a questão da literatura engajada nas filosofias de sartre e deleuze

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213 Comunicação&política, v.25, nº2, p.213-234 A questão da literatura engajada nas filosofias de Sartre e Deleuze Paulo Domenech Oneto * Introdução N a primeira das coletâneas de textos avulsos de Gilles Deleuze publicadas após sua morte – intitulada L’Île déserte et autres textes (2002) –, há um artigo dedicado a Jean-Paul Sartre que merece destaque por diversas razões. Em pri- meiro lugar, por se tratar do único texto em que Deleuze aborda diretamente as posições daquele que foi o mais influente pensador francês do século XX. Em seguida, por consistir numa grande ho- menagem, justamente a alguém cuja filosofia parecia ser de impor- tância menor para os desenvolvimentos próprios das questões deleuzeanas. Assim, como explicar um elogio de tal magnitude a um pensador sem maior relevo para o seu trabalho? Enfim, em terceiro lugar, por um aspecto que pode talvez explicar a aparente contradição: por se tratar de um dos poucos lugares (senão o úni- co) da obra deleuzeana em que a questão do engajamento intelec- tual é levantada de modo explícito. Literatura * Doutor em Filosofia pela Université de Nice (França), e doutorando em Literatura Comparada pela University of Georgia (EUA).

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Boa introdução à filosofia da literatura contemporânea.

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LiteraturaA questão da literatura engajada nas filosofias de Sartre e Deleuze

Comunicação&política, v.25, nº2, p.213-234

A questão da literatura engajadanas filosofias de Sartre e DeleuzePaulo Domenech Oneto*

Introdução

Na primeira das coletâneas de textos avulsos de GillesDeleuze publicadas após sua morte – intitulada L’Îledéserte et autres textes (2002) –, há um artigo dedicado a

Jean-Paul Sartre que merece destaque por diversas razões. Em pri-meiro lugar, por se tratar do único texto em que Deleuze abordadiretamente as posições daquele que foi o mais influente pensadorfrancês do século XX. Em seguida, por consistir numa grande ho-menagem, justamente a alguém cuja filosofia parecia ser de impor-tância menor para os desenvolvimentos próprios das questõesdeleuzeanas. Assim, como explicar um elogio de tal magnitude aum pensador sem maior relevo para o seu trabalho? Enfim, emterceiro lugar, por um aspecto que pode talvez explicar a aparentecontradição: por se tratar de um dos poucos lugares (senão o úni-co) da obra deleuzeana em que a questão do engajamento intelec-tual é levantada de modo explícito.

Literatura

* Doutor em Filosofia pelaUniversité de Nice (França),

e doutorando em Literatura Comparadapela University of Georgia (EUA).

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O artigo homenageia Sartre por sua atitude de recusa do Nobelde literatura naquele ano (1964)1. Uma vez que o ensaio de Deleuzeé extremamente breve (apenas cinco páginas) e não faz referênciasdiretas à filosofia sartreana, poder-se-ia descartá-lo, reduzindo-o aum mero texto de circunstância e resolvendo a contradição sugeridaacima. Contudo, o problema em proceder desse modo está no títu-lo do artigo: “Il a été mon maître” (“Ele foi meu mestre”). A contra-dição parece, portanto, aumentar de tamanho: como Sartre poderiaser mestre de Deleuze se a filosofia (existencialista) de um está au-sente da obra do outro? Como reduzir um artigo com esse título aum mero texto de circunstância? Será que é suficiente dizer queSartre é mestre de Deleuze apenas em termos de exemplo de inte-lectual engajado?

Creio que não. Creio até mesmo que, apesar de sua brevidade, oartigo em questão pode ser de enorme valia, não apenas para avali-armos a distância que une e separa os dois pensadores no que tangeàs questões do engajamento e da literatura, como também para me-lhor compreender uma série de detalhes da filosofia deleuzeana.

Esta é a motivação deste meu pequeno estudo. Basicamente, pre-tendo construir um caminho em quatro etapas, indo do elogio deDeleuze ao intelectual Sartre (1) até a posição deste último acercado engajamento na literatura (2); para em seguida passar a uma aná-lise do modo quase implícito como Deleuze aborda a relação entreengajamento e literatura (3). A última etapa constitui apenas umesboço para trabalhos futuros de maior fôlego e envolve os pressu-postos filosóficos subjacentes a cada uma das duas abordagens (4).

Na realidade, o objetivo é dar seqüência a uma pesquisa quevenho desenvolvendo desde 2002 e que já rendeu duas participa-ções em colóquios. A primeira, nos EUA (outubro de 2002), porocasião do 28o encontro anual da Southern Comparative LiteratureAssociation, que teve exatamente por tema o texto de Sartreintitulado O que é a literatura?. A segunda, no Brasil (2005), no Co-lóquio Internacional Jean-Paul Sartre – 100 anos, realizado na UERJ(Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Da primeira vez em

1 Vide C&p vol. 23, nº 3, set-dez 2005 (n. do e.)

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que apresentei as idéias centrais que aqui volto a expor, procureimanter o foco sobre a questão literária vista sob as duas perspecti-vas (de Sartre e de Deleuze), uma vez que se tratava de um encon-tro de profissionais de literatura comparada. Na segundaoportunidade, porém, enfatizei a proximidade entre as duas pers-pectivas. A intenção agora é começar a mostrar como as diferençasde abordagem acerca do engajamento e da literatura se enraízamem diferenças filosóficas mais profundas.

