alberto campinho - pedro ii - o Último papa

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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Alberto da Silva Campinho nasceu

em 1936 em Barcelos.

Diplomado em Filosofia e Teologia,

licenciou-se em Direito exercendo

durante anos o magistério como juiz

desembargador.

Morreu em 2005 em Braga.

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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Alberto Campinho

Pedro II

O Último Papa

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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Ao Albino Luciani —

o Papa Giampaolo —

assassinado pela máfia vaticana!

E, nele, a todos quantos tombaram

na luta por um ideal —

ver o "Rosto de Cristo",

como O viram os cristãos das primeiras comunidades

dos três primeiros séculos

do Cristianismo:

uma Кoivωviα –

uma comunhão de pessoas que vivem neste mundo,

mas como fermento...

que se difunde para levedar a massa!

Como sal...

que se oculta para temperar o alimento!

Uma comunhão peregrina, fiel ao Espírito do Amor,

onde ninguém chama seu ao que lhe pertence,

porque tudo é de todos.

E, nessa vivência caminhante, sofre, dá a vida, como o Mestre,

para transformar o mundo das pessoas

que não amam.

E, transformando-o, o preparem —

sem dogmatismos,

sem fundamentalismos,

nem códigos,

nem anátemas.

Só mesmo

com o Amor,

do samaritano

que vai ao encontro do tombado na berma,

que opta voluntariamente por se colocar na sua rota,

sem indagar da sua identidade,

raça, sexo, posição social ou convicções religiosas —

para a libertação total

de toda a miséria humana,

na Parusia...

incontornável transe vestibular

da "Nova Jerusalém"!...

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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«Naquele dia — diz o Senhor Deus —

farei com que o sol se ponha ao meio-dia,

e cobrirei a terra de trevas em pleno dia.

Converterei as vossas festas em luto

E os vossos cânticos em lamentações.»

Amós, 8, 9-10

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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― «BEM PERTO DO TIBRE CHEGA LIBITINA.

UM POUCO ANTES GRANDE INUNDAÇÃO:

O CHEFE DA NAVE PRESO, POSTO NA SENTINA

CASTELO, PALÁCIO EM CONFLAGRAÇÃO» ―

NOSTRADAMUS, II, 93

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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I

Tu es Petrus...

Cheguei, vi-o, dilatei a minha essência e gritei — esquecido de que entrava no

vestíbulo celestial:

— Pedro!... O Apóstolo, a quem Cristo confiou as chaves do Reino! Grande alegria

em ver-te assim, deste lado, irmão!

— Ó meu grande amigo, irmão e homónimo! Já terminou tudo lá em baixo? Bem,

pelo excepcional movimento registado hoje nas entradas...

— Acabo de chegar, irmão Apóstolo e de quem fui o último sucessor. Desde já os

meus agradecimentos por tudo o que, cá do Alto, fizeste por mim! Sabes?!... As

dramáticas horas vividas à partida... Nem é bom lembrar!

— Só o meu dever cumpri, irmão, só o meu dever! A Misericórdia Divina comunica

a Sua Santíssima Vontade, e nós, alegres e solícitos — como é timbre de todos os

felizardos habitantes da Cidade de Deus — vamos em auxílio de quem suplica. Mas,

irmão, grande lutador pela salvação da Humanidade, senta-te, descontrai-te, que

estamos para sempre no Amor — coração do Nosso Deus — onde tudo é novo, onde o

nosso ser — o ser de toda a comunidade dos que amam — se enche de alegria, sempre

mais, na intimidade da infinidade deslumbrante! Então, conta-me essa grande viagem, a

viagem das viagens, aquela que só acontece uma vez na vida.

— Não foi fácil, meu Irmão. Já o meu corpo ardia — lembro-me perfeitamente do

último momento da hecatombe, estava portanto ainda consciente das coisas do outro

lado — e a tentação contínua do pai da mentira quase me sugava para ele! Mesmo no

último instante, lutei com o dragão imundo que, de portas escancaradas e dentes afiados

para me devorar, me incitava, raivoso, a entrar. Irmão, senti isso perfeitamente — era a

força do Senhor Jesus que me dava as palavras: «Afasta-te de mim maldito, só a Deus

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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adorarás!» Momentos terríveis, Pedro Apóstolo! Momentos indizíveis! Quanto ao mais,

recordo a dor física horrorosa que senti logo após o clarão que me cegou, o

rebentamento medonho que se ouviu e o calor abrasador que consumia corpos e tudo

assava. A passagem, porém, foi rápida. Diante do trono do Senhor, prestei contas, como

sabes.

— Que foram aprovadas!...

— O Senhor disse-me: «Eis o livro, no qual tudo se encontra escrito!» Recordei-me

então da sentença que, antes, tantas vezes cantara sem apreender o exacto significado

do que dizia — Liber scriptus proferetur... in quo totum continetur!...

Decorriam assim as saudações entre o primeiro Pedro e eu, o segundo Pedro,

quando, no meio de uma suavidade que a humana natura é incapaz de definir, se ouviu

distintamente:

— Então, filho, novíssimo Pedro ou rocha firme que sustentaste o Meu Povo, no

transe mais difícil de toda a sua caminhada até Mim: porque foste fiel no pouco, vem,

entra na grande família dos bem-aventurados que não mais sofrem. Eu sou o Amor! A Luz

da Humanidade que ama! A felicidade sem fim dos que escolheram o Amor! Para

sempre! Como tu e os "cento e quarenta e quatro mil que lavaram suas túnicas no

sangue do Cordeiro"! Para todos preparei uma eternidade de beleza! Pedro Apóstolo,

sempre rude, mas sempre generoso, aqui está para te acompanhar e apresentar à

Humanidade que livre e definitivamente optou pela VIDA sem dor, sem angústia, sem

medo! Vem, novíssimo Pedro, para ti e para toda a peregrinação se abre a Nova

Jerusalém — a cidade da alegria, das avenidas largas para o Amor, dos canteiros

perfumados para receber os bem-aventurados, das praças enormes e perfeitas para a

abundância do gozo que quis para as Minhas criaturas, das belíssimas moradias que

edifiquei à medida de cada uma. Olha, Paulo também está ansioso por te conhecer e

falar. Tens a eternidade por tua conta. Mas há aqui uma Pessoa que, sendo humana, está

acima de todos os humanos, e faço questão de ser Eu a apresentar-tA — Maria, a Mãe!...

A quem te confiaste e a peregrinação...

— Mãe!... Mãe!... Mãe!... Mãe da Cidade Nova!... Da nova Humanidade! Da Paz

Eterna! A Ti, coros de anjos e arcanjos entoam sem fim esta harmonia suave e inebriante.

O meu ser não é capaz de entender toda a extensão da Tua grandeza, Mãe! Mas sinto

força para me unir aos coros celestes e louvar-te para sempre. Mãe que me salvaste em

tanta hora de dor! Mãe da Igreja que foi e da que é, agora, na posse infinda do Criador,

face a face, tal como é! Como quero agradecer-Te, Mãe, por tudo o que deste aos teus

filhos! Perversos, tantas vezes! Mas, logo arrependidos, por Tua intercessão! Mãe

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poderosa! Mãe do próprio Deus — Palavra Eterna, no tempo comunicada à Humanidade

e sua redentora! Sem este Verbo que trouxeste no Teu seio, que teria sido da Criação?

— Filho, último sucessor de Pedro e, como ele, Pedro também. Sei que seguiste

sempre o "meu Evangelho". Lembras-te daquilo que tinha dito nas bodas de Canaã da

Galileia? Que o Nosso Deus te tenha recompensado, isso é para mim e para todos nós

motivo de — se possível — acrescida alegria celestial.

— Agora vejo que não nos comunicamos por palavras. Nem eu teria palavras para

exprimir a transparência desta misteriosa comunicação dos santos que invade a pessoa

humana que vive para sempre o Amor! E só agora compreendo o significado da posição

de Paulo — o grande Apóstolo dos Gentios — relativamente à impossibilidade, naquela

fase da vida, de compreender o que Deus tem reservado aos que n'Ele confiam. Maria, a

Mãe! — a solicitude, o carinho, o extraordinário sentido de entrega! A grande família dos

santos, dos que escolheram o Amor, a alegria indizível, a paz, o conhecimento alargado

da vida e da natureza do nosso Deus! A harmonia, a beleza, a glória! A Natureza Humana

unida à Natureza Divina! Isto é inexplicável!... Como lá dizias, ó irmão Paulo Apóstolo,

«nem os olhos viram, nem os ouvidos ouviram a maravilha que Deus guarda aos que O

amam!»

— O tempo é a medida do efémero. E este já nada significa para nós. Estamos

definitivamente fora do tempo, meu caro. Gozamos a plenitude da vida. O tempo acabou

do outro lado. O espaço que limita desapareceu. Só o Amor é! Que é a nossa Vida...

Amar, amar, sem fim!... A eternidade do Amor. — Era Paulo, o Apóstolo das Gentes, em

seu característico discorrer.

— Se nesta situação fosse permitida uma palavra muito usada lá por baixo nos

últimos tempos, eu definiria o Céu como a globalização do Amor!

— Abre-te, então, meu irmão, enche-te da felicidade que esperaste. Saboreia a

Vida que te é oferecida magnanimamente pelo nosso Deus. O sofrimento acabou. Isso foi

do lado de lá. Quando ainda estava no tempo, levaram-me à cruz, como fizeram ao nosso

Bom Mestre. Por pouco evitei que me crucificassem da mesma forma. E eu não me

achava digno de semelhante paralelismo. Pensei mesmo que o meu assentimento a tal

posição na cruz poderia ser considerado como mais uma negação! E seria a quarta!...

Livra! E o facto é que eu não sabia se em Roma os galos seriam tão lestos no trombone

como os de Jerusalém, avisando-me a tempo das minhas fraquezas. Ouviste muitas vezes

dizer, irmão, que pugnei então para que me colocassem de cabeça para baixo. E é

verdade. Verdade, também, que os carrascos fizeram-me a vontade. Se sofri?! Nem

queiras saber! Bom, mas desde que entrei na posse eterna do Amor... Não digo mais,

pois chegaste, estás na posse da mesma felicidade, da mesma alegria, do mesmo Amor

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— o nosso Deus! Mas, irmão e meu último sucessor, durante o tempo de que a

Humanidade acaba de se despedir — queres saber? — também sofria. Como sofria o

nosso Misericordioso Senhor, ao contemplar a ingratidão dos que O não aceitavam. Tudo

deu. Nada recebeu em troca. Um pouco de gratidão era o mínimo exigível. Quem ama a

sério muito sofre!

—A quem o dizes, irmão, a quem o dizes!...

— Neste sentido, Deus e toda a família celeste também sofriam. E o que mais

custava, irmão, era saber que, perto do local — chamado Vaticano, no Trastevere da

velha Roma — os meus sucessores e teus predecessores fizeram construir a sede de uma

Igreja que chamaram de católica, aí erguendo um sumptuoso templo, a que, contra

minha vontade e sem cuidar de solicitar a minha prévia autorização, deram o meu nome.

E, não contentes com tal caixa de esmolas global (apregoadas como se para mim fossem)

construíram palácios, jardins, belas mansões para a dolce vita! Ah! Irmão, ainda bem que

tiveste a coragem de acabar com o Vaticano. Redimiste, com tal gesto heróico, muitos

séculos em que a barbárie e a hipocrisia quase submergiam os fundamentos da nossa

Ecclesia, aquela Assembleia que nós reunimos na fé do Ressuscitado. Como fez o nosso

Bom Jesus no Templo de Jerusalém, também tu tiveste a coragem de pegar no azorrague.

O cristianismo dos primeiros séculos, aquele que eu preguei pelos difíceis caminhos da

Judeia até Roma, tinha sido apunhalado pelos vícios do Poder! Muitos dos que se diziam

meus sucessores mataram, mandaram matar, esmagaram, vilipendiaram, enxovalharam,

destruíram pessoas amadas pelo Nosso Bom Deus, que por todas deu a Vida! Invocando

o nome santo de Deus e usurpando o meu próprio, optaram incrivelmente pelo espírito

do mundo! Esqueceram completamente o Mestre: «O meu Reino não é deste mundo!...»

Irmão, desde esta posição privilegiada, nada passava despercebido do que do outro lado

acontecia. Houve vozes incómodas que gritaram em tempo (vês, mesmo aí ao lado, a

grande Catarina de Sena, a mulher que desafiou aquele que havia tomado o nome de

Gregório XI, aconselhando-o «almeno fari di lavare il ventre della santa Chiesa»), contra a

aberração de uma Igreja de poder e luxo estar a usurpar o santo nome de Jesus — o

Cristo Redentor da Humanidade, nascido numa gruta e morto numa cruz, no meio de

dois criminosos! Compreendes, irmão Pedro novíssimo, como se sofria ao ver sofrer o

Amor?!. Bom, irmão, deixemos estes lamentos sem sentido agora. Vamos conhecer a

grande Cidade Nova! Olha Paulo! O meu grande amigo Paulo que percorreu o mundo,

amando e sofrendo para a todos levar a Palavra — a Comunicação de Deus à

Humanidade! Olha João, o que do outro lado assistiu a tudo e disse do Verbo coisas que

mais ninguém soube dizer, enquanto o mundo era mundo. Em Patmos, já fisicamente

acabado, ainda tinha forças para escrever aquela maravilhosa verdade: «Deus é Amor!»

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João, «o discípulo que Ele amava». Mais ninguém, no tempo do tempo, teve iluminação

tal para dizer tais coisas!

Mas aqui está também o outro João, o que pregava no deserto e baptizou o Mestre

no Jordão e de quem Jesus disse um dia que «de entre os filhos de mulher, não veio ao

mundo ninguém maior do que ele!»

Paulo, João Batista e João Evangelista juntaram-se a nós, na grande avenida do

Amor. Conversa e mais conversa. Recordações do tempo que cada um teve do outro lado

e que cada um partilha agora com os outros.

— Olha... olha... olha... — Pedro sénior abria-me os olhos para uma infinidade de

apóstolos, santas e santos de todos os tempos, pessoas que, cada uma a seu modo,

souberam amar! A apresentação de Pedro Apóstolo é sem fim.

Entretanto — velho hábito de pescador do mar da Galileia — foi pedindo:

— Conta-me a tua história. A mim e a todos os humanos que aqui vivem a

maravilha do eterno clímax da existência! A grande família celestial vai elevar-se ao ouvir

da tua boca o relato fiel dos últimos tempos.

— Meu irmão, Pedro Apóstolo, obrigado pela tua recepção, pela tua simplicidade,

pelo teu carinho. Sei que sempre estiveste atento aos meus passos, que nada te escapou.

Não ignoro que ouviste os meus constantes apelos, as minhas lacrimejadas súplicas e as

transmitiste fielmente ao nosso Bom Mestre. Acredito que perscrutaste constantemente

o meu coração. Cá, da eterna beatitude da presença inefável do nosso Deus, gravaste

para sempre as minhas ânsias, o meu sofrimento, as minhas lamentações. Mas, se apesar

desse teu conhecimento da existencial beatitude, ainda assim o desejas, vou recordar,

perante esta magna assembleia — plenitude da verdadeira comunhão (de que a Кoivωviα

dos teus tempos de Apóstolo era pura metáfora) da Criação que se reencontra

finalmente e para sempre com a inefável natureza amorosa do Criador — uma história

que não é minha, mas da Humanidade toda que sofreu as dores de parto... da felicidade.

***

— Suponho que sabes, Pedro primeiro e meu irmão, eu nasci num dos mais pobres

continentes do planeta Terra que acaba de se esfumar. Muita riqueza havia, com certeza,

naquela parte do mundo. Mas era toda para os de fora. Os do Norte tinham força e

engenho, mas tinham também o espírito das trevas que os fizeram predadores dos povos

do Sul. Levavam tudo. E o nosso povo? — Perguntas. A gente simples, os humildes, os

nossos anawim... ou encurvados, os que sofriam sem esperança, como os do teu tempo

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nas terras da Judeia, eram objecto de desprezo e continuamente espezinhados pelas

botas cardadas dos apalhaçados generais que os do Norte lá colocavam como seus

capatazes. O meu país — o Brasil — possuidor de imensa riqueza, capaz de satisfazer as

necessidades de todos os povos que aí habitavam e ainda dar aos outros, desde muito

cedo foi objecto da mais desenfreada cobiça por parte de outros povos — os europeus —

vindos do Oriente, do outro lado do mar. Mas, meu irmão, o pior de tudo é que estes

predadores chegaram lá transportando a cruz, símbolo máximo do Amor do nosso Bom

Jesus — Palavra de Deus que quis entrar na Humanidade — o mistério do Criador que

voluntariamente se torna também Criatura. Diziam eles, pela boca dos seus funcionários

(a quem chamavam "missionários") que iam "dilatar a fé". Porém, o mais brilhante de

todos os seus poetas escreveu a verdade, acrescentando àquela vontade dilatadora "o

império"! Não estou a julgar os pobres jesuítas e outros clérigos que se lançaram na

aventura das naus. Provavelmente, os dilatadores — "do império" — faziam-lhes crer que

era justamente a fé o objectivo do empreendimento. Mas o certo é que muita gente

nativa foi espoliada, perseguida e morta, em nome da fé no nosso Bom Jesus. E passaram

séculos e mais séculos, até ao fim, sem que a febre da predação das riquezas do Brasil e

de todo o subcontinente americano amainasse. Já perto do fim do tempo, ainda

alimentava esperanças de que as coisas tomassem novo rumo e os pobres levantassem a

cerviz, com a eleição de um presidente que conhecia, como poucos, a dor da favela. A

sua linguagem era a do Evangelho. Ele anunciava a Boa Nova da salvação aos pobres,

como fizera o nosso Bom Jesus. E prometeu não ser nem permitir mais capataz naquela

terra! Os brasileiros iriam, por uma vez, tomar nas mãos os seus próprios desígnios! Mas,

irmão, tudo estava minado. O dinheiro, o poder, a dominação — o anticristo, afinal! —

eram vícios medulares nos dilatadores. E, como bem sabes do próprio exemplo dado,

infelizmente, por aquele dos doze que entregou o Mestre, o dinheiro e o poder sempre

foram sinónimo de corrupção. Desde o princípio, até ao fim. A metáfora bíblica da

adoração do "bezerro de ouro" estava patente no acto humano de quantos preferiam as

trevas à luz.

Vivia-se um momento de muita angústia, o desconcerto das nações e povos

prenunciava já forte borrasca, os ensaios do terror espalhavam-se por todo o lado,

deixando no ar estranhos odores a carne queimada, quando eu, derrotado nas minhas

tentativas de remar contra a corrente avassaladora do mal — derrotado, mas não

desesperado! —, recebi um telegrama suspeito. Nem queria acreditar! Alguém tinha

sugerido ao velho papa que eu deveria ser candidato ao chapéu cardinalício. (Uma

velharia feita de muita vileza humana com que a história tornou negra a Igreja nascida do

lado aberto de Cristo na cruz e pela qual tu próprio, irmão, foste até à Roma do teu

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martírio. De uma simples denominação dos clérigos que permaneciam ligados a uma

determinada comunidade ou a uma função litúrgica, em breve passou a "dignidade"

eclesiástica, com funções de conselheiros do papa e, no conjunto, o seu senado. Mas,

como sempre acontecia lá por baixo, também a tal "dignidade" começou a ser objecto de

negócio, e assim muito homenzinho sem qualquer dignidade se acoitava por debaixo da

"dignidade" cardinalícia. Também houve santos que aqui estão connosco — e eu próprio

— "submetidos" àquela "dignidade". Mas, em grande parte, lutava-se por ela como

guerra de conquista. Uma vergonha, irmão, uma vergonha, sobretudo porque se tratava

de pessoas que se diziam "servir" a Peregrinação.) No que ao meu caso diz respeito, não

dava para entender a pressa. Então, com pouco mais de quarenta anos, o arcebispo do

Rio tinha de ser já cardeal? Mas porquê? Que querem de mim? Calar uma voz

incómoda?! É isso mesmo. Querem acabar comigo, atrás de uma qualquer masmorra da

Cúria vaticana. Sabes, irmão, a minha vida tinha sido vivida entre o excluído da favela e o

menino ou a menina da rua. Qual a minha reacção? Que deveria responder ao papa

quando me convidasse a deslocar a Roma?

Chegada a notícia oficial, impunha-se uma preparação cuidadosa da viagem. De

oração e penitência me armei. E, cheio de processos e assuntos a tratar na Cúria, voei

para o coração da cristandade. Coração que nem sempre bateu certo, como sabes.

Durante a viagem — muitas horas separavam o Rio de Janeiro da velha Roma —

quis pôr a leitura em dia.

Tu bem sabes, irmão, que nos últimos tempos também surgiram profetas, de voz

cortante, a anunciar os erros do Povo de Deus e dos seus chefes. Chamavam então aos

seus escritos a "Teologia da Controvérsia", mas eram apenas vozes fortes que

começavam a colocar em crise a verdade da autoridade, em conflito aberto (por vezes, a

causar lamentáveis roturas) com a autoridade da verdade. Leonardo Boff, meu patrício

que muito prezava e que muito sofreu, Paul Gauthier, que profetizou em Nazaré, como

operário de voz ardente, aquilo que os chefes não quiseram ouvir. O seu grito mais

profundo fez-se ouvir em Jesus, a Igreja e os Pobres e no seu mais inspirado libelo O

Evangelho sem Padres. Em viagem tão incómoda para mim, nada melhor do que co-

meçar por escutar e assimilar vozes da fé, de profetas dos tempos novos que o eram,

sem dúvida, do Amor ao Povo — espelho do Nosso Deus. Mas também de teólogos da

cátedra, como Bernard Häring (o da moral, que havia estado muito interveniente no

Vaticano II, a pedido do teu sucessor e meu antecessor Paulo VI), Hans Küng (o das

inovações sem medo, também convidado de Paulo VI), Eugen Drewermann (o psica-

nalista que deitara no seu canapé de observação toda a classe clerical, dela fazendo

diagnóstico demolidor), Mr. Gaillot, bispo de Evreux, que ousou afrontar a verdade da

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autoridade e acabou suspenso da missão que lhe haviam confiado — o homem inspirado,

quando disse que «uma Igreja que não serve, não serve para nada!» — e de outros

santos, não canonizados, mas que escreveram "caminhos" de liberdade no Espírito de

Jesus. Todos eles faziam a minha companhia. Amiúde, levantava os olhos e perguntava-

-me como é que podem o Papa e a Cúria romana resolver problemas teológicos ou

disciplinares à cacetada, matar ideias com excomunhões, ou escondê-las, coercivamente,

num qualquer cárcere domiciliário ou entre paredes centenárias de um qualquer

convento medievo? Se há exageros, corrijam-se fraternalmente. Se existem estudos

sérios de gente que vive para o progresso da teologia, que aprofunda constantemente a

Palavra comunicada por Deus à Humanidade, mas que está em desacordo com a verdade

oficial, escutem-se esses irmãos. Talvez tenham razão. Talvez a coragem de os ouvir

venha a mostrar a verdade cristalina das suas conclusões, mesmo que incómodas para a

Cúria. O tempo das fogueiras sagradas, a queimar "hereges" que ousaram discordar

publicamente da verdade da autoridade, estava, de há muito — graças ao Espírito —

ultrapassado. — «Então, só uma atitude é legítima — mudar! Custe o que custar! Caia o

que deve cair! Para que Cristo — e só Ele! — apareça, alevantado, glorificado, bem à vista

do Seu Povo. 'Então atrairei todos a Mim', disse Ele. E Ele é a Verdade! E a Verdade atrai

toda a gente, quando nasce espontânea nos corações que a buscam, livremente, talvez

contra a "autoridade", mas com amor. Ela tem a força necessária para se impor por si

própria. Só essa pode ser a única autoridade admissível na Igreja — a da Verdade!» —

Era, Irmão Apóstolo, a minha consciência atordoada por tantas ideias de mudança que

me era impossível sequer dormitar.

