livro Palabra Ungida) onde diz: “Voltou a angandorinha. Aleluia! É... esse...

pássaro que, quando chega a primavera, volta a aparecer nas terras frias da Europa. Quando

vai começar o frio, vai embora. Quando chega a primavera, volta e se coloca nos arames da

luz, enfim. Agora lembro, em português, se chama andorinha, Voltou a andorinha. Aleluia! O

que poderia dizer voltou a andorinha do aleluia. Quando chega a andorinha, chega também o

canto do aleluia, que é a páscoa. Eu chamo o “aleluia” de “andorinha” e chamo a “andorinha”

de “aleluia”. E aquilo me evoca a alegria da páscoa. Eu poderia ter dito, em prosa eu diria,

“com o regresso da andorinha regressa também a páscoa, com as alegrias do aleluia” - isso é

prosa. Agora poesia é voltou a andorinha do aleluia. Não sobra nada, digo que voltou, digo

que é andorinha, digo que é a páscoa. Não sobra nada. Compreende? È bem enxuto. No-ema.

ML - No prefácio do livro Sonetos Neo bíblicos, Rinaldo Gama afirma que você apresenta,

“para além de suas vocações naturais - a religião e política - uma dicção propriamente

poética”, e que há no decorrer de sua trajetória uma maturidade no que concerne ao fazer

poético.

PEDRO - Você amadurece praticamente em tudo. Amadurece a poesia à medida que passa o

tempo. Há poemas que você já corrigiu duas, três ou quatro vezes e foi suprimindo, às vezes

acrescentou uma palavra que achou que era melhor porque em poesia o que sobra, sobra. Em

poesia o que é supérfluo ou não é emotivo, é frio. Você veja o gato - esse gato pulou o telhado

e parece estar buscando um rato (diz isso apontando para um gato que anda sobre o telhado

de uma casa de frente à área em que estamos). Se digo: o gato deu um pulo no sol que

esquenta o telhado, se apoderou da manhã com seus olhos de vidro, estou escrevendo de

outro modo, de modo poético, o pulo do gato. Se digo: Você vê o gato. Esse gato pulou o

telhado e parece estar buscando um rato, e se eu digo: o gato pulou no sol que invade o

telhado, é outra coisa. Parece que o gato se apoderou do sol que invade o telhado. Aí é poesia.

ML - Na introdução a Águas do tempo há uma fala sua, em entrevista ao editor, afirmando

que os antigos diziam que “o poeta nasce”. Isso significaria uma crença no poeta “inspirado”?

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PEDRO - Poderia dizer que a sensibilidade, a capacidade de percepção, a intuição, a emoção

se traz em grande parte da gênese, do temperamento. Agora, evidentemente, grande parte

também se faz, compreende? Se educa na sensibilidade, por meio de leituras. Assim vai se

fazendo. Eu digo que todos temos muito de poeta, só que exercemos pouco, cultivamos pouco

esse dom.

Quando criança, na época da guerra, numa casa vizinha tinha umas três mulheres solteiras,

dentro de uma cultura popular que nos dava poemas noruegueses para ler. Aí você, com oito,

nove anos, vai começando, como se diz, o gosto, a semente. Se não tem tido nem pai, nem

vizinho e as professoras também não estimulam, não tem jeito. Nós tínhamos quando éramos

seminaristas, rapazes novos. Ele nos ditava um poema e nos dizia para escrever uma página a

cada dia, Isso nas aulas de literatura, para que, ouvindo, copiando aquele poema, já

tivéssemos um pouco de sensibilidade. Nos dava cada dia uma página, ao menos uma página

e nos dizia para fazer o comentário. E, teoria, o que fosse definições, era o menos possível.

Nos ditava algumas definições, de metáfora , anotávamos no caderno...Aquilo era, seria

possível deixar. O mais importante era ouvir, ler e escrever, e isso nos deu gosto para escrever

poesia. Todos ficamos fascinados. Agora se não faz assim.

ML - Eu percebo que há em alguns momentos de sua produção um uso mais acentuado do

“eu” e em outros do “nós”.