1. Sartre e Deleuze

O primeiro passo para uma compreensão das possíveis relaçõesentre as duas filosofias em questão é recusar uma dupla hipótese: ade que o artigo-homenagem citado seja um mero texto de circuns-tância ou de que, mesmo que o pensamento sartreano tenha exer-cido algum tipo de influência sobre Deleuze, ela tendeu adesaparecer nos anos subseqüentes. Contra tais hipóteses pode-mos, antes de qualquer coisa, voltar a destacar o título do artigo,que fala em “mestre”. Todavia, se isso não for suficiente, há aindauma passagem capital dos diálogos entre Deleuze e Claire Parnet(de 1977), em que o filósofo volta a destacar o papel de Sartre nasua formação:

“Sartre era o nosso Fora, (...) a lufada de ar que vinha do fundo dopátio (...) Entre todas as possibilidades da Sorbonne, ele era a com-binação única que nos dava força para suportar a restauração daordem. E Sartre nunca deixou de ser isto: não um modelo, um mé-todo ou um exemplo, mas um pouco de ar puro (...), um intelectualque mudava de maneira singular a situação do intelectual.”(DELEUZE & PARNET, 1977:18-19)

Cabe, porém, observar que Deleuze volta aqui a ressaltar a dife-rença na atitude do intelectual Sartre sem discutir literatura ouquaisquer conceitos oriundos do existencialismo. E se observar-mos ainda que, no artigo-homenagem de 1964, as únicas citaçõesextraídas da obra de Sartre são trechos do seu ensaio intitulado

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Qu’est-ce que la littérature? (1948), sem que, em nenhum momento,Deleuze trate propriamente do fazer literário, podemos talvez ten-der para a tese de uma influência restrita ao domínio do engaja-mento.

O ensaio de Sartre é, acima de tudo, um texto em defesa de umaliteratura engajada. Entretanto, o mais interessante é ver que, emsua leitura, Deleuze parece se esforçar para ampliar o escopo doproblema na direção do engajamento em geral. E, mais interessan-te ainda, é notar que ele procura fazê-lo de uma maneira que per-mite vincular essa questão, aparentemente pontual, com uma dasintuições essenciais de seu pensamento, que diz respeito ao pró-prio exercício do pensamento.

Assim, por meio de um contraste entre “pensadores privados”e “professores públicos”, Deleuze aponta para uma noção que per-passa toda a sua obra: a afirmação do pensamento como enraizadona vida, vinculado a uma esfera que escapa ao domínio da repre-sentação da realidade. Aqui, no artigo sobre Sartre, essa esfera édenominada “sub-representativa”:

“Desde o início Sartre concebeu o escritor sob a forma de um ho-mem como os outros, se dirigindo aos outros do ponto de vista de sualiberdade. Toda a sua filosofia se inseria num momento especulativoque contestava a noção de representação; a própria ordem darepresentação: a filosofia mudava de lugar, deixava a ordem dojuízo para se instalar no mundo mais colorido do ‘pré-judicativo’,do ‘sub-representativo’.” (DELEUZE, 2002, pp. 110-111)

Dentro da filosofia de Deleuze, tal como se desenvolve desdepelo menos Diferença e repetição (1968), o “mundo do sub-repre-sentativo” nada mais é do que o domínio de um pensamento semimagem; pensamento que não pretende começar pelos “fatos quetodos devemos reconhecer”, mas que se volta para o seu solo im-pensado – este solo em que ainda não sabemos bem o que é e nemcomo pensar. Esse ‘solo’ será chamado mais tarde de ‘plano’ e con-siste basicamente num tipo de disposição que nos permite pensaro que pensamos. A filosofia, por exemplo, consiste na criação de

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conceitos, mas estes são motivados por questões que devem sercolocadas segundo um contexto e que não existem antes do ato depensar (DELEUZE & GUATTARI, 1991:40-43). No campo da lite-ratura e das demais artes, traça-se um plano próprio, algo distintodo plano filosófico. Deleuze-Guattari o chamam de “plano de com-posição de sensações” (cf. Ibid.:186). Contudo, de um modo ou deoutro, o pensamento se faz sempre a partir de forças “pré-lógicas”que nos tomam e forçam a pensar. Essas forças que desencadeiam opensamento podem ser vistas como algo a ser afirmado ou exorci-zado (DELEUZE, 1968:182 e 192-193).

Nos termos do artigo sobre Sartre: podemos mergulhar nomundo mais colorido da sub-representação e do impensado ouentão escamoteá-lo através de uma naturalização de certos meca-nismos que envolvem o ato de pensar, mas que estão bem longe decaracterizá-lo. “Pensadores privados” – não obviamente no senti-do de isolados do mundo que os cerca, mas sim como aqueles queconseguem pensar fora ou no limite do senso comum em que “to-dos sabem muito bem que...”, “todos devemos reconhecer que...”etc... – são aqueles que sabem questionar a ordem representativa,mantendo com isso “o grão da revolução permanente” (DELEUZE,2002:111). “Pensadores públicos” – cuja proliferação nos dias dehoje parece inegável por razões as mais diversas – tendem por suavez a se confinar à esfera do juízo e aceitar suas convenções comvistas a ocupar um lugar e, então, justificá-lo e legitimá-lo.

Dessa forma, a indagação sartreana em torno do que devemosesperar do escritor é reconduzida por Deleuze: a rigor, só no pri-meiro caso podemos falar em engajamento, pois só ali ocorre umacompleta afirmação do pensamento como “subjetividade em cons-trução”. O pensamento (filosofia, literatura ou o que for) se engajaquando se volta para aquilo que o anima ‘de fora’, isto é, para asforças que nos fazem pensar além da ordem naturalizada dos fatos.