Foi uma viagem cheia de interrogações, de dúvidas, de muita angústia também,

mas de grande recobrar de ânimo, para, em todas as situações, tentar descortinar os

sinais do Espírito e avançar no sentido que Ele sugerir. Doa a quem doer. — «As portas

do inferno não prevalecerão!» — Essa era a minha grande certeza, irmão Pedro Apóstolo

e vós todos irmãos que me escutais, no seio do Amor.

No Vaticano vivia-se triunfalmente, como de costume, essas coisas sem qualquer

significado para o cidadão comum e, particularmente, para o cristão consciente daqueles

tempos conturbados que não tolerava o folclore, o luxo, a corte papal de poder instalada

pelos séculos — oh, irmão, custa-me dizê-lo... — precisamente no mesmo lugar onde tu

mesmo deste testemunho da Verdade, deixando-te pregar numa cruz, mas suplicando

aos carrascos que te colocassem de cabeça para baixo... pois não te sentias digno de

morrer como o Mestre!... Roma ou Babilónia?...

Bom, irmãos, o certo era que, naquela cidade, só os clérigos dos graus superiores e

os magnatas da nova nobreza dos endinheirados davam importância a estes actos papais.

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Um consistório — assim chamavam ao acto de criação de cardeais — era apenas mais um

pretexto para pingues banquetes, almoços, jantares e bailes de gala nas grandes casas,

nas vilas sumptuosas, com muitos purpurados luzidios de ouro e seda — que a si próprios

se intitulavam de "príncipes da Igreja", não da de Jesus, com certeza! — muito diplomata

de rabo levantado (perdão para a expressão pouco celestial) e coloridas faixas de seda na

diagonal das comendas, muito tropa de farda número um — cujo dólmen mal dava para

a exibição das condecorações — muita colónia, muito fraque, muita fraqueza, muita

miséria da miserável vaidade humana que Cristo combatera sem dó nem piedade! Aliás,

irmãos, permiti-me mais um desabafo pessoal (era meu feitio lá em baixo, para me não

deixar submergir), no Vaticano, sentia-se a ausência total do Espírito de Jesus! O "reino

do mundo" — o anticristo — tinha-0 afastado. Como em Belém, agora também em Roma

não havia lugar para Ele!

O acto da criação de um cardeal da Igreja romana, com tantas sedas — capas,

chapéus e barretes, tudo muito exótico e carregado de passamanaria — a que acresciam

os cordões, anéis e cruzes peitorais em ouro, representava o apogeu da vaidade clerical,

o exibicionismo gratuito da sedimentação histórica dessa vaidade, um dos mais curiosos

meios de conservação do tremendo erro que o imperador Constantino impôs à Igreja de

Jesus e que todas as suas cabeças aceitaram de bom grado, ao longo dos restantes

séculos: a transformação do serviço em poder, do servidor em servido, da virtude em

vaidade, do apóstolo em monarca, do "Reino de Deus" em reino das coisas bem

mundanas! A relação de Amor na Igreja de Jesus que sempre se vivera nos três primeiros

séculos de cristianismo e que levou tantos e tantos cristãos às feras do Coliseu era agora

código, era lei, era anátema, como o impunha aquela transformação de Pedro em Caifás

— Sumo-sacerdote, Sumo Pontífice... — da comunhão (Кoivωviα) em divisão (os crentes

no mistério de Jesus tinham agora duas categorias perfeitamente institucionalizadas,

"clérigos" e "leigos" que o código de direito canónico não se esquecia de sublinhar...), da

Assembleia (Ekkλεσiα) dos santos em sinagoga! — «A partir do Século IV da era cristã,

nunca mais houve coragem para erradicar o mal e acabar com a maior contrafacção da

verdade da Boa Nova do Reino!» — Tinha-me segredado o velho franciscano (está entre

nós, felizmente, sempre revestido da sua humildade), Estêvão — homem de grande

envergadura intelectual e não menor estatura moral que, acompanhando-me para todo

o lado, não deixava a estamenha, a oração e o estudo das questões que mais

preocupavam a Humanidade.

Terminado o cerimonial na Capela Sistina, o Papa demorava com cada um dos

novos cardeais algum tempo, em conversa, não só de circunstância, mas sobretudo de

informação pessoal acerca dos projectos para as respectivas dioceses ou, para os que

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ficariam na Cúria, acerca das opções a fazer relativamente aos lugares em aberto.

Chegada a vez do cardeal bambino — como tinha ouvido apelidarem-me e não gostei

nada — a conversa foi toda ela à volta do tema que tanto preocupava o Papa: «Como

anunciar o Evangelho àquela gente pobre das favelas». — Confesso-vos, irmãos, que por

momentos o Papa me dava pena! Não pelo que dizia, mas essencialmente pelo que não

dizia, mas deixava entender. É que parecia notório não ser exactamente o anúncio do

Verbo de Deus aos milhões de deserdados da favela que o preocupava, mas sim o

"perigo"(!) que um "cardeal" corria na vivência desinibida que levava de anos ao serviço

daquela gente, dando voz, a indignação, a vontade de mudança. Com um sorriso franco,

mostrei então ao Papa o meu coração, dizendo que anunciava Cristo aos brasileiros

despojados de tudo, como sempre: fazendo-me próximo de todos aqueles para quem a

miséria da exploração e o sofrimento de tanta injustiça tornara a vida sem sentido. «Aí —

acrescentei — a atitude do samaritano da parábola é a base da minha evangelização!» O

Papa ouviu-me com atenção e parecia impressionado com a minha vivacidade e

determinação. Incitou-me então a prosseguir sem desânimo «esse caminho cheio de

sacrifícios». Mas, por fim, de dedo indicador no ar e voz de comando (lembrei-me então

de ti, Pedro Apóstolo, e das diferenças de quem se dizia teu sucessor): «Não se esqueça,

irmão, de que o amor dos pobres não o deve levar ao marxismo da chamada teologia da

libertação! Cuidado, irmão! O perigo espreita, e cada frase sua, cada atitude que tome

não rodeada de cautelas, será sempre e logo interpretada no pior sentido. Brevemente

se verá a braços com acusações que lhe minarão os esforços de evangelização. Rezo por

vossa eminência, que vive muito próximo da falésia, do marxismo!». Mais tarde, em

audiência ao embaixador do Brasil, o Papa mostrava ainda os seus temores a meu

respeito: «Um apóstolo que meteu no coração a Mensagem Evangélica, comunicando-a

com muito carinho e uma grande coragem! Mas vive paredes-meias com a chamada

'teologia da libertação'. Temos o dever de estar atentos e evitar que caia!» O velho

franciscano, meu leal companheiro pelo mundo e ao qual o diplomata referira a conversa

com o Papa, terá respondido: «Tal como os outros dois predecessores, também este

Papa vive ainda sufocado pelos fantasmas do marxismo. O medo deste homem vestido

de branco prende-se com a apologética versus comunismo.» Mas, como parênteses, deve

ter-se em conta também — para um correcto conhecimento da mentalidade do Papa —

a influência que nele tiveram as teses neoliberais do fundador duma sociedade secreta

que a si mesma se reivindicava de católica e fiel aos preceitos evangélicos e cuja

finalidade seria a santificação dos seus membros pelo trabalho. Foi pela mão do Papa

que, dentro em pouco, os seus seguidores encheriam o Vaticano. Ora, meu irmão Pedro

Apóstolo, toda a gente sabia que a tal secreta era-o de banqueiros e de outros homens

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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com ligações a outras secretas que viviam do dinheiro e para o dinheiro. Defendiam as

posições políticas mais retrógradas e opressoras dos povos e, mesmo, da nova religião da

globalização da pilhagem de matérias-primas aos mais pobres. Teologicamente, eram a

vacuidade. A Verdade, para eles, era a verdade da autoridade! Enquanto isso, fizeram

construir na City de Nova Iorque (243 da Av. Lexington) uma bonita torre, onde viviam

muitos dos chefes e onde estabeleceram a respectiva sede. Bom, fechado o parênteses,

concluiu assim o diplomata a sua frontal resposta ao Papa: «E os dois terços da

população mundial que vivem nos patamares da miséria, senhor embaixador? Como

levar-lhes a mensagem de esperança que Cristo meteu no coração da Humanidade,

chamando um Povo-comunhão, para ser seu fermento e sal ao longo dos séculos? Com

palavras de piedosa resignação? Ditas por homens vestidos de sedas, sustentando

cordões de ouro ao peito e apoiando regimes que vandalizam o santuário do Espírito de

Jesus? O Pedro do Rio vive este drama intensamente. No nosso País, senhor embaixador,

mas também à escala planetária. E entrega-se totalmente à tarefa gigantesca de tentar

travar esta avalanche imensa de exclusão social. Quando Cristo prega 'bem-aventurados

os pobres, porque deles é o Reino dos Céus' não está a fazer o elogio da pobreza, da

miséria, que Ele seguramente não quer nem pode querer, porque sumamente injusta,

diabólica, contrária ao Seu Espírito. Mas a ensinar uma verdade extremamente

incómoda, como o é toda a Verdade do Reino: aqueles que tomam consciência da sua

condição de pobres, os que acordam e se vêem a si próprios reduzidos à condição de

anawim, ou encurvados, explorados, oprimidos, necessariamente se levantarão contra

essa condição indigna da pessoa humana e, fazendo-o, serão os bem-aventurados,

porque vão lutar por um outro reino, o Reino de Deus — que a si mesmo se define como

Reino de Justiça, de Amor, de Paz! Ver na luta a que Pedro dá todo o seu apoio e

incitamento "a falésia do marxismo" é grave, é miopia muito acentuada, tanto mais

perigosa quanto é certo residir nos olhos de quem os deveria ter bem escorreitos, para

não suceder que conduza o rebanho para o barranco. 'Se um cego conduz outro cego,

vão os dois cair no abismo' — disse o Mestre. Oremos, senhor embaixador, pelo Papa,

pela Igreja que vive numa terrível encruzilhada da sua longa história.»

— Oremos, sim, padre e meu amigo, oremos!...

Deste "amigo padre", comentaria depois comigo o senhor embaixador: «Um

seguidor actualizado do Francisco de Assis!»

(— A propósito, onde está o Homem do povorello? Que saudava as irmãs flores e o

irmão vento? Quê? Ah! Bem! Desculpa, aqui mesmo ao pé e não me dera conta.

Continuas o mesmo, irmão Francisco!

— No Céu, o Espírito é o mesmo, eternamente. E sempre novo! — Respondeu-me

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do meio da sua simplicidade.)

Enquanto me demorava em Roma, era convidado para recepções, almoços e

jantares, com que a nobreza romana costumava festejar os eleitos de cada consistório.

Apenas aceitei uma cerimónia breve na embaixada do meu país. Tinha, então, viagem de

regresso marcada para essa noite. Uns dias depois, na catedral do Rio, haveria de me

queixar publicamente contra esta ligação bastarda dos homens do topo da hierarquia

eclesiástica aos senhores do poder. Que hoje significa, em Roma, acima de qualquer

outra região do mundo, poder das máfias, das lojas, dos tentáculos planetários do diabo.

Desde os tempos de estudante na Pontifícia Universidade Gregoriana, aprendera a

abominar esta gente e as suas "alcovas de poder". Como tinha escrito meu pai, num dos

mais violentos libelos contra o exercício do poder no Vaticano, em nome d'Aquele que

ensinou com a mais cortante simplicidade: «Aquele que de vós quiser ser o primeiro, será

o último!» Agora, ao ver com meus olhos e ao sentir na pele os malefícios de tal conúbio

satânico, a primeira coisa que se me impunha, em consciência, era afastar-me. Ao sair de

Roma, meus queridos santos, escrevi uma carta aos cristãos do Rio de Janeiro,

formulando então um propósito muito sério: «combater, por todos os meios ao meu

alcance, qualquer forma de poder instalado na Igreja de Cristo. O cardinalato, para o que

quiseram escolher-me, recebi-o, não como a "dignidade" clerical que lhe está ligada, mas

apenas como um sinal (mais um) daquilo que é preciso mudar na "Comunhão" dos

crentes no mistério de Jesus. Quer queiram quer não. Em nome da fé, do Evangelho que

jurei cumprir e ensinar, seguirei o caminho da reparação dos erros históricos que urge

emendar. Eles não podem persistir. Com a humildade da verdade! Como o nosso Mestre.

Nem que necessário seja, como Ele fizera, expulsar dos templos de hoje toda a turba de

vendilhões que por aí medram à sombra do nome três vezes Santo de Nosso Senhor

Jesus Cristo. Não espereis, por isso, ver-me alguma vez vestido de sedas escarlates e

cordões de ouro.»

As longas horas da viagem entre Fiumicino e o Galeão, para além do natural

descanso, tinham-me concedido momentos óptimos de silêncio e meditação sobre o

programa da minha vida no, então, meu futuro imediato, ao serviço de todos os cariocas,

mas, muito particularmente, dos mais carenciados. São eles os destinatários imediatos da

Boa Nova do Reino.

No desembarque, aparecera à porta do avião em camisa aberta saudando quantos

quiseram dirigir-se à aerogare para me receber. Os humildes cariocas já se tinham

habituado à simplicidade do meu estilo de vida. De modo que ninguém daquele povão

achava menos séria a minha postura social. Pelo contrário, toda a minha gente louvava o

meu desprezo sistemático pelo formalismo. Não escrevia cartas nem notas pastorais,

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mas, recusadas as então tradicionais vestes cardinalícias, dirigia-me pessoalmente às

diversas cadeias televisivas e falava ao povo. Directamente. Invectivando. Traduzindo

para linguagem do tempo as parábolas de Cristo. E perguntava aos "coronéis" se

achavam justo roubar as terras aos índios, fazer escravos irmãos nossos que têm os

mesmos direitos que nós temos, matar aqueles que se revoltam contra a espoliação?!

Aos esquadrões da morte, responsáveis pela liquidação sistemática de "meninos da rua",

se sabiam quem fizera dessas crianças verdadeiros criminosos do furto e do roubo?! Às

autoridades estaduais e federais, se viviam satisfeitas com o trabalho realizado, se as

grandes fortunas acumuladas por alguns não teriam crescido sobre os cadáveres de

tantos, se as injustiças sofridas por um povo tão bom não os incomodavam?! Se não

ouviam os gritos de dor dos esmagados, dos esfomeados, dos rotos, dos sujos, dos

doentes?! Se o espectáculo da favela não lhes dizia nada?!

— Eh!... Essa aí digo eu, Pedro. Eu sou testemunha! Peço licença a Pedro Apóstolo

e ao meu Pedro do Rio, mas eu também queria falar.

Toda a corte celestial se voltou para o lado, para ver donde saía semelhante voz

forte, mas infinitamente meiga, como sorriso de criança.

— Quem é essa consciência comunicante, irmão? — Pergunto, cheio de alegria, ao

chaveiro do Céu.

— É a voz colectiva dos meninos da rua que tu agasalhaste da intempérie da

maldade, protegeste dos esbirros dos poderosos, adornaste para a glória eterna!

— Belo! Maravilha das maravilhas! Voz colectiva... Permites, irmão Pedro Apóstolo,

que se oiça o que tem para dizer?

— Mas, com certeza, e a vénia do Espírito!

Todos se olhavam, no Amor do nosso Deus. Então, o coro infindo e afinadíssimo

das vozes infantis entoa um cântico de louvor à Santíssima Trindade, cuja beleza ninguém

na Terra conseguiria imaginar.

— Pedro Apóstolo, o que é isto?

— Ouve e já compreendes.

— Toda a Terra — dizia a voz colectiva, com celestial harmonia em fundo — ouvia

os diálogos televisivos do nosso pai-Pedro do Rio, sempre em directo, sem rodeios e

tabus. Desde as então candentes questões da actualidade do diálogo Norte-Sul, da

injusta e escandalosa miséria dos povos do Sul, espoliados das suas riquezas naturais em

proveito dos espoliadores — as multinacionais dos povos do Norte — até aos gravíssimos

problemas da poluição à escala planetária, com imediato reflexo nas apocalípticas

alterações climáticas do planeta e seus ecossistemas, não esquecendo o «crime nefando

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dos que assaltam e destroem sem piedade e, apenas gulosos do lucro fácil, as florestas

amazónicas e todas as áreas protegidas do globo», o nosso pai-Pedro a todos mostrava o

enorme pecado da humanidade-criminosa e pedia que se arrependessem os predadores,

arrepiando caminho, enquanto era tempo! Pai-Pedro do Rio era voz quente de profeta

apaixonado pelo seu Povo, ensinando e apresentando a visão específica do cristianismo e

sua contribuição para a tentativa global de se inverter a marcha acelerada para o abismo

cósmico. Mas a sua obra predilecta e da qual falava sempre, como exemplo do que todos

podiam fazer para a elevação da Humanidade e para a Paz, éramos nós — os meninos da

rua. Por ele, estamos nós nesta assembleia de santos. Quantas lágrimas Pedro enxugou

nos nossos olhitos tristes e chorosos! A sujidade que ele lavou nos nossos rostos e almas!

O pão que ele nos deu em alimento do corpo e do espírito! As lutas que ele travou, as

ciladas que suportou, as ânsias que sofreu! Tudo por nós, para nos mostrar que em nós

residiam pessoas dignas do Amor! Querem mais? Oiçam, ainda: éramos, então, em todo

o Brasil, mais de um milhão — avançavam as agências. Pedro chamou sociólogos,

antropólogos, economistas, políticos, gente dos sindicatos, das associações de

voluntariado. Foram debatidos em directo na televisão todos os aspectos do problema.

Desde a génese até ao tiro disparado pelos esquadrões da morte. Era urgente fazer

qualquer coisa. — «Chamar, gritar, levantar os braços. Quebrar o tampo da mesa. Dizer

basta! O fenómeno tem soluções. Ou as buscamos — e já! — ou todos por ele seremos

destruídos!» — A voz de pai-Pedro era alarme, continuamente a incomodar. Muitos

foram os que compreenderam o sinal. E a obra das crianças sem tecto, daquelas crianças

que não conheciam os próprios progenitores e acabavam infalivelmente na droga, no

roubo e na morte prematura, começou a dar os primeiros passos. Ao fim de dois anos, só

no Rio existiam já trinta e duas comunidades que davam alojamento, vestuário,

alimentação e educação a cerca de duzentos meninos e meninas. A obra rapidamente se

desenvolveu em todo o país. De todos os lados, sobretudo das grandes metrópoles

brasileiras, vinham pedidos de abertura de "comunidades". Os bispos brasileiros

olharam, por fim, em frente e apoiaram em bloco a obra do "cardeal do Rio". Os

resultados estavam à vista. No curto espaço de dez anos, deixou de haver assaltos nas

ruas e avenidas. Nas delegacias de polícia já ninguém se queixava contra os garotos do

inferno que levavam relógios e anéis dos turistas, sob a ameaça de facas ou pistolas. Os

esquadrões da morte deixaram de gastar munições no abate destas aves que voavam

rastejando, porque ninguém as tinha ensinado a voar para o alto. Agora, sob os cuidados

e a pedagogia de pai-Pedro, as penas das asas cresceram, os músculos tornaram-se fortes

e todos começaram a aprender que estas aves de coração grande ou saem do ninho a

saber voar, ou, na falta de um ninho substituto, acabam sempre, de asas atrofiadas,

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caindo então sem hipótese de fuga na ratoeira dos franco-atiradores ou na lama do crime

onde se atolam e apodrecem. E, com elas, era toda a sociedade a feder! O "milagre" de

pai-Pedro correu mundo. Jornais e revistas, televisões e rádios de todo o lado

apregoavam os métodos do arcebispo do Rio. As entrevistas eram solicitadas com muita

antecedência. A todos respondia com cordialidade, explicando que se tratava de um

movimento endógeno das próprias crianças que se assumiam como senhoras de si

mesmas. Nada era proibido naquelas "comunidades" — a que muitos já chamavam

"comunidades Dom Pedro" — «excepto amar sem Amor». — Dizia. «Se um garoto vem,

experimenta a vida comunitária e depois foge, não vamos atrás dele. Lamentamos e

procuramos abrir mais portas, para que os que ficam não fujam.»

— Obrigado, meus irmãos. Como é bom, pela Misericórdia do Nosso Bom Jesus,

poder dar graças ao Nosso Deus, pelas maravilhas que fez, também convosco, meus

amigos desta Comunhão de Amor Eterno que a todos nos envolve. Por mim, gente,

apenas cumpri o dever de semear. E fi-lo até à exaustão. Sentia que não podia parar. Mas

também que não tinha forças para continuar. O médico impunha-me então uma fuga

para longe do Rio e vários meses de repouso absoluto. Mas, como? — Perguntava-me a

mim mesmo?

— Olhe — dizia-me o grande Dr. Cardoso — você tem-me contado maravilhas

sobre Tivoli e sua Villa d'Este. Porque não? Tenho a certeza de que virá de lá

completamente novo.

— Vamos ver, senhor doutor, vamos ver. — Era a escapatória do costume.

Começava, por essa altura, a ter plena consciência dos perigos que espreitavam a

minha missão: aquele tratamento de "pai" pelos meninos e meninas das "comunidades"

poderia estar a ser usado pelo meu subconsciente para exibições gratuitas da vanitas

viciosa; os encómios que os colegas brasileiros (e não só) me teciam eram archotes

acesos que começavam a queimar a minha pequenez; a reverência quente e sincera com

que me distinguiam muitos admiradores de todo o mundo, que me escreviam e

solicitavam uma visita para uma conferência sobre os métodos do êxito conseguido na

pastoral com as "comunidades" dos pequenos sem tecto, incomodava-me porque sentia

por dentro a destruição que operava no meu desejo inicial de ser apenas instrumento nas

mãos do Senhor!

A cerimoniosa e diplomática aleivosia que os colegas do Vaticano me dispensavam

arrasava-me completamente — detestava poder estar a ser motivo de escândalo ou de

inveja para outras pessoas, como eu devotadas ao Evangelho; por fim, mordia-me,

consumia-me como fogo devastador, o fosso que me parecia cada vez mais acentuado e

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intransponível entre os dois modos de sentir a missão da Igreja. Quando se vivia

instalado, fardado a rigor e couraçado pelos reposteiros dos "palácios apostólicos" ou, no

meio da favela, rodeado de bocas a pedir pão.