PEDRO - Depende do tema. Se eu estou escrevendo, a sensação que me produz uma coisa,

uma tarde bonita, será o “eu”. Se eu estou querendo falar de uma...da terra, evidentemente

que será o “nós”. Agora, num grande silêncio, numa grande solidão, eu evoco o “nós” (o

entrevistado utiliza aqui do caráter plurissignificativo da palavra nó fazendo, com ela, um

trocadilho. Nesta última vez em que aparece significa amarração, acabamento). Eu tenho

uma grande tendência para o “nós”(retoma o “nós” pronome). Inclusive quando se escreveu

aquele livro, aquele sobre nós. Ele (o autor) queria que o título fosse Eu, Pedro Casaldáliga,

porque ele tinha tido um outro livro, Eu, Elder Câmara. Eu falei: “Não. Vamos fazer “Nós,

do Araguaia”, e assim, saiu o livro Nós, do Araguaia.

ML – Outro aspecto é a constante recorrência e retomada de termos. No poema Terra Nossa

Liberdade (p.191 de Antologia Retirante) há, por exemplo, o uso de ela, dela, nela, para

retomar a palavra terra. Como...(ele me interrompe e inicia a resposta)

PEDRO - Às vezes é insensível, às vezes, instintivamente para não repetir a palavra terra.

Porque, em poesia eu acho que você deve evitar o retórico, senão parece mais um discurso de

uma tribuna que um poema. Esta terra quem me deu, repetir duas, três, vezes poderá se

bonito, mas... no mais, será retórico. Então, esta terra quem me deu “ela”, “dela”. Há muita

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coisa que não é premeditado. Soa instintivo ao ouvido, às vezes gera a concisão, para não

repetir. Instintivamente. Instintivamente, a partir de um sentido.

ML – Pensando no conceito de verossimilhança é possível delimitar até onde vai a realidade e

o que é literatura, no sentido do que seja fictício?

PEDRO - Olha isso é impossível na literatura e na vida. Freud e seus companheiros

discípulos, fiéis e infiéis, nos recordam que é muito difícil delimitar a realidade da fantasia, do

sonho. Nós andamos acordados, sonhando. Agora, é evidente que uma sensibilidade artística

em geral ainda mistura mais o sonho e a realidade, a fantasia a realidade.

ML – O senhor considera que tenha recebido, em sua poesia, maior influência clássica ou

popular?

PEDRO - Olha você sabe, na vida religiosa no meu tempo de seminarista, o clássico (nestes

estudos incluem-se as literaturas grega e Latina) felizmente pesava muito. Pesou bem, graças

a Deus. A literatura clássica espanhola era lida, meditada, trabalhada.Tenho estudado

literatura grega ou latina mas, depois eu considero que me tenha influenciado muito os poetas

modernos. Nem precisamente modernistas. Por exemplo, em termos castelhanos, Antônio

Machado é um dos poetas que eu venero, mas tem outros poetas que têm influenciado

também, o próprio Neruda, Pablo Neruda. E muitos poetas espanhóis, como o clássico San

Juan de La Cruz. Os clássicos do século XIX, início do século XX, período em que a

literatura espanhola é muito rica.

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Dos aspectos temáticos à militância social

“Meu trabalho poético é, sobretudo, “La marcha””. Poesia feita das dores do povo, sentindo a

caminhada do povo, sentindo as dores do povo. Então decidi morar nessa própria marcha “67.

ML - O que considera matéria de sua poesia e o que significaria, em termos poéticos, a

expressão “poesia em marcha”, usada pelo senhor para definir sua poesia em resposta a

entrevista realizada pelo editor, e que está na introdução do livro Águas do tempo?

PEDRO - Tudo pode ser matéria da poesia da gente desde que seja tudo visto... de modo

emotivo, vibrante. Poesia só pode ser com a emoção, vibração...“Poesia em marcha”, poesia

feita das dores do povo, sentindo a caminhada do povo, sentindo as dores do povo. Tentando

estimular essa marcha também. Então, decidi morar nessa própria marcha. Não é uma poesia

que contempla o passado. Não é uma poesia arqueológica. Ë uma poesia militante, peregrina,

mar-chante, de marcha.

ML - Ouvi outro dia Chico Buarque de Holanda dizer que, depois de um momento de

criação, vive um de “secura”, levando um tempo para voltar a produzir. Em seu caso isso

ocorre?