É provavelmente nisso que reside a comunidade entre o ‘mes-tre’ Sartre e o ‘discípulo’ Deleuze. É, aliás, revelador notar que asegunda passagem de Qu’est-ce que la littérature?, citada por Deleuze,remete a Kafka, um escritor que desempenhará um papel funda-mental na sua abordagem sobre a literatura, precisamente por sua

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vocação política: “a obra de Kafka é uma reação livre e unitária aomundo judaico-cristão da Europa. Seus romances são a ultrapassa-gem sintética de sua situação de homem, de judeu, de tcheco, denoivo recalcitrante, de tuberculoso etc.” (SARTRE, 1948:293).Deleuze utiliza o trecho para falar de Sartre, o que mostra o quãopróximas estariam as duas concepções de engajamento de cada umdos filósofos. Kafka é um escritor engajado para Sartre, assim comoSartre é um filósofo engajado para Deleuze. Mas é possível utilizaro mesmo trecho para irmos mais além. Podemos indagar ainda oquanto o modo de engajamento literário proposto por Sartre efeti-vamente converge com o modo de engajamento que estaria nasentrelinhas da abordagem deleuzeana. Podemos supor um pontoquase pacífico para a questão do engajamento tout court. Mas existi-ria um modo especificamente literário de engajamento para cadaum dos filósofos? Em caso afirmativo, quais seriam esses modos? Emais: que diferenças importantes na própria noção de engajamentopoderiam ser reveladas a partir dessa diferença primeira, entre osmodos de engajamento literário?

2. Sartre: uma literatura de situações

Analisemos inicialmente o célebre ensaio de Sartre. Qu’est-ce que lalittérature? começa com uma discussão sobre a especificidade da li-teratura diante de outras formas artísticas, como a pintura, a escul-tura ou a música. Segundo o filósofo, praticamente nenhumparalelismo pode ser traçado entre a arte literária e outros meiosartísticos. Eles diferem tanto em termos de forma como em termosde matéria. Os elementos constituintes da literatura são signos quesempre se referem a algo de exterior a eles. Por outro lado, cores,formas e sons são coisas que existem por si mesmos. Ainda quereconheçamos uma certa significação em uma melodia ou em umapintura, o fato principal é que ela não pode existir fora da melodiaou da tela. A fim de melhor esclarecer seu argumento, Sartre em-prega o vocabulário existencialista. Em uma canção de lamento,por exemplo, a lamentação já não existe, ela é. O que Sartre estádizendo é que a idéia original que anima a obra se encontra com-

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Comunicação&política, v.25, nº2, p.213-234Foto: Bruno Barbez

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pletamente absorvida na obra. O pesar tornou-se uma coisa musi-cal, ele já não existe enquanto tal. É a mesma situação do Gólgotapintado por Tintoretto. O amarelo no rasgo do céu, acima doGólgota, não teria sido escolhido para significar angústia ou mes-mo para provocá-la, mas seria a angústia tornada coisa, a angústiacomo rasgo amarelo no firmamento (cf. Ibid., 15)

Em contraste com isso, Sartre afirma que o escritor lida primor-dialmente com significados. Eis porque ele deverá se engajar. Nestaaltura da sua argumentação, a reivindicação sartreana deengajamento surge como uma exigência de tomada de posição di-ante dos significados sugeridos (ou situações descritas) na obra.Entretanto, mais adiante no ensaio, Sartre tenta mostrar que oengajamento deve ir muito além disso. Trata-se, sobretudo, de vi-sar às próprias condições de possibilidade da significação, isto é, deafirmar e se engajar pela liberdade que é o próprio requisito do atocriador. Mas, antes de chegar a isso, o filósofo enfatiza a necessida-de de se distinguir prosa de poesia. O verdadeiro império dos sig-nos é a prosa, já que a poesia no fundo não se serve das palavras.Ao contrário, segundo a fórmula sartreana, a poesia serve as palavras(cf. Ibid., 18):

“Na realidade, o poeta se retirou de uma só vez da linguagem-instrumento; ele escolheu de uma vez por todas a atitude poéticaque considera as palavras como coisas e não como signos. Pois aambigüidade do signo implica que se possa atravessá-lo à vontade,como uma vidraça, e perseguir através dele a coisa significada; ouvirar seu olhar em direção à sua realidade, considerando-o comoobjeto. O homem que fala está além das palavras, próximo do obje-to; o poeta está aquém (...). Para o primeiro, as palavras são con-venções úteis, ferramentas que se desgastam pouco a pouco e quejogamos fora quando já não servem; para o segundo, elas são coisasnaturais que crescem naturalmente sobre a terra, como a grama eas árvores.” (Ibid., 18-19).

Embora reconheça que em toda poesia podemos encontrar ele-mentos de prosa e que, mesmo a mais árida prosa, contém um

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pouco de poesia, Sartre parece oferecer aqui uma linha demarcatóriabastante clara que permite desenvolver sua argumentação ao mes-mo tempo em que esclarece a distinção precedente, estabelecidaentre as diferentes formas artísticas. A partir daí, o filósofo insistirána necessidade de algum grau de conceptualização como condiçãopara a criação literária, destacando um conteúdo que estaria em bus-ca de sua melhor forma de expressão.

Não é tanto a metáfora do vidro que se faz problemática namedida em que supõe uma certa transparência da linguagem, masa observação complementar segundo a qual a prosa é “essencial-mente utilitária” (Ibid., 25). Pois mesmo que admitamos algumautilidade para a linguagem falada do dia-a-dia, podemos ainda du-vidar que este seja o objetivo da prosa literária. Ao menos pode-mos duvidar que o efeito procurado pelo escritor seja efetivamentea comunicação direta de idéias. Seria a função primeira da línguainformar e comunicar?