Por mim, amigos e santos de Deus, concluía que, se por um lado tinha de fugir do

protagonismo, impedindo por todos os meios que a minha figura fosse usada como

"estrela" que vendia capa de revista, por outro, não podia abandonar um estilo de vida

que considerava — o do Mestre. Fazer-me e viver sempre com o "espírito" dos mais

pobres, fazer-me e viver sempre "próximo" deles, sem fanfarras ou tambores, comendo

com eles, mas evitando a notícia, dando voz às suas vozes, mas longe de microfones e

holofotes, lutando contra os poderes instalados, apenas com as armas da fé no Verbo,

essa Palavra que é Justiça, Amor-Comunicação de Deus à Humanidade. Viver em

autêntica Eккλέσia, ou Assembleia dos crentes em Jesus, sempre caminhante no meio de

um mundo injusto, para o fazer mais justo, mais humano, mais "próximo" de todos os

excluídos, de todos os que sofrem na berma da estrada, era o programa que eu e mais

uma data de fármacos ajudávamos a manter de pé! Para aperfeiçoar e executar na favela

do Rio, onde me levasse a mão do Nosso Bom Jesus. N'Ele confiava firmemente. Como a

criança se agarra à mão da mãe para atravessar o charco, assim eu me segurava na

caminhada que esperava cada vez mais próxima de um disparo de esbirro dos coronéis e

suas máfias de garimpeiros e salteadores. Não! Não tinha ilusões. De resto, a lição

conhecia sempre de cor: «O discípulo não é mais que o Mestre!»

Um facto novo veio, porém, alterar todos os meus planos e programas. No dia em

que tinha as equipas preparadas no terreno para iniciar uma verdadeira revolução na

abordagem da favela, acordei com os sinos das Igrejas a tocar insistentemente a finados.

— «Estranho este toque.» — Pensei em voz alta, enquanto me abeirava da janela do

quarto. Liguei a televisão, e as imagens que vi deixaram-me em estado de choque. Na

praça de S. Pedro, no Vaticano, muita gente se congregava já para escutar uma

"proclamação oficial da morte de Sua Santidade" — observava o locutor de serviço.

— Por favor, a que horas terei avião para Roma? — Perguntava, inquieto, ao meu

secretário.

— D. Pedro, como sabe, os voos transatlânticos partem todos à noite, para chegar

à Europa pela manhãzinha.

— Trata-me então da minha passagem para Roma, esta noite.

Vestindo, na circunstância, um modesto fato escuro, com camisa branca listada de

azul e uma gravata preta, feitas as necessárias recomendações ao meu bispo auxiliar e a

todos os que comigo viviam, dirigi-me para o Galeão, pelo fim da tarde. Estava um pôr-

-do-sol fantástico, como raramente se observa no mar da Tijuca. O vermelho foi-se

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carregando mais e mais, até gerar um negro que poisava nas águas quentes da praia.

Luto? — Perguntava-me. Não, apenas o finar de mais um dia. De resto, o sol nunca se

veste de negro, mesmo por um papa.

O meu secretário, vendo-me sisudo a mais, quis descontrair:

— Já não era sem tempo! — Disse, sorrindo para o retrovisor.

— Desculpe, não ouvi bem.

— Que já não era sem tempo! — Repetiu o Dr. Reginaldo, levantando mais a voz.

— Ah! Está comentando a morte do Papa?

— Então, coitado, já havia muito tempo que arrastava as pernas, nada podia dizer

ou fazer.

— Sim, sim, Sua Santidade sofria muito. — Assim fechava um diálogo que, naquele

momento, me incomodava. A hora era de reflexão. E, por isso, viajava só.

Durante as longas horas de viagem, li tudo o que já sabia sobre os últimos

momentos de vida do Papa, da sua biografia, dos seus gostos pessoais, enfim, de todas as

frivolidades que os jornalistas eram obrigados a fornecer aos leitores, para que estes se

sentissem obrigados a comprar o jornal. Na Terra — toda esta Assembleia santa sabe

disso — até as notícias se vendiam!

No Vaticano, fui recebido pelo colega a quem chamavam o esquisito nome de

"camerlengo", com o cerimonial que lá achavam devido à qualidade de "príncipe da

Igreja" e, ainda, com uma grande cordialidade pela generalidade das pessoas que

gravitavam em redor do Papa ou serviam na sua corte. Não me passavam então

despercebidos certos olhares aleivosos de uns tantos que em surdina e às escondidas iam

tentando minar o que outros mais leais e sinceros iam apregoando, sobre o "imenso

prestígio" do "cardeal do Rio de Janeiro". — «Ninguém duvida, nos apertados corredores

dos palácios apostólicos, de que o brasileiro é um dos sérios candidatos à sucessão no

trono do Pescador!»

— Ouvi, sem querer, numa incursão involuntária numa sala anexa ao gabinete de

um prefeito da Cúria. Por aí comecei a compreender o porquê de muitas coisas que se

sucediam a velocidade vertiginosa naquele dia, como o convite para almoçar com o velho

cardeal incumbido da governação da Igreja no período de vacância da Sede Apostólica,

um dos homens que mais reticências haviam colocado ao meu ingresso no "colégio

cardinalício". O meu espanto mais se aguçou quando vi sentar-se à mesma mesa o

cardeal secretário de Estado — homem dotado de uma visão extremamente afunilada da

Igreja, em tudo coincidente com a estreiteza de espírito dos homens da torre de Nova

Iorque. Os três almoçámos e coloquiámos demoradamente numa dependência do

gabinete de trabalho do Papa defunto, sem que alguém da Cúria, aparentemente, tenha

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notado o evento. Aí, uma coisa ficou assente: que eu adiaria o regresso ao Brasil para

depois dos funerais de "Sua Santidade" e do posterior conclave para a escolha do

sucessor.

Os meios de comunicação, no mesmo dia ao fim da tarde, davam a notícia do

almoço secreto dos três cardeais e logo comentavam que, por exclusão do camerlengo e

do secretário de Estado — ambos de avançada idade —, o brasileiro ocupava a primeira

linha das preocupações dos dois homens mais importantes do Vaticano relativamente à

sucessão. No Brasil, especialmente no Rio, as manifestações de júbilo começavam. — «A

favela desceu à avenida.» — Dizia enfaticamente o locutor da Globo. — «Carnaval em

Julho. O povão volta ao sambódromo» — comentava a Manchete. Os mais moderados

faziam o elogio exagerado e despropositado da minha actividade no meio daquele povo

bom e lembravam a minha — «paixão pelos pobres e, em especial, pelos meninos da rua,

para quem criou uma obra ímpar, baseada na pedagogia do oprimido». Sinceramente,

gostei dessa, porque, com o Vaticano tomado pelos homens seguidores da "pedagogia do

safanão", mais longe me colocavam de qualquer hipótese de ter no conclave os votos

suficientes para ser eleito. Como sempre que me dirigia a Roma, tinha pedido albergue

numa comunidade religiosa da cidade imperial — santos homens que viviam na

conquista permanente da perfeição, da virtude, não como bens pessoais que alindariam

narcisos, mas como betão fundamental do edifício sempre instável das missões que lhes

estavam confiadas em vários continentes, incluindo o meu. — «Aqui — coloquiava o

superior — ou se tem capacidade para amar, para a doação total como o Mestre, até à

morte e morte de cruz, ou não aguentam e vão-se! E nós rezamos por eles. Na casa do

Pai do Céu há muitos lugares e é imensa a variedade dos caminhos que a eles conduzem!

É a base da nossa compreensão e do nosso respeito por todas as opções.» — Apesar

disto, soube depois, o nosso superior, Estêvão de seu nome, já antes apresentado,

gostava de estar bem informado sobre os meandros da dolce vita (assim se lhe referia

sempre) dos homens da Cúria. O mosteiro ocupava posição geográfica invejável, ao pé

das Termas de Caracalla, no Monte Célio. Tratava-se, porém, de um velho edifício

medievo, com bastantes marcas visíveis da arquitectura romana. Tinha sido recuperado

no Século XVII e, já nos meus tempos de estudante em Roma, profundamente

remodelado pelos frades que o habitaram até ao fim do tempo. Os frades e os seus

alunos faziam diariamente fila pelas apertadas ruas, desde o Coliseu até ao parque

daquela que era ali considerada a mansão do alívio — a Villa Celimontana —, porque

quem fazia aquele percurso a pé chegava ali e sentava-se, fazendo um forte ufa!... que

precedia uns momentos de descanso e dilatação pulmonar, com ar mais puro,

oxigenando bem o sangue e mirando a cidade ao fundo. Ora, era precisamente neste

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local — no convento isso era absolutamente vedado — onde o nosso superior Estêvão

(ele sabe que digo a verdade) vinha sentar-se frequentemente e saber as últimas do

Vaticano. Nada lhe escapava. Sempre com a sua voz cava mas discreta, aos seus

"espiões" (irmão Estêvão, releva-me esta pequena brincadeira celestial) exigia sempre

provas, documentos, se possível. — «Eu agradeço todas as informações, mas recuso

bufos. Quero tudo confirmado!» — Não se cansava de repetir aos seus "agentes", fossem

irmãos do seu cenóbio, irmãs de conventos vizinhos ou simples clérigos funcionários da

Cúria que a ele recorriam ou vinham aconselhar-se, no reconhecimento da santidade, do

recato e do bom senso manifestados pelo superior do velho convento. De modo que,

sabendo isto, eu, pessoalmente, não duvidava da veracidade do que me contava o santo

irmão Estêvão. Santo, sim — e ei-lo, como nós, no meio da glória do Senhor — embora

não "canonizado". Então, um dia, sentados no jardim da Villa Celimontana, contou-me o

irmão Estêvão que ainda em vida do Papa, então sobre terra, soube da tramóia que os

curiais fiéis aos chefes de Manhattan preparavam. No fundo, resumia-se a isto: morto o

Papa que lhes dera o topo da notoriedade e o domínio de tudo quanto era Vaticano, o

camerlengo, dizendo-se inspirado por Deus na noite anterior, autoproclamar-se-ia papa e

logo seria apoiado por todos os cardeais da Cúria, em sessão solene que, com tal

objectivo secreto, seria convocada. O conclave seria ultrapassado e tudo continuaria

como antes. A sempre pretendida unanimidade teológica e disciplinar, imposta à força da

masmorra de um qualquer mosteiro, para onde eram enviados os opositores, a verdade

da autoridade, contra a autoridade da verdade, a "ordem", em vez da intranquilidade da

busca, do esforço, da caminhada para Ele — base movediça do pontificado do Papa

defunto — manter-se-ia, para glória e honra do poder da Santa Madre Igreja! Já noite

alta, depois do funeral do Papa, ambos sentados num banco da capela do convento do

Monte Célio, em conversa amena que dificilmente admitiria fronteira entre rezar e

cavaquear, o irmão Estêvão recordava-me com muita tristeza nos seus olhos enormes a

foto que correu mundo e que mostrava o padre Ernesto Cardinal (— Oh Ernesto, estás no

nosso meio, não estás? Sinto-te por aí! — E logo a voz tímida do filósofo escritor se

anunciava do meio da santa Assembleia: — «Sim, pela Misericórdia de Deus, gozo a

felicidade eterna!») — ministro da Educação do governo sandinista da Nicarágua, de

joelhos na placa do aeroporto de Manágua, diante do Papa que acabara de chegar ao seu

país, para uma visita oficial, e que propositadamente o empurrara para lugar discreto,

longe dos holofotes. Pois, nessa fotografia, Sua Santidade — que se vinha reclamando de

ter sido escolhido por Deus para expandir no mundo a devoção à Misericórdia Divina —

aparece-nos de pé, com o braço direito levantado e o dedo indicador firmemente

apontando para o pobre frade-ministro que, de cabeça inclinada para o chão, parecia

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implorar a bênção do Papa para a ingente tarefa que lhe fora confiada, de levar educação

e ciência a um povo que saía de uma das mais férreas e obscurantistas ditaduras do meu

continente. As agências noticiavam, então, que o Papa fora extremamente duro com

Cardinal, por estar a «colaborar com um regime comunista», colocando-o na alternativa:

«Ou sai — e já! — ou suspendo-o imediatamente!» — «Claro que a bondade e a coragem

do Ernesto — concluía o meu interlocutor e superior do convento — impuseram-lhe que

não saísse! E ficou! Ficou, para bem daquele povo e porque era aquela a missão para que

se sentia chamado por Deus, em determinado momento. Por outro lado — interpelava-

-me o irmão Estêvão — conhece bem a história de monsenhor Gaillot, bispo de Evreux? E

a dos teólogos conselheiros do Papa Paulo VI, para o Concílio, aqueles que, como Hans

Küng, Bernard Häring, L. Boff, Paul Gauthier, E. Drewermann e tantos outros se viram

arrojados das suas cátedras, encerradas as suas investigações teológicas e atirados para

os conventos, onde seriam vigiados como toupeiras da verdade... oficial?! Irmão —

concluía o santo superior numa noite memorável — o Vaticano está transformado num

verdadeiro ninho de cascavéis! Sob uma capa de beatitude seráfica, só encontramos

anacondas de mandíbulas bem afiadas para devorar todo aquele que se lhe afigure

preparar oposição aos seus desígnios de dominação. Se isto não é terror...

(— Perdão, Irmão Pedro Apóstolo: e os teólogos da grande tribulação? Onde estão

esses queridos instrumentos de Deus, para a defesa da autoridade da verdade, perante os

que se acomodavam à verdade da autoridade? Esses, sim, homens pregoeiros, nos

melhores areópagos do planeta, da Misericórdia do Nosso Deus, revelado na Sua Palavra!

— Abre os olhos, meu Irmão, e verás a galeria imensa dos que viveram

mergulhados na angústia da descoberta do rosto de Jesus. Daqueles que nas escolas, nas

universidades ou entre os seus irmãos sedentos de verdade, souberam «discernir os

espíritos» — como o nosso Apóstolo Paulo ensinava! — e, contra os instalados dos

sistemas de poder proclamavam a natureza amorosa do Nosso Deus.

— Ah!... Maravilha dos céus, que vejo? Vejo todos os que havia conhecido lá em

baixo e tantos que não cheguei a conhecer. Glória a Deus Misericordioso e justo! Que não

faz acepção de pessoas, mas julga-as segundo a sua rectidão! Mas, Pedro Apóstolo e

irmãos todos da magna Assembleia Celeste, distraí-me da conversa com o nosso querido

Estêvão, lá no banco do parque da Villa Celimontana.)

Perante as revelações bem avisadas que me fazia, respondi-lhe, então, angustiado:

— Oh! Irmão! Como pode ser isso? Estará tudo louco? Não pode ser! É preciso

agir! Fazer qualquer coisa, agir, e de imediato!

— Irmão Pedro — dizia-me em voz muito grave — parece ser verdade o que dizes:

está tudo louco! Estes homens que tomaram conta disto, que fizeram "santos" à força,

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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que impediram a legítima discussão teológica, que calaram teólogos do concílio,

remetendo-os ao silêncio das celas conventuais, que suspenderam bispos que ousaram

anunciar o Evangelho de forma incómoda para eles, estes homens, irmão, ligaram-se às

secretas do crime organizado e tudo farão para continuar no poder. Abominatio

desolationis, meu amigo. É o fim!

Pedi imediatamente uma audiência ao camerlengo. Que não — responderam —

que o eminentíssimo cardeal se encontrava com a agenda completamente saturada, na

recepção às legações estaduais e religiosas estrangeiras e nas reuniões preparatórias

para o conclave.

Eu nunca desanimava, irmãos. Sabia que tinha por mim a força da verdade. Como

este Pedro Apóstolo que enfrentara imperadores e sumos pontífices da Judeia, animado

pelo seu exemplo, passei à acção, consciente de que alguma coisa tinha de ser feita

contra o embuste. Percorri universidades, centros de estudos bíblicos e teológicos, falei

com dezenas de pessoas que abriam a boca de espanto à minha afirmação confirmada

sobre os intentos diabólicos dos curiais. Preparei encontros secretos com os cardeais do

terceiro mundo (como lá em baixo se chamava ao conjunto dos países pobres do Sul),

deixando-os boquiabertos com as minhas revelações, sublevei mosteiros, mas,

sobretudo, passei noites em claro, a rezar! Em lágrimas e dor, pedi ao Senhor, pela Mãe

das Dores ao pé da Cruz, pelos méritos deste grande obreiro do Evangelho que tudo

começara na Galileia, do seu companheiro Paulo que muitas vezes naufragou e foi preso

para fazer chegar aos povos a mensagem de esperança e, ainda, de todos os Apóstolos,

de todos os tempos do tempo, que não permitisse.

Vesti-me de saco, jejuei, fiz quilómetros a pé, ao sol e à chuva, juntei nesta

violência ao Céu todos os irmãos e irmãs das várias comunidades do Monte Célio e de

muitas outras comunidades de Roma, do Brasil, de África e da Ásia. Na véspera do dia

designado para a abertura do conclave, quando todas as comunidades dos mosteiros que

havia junto das Termas de Caracalla oravam em voz alta e comigo confiavam no triunfo

do Amor, ouvi uma voz que — compreendo agora — só podia ter vindo da parte do

Nosso Deus eternamente Misericordioso, lembrando-me do que já te tinha dito a ti,

irmão Pedro Apóstolo: Portae inferi non praevalebunt! (As portas do inferno não

prevalecerão!)

Confiávamos! Todos! Mas, o que tínhamos a fazer era a nós que o imputávamos. E

por isso, noite dentro, fizemos passar sigilosamente pelas mãos de todos os cardeais de

fora da Cúria um pequeno rectângulo de papel, contendo duas frases por mim subscritas,

pedindo que cada um escrevesse apenas «non placet» (não aceito) à hipotética

proclamação dos homens da Cúria, assinando o documento, e «placet» (aceito) relati-

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vamente à convocatória para uma reunião, no mosteiro do Monte Célio, logo que os

primeiros clarões do dia reflectissem no Duomo di S. Pietro.

Convém recordar que no dia do funeral do Papa, durante todo o tempo que

demorou a longa cerimónia, estive continuamente sob o fogo saído dos olhares

indiscretos da bravata das gentes sedeadas na torre da Lexington Avenue, que me

devotava a mais refinada inimizade diplomática. Mas, curiosamente, não aconteceu nada

daquilo que se temia. O discurso do Camerlengo foi, como se esperava, laudatório,

exaltante da pessoa do finado e da "obra" que tinha abraçado e o levara a «tão gloriosos

feitos para bem da Santa Madre Igreja». Nada de novo! Nem outra coisa se esperava de

"odres velhos".

Teriam os curiais desistido do intento à partida de resultado duvidoso ou mesmo

previsivelmente desastroso? Teriam as nossas reuniões e movimentações sigilosas

transparecido para fora dos nossos muros?

Durante os dias de luto oficial que antecedem a abertura do conclave, muitas

foram as reuniões, as conversas dos pequenos grupos de purpurados no pátio de S.

Dâmaso, nos corredores sombrios, na meia-luz das salas forradas de pinturas célebres e

com largos veludos roxos nas janelas, nos jardins do Vaticano, onde suas eminências

podiam passear e cortar na sotaina uns dos outros.

— Olá, colega, como vai? Mas que óptimo aspecto! Os ares de Siracusa mantêm-no

sempre em forma... — era o cardeal de Florença que não podia com o da Sicília, de quem

dizia, pelas costas, ser «um bruto, um mafioso imbecil».

— E como passa o irmão florentino? Sempre bem nutrido. Nutrido e fardado a

rigor! Esse sorriso… prepara candidatura?!

— Candidatura? — Pergunta muito sincera do terceiro do grupo, o arcebispo de

Milão.

— Não dê importância, irmão, o colega siciliano sempre gostou de gozar comigo.

— Mas, afinal, não é o arcebispo do Rio? — Directo, noutro grupo, o colombiano

Arruti, em resposta à campanha do espanhol Trujillo.

— Esse não, colega. Não passa de um "self-full of it..." — Responde o americano

Hollowness, tirando a cachimbada da tarde.

— Aliás — acrescenta o francês — sempre recusou qualquer contacto com a nossa

gente.

— Bom, vamos lá ver — dizia o alemão Conrad que dominava a conversa de um

terceiro grupo mais alargado — quem é que quer ser expulso do Vaticano?

— Então?!... — O arcebispo de Viena queria certezas. Que se avançassem os

nomes.

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— Por mim, continuo a apostar no polaco Bzewsinsky. É a santidade em pessoa e

um grande admirador do outro. Belos tempos! Com ele, «los comunas se f...» — Era a voz

do primaz toletano, cuja santidade da expressão viria a ser posta em causa pelos

restantes membros do grupo.

— Mais um polaco?! Não, por favor! — Rematava o lisboeta Do Rego.

— Só nos faltava cá este!... — Interrompe, em aparte mal-humorado, o francês,

por entre a casquinaria surda dos italianos e espanhóis. — Já se vê: Também é adepto do

carioca?! — Acrescenta o arcebispo de Notre Dame, voltando-se desdenhosamente para

o lado.

E assim por diante decorriam os sagrados minicomícios no Vaticano, que cumpria a

novena do luto oficial. A campanha eleitoral estava a entrar no auge. E, com todas as

eminências disseminadas em pequenos grupos, por aqui e por ali, iam-se debitando as

preferências de cada um, fazendo a pessoal e santa promoção, ou destilando os venenos

mais ou menos ocultos das máfias que jogavam forte no arcebispo de Siracusa, o velho Di

Tronchetto que misturava missas com ópio, tráfico de armas e outras coisas mais de alta

criminalidade que se dizia por lá. — «Um jogo muito baixo, onde a chicana, a delação e o

golpe sujo contra o cardeal do Rio faziam o discurso obrigatório dos bastidores do pré-

-conclave». — Era a informação que me chegava certeira do irmão superior do Monte

Célio, que acrescentava: «Tudo dito e sublinhado com a mais elevada e santa unção. In

nomine Dei?»

— Não! In ordine satanae! — Gritava enérgico, quase encolerizado, o arcebispo de

Buenos Aires, enquanto dava um valente murro na mesa a ponto de fazer saltar os

cinzeiros e as pastas de cada um, na reunião preparatória do conclave. — O nosso irmão

arcebispo do Rio de Janeiro conheço-o eu muito bem. Por ele ponho as mãos no fogo. Só

uma paixão o move: o Amor dos excluídos desta sociedade consumista, dos que mais

sofrem, dos mais débeis, dos sem-voz — primeiros destinatários da mensagem de Jesus!

E aqueles que aqui o atacam o que fizeram? Sim! Cada um diga aqui, diante de Deus e do

Seu Espírito de Amor, o que traz nas mãos? Se hoje fosse o dia do Juízo, como é que cada

um de nós justificaria a vacuidade das respectivas vidas? Como pôs a render os seus

talentos? Quantos esfomeados cuidou? Quantos nus vestiu? Quantos prisioneiros

visitou? De quantos caídos na berma da estrada se fez próximo? De resto, irmãos, o

nosso colega não se encontra presente para se defender das acusações falsas,

santamente verrinosas, mesquinhas e absurdas que nesta reunião lhe têm sido

imputadas, felinamente, através da aleivosia mais refinada, do "diz-se"... e por quem

tinha o especial dever de não cair em tal e tão satânica tentação. E isto, irmãos, tem um

nome — cobardia!

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— Mas, se aqui não está, não será porque se julga a si próprio mais que os outros?

— Interrompe, agastado, o parisiense Legrand.

— Irmão — continua o argentino Perez-Logano — é sabido, pois foi distribuída essa

informação oficial, que o cardeal De Alcaçuz e Alcantilar recupera de uma queda que lhe

aconteceu na noite anterior.