PEDRO – Olha, eu tenho visto muitos poetas dizerem isso, bons poetas. Sim, depende muito

do momento psicológico, histórico, que você está vivendo. Às vezes, nos momentos de

transição, você não aceitou ainda o que vai fazer ou está numa crise familiar, a morte de um

familiar íntimo, que às vezes provoca a poesia e outras vezes provoca o silêncio, depende da

reação. Tem muita gente que desencadeia um livro quando morre a esposa. Quantos poetas

diante da morte da esposa têm soltado livros de poesia. Outros se fecham no silêncio. (peço

que fale sobre seu processo de criação). Ele acrescenta: Agora, por exemplo, escrevo menos

poesias. Escrevo mais circunstancialmente. Já tive épocas, por exemplo quando eu vim para

cá, escrevia muito mais poesia, porque o choque da natureza com a história provocava isso.

ML - Palavra Ungida é o primeiro de seus textos publicados (de 1955). Lendo-o, percebo

uma diferença em relação aos demais, sobretudo aos escritos no Brasil. Não vejo nele a

militância presente nos demais. Parece que as lutas retratadas pelos textos escritos aqui são

mais consistentes.

PEDRO – São mais concretas porque são organizadas. São lutas até

revolucionárias.Diferencia (dos demais livros) porque o que você ( você, neste caso significa

67 A responder ao editor, a indagação: o que significa poesia para você na introdução, de Águas do Tempo Casaldáliga diz_ “meu trabalho poético, é sobretudo, “ La marcha”” . nesta entrevista perguntar-lhe o significa a expressão “La marcha” , ele repetiu acrescentou a ela o texto aqui utilizado.

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ele ao autor)se refere quando fala do campo é diferente. Inclusive, eu tenho naquele livro um

poema dedicado a nossa senhora Nossa Senhora que fala da mulher do campo. Eu digo que o

campo está se esvaziando, que a juventude tem que sair do campo. Ë um poema social que

registra o drama da região e do campo. Quando eu escrevo os poemas sobre o campo aqui, eu

já escrevo amaldiçoando o latifúndio. Estimulando a conquista da terra. Estou falando de um

campo conflitivo, polêmico, mas também militante e organizado. Naquele campo, a juventude

o abandona porque está desatendida e vai para a cidade. Aqui, o camponês se revolta, se

organiza, faz oposição larga (grande), ataca o latifúndio (Depois de uma pequena interrupção

para pegar o livro, retorna e diz que o escreveu logo após sua ordenação sacerdotal). Me

ordenei padre em 1962. Tínhamos vivido a guerra espanhola. Estávamos vivendo a guerra

mundial, era a ditadura de Franco. (Com o texto na mão lê o seguinte trecho do poema

“Epifania” (p. 61):) Veja: “Jerusalén—esta ciudad cualquiera— /no se ha enterado aún. Y

ellos ¡los pobres! /pasan llevando el agua de su vida/ como un río perdido por las calles...”

Nasce Cristo e os pobres não se inteiram, somente os pastores. Os pobres passam carregando

a água da vida. Ou seja, uma sensibilidade social, mas não militante, talvez, ainda. Aqui, por

exemplo, está dizendo (ele apresenta mais um poema do livro, intitulado “Nadie me dice tu”

(p. 59) que ninguém me chama por “tu”, me tratam todos de senhor. É um padre que acabou

de se ordenar com vinte e quatro anos e foi chamado de senhor. Eu digo “vientieséis

primaveras” e “Todos me llaman Padre". (encerrando a recitação do texto, ele acrescenta

que no mais o poema fala que todos ajoelham-se diante do padre, personagem poética,

deixando-o suspenso entre o céu e a terra como uma estátua. e que aparece aí idéia de colocar

a vida à disposição) Com o livro em mãos examina outros textos referindo ao verso:

“Coração solenemente isolado”... (diz que o verso foi modificado para: “Coração

solenemente solo” e que às vezes modifica textos já publicados). Estou pedindo (referindo-se

ao verso citado) a minha alma que trate o meu coração com cuidado.

ML - Em uma fala na Jornada Literária sobre estética e espiritualidade, Frei Betto afirmou

que não acredita em literatura propriamente de esquerda, porque toda literatura expressa uma

realidade. O que pensa a respeito?

PEDRO - Eu digo que tem literatura mais de esquerda. Eu contestaria um pouco a palavra do

Betto. Se é engajada na opção pelos pobres contestando o latifúndio, o capitalismo, o

neoliberaliberalismo será de esquerda. Por que ter medo de falar de esquerda agora? À

direita...a direita não se engaja. Se engaja em termos menos sociais, menos militante, ás

vezes, ecológico só. Mas, se se engaja militantemente social, é literatura de esquerda, no meu

pobre entender.