Não obstante, este parece ser um dos argumentos centrais doensaio de Sartre. Nele jaz uma concepção de linguagem como meiooriginalmente transparente. A substância da prosa é apresentada comosignificativa e o processo de significação é quase reduzido à desig-nação (cf. Ibid). O problema central da literatura é saber como oescritor pode encontrar os melhores meios para exprimir idéias jáelaboradas.

Para abrandar esse primeiro veredicto de que Sartre acaba porseparar pensamento e expressão de maneira quase irreversível,poderíamos observar que Qu’est-ce que la littérature? foi escrito comouma espécie de panfleto contra a famosa e renitente tese da ‘artepela arte’. Aos puros estilistas que vêem na palavra uma brisa sua-ve “que corre sobre a superfície das coisas, aflorando-as sem alterá-las” (Ibid., 27), Sartre tentaria opor uma visão segundo a qual nossosmodos de falar e escrever são atos expressivos capazes de alterar omeio em que se inserem. A manobra é, de fato, importantíssima.Ao enfatizar a literatura como forma de ação, o filósofo conseguerefinar seu argumento sobre a preeminência do conteúdo sobre aexpressão. Mas é novamente a obsessão pela transparência queameaça comprometer sua argumentação:

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“Não se é escritor por se ter escolhido dizer certas coisas, mas sim porse ter escolhido dizê-las de uma certa maneira. É claro que é o estiloque dá valor à prosa. Mas ele deve passar desapercebido. Umavez que as palavras são transparentes e o olhar as atravessa, seriaabsurdo fazer deslizar entre elas vidros foscos. A beleza não é aquisenão uma força doce e insensível [itálicos meus].” (Ibid., p. 30)

Uma vez mais, o que temos aqui é a idéia de que o estilo é ummeio para se chegar ao significado, um mero instrumento ou, se-gundo a metáfora que Sartre toma emprestada a Brice Parain, “pis-tolas carregadas” que devem ser usadas com responsabilidade, istoé, em alvos específicos e não aleatoriamente (cf. Ibid., 29) Estesalvos estão relacionados à luta de cada um pela liberdade. Mas,para Sartre, a liberdade não é um fim abstrato, como o escritorJulien Benda parece defender em sua obra La Trahison des clercs(1927) ou mesmo Gyorgy Lukacs em seus ensaios sobre literatura.Nos termos do existencialismo, só há liberdade em situação. Nessesentido, engajar-se é sempre engajar-se diante do estado de coisasatual, não exatamente pela liberdade, mas a partir dela.

Com isso, Sartre responde a pergunta que propõe logo no títuloda segunda seção de seu ensaio (“Por que escrever?”). Basicamen-te, escrevemos para nos posicionarmos em face da atualidade, para exer-cermos nossa liberdade. O erro dos estilistas da literatura derivaprecisamente de sua má fé (conceito-chave do existencialismo), ouseja, de sua recusa em assumir a condição livre de consciênciadesveladora do mundo. Pois, afinal de contas, escrever é um modode reivindicar liberdade. Além disso, como ato de desvelamentodo mundo, o ato criador de significados necessariamente inclui osleitores. Daí a necessidade de uma terceira seção para o ensaio,intitulada “Para quem escrevemos?”.

O veredicto final de Sartre a respeito da literatura está quasepronto. O escritor deve se engajar pela liberdade que é condiçãode possibilidade do próprio ato criador (1). Essa liberdade inclui,porém, a liberdade dos leitores, aqui e agora, em situação (2): “quan-to mais experimentamos nossa liberdade mais reconhecemos a li-berdade do outro” (Ibid., 58).

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Na realidade, segundo Sartre, é a escolha do leitor que determi-na a escolha do tema (e da situação) sobre o qual se deve escrever.O engajamento é, assim, engajamento pela situação retratada,dirigida a seus contemporâneos e irmãos de classe ou de raça, nosentido de sua liberdade. Pôr o foco do texto nas palavras (caso deFlaubert) ou escrever para que não se experimente a liberdade (casode Drieu la Rochelle em seu apoio ao fascismo do regime de Vichy)é se desengajar, e com isso, trair a própria arte de escrever.

Apesar da revisão de alguns desses argumentos – em ensaiosposteriores e, sobretudo, nos livros escritos sobre Genet e Flaubert–, a base a partir da qual eles se articulam permaneceria a mesmano pensamento de Sartre. Trata-se de uma base existencialista. Oengajamento é engajamento por uma liberdade que é a própriasubjetividade no ato criador. A liberdade deve atualizar-se nos te-mas significados no interior da obra literária. A língua é vista comotransparente, sendo-lhe reservado um papel secundário como lín-gua. Eis por que o estilo deve passar desapercebido: precisamentepara permitir que as idéias associadas à situação descrita possamser transmitidas. Em semelhante contexto, a única possívelespecificidade conferida ao engajamento em literatura reside nasua capacidade de conduzir o leitor na trilha que o levará a tomarconsciência de sua situação, e que irá prepará-lo para lutar por sualiberdade. Afora isso, a literatura parece compartilhar com a histó-ria ou a filosofia a mesma meta de veicular uma mensagem, deven-do manter-se fiel a um tal objetivo. Para parafrasear Sartre, o escritordeve praticar uma literatura de situações, iniciando por um processode conceptualização que se dirige a grupos específicos. O estilo éum meio para descrever as situações de liberdade dos grupos emquestão, sem possuir em si mesmo o poder de transformá-las.

Mas como Kafka corresponderia a essa visão? Numa obra comoa Metamorfose, por exemplo, podemos detectar o tipo deengajamento sugerido por Sartre? O autor tcheco é um escritor desituações? O que o motiva a escrever? A quem ele se dirige? Comofunciona o seu estilo?