— Pretextos, pretextos habituais, daqueles que não querem dar a cara, para se

fazerem mais importantes que os outros. — Resposta enérgica e corrosiva do francês que

acrescenta. — Quem me garante a verdade dos factos?

— Eu! Arcebispo de Buenos Aires!

— Com que provas?

— O colega não se chama Tomé?!

— E o colega não é uma nova encarnação do Verbo?!

Perante este diálogo tão elevado... — muito próprio das eminências vaticanas —

em que o cepticismo de muitos mantinha suspensa a respiração dos demais, Perez-

-Logano tira da pasta uma cópia do boletim clínico do hospital que socorreu Pedro na

madrugada daquele dia, onde constava a assinatura do médico do conclave, e, com toda

a calma, coloca-a diante dos olhos do arcebispo de Paris. Depois, sentado, chama o

assessor e pede para telefonar ao superior do convento, para comparecer

imediatamente na reunião.

— Aqui têm o director do convento onde Pedro de Alcaçuz e Alcantilar está

hospedado — faz o argentino, tomando o padre Estêvão pelo braço e introduzindo-o na

sala. — Eminentíssimo cardeal Legrand, faça vossa eminência as perguntas que entender

necessárias para se esclarecer sobre a verdadeira razão da ausência do nosso irmão do

Rio — concluiu.

— Mas quem lhe disse que quero perguntar o que quer que seja? — Era o

parisiense, em voz embargada e notoriamente irritada.

— Mais algum dos colegas quer ter a bondade de questionar o nosso querido

superior geral do convento? — Insiste Perez-Logano que, após alguns momentos daquele

terrível silêncio cortante que começa a fazer sangrar muito cobarde, cresce para a

assembleia pré-conclavista e continua: — Irmão Estêvão, obrigado por este incómodo

que lhe causei. Mas uma vez aqui, diga, por favor, o que aconteceu com o nosso irmão

De Alcantilar, na noite passada.

— O senhor cardeal do Rio, que nos deu a honra de escolher a nossa humilde casa

para se alojar, durante a sua permanência em Roma quando orava ajoelhado frente ao

tabernáculo, cerca das quatro horas da madrugada, deve ter passado pelo sono, um

joelho descaiu do degrau em que se apoiava e caiu, batendo com a cabeça na moldura da

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base do altar. Daí um pequeno golpe no sobrolho direito, do qual escorria sangue,

quando o socorri.

— Vossa reverendíssima também se encontrava na capela, nesse momento? —

Pergunta, com a astúcia de advogado convencido da sua capacidade para enrolar a

testemunha, o arcebispo de Viena.

— Não, eminência, não me encontrava na capela.

— Pois!... — (Vozes dos astutos...)

— Se me permitem — continuou — como sempre faço, antes de me recolher ao

meu descanso, dei uma volta pela casa, de lanterna em punho, para verificar se tudo

estava em ordem ou se algum dos irmãos carecia de auxílio. Entretanto, passando no

corredor onde se situa a capela, ouvi um ruído estranho, como de um tombo de alguém

no soalho de madeira velha. Com toda a diligência, comecei a verificar onde haveria luz

acesa. Nos quartos não havia. Voltei então atrás. Na capela, sim, a porta estava

encostada e notava-se perfeitamente que uma luz frouxa continuava acesa. Entrei e —

qual o meu espanto! — o nosso mais ilustre hóspede estava caído, junto do altar.

Abeirei-me. Tremia de aflição. Mas esta subiu ao rubro, quando verifiquei que D. Pedro

De Alcantilar estava inconsciente e tinha sangue a escorrer-lhe da testa. Chamei a

ambulância e acompanhei-o ao hospital. Permaneci ao pé dele o resto da noite e parte

deste dia.

— Mas era leve o ferimento... — Interrompe Legrand.

— O médico do conclave, chamado imediatamente, achou que sim, que nada de

grave se passara. Porém, aconselhou o arcebispo do Rio a descansar, pois tinha as

tensões muito baixas. De resto, D. Pedro estava de há muito informado pelo médico

pessoal de um possível esgotamento que o espreitava, pois nunca descansava o

suficiente. Já nessa altura lhe tinha sido imposto descanso absoluto, longe do Rio de

Janeiro, que ele nunca cumprira.

— Algum dos colegas quer mais explicações? — Olhava Perez-Logano para todos os

lados da grande mesa oval. — Parece que não. Nosso irmão, pode ausentar-se. Muito

obrigado. Foi de uma oportunidade flagrante. Bem-haja!

Já no fim da tarde, mesmo contra a recomendação médica, levantei-me e fui ao

Vaticano. Desde que me fora dada alta do hospital, tinha passado o resto do dia

recolhido no meu exíguo gabinete de trabalho, dominado por uma maravilhosa estatueta

de pau-preto que sempre me acompanhava — rara representação de Cristo glorificado —

oferta de minha santa mãe, na sua primeira missão na Amazónia. Tinha estudado,

meditado e orado. Mais tarde, em conversa com o superior do convento, tomei

conhecimento da triste atitude dos meus irmãos reunidos em pré-conclave, da terrível

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falta de seriedade e de "discernimento dos espíritos". Aliás, o nosso irmão Estêvão

caracterizava assim o Pátio de S. Dâmaso, por onde vagueavam e cochichavam muitos

membros do colégio cardinalício: «Nestes dias, o Pátio de S. Dâmaso é o espaço sem

"espaço" ao Espírito!»

O relato do que então se seguiu quero confiá-lo ao meu bom amigo no Senhor, o

irmão Perez-Logano, que era arcebispo de Buenos Aires. Se o Nosso Bom Deus o permite

e o Irmão Pedro Apóstolo aceita, podes comunicar o que viste e ouviste.

— Sabes que a minha memória, ultimamente, não me ajudava.

— Isso era do outro lado, irmão Perez, meu braço direito na corrida contra o

tempo!

— A silhueta inconfundível do arcebispo do Rio, mal aparecera na sala, fez mudos

todos quantos ali se encontravam. Sorrindo, mas com um sorriso que notoriamente lhe

velava muita ansiedade, sentou-se na cadeira que lhe pertencia. Pediu desculpa por não

ter podido acompanhá-los nos trabalhos da manhã e prometeu, da sua parte, tudo fazer

e a tudo obedecer para que o conclave se iniciasse rapidamente e todos pudessem

exprimir livremente as suas opiniões e preferências. Mas lamentou que, sobre uma

simples queda, se tivesse posto a circular a notícia de que «o cardeal-arcebispo do Rio de

Janeiro tinha sofrido um ataque cardíaco, antes do conclave» — «Porquê?» —

perguntava. — «Quem está interessado em assassinar-me? Quem, afinal, quer perturbar

muita gente que, no meu país, ficou perplexa?! Sabem?... Os pequenos da obra choraram

e rezaram. O sambódromo encheu-se, novamente, não para sambar, mas para ouvir a

voz enérgica do bispo auxiliar desmentir a notícia. Irmãos, oremos, para que o Senhor

nos dê a alegria da verdade e que só esta domine os nossos corações! Só a verdade

liberta!» — O verbo de Pedro foi cortante. E ninguém ousou interrogá-lo. Nessa noite, os

cardeais entraram na zona do conclave. Cabisbaixos, a maioria.

Irmão, Pedro Apóstolo, a partir daqui, entrego o relato do exterior ao nosso bem

informado irmão Estêvão que assistiu a tudo e sei que é fiel.

— Roma acordara a correr para a Praça de S. Pedro. Ninguém queria perder a cor

do fumo a sair da velha chaminé da Capela Sistina, resultante da queima dos votos do

primeiro escrutínio. As câmaras de televisão, aos montes por cima da colunata de

Bernini, esperavam — às voltas — esse momento, fazendo grandes planos da pequena

cobertura do tubo metálico que saía do telhado daquele que era, sem dúvida, o mais

emblemático local do Vaticano. Repórteres de todo o mundo ensaiavam os telexes, as

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objectivas, as avenidas da internet, o papel e a esferográfica. Peregrinos e curiosos destas

coisas que enchiam já a meia praça, até ao obelisco central, esticavam o pescoço o mais

que podiam, a fim de não perderem a oportunidade de ver o fumo e tentar o mais difícil

que era, normalmente, a destrinça entre o branco e o preto.

Às dez horas da manhã, em Roma e no mês de Julho, com céu limpo, o sol era

abrasador e fulminava com raios devastadores os olhos de quem se colocava em posição

frontal à Basílica de S. Pedro, tentando espreitar os telhados dos palácios apostólicos. Por

isso, muitos usavam guarda-sóis, outros chapéus de aba larga, e os mais desprevenidos

por estas andanças protegiam a vista com simples pedaços de jornal dobrado em cima da

testa.

Com o andar dos ponteiros do relógio e o bater das horas no sino grande de S.

Pedro, a impaciência instalara-se na maioria dos operadores da informação, não porque

quisessem ir-se embora rapidamente, mas porque começavam a esgotar o palavreado

que prepararam sobre os papabile. E até os taxistas de Roma que costumam estacionar

ao fundo da via della Conciliazione, para saudar com as buzinas dos carros o novo papa,

iniciavam a debandada. Na Piazza, os turistas e os fiéis que não cessavam de engrossar o

caudal, olhavam para o relógio, rezando uns, cantando outros, dando vivas a tudo —

alguns mais exaltados — ou cavaqueando a maioria, geralmente sobre as últimas notícias

transmitidas pelas agências mundiais, pelas televisões e pelos jornais que muitos iam

lendo, sentados em improvisados bancos que transportaram debaixo do braço, pois já

sabiam que a jornada podia ser longa.

Os homens do microfone em punho, seguidos dos que apontam a objectiva da

câmara, sem pedir autorização, para o rosto de quem lhes apetece, aí estavam, "em

directo", para ouvir as impressões e opiniões dos componentes da multidão, a melhor

maneira de entreter a gente e dar folga aos heróicos faladores de banalidades que têm

necessidade de se abastecer de mais alguns disparates para debitar a seguir, de

molharem as gargantas na trattoria mais próxima e — porque não? — também satisfazer

exigências fisiológicas improrrogáveis que é coisa que se faz em todo o sítio, mesmo que

se esteja na Praça de S. Pedro, à espera do anúncio do resultado do primeiro escrutínio

para a eleição de um novo papa.

— Por favor, que me diz sobre este momento que está a viver?

— Não entendo italiano. — Responde uma velha americana, no inglês nasalado do

outro lado do Atlântico.

— Desculpe. Perguntava-lhe o que sente num momento destes. — Voltou à carga o

jovem repórter, agora usando a língua da velha turista, salmodiada como só os italianos o

sabem fazer.

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— Ah! Pois, meu menino — solta a gaiteira americana, tagateando o imberbe rapaz

do microfone — eu cá nem sou católica e isto, para mim, é como beber coca-cola, sabe

sempre bem. Ah!, Ah!, Ah!...

— Sem dúvida, minha senhora! Ah!, Ah!, Ah!... Tem toda a razão! Vechia del

diavolo! — Terminou, em surdina e de nariz à banda, o inexperiente repórter, justamente

quando enorme gritaria se levanta na praça e muitos apontam, com o braço no ar e o

indicador voltado para o tubo da chaminé da Sistina, o fumo que começa a sair. Primeiro,

timidamente. Depois, em grossos rolos negros, a ninguém deixando dúvidas de que o

escrutínio tinha sido negativo. «Oh!...» — Ouviu-se de todo o lado, com o som

descorçoado de um imenso murmúrio de frustração, muito semelhante ao que se ouvia

nos estádios de futebol quando a multidão dos adeptos da equipa atacante reagia a um

potentíssimo remate... ao lado!

Os cânticos, os "vivas", as bandeiras das diversas nacionalidades em agitação

constante, tudo recomeçava, então, pois o dia prometia e, por isso, dali ninguém

arredava pé. As sandes e as latas de cerveja ou de refrigerantes saíam dos sacos de

plástico, pois a hora era de retemperar forças e o calor do meio-dia romano não deixava

ninguém indiferente. A multidão procurava, agora, uma sombra debaixo da colunata e,

enquanto grupos dos mais fervorosos permaneciam de joelhos ou de pé, rezando e

cantando, a maioria estava sentada ou deitada no chão, porque pernas de turista,

mesmo crente e piedoso, também não resistem a longas horas em sentido.

Pelas dezoito horas romanas, estando a praça cheia, agora com novas levas de

turistas, peregrinos ou simples curiosos, novamente a chaminé da Capela Sistina começa

a vomitar mais fumo, mas... também negro. — «Ainda não é desta!» — Diziam os taxistas

que voltavam ao serviço, depois de darem uma espreitadela à Piazza di S. Pietro. A pouco

e pouco, desconsolados, os cânticos vão-se desvanecendo, as bandeirinhas enrolando e

os hossanas emudecendo. A noite cai sobre uma Roma abafada como fornalha que cozeu

a boroa e até os mais crédulos vão procurando lugares mais frescos na periferia.

No interior do conclave, sabia-se da existência de fortes intrigas e divergências

profundas entre os cardeais, isto a julgar pelas meias palavras, sempre ditas à boca

pequena pelos bastidores do Vaticano — as costumadas "fontes geralmente bem

informadas" e bem pagas pelas mais poderosas agências noticiosas do mundo.

Cumprindo os seus "contratos", lá iam passando para o exterior o que sabiam e o que in-

ventavam das escutas que faziam dos murmúrios bichanados pelos corredores mais

próximos das celas cardinalícias. Mas, de tudo o que se ouvia, era possível, depois de

aturada cabalística, dar como certo o facto de haver grave divisão entre o grupo dos

cardeais que pretendiam um papa que representasse a continuidade do poder das hostes

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da Lexington Avenue, com todo o seu cortejo de mafiosos, banqueiros e reaccionários à

frente do Vaticano, e a outra parte dos cardeais — quase todos os do Terceiro Mundo,

apoiados por um sem-número de teólogos de renome internacional, expulsos das

cátedras pelo anterior papa — que se batiam pela eleição de um sucessor de Pedro que

tivesse a coragem de «lavar o ventre da Santa Igreja», na rude mas feliz expressão da

nossa irmã Catarina de Sena ou de Benicara que nesta eternidade revê a sua coragem e

fé. O impasse estaria assim para durar, pois cada grupo colhia cerca de cinquenta por

cento dos votos e só muito longas e duras negociações poderiam fazer um deles obter os

necessários dois terços para a eleição.

O segundo dia do conclave estava a ficar marcado pelo anúncio de que haveria dois

escrutínios de manhã e dois de tarde, se necessário fosse, para que o conclave

terminasse rapidamente a sua missão. Acrescentava o comunicado assinado pelo

Camerlengo que, «face às condições atmosféricas que se abateram sobre Roma, com

uma vaga de calor de magnitude sem precedentes na história da cidade eterna, não será

razoável exigir aos idosos cardeais a permanência nas celas da área do Conclave por

muito mais tempo.» Os quatro escrutínios do segundo dia, porém, terminaram todos

com fumo negro. E a multidão entusiasmada do primeiro dia, depois cansada no

segundo, começava a abandonar os hotéis e a regressar às suas terras, sem verem o

rosto do novo papa. Nos terceiro, quarto, quinto, sexto, sétimo e oitavo dias de

funcionamento do conclave, nada de novo surgira que pudesse sequer fundamentar uma

conjectura sobre o tempo que ainda poderia durar a mais secreta assembleia eleitoral do

mundo. Sabia-se — pelas mesmíssimas fontes "geralmente bem informadas" — que o

impasse estaria sem fim à vista, já que se mostravam irredutíveis as posições dos dois

blocos de eleitores. Constava mesmo que, após saturantes e pouco católicas discussões,

o ambiente entre eles era de intolerável agressividade pessoal.

Os fiéis às ordens da City — quase todos os espanhóis, muitos do resto da Europa e

bastantes norte-americanos, apelidados pelos do outro grupo de le domani (pois nunca

decidiam, jogando sempre no cansaço do adversário) — apenas propunham e queriam a

eleição do cardeal siracusano — Di Tronchetto —, profundo admirador do fundador da

secreta. Não discutiam doutrina, disciplina, liturgia, cânones, evangelização. Nada haveria

a mudar. A Igreja apenas carecia de um novo "Pontífice" que continuasse a obra dos

antecessores.

Para os cardeais do outro bloco — que estaria a conquistar adeptos — todo o

"Povo de Deus" carecia de um forte sinal do Espírito.

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«O mundo do Século XXI afunda-se num individualismo grosseiro. As nações ricas

fomentam a guerra entre os povos mais atrasados, vendendo-lhes as armas com que

estes se matam, para lhes levar as riquezas naturais que possuem, ao preço das balas e

do sangue que elas fazem! Populações inteiras do Terceiro Mundo são vítimas de

genocídios horrorosos, de limpezas étnicas de uma brutalidade nunca antes vista na

história da Humanidade, de fome generalizada que ceifa, antes de outras, as vidas de

inocentes que apenas cometeram o pecado de terem nascido naquelas coordenadas. O

tráfico de menores para os chamados paraísos do sexo ou, não raro, para pesquisas

laboratoriais, como se de ratos se tratasse, ou, pior ainda, para as grandes clínicas dos

países ricos, afim de serem "dadores de órgãos"; a passagem de droga que destrói

famílias e mata a nossa juventude; a lavagem de dinheiro sujo, proveniente das

explorações mais ignominiosas do ser humano, tudo é feito hoje com a consciência

tranquila das autoridades nacionais e das instâncias internacionais, dentre elas o próprio

Vaticano que retira despudoradamente desses negócios satânicos chorudos rendimentos

que vão parar aos cofres do IOR. As crescentes emissões de gases poluentes para a

atmosfera, emissões assassinas dos ecossistemas, que já destruíram parte da camada do

ozono que faz a vida do planeta! As grandes potências industrializadas, porém, com o

silêncio cúmplice da Igreja, continuam, desde o início do século, a opor-se, na prática, a

todas as medidas e tentativas de redução das emissões de CO2 — o grande responsável

pela morte do ozono protector da vida. Perante desafios desta magnitude, alguns querem

que a Igreja de Cristo continue apenas preocupada com o próprio umbigo, discutindo

narcisicamente questões litúrgicas, mais uns quantos mistérios do rosário, ah! e

moralidade sexual! As senhoras e as meninas não se podem aproximar do altar. Não se

pode bater palmas, não se pode dançar. Não se pode... não se pode... não se pode. Tudo é

negativo, num mundo que espera sinais positivos de amor, de homens e mulheres que

cheios do Espírito de Deus dêem a vida pelos que choram, pelos esmagados, pelos que

sofrem todas as sequelas de todos os poderes e suas políticas de ambição e de domínio!

Queremos um papa que mude a história! Que seja a voz dos oprimidos! Que esteja bem

no centro de uma nova ordem mundial, assente, na globalização da Redenção que Cristo

ofereceu à Humanidade! E aposte forte numa outra humanidade, que fale a linguagem

do Amor e dele viva efectivamente. Queremos um papa que acabe de vez com todo o

farisaísmo e a hipocrisia do Vaticano. Que expulse os vendilhões do templo, o satanismo

de todas as secretas e o teologismo dos novo ; "doutores da lei"! Que viva o Evangelho de

alto a baixo e mostre a este mundo perverso, a começar pela cúria papal, os encantos do

Amor do Espírito de Deus! Que é Justiça, Verdade e Paz!»

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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Era uma excerto de um extenso editorial do Jornal do Conclave, posto a circular,

sem se saber por quem, pela Praça de S. Pedro. O texto não vinha assinado, mas,

subjacente aos artigos do autodenominado "grupo de reflexão pela mudança",

responsável pela edição, ninguém duvidava estar, fundamentalmente, o pensamento do

"arcebispo dos pobres", do Rio de Janeiro.

Entretanto, quatro semanas tinham passado desde o início do Conclave. O fumo da

Sistina continuava, porém — como o ambiente mundial — cada vez mais negro... As

grandes potências continuavam surdas aos gritos das mais pobres. Os esfomeados

começavam a avançar em direcção ao Norte. Aqui, a imagem da força era passada em

todas as coordenadas terrestres. As estratégias militares de contenção eram delineadas

ao pormenor, falando-se agora abertamente em cenários de defesa, mesmo com recurso

a armas nucleares. A arma dos fanáticos de qualquer latitude de religião, raça ou língua

— o terrorismo — recomeçava, mas agora com poder de destruição e provocação do

medo generalizado nunca antes visto. Era certo que armas de destruição maciça se

vendiam nos mercados como salsichas. Os mais avisados já ouviam o toque das sete

trombetas. E a Humanidade inteira começava a entender os indícios da globalização do

medo! Um estranho cheiro a absinto sufocava tudo e todos. Sentia-se que a taça estava a

ficar cheia. Que a grande tribulação se aproximava. Mas a besta que a detinha na mão ria

em esgares de loucura, enquanto espumava raiva e espalhava o seu poder sedutor sobre

os incautos seus adoradores. Por seu lado, enquanto a cúpula da Igreja Católica se

debatia entre duas forças aparentemente inconciliáveis, não encontrando maneira de

ultrapassar o diferendo entre dois modos de entender a Mensagem de Cristo para o

mundo do Século XXI, as outras Igrejas cristãs, reunidas em assembleia-geral do Conselho

Mundial, em Genebra, aprovavam uma dramática moção de apelo a todos os cristãos

para que se unissem em oração e serviço em favor da humanidade sofredora e

chamavam a atenção dos governos de todos os países, a fim de não precipitarem

egoisticamente os acontecimentos, com recurso à guerra — muito menos a nuclear —

que significaria, muito simplesmente, o horror do apocalipse e o fim da espécie humana.

No interior da Capela Sistina, contudo, já ninguém ouvia ninguém. O inferno

instalara-se ali e nem o magistral fresco de Miguel Ângelo, mostrando aos conclavistas o

"Juízo Final", era capaz de motivar qualquer esforço para se sair do impasse. As

desencontradas informações diziam que o grupo dos le domani, quase todos muito mais

novos que os do resto do mundo, começavam a cantar vitória com o desfalecimento de

alguns dos do grupo contrário. Esqueceram-se, porém, que estes , provinham de Igrejas

de luta, de fome, de teatros de guerra. Que eram homens treinados para a resistência.

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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Ao fim de três meses de conclave — caso inédito na bimilenar história da Igreja —

já ninguém ligava às notícias vindas do Vaticano. Os repórteres de quase todos os

grandes meios de comunicação tinham regressado às respectivas bases. O conclave

deixou de ser "caixa", a não ser para motivar chistes brejeiros ou enriquecer o anedotário

dos corredores dos "palácios apostólicos".

Decorria agora o mês de Outubro, e por todo o mundo católico se organizavam

jornadas de oração, peregrinações de penitência, seminários de reflexão, pedindo ao Céu

um novo Pentecostes que, em ardentes línguas de fogo, queimasse o orgulho e a vaidade

que impedia uns quantos cardeais de olharem para além do próprio umbigo e dos

objectivos de poder que alimentavam. Em todos os santuários marianos do mundo

católico se celebravam vigílias, pedindo à «Mãe da Igreja a Sua bendita intercessão para

que à hora das trevas suceda rapidamente a Luz do Espírito de Deus.» Assim terminava

um comunicado distribuído, em várias línguas, às multidões que assomavam a tais locais

de oração.