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ML – Em sua opinião, lutas como as ambientais tiram o foco da luta de classe?

PEDRO – È possível que tirem, o que seria lamentável porque acabaríamos defendendo a

água, a floresta, o ar e esqueceríamos de defender a pessoa humana. Interessa muito mais o

povo da Amazônia em si. Interessa a Amazônia, sobretudo como habitat da humanidade, do

povo amazonense.

As lutas desfocadas poderiam se harmonizar perfeitamente. Quanto mais militante, pela

comida, pela escola, pela saúde, mais militante você poderia ser também, pela ecologia, pela

defesa da água, do ar. Porque eu não estou lutando pela terra em si, estou lutando pela terra

para, pela terra habitat. Eu estou defendendo a casa, pela família que habita nessa casa. Não a

casa pela casa. Eu não estou defendendo a casa arqueologicamente, eu a estou defendendo

porque foi moradia de um povo, porque passou uma história humana por lá e não

simplesmente porque é uma construção e ficou aí. Mesmo uma construção feita no século

XIII e largada tem um valor humano de construção.

ML – Quando defende a divisão de terras, e repudia a propriedade privada capitalista, está

pensando numa organização pré-capitalista e pré-feudal?

PEDRO - Não penso na tribo primitiva. Eu penso num socialismo total. Eu penso a

socialização. O que significa socializar em boa parte, a moradia, a saúde, a educação, a

ciência, a comunicação.Se isso ( a solialização, ou o acesso a esses bens) vierem da

propriedade e particular privilegiada já a declaramos sagrada.

Se a saúde é só para alguns, se a ciência é em benefício de alguns só, é um tipo de

socialização que acabou. Não é possível que, em relação à moradia, eu tenha em São Paulo 50

lotes e tenha um milhão de famílias que não tem casa. E, por que a presidente das Filipinas

ter 62.000 mil pares de sapatos? Ë uma acumulação que deixa muita gente descalça. Se não há

um tipo de socialização básica não haverá a paz no mundo continuará havendo um tipo de

acumulação que gera a injustiça, a má distribuição, a marginalização, a proibição, a

segregação, que divide.

ML - Seria uma defesa da propriedade privada coletiva?

PEDRO - A propriedade não absoluta, relativa, como tem dito o próprio João Paulo II, e

ninguém vai duvidar dele. A gente tem recordado o que pensa, há uma grande dívida social

sobre a propriedade privada. Se você tem muito de algo, você tem que distribuir. (Digo-lhe

que João Paulo também escreve poesia). Pelo que tenho lido dele, eu tenho lido alguns

fragmentos, tenho lido tradução, eu acharia que é um bom poeta. (Comento sobre a diferença

entre a forma de ver os problemas sociais em sua poesia e a de João Paulo II e a

possibilidade de comparar a poética de ambos. Diz ainda que seria necessário dispensar

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maior tempo para esse tipo de estudo e repete que não tem lido muita poesia dele, mas que

está lhe parecendo que seja um grande poeta).

ML - Considerando o fato de louvar a terra e o cenário nacional em seus textos, poderíamos

considerá-lo um nacionalista?

PEDRO – Olha, eu valorizo cada vez mais a humanidade, a raça humana. Eu acho que o

grande desafio é vivermos fraternalmente como seres humanos, todos, todos respeitando as

identidades, culturas e histórias. Ë uma riqueza. Assim, você, eu, cada um de nós é a imagem

e semelhança individual de Deus. E somos a imagem coletiva de Deus. Então, salvar as

identidades, aí, as etnias e, ao mesmo tempo, potenciar essa mundialização fraterna. Um poeta

alemão chamado Raaid, sempre dizia que o melhor cantor é aquele que canta em seu próprio

tronco genealógico. E você sabe, inclusive que não só o poeta, mas romancistas, no fundo,

sempre os escritores, partem daquele subsolo que é a própria infância, a própria história, tudo

o que você escreve sobre arte. Ou seja, eu tenho um poeminha que diz que quanto mais vamos

mais voltamos. (Não foi possível identificar um poema que tenha exatamente esse verso,. O

poema Irei até as fronteiras publicado na página 11 de a Cuia de Gedeão parece expressar

essa mesma idéia. )

ML - Ë deferente escrever na língua materna e escrever numa outra língua?