Como sugeri, a resposta a essas perguntas autoriza avançar umpouco mais na comparação entre as concepções de Sartre e Deleuze

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acerca do engajamento na literatura. Afinal de contas, o mais im-portante trabalho sobre literatura escrito por este último, ao ladode Félix Guattari, é dedicado precisamente a Kafka (Kafka, por umaliteratura menor).

Nas palavras de Sartre, o que o autor da Metamorfose promovepor meio de sua literatura é uma “reação livre e unitária” aos limi-tes do seu próprio mundo – o mundo judaico-cristão da Europacentral. Assim, escrever é encarado como um ato sintético de pro-jeção para além de sua situação no mundo (cf. Ibid., 293). Isso ex-plica em que sentido Kafka pode aparecer para Sartre como umescritor engajado. Entretanto, o filósofo é, ainda aqui, bastante pru-dente em suas considerações. A fim de rechaçar o dualismo entrerealidade conceptualizada (pensamento) e expressão, o filósofoinsiste que o realismo e a verdade de Kafka nunca são dados como“já constituídos” ao leitor. É preciso que este último invente tudonuma perpétua ultrapassagem da coisa escrita. O autor é apenasum guia: as balizas com que ele marca o terreno “são separadas porum vazio, é necessário uni-las” (Ibid., 52).

Ora, ao utilizar semelhante terminologia, Sartre parece mais umavez manter uma concepção em que o estilo (terreno) é um simplessuporte para determinadas idéias (balizas). O leitor não ultrapassaas idéias preconcebidas de seu mundo movido pelo estilo comouma força positiva. Ao contrário, o estilo deve permanecer neutro.Sua função é auxiliar a conectar as idéias. O estilo pode eventual-mente reforçá-las, mas tentar fazê-lo é um risco. O melhor é evitarexercícios de estilo.

Parece, enfim, que a ênfase que Sartre dá à significação acabapor arrastá-lo para uma situação em que é preciso escolher entreser fiel a determinadas idéias associadas à liberdade (engajamento)ou enfatizar os meios de expressão. Desse ponto de vista, algumengajamento (mesmo em detrimento da chamada ‘beleza’) é me-lhor do que nenhum. Uma conexão balizada por idéias em nomeda liberdade é melhor do que uma livre conexão (cf. Ibid., 29-30).Sartre confirma aqui o princípio que norteou sua crítica literária,desde as críticas de seu Situations I. Contra o cuidado com as pala-vras, presente na obra de um escritor como Jules Renard, por exem-

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plo, ele postulava a necessidade de certa concisão em prol das idéias aserem exprimidas (cf. SARTRE, 1942:273). Somente assim seríamosefetivamente engajados.

Mas seria assim também para Deleuze? Até que ponto as visõesde literatura dos dois pensadores convergem? O que há de novo naabordagem deleuzeana sobre Kafka que permitiria distinguir suasidéias de engajamento daquelas de Sartre?

Deleuze e a máquina literária

Curiosamente, Deleuze utiliza o termo “sobriedade”, que se apro-xima muito da “concisão” sartreana. Mas é essencial determinar osentido próprio do termo na obra deleuzeana. À primeira vista,atingir a sobriedade é uma simples questão de ser capaz de rarefa-zer ou saturar por eliminação todo excesso, como na obra de VirginiaWoolf (DELEUZE & GUATTARI, 1980: p. 343). Todavia, um olharmais atento revela que o método que Deleuze propõe não é pro-priamente aquele da concisão sartreana. Pois o objetivo não émais abrir espaço para idéias de situação ou mesmo pôr o leitor emcontato com a experiência do “vivido” (vivência fenomenológica),mas permitir que as coisas (língua, escritor e leitor) continuem a devir.De acordo com Deleuze, esta é a tarefa de toda atividade artística.A arte compõe sensações (“perceptos e afetos”) que excedem nos-sa vivência ou campo perceptivo-afetivo (DELEUZE & GUATTARI,1991: pp. 154-155). A diferença entre a literatura e outras artesreside apenas nos materiais (meios) usados. O estilo desempenhaum papel positivo, como força propulsionadora no processo dedevir. No caso da literatura, o estilo é visto como invenção de umanova sintaxe, capaz de desarticular formações lingüísticas canônicase enrijecidas:

“O objetivo da arte é arrancar o percepto das percepções de objetose dos estados do sujeito percipiente, arrancar o afeto das afecções(...) Em relação a isto, a posição do escritor não é diferente daquelado pintor, do músico ou do arquiteto. Os materiais específicos doescritor são as palavras e a sintaxe.” (Ibid., 198)

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Em sua última obra (Crítica e clínica, 1992), Deleuze é mais ex-plícito. Ele afirma a necessidade de “esburacar” as línguas preten-samente estabelecidas a fim de descobrir por detrás delas novaspossibilidades lingüísticas que permanecem inseparáveis de novaspossibilidades de existência. Estão aí os dois aspectos que já defini-am o procedimento da literatura menor deleuzo-guattariana, cujomaior representante é Kafka: decompor as conexões das línguas-padrão (1), inventar uma nova língua dentro da língua como siste-ma estável e homogêneo, por meio da elaboração de uma novasintaxe (2). Um terceiro aspecto ajuda a compreender o que tudoisso tem a ver com engajamento. Trata-se da abertura imediata daliteratura sobre o universo. Quando a língua é escavada para darlugar a uma outra língua, somos confrontados com seus limitesnão-lingüísticos, com o seu fora. Deparamo-nos com visões e audi-ções que, na realidade, não pertencem a nenhuma língua (3)(DELEUZE, 1992:16). Este ‘fora’, que nada mais é do que o limiteinterno de qualquer forma ou o campo genético que permite quetodas formas venham a ser, é precisamente o domínio do “sub-representativo”. O engajamento se torna então engajamento pelolimite que, justamente por ser limite de uma realidade em devir,não pode estar dado e é irrepresentável.