Ao fim de mais um dia de votações, invariavelmente terminadas com a

comunicação do fumo negro, todo o Centro-Sul da Itália começou a ser varrido por

terrível siroco que lançava ao ar gigantescas nuvens de poeira e miríades de folhas secas

e detritos de toda a ordem. A princípio, ninguém estranhara. Era o início do Outono

romano, em que fenómenos meteorológicos desta natureza são cíclicos. Desta feita,

porém, as coisas depressa começaram a tomar formas estranhamente assustadoras. Em

linguagem mítica, muito em voga lá do outro lado, descreveram assim as horas

dramáticas desse dia: Enquanto Éolo soprava forte do Olimpo sobre toda a criação,

parecendo decidido a arrebatar tudo aos espaços interplanetários e a defenestrar

recheios de casas, humildes ou palácios, não respeitando ninguém, nem os nervos dos

míseros humanos que corriam de um lado para o outro, sem saber o que opor a tamanha

e descontrolada fúria, a divindade dos ventos, num rodopiar estonteante, atinge o colega

Posídon no mais fundo dos mares. Irritado, furibundo, com este despertar nada amistoso

entre senhores da mesma corte, atravessou o Mediterrâneo na sua veloz quadriga,

levanta e agita o tridente à superfície das águas que imediatamente se embrulhavam em

aterradoras vagas que vão engolir as areias das praias e tudo o que nelas existia. Em

dueto demolidor, Éolo e Posídon vociferaram sobre a terra, abriram as respectivas

entranhas e, enquanto um, com seu assobio temeroso, fazia enlouquecer à sua volta

tudo o que encontrava, o outro arrombava tímpanos com a percussão arritmada do

despejo violento de enormes enxurradas de água e do ribombar dos trovões aterradores,

subsequentes ao faiscar de raios sobre os pobres mortais que, atónitos, procuravam sítio

seguro onde meter-se, para fugir a tão inusitada e estonteante belicosidade dos deuses.

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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Roma, em longos minutos de terror da natureza, tinha ficado totalmente alagada e,

em grande parte, destruída. O tufão devastador e jamais visto nestas paragens não se

contentava em fazer das ruas e avenidas autênticos rios que corriam por entre casas e

jardins, tudo levando à sua frente. Telhados e barracas, antenas de televisão e chaminés,

vidros e pedaços de janelas voaram, durante quase três intermináveis horas sobre a

cidade imperial. Foram muitas as pessoas apanhadas desprevenidas e que não resistiram

a estes objectos estranhos que caíam abundantes dos céus, agora desgovernados por

assustadoras desordens olímpicas. Os bombeiros atravessavam avenidas, ruas e vielas,

com as suas máquinas esquisitas. De pirilampos acesos que reflectiam nas fachadas das

casas, intermitentemente, o amarelo do perigo, ambulâncias autogruas e outras viaturas

de socorro cruzavam-se por todo o lado, com sirenes em gritaria infernal, assim fazendo

aumentar ainda mais a angústia dos sobreviventes que começavam, apenas, a conhecer

todo o horror da catástrofe. Não havia memória, nos anais da cidade da loba, de uma

tragédia com tal magnitude.

Nos palácios do Vaticano, as consequências da funesta tempestade outonal eram

as mais devastadoras. Praticamente, só a basílica de S. Pedro, com a sua colunata

berniniana, estava de pé. Tudo o mais ruiu ou ficou sem telhados. Uma das mais

emblemáticas edificações — a Capela Sistina — onde decorriam os escrutínios do

conclave, sucumbiu totalmente ao peso da muita água caída e das subsequentes

infiltrações nas suas paredes seculares, bem como dos terríveis ventos ciclónicos que

tudo esventraram e atiraram pelos ares. Muitas das mortes aqui ocorridas foram

provocadas por tijolos antigos, telhas e nacos de argamassa, pedaços de madeira de

molduras ou móveis desfeitos que viajavam no espaço como meteoritos desgovernados,

apenas obedientes à fúria dos ventos.

Quando foi possível entrar na área do conclave, a destruição, a morte, a desolação,

os gemidos dos vivos soterrados faziam o espectáculo dantesco que levava qualquer

mortal à comoção violenta, às lágrimas, ao desespero. O velho conde Di Caroso — o

"marechal do conclave" — estendido por terra, junto à porta da Sistina, morrera no seu

posto! Retiradas as pedras, as telhas e a caliça que lhe encobriam parte do cadáver, era

possível, então, verificar como defendeu até ao fim o múnus que lhe haviam confiado.

Deitado de lado, com os membros inferiores encolhidos, enquanto a mão direita parecia

tentar aparar o choque de uma telha na cabeça — que lhe foi fatal — a esquerda

segurava tenazmente a grande chave da porta da Sistina. A abertura tornava-se, então,

extremamente difícil. A língua deslizava perfeitamente nas entranhas da fechadura. Mas

qualquer coisa pelo interior havia, que só a muito custo cedeu à muita pressão feita de

fora. Dizer horror... tragédia... espectáculo macabro... tudo isso são apenas palavras que

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não conseguiam traduzir os sentimentos de quem, esfregando os olhos, sacudindo a

cabeça, conseguiu distinguir entre a realidade e o pesadelo: cadáveres de cardeais,

apinhados, de punhos cerrados e feridos de tanto bater à porta. A maior parte deles com

sinais de extensos ferimentos na cabeça. Outros, aparentemente sem hematomas ou

ferimentos externos, ali se amontoavam com os demais, simplesmente porque o terror

tinha atingido níveis muito acima das humanas capacidades de corações tão débeis. Em

alguns outros, eram notórios os sintomas de fracturas cervicais, como acontecera ao

cardeal Della Vechia — o mais intrépido defensor da sua própria eleição.

Retirados os mortos, era preciso cuidar dos vivos. Uns, foram transferidos para os

hospitais de Roma que ainda tinham ficado com alguma capacidade operacional. Os

outros, aqueles que tinham apenas ferimentos ligeiros ou se encontravam em estado de

choque, rapidamente foram assistidos por técnicos de saúde no Vaticano.

No dia seguinte, debaixo de um sol ternurento de Outono, como só Roma conhece,

as autoridades investigaram as mortes e a extensão dos danos materiais causados pela

tempestade. Um rol infindo de tristezas. Entre cardeais, arcebispos, bispos,

monsenhores, padres consultores, amanuenses ou simples domésticos, falecidos dentro

dos "palácios apostólicos", contabilizaram-se mais de três centenas de cadáveres.

Edifícios sem tecto ou irrecuperáveis, obras de arte destruídas e museus completamente

arruinados perfaziam valores de cálculo proibido. Os cadáveres foram levados para a

basílica-mãe da cristandade. À frente, os dos cardeais, e a seguir os outros, pela ordem

das próprias dignidades. Quem disse que na morte todos somos iguais?

Muito antes da hora marcada para os funerais, sob o duomo de S. Pedro, a

multidão comprimia-se como sardinha em lata. Fora, era imensa a mole humana coberta

de negro, que enchia por completo a grande Piazza oval do génio de Bernini e estendia-

-se por toda a Via delIa Conciliazione, até perder de vista. Ecrãs gigantes, colocados

estrategicamente por toda a praça e zonas limítrofes, levavam aos milhões de olhos

humedecidos todo o cerimonial que se vivia no interior da basílica, bem junto do "altar

da confissão". Um dos cardeais falecidos no fragor do ciclone tinha sido o camerlengo,

pelo que assumiu o seu posto o vice-camerlengo, Menezes e Costa, arcebispo de Luanda.

Pela primeira vez na história da Igreja Romana fazia as vezes de papa um cardeal

africano. Menezes e Costa era profundamente amigo e admirador de Pedro de Alcaçuz e

Alcantilar que, por seu lado, tinha em muita estima os méritos do arcebispo de Buenos

Aires, Alonso Perez-Logano. Menezes e Costa era um homem de idade avançada, mas

muito jovem de espírito e, sobretudo, um homem afável, bondoso e amante dos pobres,

dos marginalizados, dos excluídos. O arcebispo de Luanda conhecia bem a obra do

arcebispo do Rio de Janeiro, que visitara antes por diversas vezes. Por tudo o que

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conhecia de Pedro, admirava-o, sobretudo no que ele tinha de personalidade frontal,

pura, cheia de entusiasmo pela erradicação da miséria do seu povo e pela luta contra a

sua exploração. Os dois comungavam uma linguagem de fé autêntica no Deus de Jesus

Cristo, no Seu Espírito de Amor de que ambos faziam alavanca para levar de vencida

verdadeiras batalhas do pão para todo o "muceque" ou "favela". Perez-Logano, embora

um tanto mais novo que Menezes e Costa, era pesadão, mas de uma agilidade intelectual

impressionante. Sempre bem-disposto, com resposta pronta e, por vezes, de uma ironia

fina, mas implacável, o arcebispo de Buenos Aires tinha sido nos últimos anos o maior

consulente e conselheiro de Pedro de Alcaçuz e Alcantilar.

Antes do início do Requiem, Menezes e Costa leu a acta da reunião havida numa

sala anexa à destruída Capela Sistina, na qual participaram todos os cardeais vivos, onde

tinha sido deliberada a suspensão, sine die, dos trabalhos do Conclave. Nessa mesma

acta, os cardeais apelavam a todos os católicos do mundo «para que unam suas orações

às de quantos, na basílica de S. Pedro, sufragam as almas dos que pereceram e pedem ao

Senhor a consolação dos vivos e a força espiritual bastante para que levem, com

brevidade e serenidade, até ao fim a missão de escolherem um novo chefe visível para a

Sua Igreja». Lida a acta dessa importantíssima reunião, o presidente Menezes deu início à

concelebração, tendo por auxiliares Perez-Logano e Alcaçuz e Alcantilar. No momento

oportuno, por indicação do Camerlengo em exercício, tomou a palavra o arcebispo do Rio

de Janeiro, num pódio erguido no transepto onde se alinhavam as urnas das quase — só

no Vaticano — três centenas de mortos da tragédia do dia anterior. Na sua estatura de

atleta, alto, rosto comprido e cabelo muito curto, vozeirão grave, mas sempre sereno,

olhos vivos, mas transparecendo amargor de alma, levantou Pedro, silencioso, os braços,

rodando-se para ambos os lados onde se encontravam os féretros. A comoção atingiu-o

violentamente e não pôde esconder as lágrimas que lhe escorriam abundantes pelo

imenso carão. Sempre envolto em silêncio sepulcral, puxou de um lenço e enxugou

calmamente os olhos. Depois, ainda chorando, mas com perfeito domínio da voz,

começou, sem suportes da memória, um discurso que muitos consideraram ver-

dadeiramente inspirado:

— Louvado seja Deus, irmãos, porque dormíamos e Ele acordou-nos! A vergastada

foi violenta, alguns de nós aqui estão prostrados, para o atestar, mas restamos nós, os

vivos, para o meditar e agir em conformidade. Na história do Povo de Deus, lemos outros

casos paralelos, com os quais se mostra que o Criador muitas vezes se serve da Mãe-

-Natureza para ensinar o caminho à criatura desviada. E nós, irmãos, nós, a quem cabe o

dever de dar à Sua Igreja uma nova cabeça visível, para confirmar os irmãos na fé, nós

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cedemos à tentação de outras miragens, percorremos caminhos indignos, fora da missão

que nos está confiada, com objectivos certamente alheios à Mensagem Evangélica. E

perdemos muito tempo. Discussões estéreis e fúteis fizeram o dia-a-dia de homens que só

deveriam ter como farol o Amor do Espírito de Deus que quer incendiar o mundo, para

que ele não se incendeie primeiro no ódio e se destrua a si próprio em holocausto

apocalíptico!

A hora que vivemos é de uma gravidade extrema, e os olhos de milhões de seres

humanos estão cravados em nós, à espera de um sinal — de um sacramento de salvação.

Há milhões de bocas esfomeadas que anseiam por uma única coisa: Pão! Solidariedade!

Amor! (Por momentos, a comoção de Pedro impede-o de continuar, leva novamente aos

olhos o lenço branco e deixa-se em curto silêncio, de olhos cerrados). Peço-vos desculpa,

irmãos. Vou continuar. A Igreja, todos quantos acreditam no Deus de Jesus e no Seu

Espírito de Amor não podem mais fechar os olhos... tapar os ouvidos... tentando ignorar

esta realidade. Realidade que dilacera o Coração de Cristo e pela qual seremos julgados.

— «Afastai-vos de mim, malditos, porque tive fome e não me destes de comer» — disse,

sem tergiversar, Aquele que é perdão, paz e Amor! Por isso, aqui fica o sentir do mais

humilde de todos: que, depois de cumprirmos o dever cristão de dar sepultura aos mortos,

nos reunamos imediatamente nesta basílica e reiniciemos os trabalhos do conclave

suspenso. Sem formalismos desnecessários. E, sem a pompa nem a circunstância

costumeiras de séculos que fizeram do papado a mais estranha corte monárquica da

história, apenas com os olhos postos no Mestre e na Sua Igreja, escolhamos um de entre

nós que aceite reconduzir-nos aos caminhos da Caridade, do Amor! A humanidade inteira

não nos perdoará se não soubermos ser dignos desta hora! Hora das trevas… mas

também hora de muita esperança. Que exige de nós total entrega, sem medos, com

muita coragem, para grandes decisões. Para grandes mudanças! E, certamente, para

muito sofrimento. Entendei a parábola do dia de ontem... e do tempo que hoje faz. O

horror a tragédia... podem estar muito próximos da serenidade, da paz, do Amor! É neste

circunstancialismo prenhe de contradição, denso de tragédia e de esperança, em que os

sinais de Deus gritam forte aos nossos ouvidos e a Sua Luz abre a nossa cegueira, que soa

bem no íntimo de cada um de nós a palavra oportuna e cheia de ternura do Mestre

ressuscitado: — «Filhinhos, tende confiança! Eu venci o mundo!»

A última frase de Pedro ainda não terminara e uma voz de criança irrompe do meio

da multidão que se apertava no interior da basílica, dando vivas a Pedro e terminando

por aclamar «Pedro Papa!»... «Pedro papa!»... «Pedro Papa!»... Imediatamente, àquela

estranha voz se junta um coro imenso, primeiro no interior e logo depois também no

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exterior, dando vivas a Pedro e aclamando, repetidamente, vibrantemente,

euforicamente, «Pedro Papa!»... Às aclamações seguiram-se as palmas infindáveis, os

vivas a Pedro e à Igreja e, em impressionante uníssono, o cântico «Cristo vence! Cristo

Reina! Cristo impera!»

Pedro descera, perplexo, do pódio. Tomou o lugar na concelebração ao lado do

presidente. Este, de rosto sério, mas muito calmo, apela à multidão que faça total

silêncio por alguns momentos.

O Camerlengo levantou-se e, com ele, todos os outros cardeais e bispos

concelebrantes. Menezes e Costa solicitou que deixassem aproximar-se do altar a criança

que primeiro aclamou «Pedro Papa»! Minutos volvidos em silêncio total, todos olhavam

para os lados, mas ninguém apareceu. O presidente da celebração voltou a pedir à

criança que aclamara Pedro, para se aproximar do altar. Não resultou. Pediu, então, às

pessoas que estavam próximas do local donde tinha saído a voz para se aproximarem.

Ninguém sabia donde saíra a voz. De resto, dizia uma senhora que conseguiu aproximar-

-se mais do altar, «a voz ouviu-se, mas não era de criança ou de adulto... era uma voz

estranha!... Parecia pairar no ar...» Muitos acenaram com a cabeça, confirmando o que

dizia a senhora. Inquiridas, no local, outras pessoas presentes, todas coincidiam na ideia

de que a voz inicial de aclamação de «Pedro Papa»... fora uma voz estranha que toda a

gente na Basílica ouviu bem, mas sem saber de que lado vinha. Menezes e Costa falou

então aos cardeais vivos:

— Estamos aqui, nós, os vivos, para dar sepultura aos mortos. O Senhor, ontem,

interpelou-nos pela tempestade que vitimou tanta gente nesta cidade e arredores. Hoje,

falou-nos pela voz, a princípio estranha e solitária e logo feita multidão anónima, em

magnífico coro de aclamações. Vox populi, vox Dei! Que mais quereis, irmãos? A história

da Igreja regista processos paralelos. A aclamação é uma das formas válidas de sucessão

no serviço de apascentar o rebanho. Por que esperamos para aceitar a voz de Deus? Um

novo Pedro é aclamado por tão significativa assembleia de homens, mulheres e crianças

de todo o mundo, a maior parte sem saber de quem se trata! A hora é de dor — como ele

disse — mas é também de uma fundada esperança. Irmãos, com coragem, neste mesmo

momento ímpar da história, suspendamos a suspensão do conclave e cada um responda

ao desafio presente, pronunciando de imediato a fórmula do voto: Eligo in Summum

Pontificem. Como é óbvio, fica sempre lugar ao voto em branco, para quem, em toda a

liberdade de consciência, não quiser seguir o voto da aclamação popular Mas, se for

aceite maioritariamente, ao menos, o nome de Pedro para a sucessão do Papa falecido, o

Povo de Deus arrancará então decididamente, em marcha por vezes dolorosa, mas

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sempre confiante para a eternidade do Amor.

Todos os cardeais presentes, mesmo os seis que restavam do grupo dos domani,

um de cada vez, pronunciaram a fórmula, acrescentando-lhe «dominum meum,

cardinalem De Alcaçuz e Alcantilar!» Perez-Logano, circunspecto, mas sempre de olhar

vivo, atento, nada deixando passar, logo segredou ao ouvido do camerlengo em

exercício:

— Nenhum teve coragem para votar em branco.

— Óptimo! — Exclamou em surdina, chorando de alegria, Menezes e Costa.

Uma grande salva de palmas, vivas a Pedro e à Igreja saudaram o fim da ratificação

formal da aclamação popular. O camerlengo coloca-se, então, diante de Pedro e

pergunta-lhe, em voz bem timbrada e audível a léguas: «Aceitas esta escolha dos teus

irmãos e de toda a Igreja aqui reunida para Sua cabeça visível, sucedendo a Pedro, o

Pescador?»

O arcebispo do Rio, que mantinha a cabeça caída no meio das mãos, levantou o

rosto, enxugou as lágrimas e respondeu peremptório: «Se é essa a vontade de Deus, por

forma tão misteriosa demonstrada, que posso eu responder?... Aceito!» O mestre de

cerimónias e protocolo — que já não sabia o que fazer — continuava de mãos no ar,

tentando impedir novas manifestações da assembleia. Mas não foi possível. Dentro e

fora do templo, o ruído das palmas, dos "vivas" e dos cânticos, agora aumentado com as

buzinas dos táxis estacionados à entrada da Praça, foi longo e só os pedidos

insistentemente repetidos pelos altifalantes espalhados por toda a colunata berniniana

conseguiram silenciar aquela electrizada mole sem fim, apinhada por tudo quanto era

sítio da magnífica praça e suas redondezas. O resto do diálogo entre o camerlengo e o

novo Papa continuou com mais esta formalidade:

— E qual é o nome por que desejais ser chamado?

— Pelo meu próprio: Pedro! Aquele que me foi dado no baptismo e explicado

depois por meus pais, com um significado que agora começo a compreender.» — Sorriu,

enquanto os dois homens se abraçavam comovidamente.

— Sereis então conhecido na história por Pedro II— continuou o camerlengo.

— Sim, na história da grande tribulação, irmão, que vai agora começar. Mas o

Amor permanecerá para sempre! — Segredou Pedro ao ouvido de Menezes e Costa.

Seguiu-se a cerimónia da assinatura da acta da eleição e a da obediência dos

cardeais ao novo Papa. Pedro II abraçava a todos com cordialidade, dirigindo a cada um

palavras de incitamento à confiança no Senhor e de pedido de muita oração para que lhe

não faltasse «força para levar a bom porto a enorme barca, cujo leme agora me

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colocaram nas mãos! E que mar revolto teremos nós de atravessar?!» Pedro foi então

apresentado à assembleia, à cidade e ao mundo: «Anuncio-vos uma grande alegria!...» —

Disse, em voz forte e cheia de emoção o camerlengo, por mais alguns minutos presidente

daquela concelebração. Prosseguindo na fórmula usual, acrescentou: «Temos Papa!…

Pedro II será o seu nome!» Este anúncio formal deixou em delírio todos quantos, dentro

e fora da basílica de S. Pedro, seguiam com atenção uma cerimónia que apenas seria a da

grande liturgia da dor pelos mortos e logo se transformou na mais inimaginável apoteose

da alegria dos vivos, com a inusitada continuação de um conclave suspenso e eleição do

Papa por aclamação. Os repórteres televisivo radiofónicos e dos jornais escritos ou

electrónicos faziam os melhores planos, as objectivas não se cansavam de rodopiar

frente aos degraus do altar e os locutores dos directos, sem perceberem nada do que ali

se passava, faziam o impossível por demonstrar que percebiam. Coisa de um "quarto

poder", hoje sem reis nem príncipes! Feito silêncio, o novo Papa subiu então, pela

primeira vez, ao "altar da confissão" — o altar papal, sob o portentoso baldaquino de

Bernini — substituindo, com este gesto e com a colocação da mitra (passando a presidir à

concelebração), a cerimónia da "tomada de posse" — como lhe chamo — uma vez posta

de lado a antiga festa especial da coroação. Primeiro sinal de mudança que não deixou de

ser notado e comentado desde logo pelos mais atentos "vaticanólogos".

A concelebração teve na música do coro da Capela Sistina excepcionalmente

acompanhado pela orquestra sinfónica da RAI, que assim quis homenagear quantos

pereceram na cidade e arredores, vítimas da devastação do ciclone do dia anterior —

uma impressionante riqueza emocional. Previamente, fora acertado que só executariam

alguma partes do Requiem de Mozart. O restante tempo seria para o silêncio tão

necessário numa situação de calamidade pública, como a que se vivia então na cidade de

Roma. Os factos, porém, obrigaram a profundas alterações. «Assim é a vida...» —

comentaria mais tarde Pedro II, recordando aquela tarde, cheia de sinais de contradição.

— «O Espírito de Deus, quando encontra fidelidade no coração dos humanos, deixa-o

alegremente arritmados com Suas desconcertantes intervenções!» — À pressa, os

músicos tiraram das pastas outras partituras e, com um rigor espectacular, executaram,

ao Ofertório, a fabulosa composição de Lorenzo Perosi — «Tu es Petrus...»

No fim, durante a "encomendação" das almas dos defuntos e da liturgia da bênção

dos cadáveres, acompanhada das orações da Igreja, o coro cantou o responsório Libera

me... que a música de Mozart enriqueceu com o tom plangente da mística suplicante do

perdão ao Juiz Eterno. As lágrimas correram então mais uma vez, bem quentes e

incessantes por todos os rostos. Pedro II não se conteve. Chorou também.

Os muitos carros funerários que se alinhavam ao fundo da escadaria receberam as

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respectivas urnas, seguindo cada um para as terras onde deveriam ser inumadas. O novo

Papa, ao cimo da escadaria, lançava a última bênção sobre os restos mortais das vítimas

vaticanas da grande tormenta. Os sinos de S. Pedro agitavam-se inconsoláveis e

marcavam o ritmo da dor. Trinta e dois cardeais e muitos outros bispos, monsenhores e

demais clérigos que trabalhavam nas dependências e chancelarias do Vaticano tinham

prestado contas a Deus. «Liber scriptus proferetur, in quo totum continetur...» — tinha

cantado o coro. E eram precisos bons "advogados", muitas súplicas, para que o eterno

veredicto a cada um fosse propício.