PEDRO - A língua materna é espaço do mundo caseiro, dos detalhes. Agora, tenho usado

muito o castelhano e português, porque moro no Brasil e na América Latina.

ML - Seria possível identificar em seus escritos uma postura filosófica?

PEDRO – Olha, eu tenho estudado o existencialismo, pode ser que haja um tipo de influência.

Mas vamos pensar, minha filha, que a filosofia é pensamento humano e, claro, você lê livros

que muito influenciam. Agora, eu acredito que a poesia é muito pensamento.

ML - Eu gostaria que falasse sobre a influência do marxismo em sua poesia.

PEDRO – O marxismo tem influenciado muito, mas a base de minha poesia é o Evangelho. O

marxismo influenciou, como o existencialismo e as idéias de Freud sobre o inconsciente

influenciaram. Nós todos que vivemos no século atual e nos percebemos numa luta social,

nos familiarizamos mais ou menos com o marxismo, que nos acordou para o estruturado da

contradição, o dialético da vida e da história, o polêmico da caminhada humana. Compreende

porque, às vezes, o cristão pode cair na tentação de separar a terra do céu e, ao invés de

encarar de forma militante e encarnada o lado de cá, declara só a paciência, a conformidade, e

uma esperança etérea. Por que do lado de lá... Não, eu, já de garoto, sendo um garotinho, li

um texto que me impressionou muito, e um das frases era a seguinte: “a terra é o único

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caminho que nos pode levar ao céu”. É o único caminho. É pela terra, pela história, e pelas

lutas daqui que vamos chegar ao céu.

Já o marxismo ajudou a denunciar o capitalismo, a explicitar as lutas de classes. É o dialético,

que é a vida na história. Agora você vê, independente disso você continua com sua fé...As

categorias marxistas nos deram o pão de cada dia da sociologia e da poética e da militância,

como também as categorias freudianas. Eu não creio no que Freud crê, mas ele deu umas

contribuições que eu agradeço, sobre os complexos, as dependências. (Cita alguns pensadores

marxistas entre eles Antônio Gramsci e alguns latino-americanos que, segundo ele, foram de

fato latino-americanos).

ML - Aparece em sua poesia, às vezes como metáfora de terra, às vezes de mãe, o termo

Patchamama.. Ele vem de que região da América Latina?

PEDRO - É fundamentalmente dos povos do Equador, Bolívia entre estes os Ketchua. Para

mais de 4.000 povos indígenas. Abiayala é o nome indígena para América Latina. Para todos

os povos indígenas, a terra é a mãe, que significa terra fértil, terra fecunda, mulher fecunda.

Terra. Mãe. Mulher. Você sabe que, para os povos indígenas, terra é a mãe. Terra é a mãe.

OBRAS DO AUTOR CASALDÁLIGA. P. e BARREDO, C. Murais da Libertação. São Paulo. Loyola, 2005.

CASALDÁLIGA. P. Sonetos neobíblicos precisamente. São Paulo: Musa Editora, 1996.

________________. Me Llamaran Subversivo. Logues ediciones ( SND).

________________. Águas do tempo. Cuiabá: Fundação Cultural de Mato Grosso, 1989.

________________. El tiempo e la espera. Madrid: Sal e Terra, 1986.

________________.Fuego e cenyza al viento. Madrid: Sal e Terra, 1984.

________________.Cantares para la entera libertat. Antologia para a nueva Nicarágua.

Panamá: Impretex, 1984.

________________. Cantigas Menores. Goiânia: Projornal, 1984.

________________ . Antologia Retirante. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

________________. Creio na justiça e na esperança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

1978.

________________.Clamor elemental. Salamanca: ediciones Sigueme, 1971.

________________.Uma Igreja na Amazônia em conflito com o latifúndio e a

marginalização social. 1971 (SNE).

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________________. Palabra Ungida. Zafra: teologado claretiano. 1955.

________________. Llena de Dios e tan nuestra. Antologia Mariana. (SNE).

________________. El vuevo Del Quetizal.Espiritualidade em Centro América . (SNE).

________________. A cuia de Gedeão. Petrópolis: Vozes, 1982.

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