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Eis o grande e verdadeiro mérito de Kafka: ter desenvolvido aolongo de sua obra um método de escavação da língua alemã quepode ser denominado processo de ‘minorização literária’, cujo al-cance é, imediatamente e em si mesmo, lingüístico e sócio-político.Deleuze e Guattari já resumiam naquela ocasião (1975) os três as-pectos de uma “literatura menor”: desterritorialização da língua-padrão (1), conexão política imediata (2) e agenciamento coletivode enunciação (3) (DELEUZE & GUATTARI, 1975:33).

O terceiro ponto mostra que a abertura para o universo passanecessariamente pelo meio social. Não há mais distinção entreposição/estilo do autor e abordagem do tema. Os sujeitos deenunciação e de enunciado se embaralham e dissolvem os papéissociais e políticos nas conexões estabelecidas com o não-represen-tado. A literatura já não deve se empenhar em exprimir idéias bemconcebidas, mas sim expressar atos coletivos de enunciação que oautor consegue extrair das representações socialmente construí-das da realidade. Ao fazê-lo, a ordem da representação se desarti-cula. A separação entre conteúdo e expressão é abolida, assim como adistância que se supõe entre o escritor e o povo ao qual se dirige. O queefetivamente funda conteúdo e expressão é um fluxo expressivo(Wörterflucht) movido por uma tendência à fuga dos modelos-pa-drão que nunca são lingüísticos sem serem, ao mesmo tempo, soci-ais e políticos.

Para Deleuze, o escritor está sempre em busca de uma fuga ati-va, para se tornar outro com o movimento (devir) minoritário davida. Está claro, porém, que a fuga nunca é da vida, mas para a vida,rumo à vida anônima que subjaz às nossas estratificações e natura-lizações diárias – uma vida ‘lisa’, que perpassa todos os eventuaisestratos que a ocupam, vida de personagens como Bartleby(Herman Melville) ou Riobaldo (Guimarães Rosa):

“Partir, escapar, é traçar uma linha. O mais elevado aspecto daliteratura segundo Lawrence é “partir, partir, escapar... atravessaro horizonte, penetrar noutra vida... É assim que Melville se encon-tra no meio do Pacífico. Ele realmente cruzou a linha do horizonte”.A linha de fuga é uma desterritorialização (...) O grande e único

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erro seria crer que a linha de fuga consiste em fugir da vida; a fugapara o imaginário, fuga para dentro da arte. Ao contrário, fugir éproduzir o real, criar vida, encontrar uma arma”. (DELEUZE &PARNET, 1977:36 e 49)

Como Melville ou D.H. Lawrence, Kafka também é avaliado evalorizado em termos de seu engajamento diante da vida comodevir desmesurado (a-cronológico). E se Deleuze prefere falar defuga do que de liberdade é para evitar as oposições ainda abstratasque parecem dominar o existencialismo. Oposições como aquelaentre real e imaginário, que mantém toda a problemática dentrodo terreno da representação (será preciso esperar o estruturalis-mo...). Os efeitos políticos disso são evidentes, através da reduçãoda esfera micropolítica à esfera dos poderes (macro-política): o lu-gar do poder, sua posse etc. (será preciso esperar Foucault...).

Há duas conseqüências a tirar da abordagem deleuzeana. Pri-meiramente, a noção de ‘engajamento’ deixa de remeter a um povoou grupo específico, mesmo que em situação. O conceito deleuzeanode “menor” não se refere a nenhum grupo social situado historica-mente, como era o caso no contexto da análise sartreana. ComoDeleuze adverte: “uma minoria nunca existe pronta” (Ibid., 43). Arigor, há uma diferença essencial entre processo minoritário comodevir e minoria como grupo social. Um devir-minoritário não é oestado atual de um grupo oprimido, dado em algum tempo-espa-ço, mas designa a capacidade que, de um momento a outro, irrompeem cada grupo ou indivíduo não-ajustável a um padrão ou mode-lo, permitindo que se mergulhe na dimensão ‘sub-representativa’na qual paramos de passar de sujeitos de enunciação (objetos) asujeitos enunciantes (sujeitos) e simplesmente enunciamos...

A segunda conseqüência diz respeito ao estilo. O engajamento nãose dá na literatura por uma situação descrita e nem tampouco pelasidéias que animam a descrição. Ele diz respeito ao estilo. Não setrata de conceptualizar primeiro para, só então, escrever e trans-formar. Numa literatura menor, a expressão que resulta da escava-ção de uma língua-padrão nunca vem após o conteúdo:

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“Uma língua maior ou estabelecida segue um vetor que vai do con-teúdo à expressão: dado um conteúdo, numa certa forma, trata-sede descobrir ou divisar a forma de expressão que lhe convém. O quese concebe bem, se enuncia... Mas uma literatura menor ou revolu-cionária começa por enunciar, e só vê ou concebe depois (“A pala-vra, eu não a vejo, eu a invento”). A expressão deve romper com asformas, marcar as rupturas (...) Quando uma forma se parte, tra-ta-se de reconstruir o conteúdo que estará necessariamente em rup-tura com a própria ordem das coisas” (DELEUZE & GUATTARI,1975:51-52).