Irmãos, ainda sob a vontade de Pedro do Rio e com a vénia de toda a corte

celestial, quero dizer-vos só mais isto:

No Brasil, a notícia de tudo o que se vivia, minuto a minuto, sob o Duomo de S.

Pedro, em Roma, era seguida, passo a passo, por enormes massas populares, nas suas

casas, nos hospitais, nos centros comerciais, nas unidades fabris, nas ruas e avenidas, nas

cidades e nas aldeias, onde quer que houvesse um receptor de ondas ou feixes

hertzianos, aí havia povo colado ao aparelho. Quando se tornou conhecida a escolha de

Pedro para suceder ao Papa defunto, depois dos episódios caricatos e das anedotas que

iam cobrindo de ridículo as manobras dos conclavistas da Capela Sistina, mas, também,

depois dos acontecimentos trágicos que enlutaram Roma e, particularmente, o Vaticano,

o nome de D. Pedro de Alcaçuz e Alcantilar saltou de boca em boca, atirou-se para a rua,

encheu avenidas e depressa fez o sambódromo abarrotar daquela "minha gente...",

daquele "povão" simples e terno que sabe chorar, como ninguém, a dor da tragédia, mas

também rir e celebrar, como só ele é capaz, a hora de júbilo, o momento de incontido

aleluia!... Que beleza que foi aquele dia! Não era Carnaval, não, o que movimentava essa

gentinha. Era a fé, era o amor, era a esperança, tudo o que de mais nobre sentimento era

depositado na pessoa do novo Papa. Também um pouquinho daquele orgulho

nacionalista, tão compreensível em circunstâncias tais. Mas... deixem lá, que esse não é

pecado, não. Não é qualquer nação que se orgulha de mostrar na sua história este

quadro emoldurado a ouro: «Este o nosso patrício que foi papa!» E, por isso, as vozes da

imensa multidão — «Pedro II!... Pedro II!... Pedro II!...» — gritavam e cantavam a plenos

pulmões, enquanto se erguiam cartazes feitos à pressa e onde se liam frases como estas:

«Pai-Pedro, estamos contigo!»; ou «D. Pedro, em Roma ou no Rio, és sempre o nosso

Pai!»; ou ainda «Pedro II, nosso Papa, nossa alegria, glória do nosso povo!...»

Com estes sentimentos, o povão sambou por largas horas, dando vivas a Pedro, à

Igreja, a Cristo-Rei. No maciço da Tijuca, foram colocadas novas e mais resplandecentes

lâmpadas, holofotes de grande potência que não só davam maior recorte à imagem do

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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Cristo-Redentor, como enchiam de mais luz os corações exuberantes da noite carioca. Já

tarde, a convite dos bispos de cada diocese brasileira, o povo cristão reuniu-se em oração

na respectiva catedral e em todo o lado e à mesma hora foi cantado «Te Deum». Desde

então, tudo o que se passava em Roma com o Papa era vivido em todo o Brasil por este

povo maravilhoso como se de acontecimento caseiro se tratasse. Pedro II não se

esqueceu dos seus. E, em sistema de videoconferência, o Papa carioca falava a todo o seu

povo, reunido nas respectivas catedrais.

Pediu-lhes oração, oração, oração. Prometeu-lhes muita dedicação e «uma

surpresa... para breve!» Daqui em diante, na terra do samba e do futebol, não passará

um dia sem que os noticiários de todos os meios de comunicação falem, pelo menos uma

vez, na vinda próxima do Papa brasileiro à sua terra. «Até revista fofoca, toda a minha

gente bota foto de Pedro II na capa...» — comentava o apresentador de um programa de

TV local sobre o efeito Pedro II na imprensa. Mais demolidor se apresentava outro,

referindo que o «Brasil vive ambiente festivo, quase histérico mesmo, causado por esse

terramoto papal chamado Pedro II».

O bispo auxiliar do Rio de Janeiro, presidindo à Conferência dos Bispos Brasileiros,

enviou entretanto a Pedro II uma prenda curiosa: Um DVD contendo as principais

imagens das festas populares e oficiais no Brasil, a propósito da eleição que o colocou na

Cadeira do Pedro Apóstolo. Juntou-lhe ainda uma pasta com os mais interessantes

recortes dos jornais brasileiros, com fotografias e textos referentes aos factos ocorridos

recentemente no Vaticano. O mais expressivo desses retalhos jornalísticos — que

recobria a capa da pasta — era a primeira página de O Globo que, no mesmo dia da

eleição de Pedro, publicou uma edição especial com uma foto do novo papa, a toda a

largura da primeira página, quando ele limpava as lágrimas ao abençoar e olhar

saudosamente as filas de urnas que desciam a escadaria da basílica de S. Pedro, com a

seguinte legenda: «Tu es Petrus...»

— Obrigado, irmão Estêvão. Eu sabia da tua memória e arte de comunicar...

Bom, irmãos desta magna Assembleia, retomo, com a vénia de Pedro Apóstolo, a

narração dos factos e de como aqui cheguei. São factos de uma outra vida minha. Antes,

era o homem do Rio.... livre para amar os meus meninos e meninas das "comunidades"

arrancadas à violência, ao ódio, ao terror. Depois daquele dia em que me colocaram à

frente do Povo de Deus, bom… tereis paciência?

Todas as mentes comunicantes disseram que sim. Ouvir Pedro da grande

tribulação era um prazer celestial — comunicaram.

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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Recolhido, então, completamente só no meu oratório diante de Jesus, feito

Comunhão de Amor para a Humanidade, «até ao fim dos séculos...», meditava na

verdade daquela foto do jornal carioca. É que, passados apenas dois dias, eu começava a

sentir na pele toda a perfídia humana que contra Pedro se encarniçava. Era Lúcifer

raivoso, a espumar... Eram as portas do inferno escancaradas... Então, pela primeira vez

na vida, tive medo! E orei, como Cristo, no Jetzémani: «Pai, se possível, afasta de mim

este cálice...»

— Tu es Petrus!... — Parecia-me ouvir ainda o eco do maravilhoso coral.

— Pois! — Consolava-me — Mas leia-se a frase completa: «... et super hanc petram

edificabo ecclesiam meam!... Et portae inferi non praevalebunt adversus eam!...» Pois

bem, Senhor, significa que podem grasnar à minha volta, podem regougar ao longe,

como raposas manhosas, podem casquinar todas as tertúlias mafiosas, maquinando a

destruição da Igreja. Podem matar-me, podem lançar todo o fogo do inferno sobre ela...

«Non praevalebunt!...» Essa era a grande certeza. Por isso, Pedro, em frente! Não temas!

E cumpre o teu dever: «Confirma os teus irmãos na fé!...»

Tu es Petrus!...

Eu sentia-o, irmãos. A força do Nosso Espírito impelia-me. E eu, como criança que

sente receio mas que confia abertamente na mão que a sustém, seguia em frente. Que

tempos aqueles, Augusta Assembleia!... Que tempos!... Louvemos o Senhor dos Céus e

de tudo o que possa ainda existir.

E um grande coro se levantou da imensa Assembleia dos irmãos da Eterna

Beatitude: — «Glória! Glória ao Senhor Nosso Deus que tudo criou! Glória infinda ao

Verbo Eterno por quem Deus se comunicou à Criação e a redimiu! E glória para sempre

ao Santo Espírito — Amor do Pai e do Filho — por Quem tudo foi santificado! Glória!

Glória! Glória!»

Quando a celeste harmonia permitiu, cochichei ao ouvido do Apóstolo, sempre a

meu lado: Nunca ouvi coisa assim, irmão! Lá na terra, como sabes, cantavam-se louvores

ao Senhor. Mas, deste modo! Inimaginável!

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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II

Tenebrae factae sunt...

— Depois deste momento celestial, que mais posso dizer, meu irmã Pedro

Apóstolo?

— Vais continuar, Pedro II, a deliciar esta Santa Assembleia com os teus relatos dos

últimos tempos. Já vi que tens bons auxiliares. Então podes continuar.

— Bom, uma ordem do Céu não se discute, não é?

— Apenas uma vontade comunicada por toda a Assembleia, sempre presidida pelo

Amor — que é o nosso Deus.

— Assim farei.

— O dia 30 de Novembro era então o meu "feriado pessoal". Em lugar de

champanhe e prendas, consenti, apenas, um livre convívio com todos os cardeais

romanos. Depois do almoço, reuniram-se na biblioteca a meu pedido, pois — disse —

tinha coisas muito importantes a revelar-lhes.

Em ambiente de total descontração, ofereci a todos um saboroso café brasileiro,

acompanhado da tradicional "caipirinha". A caixa dos havanos circulou pelas mãos de

todos e quem quis serviu-se. Sentei-me, fiz uma pausa para que terminassem as

conversas, de sorridente passei a sério e logo a muito sério, carreguei mesmo o

semblante, meu carão pareceu-me ter ficado mais longo, e olhei para todos os presentes,

um a um, demoradamente, enquanto suplicava ao Espírito Santo de Deus que me

colocasse as palavras certas na boca:

— Irmãos: Obrigado pela vossa companhia e pelos gestos de amizade que quisestes

ter para com a minha pessoa no dia do meu aniversário natalício que — digo-vos

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sinceramente — nunca foi objecto de celebração especial, após a morte de meus pais.

Quis esta reunião, hoje, porque aquilo que tenho a dizer-vos é para ficar gravado

na memória de todos, a começar por mim.

Sinto que a humanidade caminha para o abismo. Depois da "morte de Deus", veio a

falência da razão. Agora, sem Deus e sem a razão, vive-se para "curtir". (Desculpai-me o

termo que nasceu carioca, mas depressa se globalizou.) Curte-se o dinheiro pelo poder

que ele dá! Vale tudo para o alcançar. Espezinha-se tudo e todos. Rouba-se, explora-se,

mata-se. E isto, a qualquer nível. Entre nações, este espírito satânico anda por aí

desenfreado. Os países ricos fazem-se cada vez mais ricos, à custa da exploração dos

cada vez mais pobres. Morrem milhões de seres humanos vítimas da fome, de doença,

por todo o lado, sem que isso incomode quem quer que seja. Estamos insensíveis à

miséria da humanidade que se consome a consumir, até as armas com que há-de imolar-

-se ingloriamente, no altar infernal do ódio. As sociedades e os indivíduos tornaram-se

grosseiramente egoístas. Só se pensa em ter mais, possuir mais, para dominar mais!

Curte-se a loucura! Enquanto os iluministas falavam da "morte de Deus", era n'Ele que

pensavam. Era nas coisas do espírito que fundamentavam as suas teorias. Quando era a

razão o objecto dos ataques dos ensaístas do absurdo, era ainda o Homem que pensava.

Agora, nem tempo para tanto há! O frenesim bolsista, os milhões da globalização, a

corrida para o amanhã — que, presumidamente, aumentará os lucros — esgotam a

existência da Humanidade. Porque até aos que menos possuem se lhes comunicou

ardilosamente este vírus diabólico do "ter mais", mais dinheiro, para consumir mais! As

sociedades selvaticamente capitalistas tornaram-se, assim, terrivelmente materialistas.

Onde não há lugar ao espírito! poetas calaram as suas trovas. Já não há quem os oiça! Os

compositores abandonaram as pautas. Só se escuta a melodia do tilintar da moeda. Os

escritores deixaram de lado os seus rascunhos. A literatura, como farol do espírito, não

vende. Resta à humanidade vaguear cega, indiferente, pelo "centro comercial", na

esperança de poder consumir mais! Os génios escondem-se. Os heróis evitam-se. Os

justos são apodados de imbecis! Reina a mediocridade! Que impede a visão do homem,

como rei da Criação. Como alguém que, conscientemente, buscava a harmonia do

universo, olha para o futuro com a confiança de que sabe estar a agir à escala cósmica,

no sentido da maior perfeição da humanidade. Pelo contrário. A mediocridade que se

respira hoje só deixa espaço para aqueles que dormem sossegados, incapazes de ver para

além do ventre e do sexo, de perceber os limites do consumismo, o puro materialismo dos

horizontes. Que avassalou até as mentalidades daqueles a quem seria legítimo exigir-se

uma postura frontal contra a praga mais devastadora da Humanidade. Quão ingénuos se

mostraram aqueles que pensaram ter destruído o materialismo, com a queda do muro de

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Berlim! Afinal, quais eram, na realidade, as sociedades mais materialistas? O inimigo,

irmãos, este materialismo feroz que tudo subverte, que tudo perverte, que tudo atrela ao

seu carro de poder não vem de Leste ou de Oeste, de Norte ou de Sul. Apenas do coração

do homem dos sistemas por ele criados, quando ambos, conscientemente, quiseram

sucumbir perante a mesma tentação diabólica de há dois mil anos, num deserto da

Judeia: «Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares!»

Enquanto isto, que fazemos? Nós que temos a Luz o que fizemos d 'Ela e com Ela? O

sal perdeu a sua força? O fermento estragou-se?

Irmãos, nunca fui pessimista. Nem me sinto profeta da desgraça. Mas hoje creio

que Satã está por aí metido em tudo, a emperrar a máquina... Quereis factos? Aí estão.

Em cerca de mês e meio que levo neste serviço apostólico, tentando consolar os que

sofrem as consequências dolorosas do ciclone e, ao mesmo tempo, procurando definir

uma linha de rumo para a Igreja do terceiro milénio, sofri já sete atentados contra a

minha vida. Deus quis que de todos saísse ileso. Como?! — Parece-me ouvir-vos. Com

toda a rudeza, aí está a descrição, para aqueles de vós que os ignoram.

No dia 13 de Outubro — certamente o mais memorável dia de todos quantos já

vivemos, em que a Sexta-feira de «Parasceve» se juntou à madrugada da Ressurreição,

chorando os mortos e cantando aleluias pela superação das dificuldades dos vivos — eis

que, já muito para além da meia-noite, encontrando-me só, diante do tabernáculo, na

capela privada, alguém me seguia e, notando que o sono começava a vencer-me,

abeirou-se de mim pelas costas. Quando me dei conta, o punhal descia já rapidamente na

direcção do meu pescoço. Aparei o golpe, lutámos os dois, caímos, mas, por fim, dominei

o intruso assassino. O meu secretário e a irmã Florinda apareceram e o homem foi, a

custo, entregue aos guardas mais próximos.

— Mas, Pedro — interrompe o Camerlengo, a provocar o diálogo — já há dados

mais concretos, identidade do agressor, suas ligações.

— Há, Irmão, há coisas muito concretas e reveladoras...

— Reveladoras de quê? — Faz o cardeal francês, visivelmente agastado.

— Reveladoras de quem está por detrás deste e dos outros factos que, se os irmãos

tiverem paciência, continuarei a descrever, prometendo ser breve. Não me obriguem,

todavia, a revelar pormenores sobre factos que estão nas mãos dos investigadores e que

nem eles estão autorizados, por ora, a divulgar.

— Outros? Que outros? — Casquina, ainda, o arcebispo de Paris, investido nas

funções de prefeito da Congregação do Clero.

— Se me permite, irmão, continuo. No dia seguinte, quando conversava a sós com

o nosso Camerlengo, junto à Fontana dell'Aquila, uma bala, disparada, provavelmente do

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interior da gruta, passou de raspão pela minha cabeça, atravessou o chapéu que usava e

foi alojar-se na parede da Casina Pio IV, a cerca de um metro e meio do chão.

— Há testemunhas? — Agora, Di Tronchetto, enquanto expectorava, tentando

aliviar os efeitos de uma profunda inspiração da cachimbada.

— Existe o testemunho do nosso irmão Menezes e Costa e o de diversos vestígios

deixados no local pelo atirador em fuga.

— Vestígios! — Ainda o arcebispo de Siracusa, agora melhor oxigenado e mais

verrinoso.

— Sim, vestígios, irmão! A arma que se lhe prendeu no arbusto e lá ficou na

precipitação da fuga, o projéctil disparado, as impressões digitais na arma, não

constituem vestígios? De resto, o relatório deste caso está concluído e entregue já ao

Procurador

— Ainda bem! — Acrescentou Di Tronchetto. E, em aparte subtil, voltado para o

parisiense — Muito bem entregue...

— O irmão disse...

— Ah!... Nada, nada!...

— Continuo, então. No dia 19 do mesmo mês, seguindo no automóvel, com o

cardeal Righetti, ex-patriarca de Veneza, no dia anterior nomeado secretário de Estado,

fomos abalroados em plena auto-estrada, valendo-nos a perícia do nosso condutor

Martino que segurou a viatura e travou bruscamente. O veículo assassino pôs-se em fuga

acelerada, mas ainda foi possível colher a respectiva matrícula. Sabe-se quem costuma

utilizar este tipo de viaturas muito potentes e em circunstâncias muito semelhantes às

descritas.

— Está a querer sugerir o quê? — Interrompe, colérico, Di Tronchetto.

— Nada, irmão, não sugiro coisa alguma. Apenas disse e reafirmo factos!

— Diga, então, claramente, quem costuma utilizar tais viaturas.

— Pergunta desnecessária, irmão. Quando todos sabemos a resposta, só por má-fé

se questiona. E não gostaria de colocar o irmão arcebispo de Siracusa e outros... em tão

embaraçosa situação.

— Isto é desaforo a mais! — Levantou-se, fumegante, Di Tronchetto, olhando para

os restantes domani. — Sem pedir licença, vou-me embora! — Terminou, agastado.

— Sente-se, irmão, sente-se e acalme-se. A verdade liberta! Tome aí mais uma

caipirinha... — E levantei-me, com a garrafa na mão, inclinando-me para o cálice do

siracusano. Este, num gesto brusco e rude, retira da mesa o cálice e estilhaça-o contra a

parede de mármore, enquanto retoma o seu lugar. Com um simples olhar de compaixão,

procurei serenar os ânimos dos mais exaltados. — Se tiverem então um pouco mais de

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paciência comigo, continuo. No alvorecer do dia 26, ainda em Outubro, cumprindo um

ritual higiénico que vem de longe, preparava-me para beber o habitual copo de água de

uma garrafa que a irmã Florinda colocava sempre na mesinha, junto à janela do quarto.

Ao retirar a cápsula, ouvi uma voz aflitiva dizendo: — «Não!...» Mais aflito fiquei eu. Olhei

espantado para todos os lados, abri a porta do quarto e não vi quem quer que fosse.

Todos dormiam ainda. Quando saí, levei comigo a garrafa com a água. Pessoa da minha

absoluta confiança levou-a a um laboratório para exames. Querem saber o resultado? —

Água adicionada de dose letal de digitalina.

— E a garrafa estava lacrada de fábrica?!... — Entra, agressivamente, o alemão

Hans Reiner.

— Estava lacrada, irmão. Não havia sinal de qualquer fissura na respectiva cápsula.

— Como pode afirmar, então, que a digitalina encontrada com a água tenha sido

dirigida à sua pessoa?

— Eu não afirmei isso. Limitei-me a narrar factos. Mas, se o irmão Reiner quer

mais, aí estão: primeiro, aquela embalagem de água era totalmente estranha. E só o

facto de ser habitual beber água alguns momentos após o despertar pode explicar que

me não tenha apercebido de que se tratava de garrafa e marca nunca antes usadas pela

irmã Florinda. Porque era notória a diferença. Mais, a água que sempre bebi na terra

onde vivia, em viagem e desde que para aqui me mudaram, é e sempre foi importada de

uma fonte amazónica muito especial para mim.

— Julga-se então um miraculado...

— Irmão, não me julgo a mim próprio. Só Um é o Juiz de tudo e todos. Apresento-

-vos factos. Cada um retire deles as conclusões que a respectiva lógica lhe ditar.

— Então… e os restantes?

— Hum?... Ah! Os factos seguintes?! Bem. Na tarde do dia 2 de Novembro romano

chuvoso, quando fui ao cemitério dos capuchinhos concelebrar com os religiosos daquela

ordem, em Santa Maria deli Concezione, sufragando as almas de todas as vítimas das

guerras do nossos dias, descendo a Via Veneto, um encarapuçado, transportado em

potente motocicleta, abeirou-se do nosso carro, disparou uma rajada de metralhadora

ligeira e acelerou, perdendo-se por entre carros e ónibus. O nosso motorista apercebeu-se

a tempo dos intuitos do assassino, guinou bruscamente para a esquerda e as balas foram

cravar-se no tronco enorme de um plátano centenário.

— O motorista apercebeu-se? — Entra, repentino, o arcebispo de Viena.

— Se quiserem ouvi-lo, melhor do que eu, ele explicará o facto.

—Ah! Não! É que podia ter havido mais um milagre — ripostou o vienês, em

surdina, olhando para os restantes do grupo dos domani que faziam caretas uns aos

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outros, tentando evitar uma explosão de riso zombeteiro.

— Irmãos — clamei então em voz forte, ao mesmo tempo que me levantava e

enfrentava o cardeal austríaco — não é esta, certamente, hora mais adequada para

motejo. Sim, para chorar! Enquanto, por todo o mundo, o inferno vomita ódio sobre tudo

o que signifique presença do Espírito da paz, da justiça, da tolerância, do amor entre os

homens, que fazemos nós perante a avassaladora onda de perversão, de maldade, que

pretende atingir agora também a cabeça visível da Igreja?

Ao dizer isto, fixava, um a um, os cardeais opositores. Depois, calmamente, sentei-

-me, prosseguindo no mesmo tom coloquial:

— Algum dos irmãos deseja qualquer esclarecimento sobre o atentado da Via

Veneto, de resto profusamente relatado em todos os órgãos de comunicação social?

Perante os olhares baixos dos domani e o silêncio cortante dos outros, continuei:

— Há dias, foi a 14, indo a caminho de S. João de Latrão, depois de o nosso

automóvel entrar na Via D. Fontana, os dois batedores de segurança foram derrubados

por corda de aço que se levantou transversalmente à sua passagem e, de imediato, uma

potente explosão ocorreu no solo, esventrando-o. E não fora um canino de invulgares

dimensões, que momentos antes se atravessara à frente do automóvel, obrigando o

motorista a virar à direita, em manobra de recurso, a explosão teria ocorrido quando a

viatura passava por cima do local onde se encontrava o engenho.

Todos se entreolharam, mas não houve comentários. Continuei:

— Mais um milagre? Pois, irmãos, interprete cada um o facto segundo a medida da

própria fé. Por mim, como não acredito em acasos, não duvido de que Deus não quis que

a besta me esfolasse nesse dia.

Finalmente, ontem — como é do vosso conhecimento — no auditório

completamente esgotado com peregrinos de diversas nacionalidades, no preciso

momento em que eu deveria ter entrado para a recepção programada, parte do palco foi

pelos ares. O local onde deflagrou o explosivo era aquele onde me deveria sentar. A hora

da minha entrada na sala tinha sido retardada em cerca de cinco minutos, por ter

aguardado fora que me chegassem às mãos uns apontamentos que tinha esquecido no

gabinete. O irmão Perez-Logano foi o portador desses tópicos da comunicação, em

diversas línguas, que afinal não cheguei a fazer.

De todos estes factos, há investigações policiais em curso.