Deleuze enfatiza ainda que não há qualquer idealismo (nenhumespaço para os estilistas, advogados da ‘arte pela arte’ criticadospor Sartre) no primado da expressão sobre o conteúdo. Pois a expressãoé ela própria determinada pelos “agenciamentos coletivos deenunciação”, isto é, pela conexão desejante que liga o escritor aosdevires necessariamente minoritários que o constituem: “Não há sujei-to, há somente agenciamentos coletivos de enunciação” (Ibid., 33).

O escritor é um ‘inventor de agenciamentos’, um homem políti-co na exata medida em que se abre para experimentações lingüísti-cas que desarticulam a ordem da representação. Ele é uma ‘máquinaliterária’ que consegue se ‘plugar’ ao mundo e extrair dele umapequena variação ou diferença:

“Kafka não se toma, evidentemente, por um partido. Sequer pre-tende ser revolucionário, quaisquer que sejam suas simpatias socia-listas. Ele sabe que todos os laços o amarram a uma máquina literáriade expressão. Ele é simultaneamente suas engrenagens, o mecânico,o funcionário e a vítima. (...) Como fazer a revolução? Ele agirásobre a língua alemã tal como usada na Tchecoslováquia: já que seencontra desterritorializada (...), levará mais longe estadesterritorialização (...) A expressão varrerá o conteúdo; é pre-ciso fazer o mesmo com a forma [itálicos meus].” (Ibid., 106)

O escritor emerge, então, não como alguém engajado pela liber-dade dos povos e elaborando uma literatura capaz de descrever

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suas situações, mas sim como alguém que se engaja pelo devir davida que é também social e político, encarnando-o na literatura. Opovo ao qual ele se dirige ainda não existe, está permanentementepor vir. E é porque não há nenhum povo pronto em sua luta por liberdadeque não há idéias específicas a serem expressas. O estilo não é mais ummeio passivo e transparente para transmitir idéias. Em Deleuze, oestilo é inseparável do não-estilo (DELEUZE, 1970:199). Ele é umrio que carrega todos os materiais, incluindo os leitores, varridospela força de uma língua desterritorializada, aberta para todos osfluxos, como os gritos e sopros de Artaud.

Estendendo as metáforas utilizadas por Sartre: há sem dúvidauma realidade ‘às margens do rio’, mas ela é imediatamente afeta-da pelo fluir do rio. A vidraça está rachada, os cacos estão no meiodo rio. Como em Sartre, evita-se a ênfase na beleza frígida das pala-vras (o lirismo oco), mas o que toma a dianteira é a conexão entreas palavras, o ritmo da língua quando já não se trata mais de repre-sentar nada, de assegurar nenhuma ordem ‘natural’ das coisas, navida, na sociedade e na política. É esse ritmo sempre desviante comrelação as nossas representações e ordens ‘naturais’ que faz a idéiana literatura. Idéias sozinhas, por mais bem elaboradas e democrá-ticas que sejam, não fazem literatura.

4. Quase-conclusão

“To conclude, I announce what comes after.”Walt Whitman

Na obra de Deleuze, tudo isso que foi exposto acima parece tornarpossível estabelecer uma distinção entre filosofia e literatura – dis-tinguir sim, mas em hipótese alguma estabelecer domínios estan-ques de pensamento, e muito menos lugares institucionais onde sepode praticar uma e outra. A literatura, por ser uma arte antes dequalquer outra coisa, possui inevitavelmente um aspecto maneirista.Ou seja, nela, o estilo não pode passar desapercebido, sob pena dese perder o próprio caráter de literatura. Entretanto, uma certa so-briedade é necessária para que o leitor possa ‘esburacar’ a língua-

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padrão que é também língua de representação social. O que estáem jogo é um maneirismo sóbrio. Ao invés de fazer proliferar sím-bolos e alegorias que teoricamente seriam capazes de traduzir ana-logias entre situações e estados de coisas, o escritor busca uma zonade indiscernibilidade entre as situações e estados de coisas, umazona a partir da qual é possível devir-outro ou gerar algo de novo(DELEUZE & GUATTARI, 1975:143).

O caso da filosofia seria ligeiramente distinto. Para utilizarmosos próprios termos de Deleuze-Guattari, o devir conceitual ou filo-sófico “é o ato pelo qual o acontecimento comum esquiva o queé”, sendo este acontecimento “heterogeneidade compreendidanuma forma absoluta”; ao passo que o devir sensível é o aconteci-mento como alteridade, “engajado numa matéria de expressão”(DELEUZE & GUATTARI, 1991:168). Somente no caso da filosofiaa questão fundamental envolve um processo de conceptualizaçãoem que algo é colocado sob uma forma absoluta. Isto não quer dizerque esse processo esteja à parte do devir sensível das artes em quesão produzidos agregados materiais que valem por si próprios.Como podemos ver por meio da análise estilística que Deleuze fazda Ética de Spinoza, o longo e tranqüilo “rio” de noções comunscorrespondendo à formação de nossos conceitos é constantementesacudido pelas “formações vulcânicas” de seu fundo afetivo e pelas“condições atmosféricas” perceptivas que ele próprio ajuda a en-gendrar (DELEUZE, 1992:187). Há um só mundo do devir, masele é muitos, engendrando por isso diversos modos possíveis deacompanhamento (artes, filosofia, ciências).

Para Sartre, porém, filosofia e literatura estão mais próximos doque pode parecer à primeira vista, justamente em virtude da dis-tância que o filósofo estabelece entre as artes onde os agregadosvalem por si mesmos e o domínio da significação em que remete-mos sempre a algo exterior por meio dos signos.