Se ando já com o complexo do atentado? Não, irmãos, não ando. Quando disse

«aceito», naquela tarde memorável em que, por unanimidade, quisestes que fosse eu a

dar novo rosto à Igreja, sabia perfeitamente o que me esperava. Como sabeis, estudei e

vivi em Roma durante quatro longos anos. Meu pai conhecia o Vaticano como poucos e

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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deixou-me um "diário" tão demolidor, contendo factos e relatos vivos tão

impressionantes, que não é possível deixar insensível o mais empedernido. Além disso, li e

reli tudo o que se escreveu — meditando, sobretudo, naquilo que se não escreveu —

sobre a morte de João Paulo I! O Albino Luciani, simples como as pombas, mas não tão

prudente como as serpentes, cometeu o deslize que lhe foi fatal de confidenciar

infantilmente os seus passos e intenções a quem lhe era infiel! Conheço os métodos e os

objectivos, irmãos. Nada me espanta. O inferno está de portas escancaradas sobre a

Humanidade. Há irmãos que cederam à tentação do «tudo isto te darei...» e, prostrando-

-se aos pés da “besta”, adoraram-na!

— Ah!... Ah!... Ah!... — Era a resposta, na habitual casquinaria, do agora pequeno

grupo de cardeais que nada tinham retirado dos sinais dos tempos.

— Amigos, de todos os factos que relatei e que — pelo menos em parte —

pertenciam já ao domínio público, é possível, desde já, formular algumas conclusões

lógicas: em todos os casos, o objectivo a atingir era a eliminação física da minha pessoa;

em todos eles, havia o conhecimento exacto do momento e demais circunstâncias em que

eu deveria estar; tal conhecimento só podia ter sido obtido através de pessoa a quem eu

tenha revelado os meus planos e agenda; daqui não era difícil, ao menos informado dos

investigadores, parar na fotografia daquele que passava a informação para a "loja"

executora.

Irmãos, conheço os nomes de todos os clérigos da Cúria que se tornaram membros

de sociedades secretas. Conheço-lhes os rostos e os métodos. Àqueles que ainda

estiverem em condições de redenção, peço-lhes, por tudo o que há de mais nobre, que

voltem atrás, peçam a Deus perdão, façam penitência e vivam corajosamente como

verdadeiros cristãos, até que a morte os surpreenda numa qualquer esquina da rua. Aos

outros, àqueles que — admito —já não possuam coragem para enfrentar a punição do

respectivo código, ao menos interiormente, que tudo façam para que o libelo e o

veredicto final do Eterno Juiz lhes não seja demasiado duro! E não o será, se ao menos

fugirem da violência e de toda a prática criminosa.

A todos aqueles que quiserem libertar-se do pesado jugo das obrigações clericais e

mesmo do serviço que prestam na Cúria dar-se-á carta de alforria, desde que o peçam por

escrito, sem necessidade de alegar razões. Mas, fique bem claro: ninguém me assustará

ou desviará da missão que me confiaram. A história será ultrapassada. O poder do

dinheiro será absolutamente dominado! E Lúcifer e seus sequazes inapelavelmente

esmagados! Ninguém duvide! Por fim, o Amor — o Espírito de Deus e só Ele! — voltará ao

coração da Humanidade e ao centro da vida da Igreja. O homem do terceiro milénio tem

o direito de saber como é belo o Amor! Como é inebriante vivê-lo! Como Cristo — o

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"Primogénito" da nova criação — o viveu: Dando-se! Sem reserva! Até à morte. E morte

de Cruz! Como o viveram as primeiras comunidades cristãs. Dando-se uns aos outros na

alegria da partilha, mesmo diante das feras no Coliseu — o que espantava os próprios

carrascos e seus instigadores. E a liberdade de Cristo libertará a Humanidade!

Irmãos, é preciso proclamar bem alto e em todos os cantos do mundo que o

fundamentalíssimo dogma cristão é o do Amor revelado em Jesus de Nazaré! Que

incendiar o mundo n'Ele e com Ele é a missão da Igreja de Cristo! E, finalmente, que não

foi o homem criado para a Igreja, mas esta é que foi instituída para o Homem!

Irmãos, com muita pena, mas não menos rudeza, digo-vos: quem se escandalizar

com estas palavras pode sair! Mas não aguardarei que caia sobre Roma o fogo destruidor

de Sodoma e Gomorra, para arrepiar caminho. Custe o que custar. Vamos encetar a era

da penitência! De saco e cinza nos cobriremos. E o Amor do Espírito de Deus virá em novo

Pentecostes a consolar os que choram, os que têm fome e sede de justiça, os que estão

presos da exploração, os pobres, os fracos, os anawim destes tempos de mudança. Vem,

Senhor Jesus! Vem!

Ao pronunciar estas últimas palavras, levantei-me, e comigo quase todos os

cardeais que me escutavam. Então, de braços abertos e olhos voltados para o alto, iniciei

o «Pater Noster...», no que fui acompanhado, em coro, pelos demais que comigo se

tinham levantado. Quatro ficaram sentados e de olhos cravados no chão. Era o que

restava do grupo dos domani. Embora tendo participado na minha eleição, nas

circunstâncias já referidas, sempre contra mim conspiravam. Conhecia-os bem e pelos

nomes. Sabia tudo sobre as respectivas ligações exteriores e a quem obedeciam! Em

comum, tinham o facto de obedecerem cegamente aos comandos vindos com a chancela

de Manhattan ou de alguma ordem de algum chefe de loja italiana com ligações aos

banqueiros do nº 243 da Lexington Avenue. De resto, nessa mesma loja, segundo os

meus investigadores, eram deliberados e planificados os atentados contra a minha

pessoa e escolhidos os respectivos executores. Aliás, dos meus diligentes serviços de

apoio chegavam todos os dias informações muito precisas sobre as movimentações dos

curiais. Até sobre a identidade de quem forneceu ao terrível, mas "venerável", Claudio

Vechio — chefe daquela que foi uma das mais influentes e poderosas lojas romanas do

crime organizado — o estatuto e as insígnias de "cavaleiro do santo sepulcro" e —

imagine-se! — um livre-trânsito que lhe franqueava as portas do Vaticano, por onde

podia passear e devassar tudo o que lhe interessasse. Isto explicava muita coisa que João

Paulo I não teve tempo de conhecer. Mas que ao sucessor nada disto constituía

novidade.

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Depois desta conversa aparentemente desinibida com todos os elementos do

colégio cardinalício, dirigi-me de imediato para o gabinete de trabalho. Chamei

secretamente aqueles em quem podia confiar, porque tinham demonstrado fidelidade e

vontade de comigo começar a grande revolução: eram Menezes e Costa, de Luanda,

Perez-Logano, de Buenos Aires, e Colombano Righetti, de Veneza. Associei-lhes o meu

bispo auxiliar do Rio, o bispo de Manaus e o inseparável e nobre irmão Estêvão que, logo

a seguir aos factos de 13 de Outubro, estava ansioso por me confidenciar que todos os

irmãos estariam em permanente oração pela IGREJA (enfatizava o termo). Tinha

institucionalizado — disse — na capela do velho mosteiro, a adoração eucarística

contínua pela Igreja — e que colocava o seu convento do Monte Célio em permanente

"alerta vermelho". Então, abraçando como podia os meus irmãos colaboradores,

segredei-lhes a minha primeira preocupação: o grupo de trabalho não está completo,

enquanto não for integrado por algumas mulheres. Elas foram as primeiras testemunhas

da ressurreição do Senhor. Antes, quando todos O abandonaram, elas acompanharam-n0

até ao Gólgota e ali aguentaram, de pé, com Maria, o estertor. Só elas sabem o que é o

parto! É tempo de a IGREJA (e acentuei a voz, ao jeito do irmão Estêvão) as ouvir! Elas

terão muito a dizer, muito a ensinar, a dar à luz o Espírito Novo de que toda a

comunidade dos crentes necessita, no arranque desta nova etapa da Peregrinação, a

caminho da "Nova Jerusalém". Esta revelação fez saltar o grupo. De imediato, cada um

soltou a língua e choveram os nomes. Não foi difícil juntar um conjunto representativo

das mulheres dos diversos continentes. (Elas estão aqui. Connosco cantam glórias ao

Senhor, porque fez maravilhas.) As sondagens, os convites, as viagens, os locais de

encontro, tudo foi estudado ao pormenor, para evitar olhares inoportunos... O segredo

da composição do grupo de trabalho era a alma do êxito. O Senhor assim nos

aconselhou. A prudência era, pois, não só regra, como dever. Quando, num dia de

intenso calor romano, estando a cidade a abarrotar de turistas, eu e o irmão Estêvão, lá

do alto do mosteiro do Monte Célio, começámos a lobrigar um grupo muito especial de

mulheres, subindo depressa as veredas, com floridos chapéus e vestidos característicos

dos diversos continentes, elevámos os olhos ao Céu, ajoelhámos e, de braços no ar,

gritámos baixinho: «Obrigado, Senhor, pelo Vosso Espírito!» Apresentadas as credenciais,

sem mais formalismos, a sessão começou:

— Irmãs e irmãos, meus amigos — disse-lhes — não há tempo a perder. Vamos ao

trabalho. Sem medos, mas com toda a discrição e prudência, não deixemos que os filhos

das trevas nos ultrapassem. Nada, mas mesmo nada do que aqui se trata ou planeia pode

ser usado fora daqui! Isto é uma ordem de absoluto rigor! Não teremos outro plenário. Os

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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locais de trabalho, por grupos, serão divulgados dia-a-dia. Quem for escolhido para

chefiar cada grupo saberá como fazer chegar ao coordenador-geral as conclusões dos

respectivos estudos. Observai sempre e em tudo a mais rigorosa confidencialidade.

Visitar-vos-ei pessoalmente, sempre que possa. Despistar o inimigo é um dever. Mas

nunca tenhais medo. Trabalhai o máximo que puderdes. E confiai absolutamente no

Senhor! Ele vos precederá sempre nos diversos lugares e tempos de trabalho. Haverá

muito discretas equipas de serviço de vigilância às salas onde decorrerem reuniões,

procurando detectar hipotéticos olharapos. Repito: temos o dever de ser prudentes! O

mandato do Senhor que recebemos é de tal modo imperioso que uma falha nossa seria

imperdoável. Temos de colocar a Luz sobre o candelabro, para iluminar os da casa.

Ocupar-nos-emos, de imediato, na definição das grandes linhas que vão orientar a nossa

acção. Depois, prepararemos os respectivos decretos que marcarão o início da grande

revolução do papado e do modo de entender a missão da Igreja, num mundo que anseia

por sinais.

E o facto é que, de coração aberto ao Espírito, dava-se início a um trabalho árduo

de pesquisa, pelas consultas às conferências episcopais, pela audição de universidades,

de teólogos que tinham sido reduzidos ao silêncio. Durante cerca de dois anos, quando

todos pensariam estarmos a dormir, estas santas e estes santos — não canonizados, mas

que a Misericórdia do Nosso Bom Jesus glorificou logo que deixaram o planeta — não

descansaram: o relatório final das necessidades e das reformas mais urgentes era um rol

de muitas páginas que comigo quiseram discutir.

— Dar de comer a quem tem fome! — Ia eu a começar.

— Exactamente — em coro, os "meus braços" continuaram o meu pensamento —

antes de tudo, é preciso intervir mundialmente no problema da fome. Jesus e a Sua Igreja

têm respostas e os pobres não podem esperar. Quem não tem o mínimo para viver está

desesperado.

— O primeiro objectivo está identificado. Com ele concordo. Como fazer? Reforçar

a nossa presença activa na FAO!

— Pedro — dizia-me Righetti, bom conhecedor do meio — existe pobreza

confrangedora por toda a Itália, mais particularmente no Sul. Há muita gente a passar

fome. De resto, se conseguirmos pôr aquela gente a viver em nível mais digno, teremos

começado a apontar o machado à árvore do mal na região — a Cosa Nostra!

O "plano Righetti" — como ficou conhecida a intervenção especial em Itália — foi

de imediato aprovado. Toda a ajuda seria canalizada através da conferência episcopal.

Mas, aqui, cuidado — lembrava Righetti — todo o cuidado é pouco. Há elementos que

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não estão connosco!

Estêvão atento: «Temos irmãos espalhados por toda a Itália e é possível utilizar as

nossas estruturas e pessoas para o contacto directo com as populações.»

— Irmão Estêvão, sempre oportuno. Obrigado! Ficas encarregado dessa

organização. Em ti, a Igreja confia. Como tu confias no Espírito de Jesus!

— Irmãos — era a vez de Menezes e Costa — o que fazer fora de Itália? O que fazer

para não deixar de lado os milhões de crianças que, em Angola e noutros países de África,

morrem diariamente por falta de alimentação e cuidados primários de saúde?...

— Pedro — ouve-se a voz cava de Perez-Logano — penso que não podemos

distinguir entre as prioridades do Sul de Itália e as dos povos africanos do centro. Mas, se

me é permitido, juntemos a todos estes milhões de seres humanos em risco, outros

tantos da América latina, cuja vida se tornou um inferno. Digamos que a prioridade é de

todos eles!

— Meios, irmãos queridos? Que meios?

— O nosso IOR — sabe Pedro o que isso significa — tem alguns milhões em caixa.

Ninguém me pergunte como foram arrecadados. Mas, além disso, há fortes

investimentos em empresas bem cotadas. — Era o conhecimento afiado de Righetti.

— Podíamos começar por ouvir imediatamente as conferências episcopais desses

países e solicitar-lhes, num curto período de tempo, um relatório sucinto sobre a situação

de cada um e sobre quais os montantes que, para já, acham absolutamente

indispensáveis para acorrer às mais prementes necessidades. As nossas irmãs vão à

frente, cada uma para a sua região, levando às conferências episcopais o anúncio da

revolução e do seu Espírito!

— Irmãos Menezes e Logano, que vos parece da ideia de Righetti?

— Pedro, nosso companheiro e congregador — respondeu o mais velho, Menezes

e Costa — pelo acenar de cabeça, parece-me poder falar em nome de todos: achamos

que se deve executar imediatamente essa ideia. Sem perda de tempo. O mundo que

sofre a Camorra, de há muito espera esses sinais.

A nossa tarefa estava facilitada pelos meios de comunicação. Foram tempos de

mangas arregaçadas, na oração, no estudo das situações, no contacto com as missões

diplomáticas credenciadas, na minha primeira deslocação à sede das Nações Unidas, a

fim de acertar com as autoridades de cada país, com a colaboração das instâncias

internacionais, colocação dos meios disponíveis no terreno.

A propósito dessa deslocação, quero contar-vos um episódio significativo ocorrido

com o secretário-geral da Organização. Quando desci do aparelho que me transportara

de Roma a Nova Iorque, cumprimentei o secretário-geral (que me não conhecia

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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pessoalmente) e todas as delegações que quiseram gentilmente deslocar-se ao aeroporto

para me receber. Entretanto, notava que o senhor secretário-geral estava confuso e ouvi-

-o perguntar para o lado, em voz baixa: «Mas o Papa não veio?...» Eu vestia um normal

fato escuro, com gravata e colete, e cobria a cabeça com um chapéu de grossa fazenda

cinza, pois o frio de Nova Iorque a isso obrigava. O abandono definitivo da veste clerical

branca fora consciente, e tinha querido deste modo mostrar ao mundo que o tempo era

escasso para as mudanças. O meu fiel irmão Estêvão — que sempre me acompanhava

para qualquer parte — logo explicou ao senhor secretário-geral da ONU que o Papa era

eu (apontando para mim) e que, doravante, não esperasse ver o Papa cheio de

cerimoniais, porque, «com Pedro II — fez questão de frisar — isso acabou!» O bom

homem que conduzia o maior areópago internacional do concerto entre os povos dirigiu-

-se-me, então, com toda a deferência, pediu desculpa do lapso e deu-me o braço direito

a caminho da viatura que nos transportaria ao grande edifício de vidro. Vim de lá

convencido de que tinha ganho a instituição e que o nosso trabalho e os nossos meios a

colocar no terreno seriam bem recebidos pelas equipas de técnicos à nossa espera.

Foram muitos meses de intensa actividade, nos vários países escolhidos para começar a

erradicação da fome e da doença. Os milhões do IOR desapareceram em pouco tempo.

Mas os apelos aos fiéis de todo o mundo continuaram a missão. As conferências

episcopais dos países com mais carências e de populações em risco tinham o esquema de

distribuição perfeitamente organizado. — «Podemos garantir — dizia-se num relatório da

conferência episcopal de Angola — que nenhum esforço internacional foi parar às mãos

de governantes corruptos... ou dos seus tentáculos. Tudo foi empregue na compra de

víveres que depois eram distribuídos às populações e na aquisição de materiais de

construção, para o início do programa de uma casa para cada família. E como era

enternecedor verificar o entusiasmo com que homens, mulheres e crianças se

entregavam às diversas tarefas de reconstrução ou de construção da sua casa!» — Um

editorial de jornal independente daquele país africano escrevia com acerto que «desde a

chegada de Pedro à Igreja de Roma, tudo aqui começou a mudar… e rapidamente! Em

pouco tempo, a vida mexeu, as crianças e os idosos foram alimentados, as casas

reconstruídas, as escolas começaram a funcionar e até os hospitais ficaram em condições

de poderem receber e tratar doentes. Vieram médicos de todo o lado. Parece que o Céu

olhou para nós!»

A forma "pouco ortodoxa" pela qual tinha sido eleito, a abolição de uma cerimónia

específica de "coroação" — embora sem tiara — e a forma "civil" como me apresentava

— com todas as cambiantes de um arcebispo brasileiro, sempre avesso a formalismos, a

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vocativos e a hábitos medievais sem sentido, como a exclusão de mulheres aos trabalhos

centrais, regionais e locais das diversas comunidades cristãs — haviam feito prever, entre

os analistas, que um outro tufão se aproximava. Este, porém, de características muito

positivas para a Humanidade.

Mas os conspiradores também não estavam parados e não me perdoariam mais.

Incitados pelo "venerável" — receoso da perda de liberdade de manobra no domínio de

um dos mais influentes centros de poder — os quatro domani, a que se juntaram mais

outros três, todos italianos e súbditos do "venerável", iniciaram reuniões secretas, com

vista à montagem de uma estratégia futura, sem falhas, como a anterior. Numa dessas

sessões, realizadas dentro dos muros do Vaticano, com a presença do próprio

"venerável", tudo foi discutido e decidido. Agora, não haveria mais atentados. — «Parece

que o carioca — como era por eles apelidado — goza de qualquer protecção que nos

escapa!» — Tinha dito o chefe. — «Vamos colocá-lo fora da cátedra e expô-lo ao ridículo,

perante o mundo inteiro.»

O plano foi elaborado ao pormenor. Tudo seria feito de dentro para fora. Como

queria o "venerável".

Um facto novo veio acalentar as esperanças dos conspiradores.

Num cinzento e chuvoso dia de Dezembro, recebera eu uma carta estranha a que

fiquei ligado. Nesse mesmo dia, ao jantar, segredei ao amigo Perez-Logano:

— Amanhã, antes que a aurora comece a espreitar Roma, irei fazer uma viagem.

Em segredo, claro. Queres acompanhar-me?

— Irei contigo para onde quiseres. Tu es Petrus... — Concluiu a rir.

— Eu sabia. Mas, diz-me, podes conseguir, ainda esta noite, duas passagens para

Siracusa, no primeiro voo matinal?

— Eu conheço um patrício que trabalha numa agência de viagens aqui em Roma e

que é pessoa da minha inteira confiança. Vou telefonar-lhe.

— Com toda a discrição...

— Pedro, eu sei o chão que piso. Isto está tudo armadilhado. Contudo, podes

confiar. Por ti, ao colo não te levo, porque és mais forte que eu, mas deitar-me-ei no

chão, para que passes por cima, incólume.

— Sim... Então, trata disso e, logo que esteja tudo preparado, avisa-me.

— Às ordens de Pedro, a quem obedecer é um privilégio.

— De poucos.

— Não concordo. Pedro é como a nuvem de fogo, no Êxodo: ilumina os que

caminham para a terra prometida e devora aqueles que o perseguem! — Concluiu, com

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certa ênfase, o amigo Perez-Logano.

Às cinco da manhã seguinte, bem abafados com gabardinas e cachecóis, chapéus

enterrados até às orelhas, luvas e guarda-chuvas nas mãos, subíamos os dois a escada

para bordo da aeronave que, dentro de momentos, iria rolar na pista de Ciampino,

pronta a fazer-se aos céus cinzentos de um Outono benigno, mas húmido em excesso.

Nem a Logano revelara o que me levava, assim, tão inesperada e secretamente, a

Siracusa, nem o ex-arcebispo de Buenos Aires me questionava sobre o assunto. Aliás,

Perez-Logano conhecia-me de há muito e de mim sabia o suficiente para poder pensar

que, quando tomava decisões íntimas, sempre o fazia por imperativos de consciência, por

vezes bem misteriosos, aparentemente acima da estrita racionalidade. Admirava-me e eu

sabia que ele comunicava a outros essa sua admiração, tendo-me como um «homem

extraordinário, mais ainda pela obra que realiza, sem toques de clarins, sem holofotes

atrás, sem prévias e bem planeadas 'homenagens espontâneas'»... — «Quem convive o

dia-a-dia com Pedro sabe que os seus passos são imprevisíveis!» — Diria, mais tarde, em

conversa com Di Tronchetto, a propósito da pergunta do arcebispo de Siracusa sobre os

motivos da inesperada visita.

O tempo de viagem tinha sido aproveitado para um frutuoso diálogo sobre os

grandes pecados da Humanidade: a indiferença dos poderosos perante as condições de

vida dos sem-terra no Brasil, os pobres camponeses em toda a América Latina que são

obrigados a cultivar coca para sobreviver, sob o mundo infernal dos grandes cartéis...

«que matam quem se lhes opuser...» — terminava Logano. Pois — acrescentava eu — «e

a situação caótica dos espoliados das guerras africanas e asiáticas, os marginalizados dos

consumismos, dos totalitarismos da globalização, mas, sobretudo, os gritos aflitivos dos

esfomeados que estão a levantar-se em armas contra uma civilização cristã do mais

absurdo liberalismo materialista e de valores caducos, onde campeia o desrespeito pela

pessoa humana, pelos seus mais sagrados direitos e, pior, se se trata de crianças que não

têm neste mundo quem delas cuidem — um mundo inteiro de bocas a pedir pão e

justiça». Eu sabia, irmão Perez (— Estás na nossa Assembleia santa, que eu já te vi,

discreto como sempre foste na vida do outro lado.), eu sabia que estava perante um

grande humanista e, sobretudo, perante um cientista humilde, um franciscano puro que

nunca deixou a estamenha, um homem de fé irradiante e de um ardor incansável na

execução das missões que lhe eram confiadas. E segredava-lhe: «Irmão, vamos

pressionar a Organização das Nações Unidas. Através dela, vamos fazer tudo o que

pudermos para acabar com esta situação intolerável e verdadeiro pecado contra o

Amor!»

Em Siracusa havia sol. O melancólico sol outonal da Sicília. Mas também o mais

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belo do mundo, quando se aninhava nas águas calmas de Palermo.

Os dois ilustres desconhecidos caminhavam apressadamente para a catedral. O

encontro com Margaritta — a mulher que tinha escolhido para as grandes tarefas da

comunicação e da discreta colaboração com Logano — aconteceu aí. Depois da oração,

percorremos demoradamente a Igreja diocesana e saímos. Margaritta, sorridente,

embora vergada ao peso dos seus setenta e bastantes, aponta-nos um estranho veículo

que nos levaria ao encontro com o arcebispo de Siracusa.