Na realidade, essas diferenças entre Sartre e Deleuze parecemresidir finalmente em diferentes pressupostos filosóficos que re-sultam em compreensões divergentes do próprio fenômenolingüístico. Para o primeiro (‘mestre’), o ideal da prosa, por exem-plo, permanece conceitual na medida em que a língua lida com sig-

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nificados. Nesse sentido, literatura e filosofia caminham juntas. ParaDeleuze, por outro lado, o conceito é uma possibilidade entre ou-tras de experimentação da língua, talvez até mesmo um esforço paraprescindir dela, como atesta a idéia de ‘forma absoluta’ em contrastecom a ‘matéria de expressão’ da palavra concreta. A literatura aquivai de par com as demais artes. O domínio do ‘sub-representativo’é afirmado em ambos os casos, mas sem passar necessariamentepor significados prévios, como parece propor Sartre.

Enfim, a chave do problema das diferenças entre Sartre e Deleuzeacerca do engajamento e da literatura pode talvez ser encontradapor meio de uma análise das duas diferentes concepções de ‘ser’que animam cada um dos empreendimentos filosóficos. Assim,embora tanto Sartre quanto Deleuze tenham uma clara dívida paracom a filosofia de Bergson, a afirmação que este último filósofo fazdo puro devir tendeu a separá-lo de Sartre, ao mesmo tempo emque permaneceu um ponto central para Deleuze. Como ressaltouAlain Badiou, em seu ambicioso e apressado estudo sobre Deleuze,um dos méritos deleuzeanos consiste justamente em ter assumidoe modernizado a filiação bergsoniana, fora da influência fenomeno-lógica encampada pelo existencialismo sartreano (BADIOU, 1998).

Ao contrário de Bergson, Sartre enfatiza o papel da consciência afim de transcender o que vê como sólida imanência do ser. Nossarelação com o mundo é dada fenomenologicamente pela consciência.Já em Bergson e Deleuze, o ato de tomada de consciência é secundá-rio. É a relação imediata entre cada coisa como devir que permite queuma consciência venha a se desenvolver. Eis o sentido da oposiçãosugerida por Deleuze entre a tendência fenomenológica – em que “todaconsciência é consciência de algo” – e o bergsonismo – em que “todaconsciência é algo” (DELEUZE, 1986:89-90). Em vista disso, o escri-tor pode surgir, para Sartre como consciência desveladora de ummundo de situações e, para Deleuze, como uma ‘máquina literária’,segundo os dois modos de engajamento discutidos.

Pode-se, então, deixar aqui uma pista para uma análise compa-rativa futura que serve como uma quase-conclusão. Trata-se de daruma resposta mais direta às perguntas feitas ao final da seção se-gunda deste breve ensaio.

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As conclusões sartreanas a respeito de certa preeminência dopensamento (consciência desveladora) sobre a expressão (estilo)implicam talvez uma diferença de grau entre literatura e filosofia.Se este for efetivamente o caso, não deve haver um tipo deengajamento específico para o escritor. Trata-se, invariavelmente,de se manter comprometido com idéias, escrevendo para um de-terminado povo de acordo com sua situação concreta. Para Deleuze,porém, há uma diferença de natureza entre conceitos, perceptos eafetos. Ainda que eles coexistam sempre, na filosofia e na literatura,o que os anima não é igual. Assim, o engajamento se dá sempre pordevires, mas podemos nos engajar seguindo a cadência regular daspalavras-conceito ou de acordo com os movimentos mais bruscos eocultos dos sons e feições das palavras (DELEUZE, 1992:181-186).De um modo ou de outro, a ‘forma absoluta’ da filosofia e as ‘maté-rias de expressão’ literárias apontam ambas para a exterioridade ab-soluta do plano de vida, anterior à consciência – ou, nos termos deCrítica e clínica, para visões e audições que ultrapassam todos os pos-síveis modos de consciência e até mesmo as formações sociais.

Eis porque o engajamento sartreano ainda não é o engajamentodeleuzeano, por mais que Deleuze possa admirar o próprioengajamento de Sartre. E quem sabe essa admiração do ‘discípulo’Deleuze pelo ‘mestre’ Sartre até soasse um pouco estranha aos olhosdeste último... De um modo ou de outro, a questão do engajamentoe da literatura em Sartre e em Deleuze exige, talvez, um mergulhomais profundo em cada uma dessas filosofias. O caminho pode sero sugerido por Badiou: partir de Bergson, de sua influência umtanto quanto negativa sobre Sartre e positiva sobre Deleuze, anali-sar o papel da consciência e algumas de suas intuições fundamen-tais sobre a matéria e a memória, as multiplicidades qualitativas, ovirtual etc... Mas isso é matéria para outro trabalho.

5. Bibliografia citada:

BADIOU, Alain. Deleuze: “la clameur de l‘être”. Paris: Hachette, 1997.

DELEUZE, Gilles. Cinéma 1: L’Image-mouvement. Paris: Minuit, 1983.

—. Critique et clinique. Paris: Minuit, 1993.

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—. Différence et répétition. Paris: P.U.F., 1968.

—. “Il a été mon maître”, in L’Île déserte et autres textes: textes et entretiens1953-1974, édition préparée par David Lapoujade. Paris: Minuit, 2002.

—. —. Proust et les signes. Paris: P.U.F., 1970.

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Kafka: pour une littérature mineure.Paris: Minuit, 1975.

—. Qu’est-ce que la philosophie? Paris: Minuit, 1991.

—. Mille Plateaux. Paris: Minuit, 1980.

DELEUZE, Gilles & PARNET, Claire. Dialogues. Paris: Flammarion, 1977.

SARTRE, Jean-Paul. Situations 1. Paris: Gallimard, 1947.

—. Qu’est-ce que la littérature?. Paris: Gallimard, collection Folio Essais, 1948.

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