—Viva, meu caro colega. Muito gosto em ver o mais famoso "príncipe da Igreja" —

Faz Logano, cumprimentando ao cimo da escadaria do palacete o cardeal Di Tronchetto

— um homem abrutalhado, mau carácter, ostentando riqueza que, para muitos

sicilianos, estaria ligada à rede da criminalidade organizada da Cosa Nostra.

— Perez!... Que belo ver-te também fraterlino. Como estás?

— Muito bem, grande "príncipe".

— Em Siracusa? A estas horas matinais?

— Exactamente.

— A que devo a honra de tão nobre visita?

— Nobre, sim, meu velho, mas não é a minha. Nobilíssima, se quiseres, é a visita de

Pedro, o incansável apóstolo, sucessor do outro Pedro, o chefe dos apóstolos, escolhido

por Jesus, na Galileia, há mais de dois mil anos.

— Não brinques comigo. Pedro? Em Siracusa? Às nove da manhã? Essa não!

— Então desce.

— Mas...

— Sem mas... Desce já, porque Pedro aguarda-te naquele táxi e, como sempre, não

quer gastar tempo com salamaleques. — Quase imperou Logano, agarrando Di

Tronchetto pelo braço e começando a descer a escadaria.

— Que se passa? — Fez o velho arcebispo de Siracusa, apreensivo, ao ouvido de

Logano.

— Sei tanto como tu. — Responde, muito sério, o companheiro de Pedro. —

Ontem, ao jantar, pediu-me para o acompanhar hoje a Siracusa e para arranjar duas

passagens no primeiro voo. Foi o que fiz. Visitámos a catedral, rezámos e viemos para

aqui. Nada mais sei.

— Este papa-carioca desconcerta toda a gente. — Terminou o diálogo cochichado,

já bem perto do transporte.

Pedro abandonou a viatura, foi ao encontro do "irmão" Di Tronchetto e abraçou-o,

dizendo:

— Peço-lhe desculpa, irmão, mas tinha o maior empenho em que nos

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acompanhasse. Vamos fazer uma visita a um seu diocesano e não quero que o seu

arcebispo esteja ausente.

— Diocesano? Qual é a personalidade desta pobre terra que merece a visita de

Pedro? — Fez Di Tronchetto, arrancando um sorriso amarelo.

— Pobre gente, diria melhor. Ora leia esta carta.

Di Tronchetto leu e releu vagarosamente um simples papel já gasto, onde mal se

compreendiam umas quantas letras mal alinhavadas. O ruído do motor do táxi, em

subida ao bairro do castelo, era o único elemento perturbador de um silêncio que já

perturbava.

— É mais um extremismo dos muitos comunas que por aí pululam e que não

sabem outra coisa senão ameaçar, mostrar os dentes — casquina, fazendo saltar o

umbigo, o arcebispo siracusano, enquanto me devolve a carta que lera.

— Um extremismo? — Interroguei, quase irritado com a maquiavélica

interpretação do cardeal. — Então — continuei — o grito de um homem mergulhado na

dor, na miséria, sem uma luz que lhe diga por onde sair ou caminhar para longe de uma

situação de angústia mortal que não buscou é para o irmão — pastor deste rebanho —

um extremismo de "comuna"? De facto, tal interpretação mostra bem que temos

concepções diametralmente opostas sobre a realidade social que nos cerca e sobre a

missão da Igreja, no meio da Humanidade sofredora. — Terminei, em aparte, guardando

o papel da carta.

— Pronto!... Seja!... Mas será uma carta deste tipo motivo bastam para fazer

deslocar Pedro de Roma a Siracusa? Por esta ordem de motivações, os mil quatrocentos

e quarenta minutos de cada dia não chegarão a nada para tentar aparecer a todos os

gritantes da dor deles "aldeia global"! — Rosnou, mal-humorado, o cardeal da Chiesa No-

tra.

— Não se apoquente, irmão Di Tronchetto — dizia eu, com toda calma e voltado

para trás. — Vamos cumprir a missão que o Espírito nos confiou. Se me pergunta o

porquê desta deslocação, também eu lhe não saberei responder satisfatoriamente. O

facto é que não tenho pressa. Nem ficarei intrigado, se nunca o vier a compreender.

Procuro, apenas seguir a Voz do Amor. E essa é a razão dos meus passos. De resto, Cristo

não esperava pelo rebanho. Ia, Ele mesmo, ao seu encontro! E se um ovelha se perdia. —

O Irmão conhece bem a parábola. De outra vez, olhando a multidão dos que

acompanhavam, havia já três dias, disse para os que estavam mais próximo: «Tenho pena

desta gente. São como rebanho sem pastor!»

Este parágrafo irritou Di Tronchetto. Confesso que não houve qualquer intenção no

paralelismo. Só depois me dei conta que à situação siracusana o verbo evangélico

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assentava como luva de cirurgia. O arcebispo estrebuchou, tossiu forte, ficou apopléctico,

mas nada disse.

Perez-Logano mantinha-se reservado. Olhou-me de soslaio, para se certificar da

expressão mímica, denunciadora dos sentimentos que me atravessavam, mas continuou

como vinha, ao longo da viagem, ao lado do arcebispo de Siracusa: sempre calado.

Margaritta ia dando ao motorista as indicações que tinha sobre a situação geográfica da

casa, num dos bairros mais degradados, bem no caminho das catacumbas de S. João.

Na rua indicada na carta, procurava-se agora o número da porta. Com a ajuda do

carteiro que iniciava o seu giro, foi a tarefa simplificada e pudemos, finalmente —já sem

o agasalho, pois o sol estava quente —, subir as escadas de acesso a um terceiro andar

esburacado, por onde saíam e entravam enormes ratazanas, esvoaçavam nuvens de

moscas de todos os tamanhos e já não havia mais cantos para segurar as teias espessas

que aranhas e aranhões iam pacientemente deixando atrás de si, como festões gratuitos

de tão pobre festa da vida.

— Quem é? — Gritou uma voz rouca de mulher, ao sinal que Pedro fez na porta.

— É Pedro de Alcantilar — respondi, sorrindo para os dois cardeais que me

acompanhavam. Margaritta tinha ficado no carro.

— É quem?... — Fez a mulher, sentindo-se, agora, mais perto.

— Pedro de Alcantilar, minha senhora. Pode abrir, se faz favor, pois queremos ver

o seu marido.

A mulher abriu apenas três dedos, espreitando pela frincha. Mal deu com os olhos

no enorme rosto de Pedro, correu para dentro, tirou de uma gaveta da cozinha o jornal

que na véspera pintara involuntariamente ao entornar o copo do rosso, mas onde ainda

era bem visível uma foto do rosto de Pedro a toda a largura da primeira página, e saltou

para a sala onde se encontrava o marido, gritando no mais tresloucado alvoroço:

— Ó homem, é ele!... Ele veio!... Ele veio!...

— Ele, quem?... Se estás outra vez a troçar de mim, Maria Campanella, olha que

desta é que não escapas. Eu mato-te! — Vociferava Lorenzo, arrastando-se na esteira,

com as mãos pelo chão, o ferroviário que ficara sem pernas, havia vinte e dois anos,

quando um comboio lhas trucidara no momento em que retirava do meio dos carris uma

criança que se havia perdido da mãe e por ali tinha ficado a brincar...

— Ó homem, o Papal... Ele veio! — E a mulher tentava abotoar à pressa uma blusa

escura de tão suja e alinhar a farta cabeleira desgrenhada que se não lembrava de ter

visto água nos últimos tempos.

Ainda o jornal viajava de mão em mão, entre o homem e a mulher, quando eu,

com os dois cardeais, pedindo licença, entrávamos, acalmando Lorenzo que não

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acreditava no que a mulher dizia.

— Como vê, meu caro Lorenzo, aqui estou, em pessoa, para o ajudar — disse, com

voz de confiança e um sorriso de bondade que busquei tradutor de quanto me ia na

alma, ao ver a miséria que ultrapassava o que tinha lido na carta que o homem sem

pernas me enviara.

— É o novo Papa? O Pedro II? Mas não vem vestido de Papa?!

— Ó homem, mas não vês que é ele? — Insistia a mulher, apontando-lhe, de novo,

a fotografia do jornal.

— Sim, Lorenzo, sou eu. Nunca ouviste dizer que não é o hábito que faz o monge?

Olha, estes são o teu arcebispo de Siracusa e o meu ajudante Perez-Logano.

— Está bem, mas, então, mostre-me a carta que lhe escrevi — responde Lorenzo,

ainda intrigado com aquela estranha figura de papa.

— Aqui está ela, Lorenzo, não duvides. Sou eu mesmo. A tua carta foi lida e relida.

Por isso já está a ficar gasta.

Entreguei então ao homem sem pernas o sobrescrito que ele mesmo redigira e

mandara a mulher colocar nos correios de Siracusa, enquanto Maria Campanella se

desfazia em desculpas: «Este homem é assim, senhor Papa!... Não acredita em ninguém.

Ameaça toda a gente. Olhe, um calvário! É o que eu tenho!...» — Dizia, em lágrimas.

Quando abriu o envelope e viu o papel que ele bem conhecia, mas agora com

algumas palavras e frases sublinhadas a vermelho, Lorenzo levantou os braços, agarrou-

-me com veemência as duas mãos, beijou-as e regou-as com lágrimas de arrependimento

de tanta incredulidade.

— Perdoe-me, senhor, nunca ninguém me ligou. Porque havia o Papa de vir a esta

miséria e, ainda por cima, vestido como um homem qualquer? — Fez o aleijado,

acalmando-se e enxugando as lágrimas.

— Lorenzo, vim porque tu me chamaste e fizeste-me sentir a tua dor.

Enquanto o ferroviário reformado à força mais apertava contra o rosto "as mãos

do Papa", curvei-me para o abraçar, sentado na esteira. E, nesse preciso momento —

maravilha indizível! — o pedaço de criatura cresceu para mim, agarrou-se-me aos

ombros com quanta força tinha e encostou ao meu o seu rosto regado em lágrimas de

contentamento. Uma força irresistível percorreu-lhe as artérias. — Explicou, depois.

Lorenzo sentiu qualquer coisa muito estranha a segurá-lo. E uma voz interior que lhe

segredava: «Levanta-te!» A mulher, de olhos esbugalhados e ouvidos escancarados,

seguindo boquiaberta os movimentos e as palavras do homem, quando viu que ele se

levantara sozinho, escachou os maxilares quanto pôde, deitou a mão direita aos lábios e,

com os cabelos em pé, caiu inânime. Salvou-a da quase certa cabeça rachada o braço

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poderoso de Perez-Logano. Ao verificar o sucedido, Lorenzo deixou-me e correu para a

mulher, esquecido das pernas. Reanimada, ajudei Logano a entregar Flávia a Lorenzo. Os

dois abraçaram-se e beijaram-se, sob o meu sorriso complacente, o encantamento de

Perez-Logano e a mal dissimulada acrimónia do velho arcebispo siracusano.

Aceitei o pobre café que me ofereceram. E conversei, durante alguns minutos, com

o casal, pedindo-lhe que não me agradecessem a mim, mas a Jesus Cristo, o Senhor da

vida, que sempre ouviu os que n'Ele crêem. Depois, entreguei-o aos cuidados espirituais

e assistenciais do prelado diocesano. Mas, antes de partir, quis que Margaritta ficasse a

conhecer o casal e as suas necessidades. A nossa "Priscila" — como já lhe chamava

Logano — ficou e tomou notas. E partimos. Em silêncio. Não sem primeiro recomendar a

todos que guardassem segredo sobre tudo o que em Siracusa se passara naquela manhã.

Ainda o táxi rolava a caminho do aeroporto local e já a rádio oficial dava a notícia da

«visita relâmpago de Pedro II à cidade de Arquimedes, onde se deslocara bem cedo, para

dar pernas a um pobre reformado dos caminhos-de-ferro que havia mais de vinte anos as

tinha perdido, ao salvar da morte uma criança que brincava na linha, no momento em

que se aproximava um comboio». O locutor de serviço acrescentava que todo este caso

estava envolto em grande mistério, mas — prometia — «será objecto de investigação e

posterior divulgação em futuros serviços de notícias».

Já acomodados na aeronave que nos transportaria a Roma, confidenciava a Perez-

-Logano o meu horror à notícia, pois alguém não cumprira o pacto de silêncio. Mais

incomodado ficaria, porém, quando a hospedeira de bordo me entregara um vespertino

antecipado, com a primeira página totalmente ocupada com a fotografia do meu rosto e

a "caixa" gigantesca: «Milagre em Siracusa!» E, em subtítulo: «Pedro II dá pernas a

Lorenzo!»

Já em Roma, Perez-Logano comprou as edições da tarde que comentavam o

acontecimento do dia. No táxi, de caminho para o Vaticano, o motorista — sem saber

que transportava o Papa — não tirava o ouvido da rádio que comentava incessantemente

os factos ocorridos em Siracusa, acrescentando-lhes verdadeiros delírios fantasiosos que

nada tinha a ver com a realidade.

— Os senhores já ouviram esta?... — Inquiria o taxista dos dois passageiros clientes

que seguiam no banco traseiro, muito silenciosos.

— Esta, quê?... — Retorqui, imediatamente, procurando dissimular, o vulcão que

me consumia as entranhas.

— Esta… a do Papa que foi a Siracusa, sem ninguém saber, e curou um homem que

há mais de vinte anos não andava, porque não tinha pernas!

— E, agora, ficou com pernas?

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— É o que dizem.

— Olhe, se isso é verdade, sorte dele!

O diálogo com o taxista terminou por aí. Mas, pelo espelho retrovisor, o homem

esforçava-se por achar coincidências a mais com o rosto cuja fotografia vira em todos os

vespertinos...

No Vaticano, os cardeais estavam reunidos naquela que chamavam a "basílica-mãe

da cristandade", para me receber. Alguém, contra minha vontade, dera ordens para uma

congregação geral. Que poderia eu fazer? Uns, certamente, estariam ansiosos por saber

da minha boca tudo o que sucedeu naquele dia, em Siracusa, e sobre o que já tinham lido

e ouvido. Outros, porém — certamente uma minoria, mas perigosa — de língua afiada

para me censurar. Aqueles, esperariam o primeiro momento para aclamar o "Papa

desconcertante", o "homem transcendente", como já corria no léxico dos mais

entusiastas jornalistas romanos. — «Aparece aqui... desaparece a seguir... deixando

rastos de mistério na sua passagem. Um homem, no mínimo, estranho!» — Comentava

prudentemente o mais avalizado jornalista do Corriere della Sera. Para o órgão oficial do

Vaticano, L'Osservatore Romano, os factos ocorridos em Siracusa, estranhamente ou

talvez não, tinham sido completamente ignorados, mas, num editorial verrinoso do

mesmo dia, chamava-se a atenção para «os perigos que o romano papado corria, ao ser

exposto ao ridículo de certas condutas infantilizadas que dirigentes ignorantes das

realidades e da história da Santa Sé estavam a assumir e com isso prejudicando o

prestígio da Igreja Católica no mundo».

No meio dos cardeais, bispos e monsenhores e de todos os clérigos assalariados

dos diversos departamentos dos "palácios apostólicos" (uma expressão cuja contradição

interna me fazia tremer), comecei por ouvir, sempre de pé e olhos vivos e atentos a

todos os movimentos, as mais felinas catilinárias do grupo dos obedientes ao

"venerável". De resto, qual magna prostituta sentada no lugar santo... não se coibiram de

convidar para a cerimónia o homem mais asqueroso da época, o chefe supremo de todas

as lojas do crime organizado, em Itália, que fizeram sentar em lugar de destaque, ao lado

do altar-mor, sob o baldaquino de Bernini. Vendo, mas evitando fixá-lo — como Cristo

diante de Herodes — apelei a todas as minhas forças interiores para manter a mesma

serenidade, recebendo as aclamações da maioria que me incitava a caminhar em frente.

A todos agradeci a presença e as palavras que tiveram a gentileza de me dirigir. Sem

nunca citar o editorial do jornal que deveria, em princípio, «estar com Pedro», respondi a

todas as questões colocadas por uns e por outros, relevando o pensamento evangélico

de que «quem se não fizer pequenino, não terá assento no Reino dos Céus.» E mais. Se o

mundo dos homens de hoje foge da Igreja, é a Igreja que deve ir atrás deles. — «Fazer-se

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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ao mar...» — na bela expressão do bom Papa João que todos recordamos em memorial

de muita ternura. Para concluir, adverti os presentes que «ridículo e perigoso para a

missão da Igreja no mundo era tentar manter a todo o custo estruturas anquilosadas,

prateleiras cheias de poeiras de séculos, realidades e histórias de outros tempos que,

longe de dizerem aos cidadãos da "aldeia global" o que quer que seja no plano do Amor,

são, antes, insustentáveis contratestemunhos da mensagem que às comunidades cristãs

incumbe transmitir».

Então, o "papa desconcertante" aproveitou a reunião do colégio cardinalício e o

momento alto da polémica gerada pelos factos ocorridos em Siracusa, que por muito

tempo continuariam a fazer correr tinta, para anunciar:

— Espero, irmãos, que ninguém se escandalize: vamos em frente na tarefa de

reformar a Igreja de Jesus, da cabeça aos pés!... O tempo do Édito de Milão passou. O

tempo das grandes catedrais passou. O tempo dos anátemas de Trento passou. O tempo

do prestígio ou do poderio da Igreja passou. O tempo dos Médicis, dos Bórgias, da

pompa, da corte pontifícia, passou. O tempo dos príncipes da Igreja passou! O tempo das

dignidades eclesiásticas passou. O tempo do clero, da classe clerical, dos benefícios,

prebendas e nepotismos passou. O tempo das simonias, mais ou menos encobertas,

passou. O tempo de um cristianismo sem fé passou! O tempo do tempo do inferno está

quase a passar!... Porque começou o tempo das lágrimas! Da penitência! Do saco! Das

novas catacumbas! Dos hodiernos coliseus! Mas, também, irmãos, de um cristianismo

com o Evangelho de Jesus no coração. De um cristianismo do Amor que gera cristãos que

dão tudo e a própria vida para que outros a tenham!

Irmãos, ai daquele que se escandalizar. Não terá lugar no tempo do tempo do

Senhor! — Que está próximo!

Por isso, a todos peço que se definam: ou estão com Pedro ou contra Pedro! A hora

que se aproxima é de grande dor e angústia. Mas também de inabalável esperança...

Amanhã serão assinados decretos de uma importância vital para a marcha de toda a

Igreja, deste Povo Escolhido em Cristo Jesus que quer voltar a ser sal, fermento, a

transformar a vida de toda a Humanidade. A Redenção oferecida pelo Nosso Bom Jesus

há cerca de dois mil anos não caiu em desuso, não passou de moda. Cristo continua unido

à nossa Humanidade e levou-a consigo para o Céu, no dia da sua Ascensão. Os tempos

presentes são de alta responsabilidade para nós. Tudo fazer para que todos amem como

Ele amou, eis a nossa meta. Que voltará a correr sangue de cristãos, às mãos de esbirros

do crime organizado do império de Satã, estou disso convencido. Que muitos serão

mortos, por professar que só o Amor de Jesus salva a Humanidade, não duvido. Que

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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muitos outros sofrerão perseguições sem conta, despojados de seus bens, abatidos em

atentados terroristas, só por quererem viver como Jesus, amando e ensinando as pessoas

a serem tolerantes, amigas umas das outras, solidárias com as que sofrem, já o Nosso

Bom Jesus o profetizara. Mas, enquanto nos é concedido o dom do tempo, irmãos, vamos

em frente! Custe o que custar! Os pobres gritam! E nós estamos em posição privilegiada

para fazer ouvir a sua voz, mesmo à escala planetária. Quem não quiser avançar

connosco é livre de ficar para trás. Mas a todos os que nos quiserem acompanhar, nesta

hora de dor e esperança, eu digo: não vos prometo facilidades, nem honrarias que este

mundo dá, nem dinheiro, nem favores ou troca de influências, mas muito trabalho,

sofrimento sem medida. No fim, porém, está garantida muita alegria. A oração e a

consolação do nosso Deus são as nossas armas. E temos sempre a certeza do Nosso Bom

Mestre: «Não temais, Eu venci o mundo!»

Para isso, depois de muita oração e estudo, da audição das conferências episcopais

de todo o mundo, estou em condições de vos anunciar e, por vosso intermédio, a todo o

mundo:

1 — Convocar-se-á imediatamente um novo Concílio Ecuménico,

2 — Nomear-se-á uma comissão que trabalhará com os representantes do Estado

italiano na elaboração de um documento-base que substituirá a Concordata em vigor; a

Santa Sé ou a Cidade do Vaticano — como Estado criado pelo ficcionismo do direito

internacional, que assim consagrou a partilha de poder entre o Papa e sua corte, por um

lado, e a Itália, por outro — acabará;

3 — Alargar-se-á a comissão que já trabalha no processo da extinção do I0R; não

haverá mais "banco do Vaticano" — uma vergonha para a Igreja, um contratestemunho

do Evangelho de Jesus. — Todos os bens da Igreja serão colocados ao serviço da

humanidade! Primordialmente, daqueles povos que mais sofrem as injustiças, a fome, a

miséria, a ausência total da tábua dos direitos humanos. É no Amor — não de palavras,

mas efectivo, feito de obras — à Humanidade que faremos os nossos investimentos;

4 — Nomear-se-á a comissão que tratará da extinção da Cúria , lançará as bases de

um organismo muito simples de verdadeiro serviço ao povo de Deus, à escala universal;

5— O consistório será extinto, não havendo por isso mais nomeações de

cardeais;

6— O Sínodo dos bispos verá alargada a sua participação no trabalho apostólico

de Pedro, respeitando as autonomias legítimas dos costumes e tradições locais, desde

que compatíveis com a manutenção da unidade essencial da fé e disciplina;

7 — A todos os teólogos — homens e mulheres — afastados das suas cátedras e

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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que mantêm a sua ligação de fé com a Igreja de Jesus, dirijo um veemente apelo para

que, nesta hora de tantas dificuldades, preparem os respectivos memorandos sobre tudo

aquilo que, em seu livre entendimento, acham que o concílio deve debater e alterar, seja

no esclarecimento do dogma, na abertura da Igreja aos povos do sofrimento ou nas

reformas disciplinares;

8— As conferências episcopais de todo o mundo serão solicitadas para enviarem, o

mais rápido possível, através de qualquer meio de comunicação, mesmo correio

electrónico, a relação de bens existentes para o serviço das respectivas comunidades,

destrinçando bem aqueles que podem alienar-se, sem prejuízo para os serviços; o seu

valor será dirigido à satisfação das mais prementes necessidades sociais das mesmas ou

de outras comunidades, com as quais desejamos partilhar o que temos;

9 — Todos os excedentes ao mínimo necessário — onde os houver — serão

canalizados para as conferências episcopais que mais necessidades sentem no

atendimento aos pobres das respectivas regiões;

10— Depois de ouvidas as conferências episcopais de todos os países,

institucionalizar-se-á o dia mundial e regional da partilha e da oração pelos que ainda

sofrem os horrores da guerra e da fome.

Eis, irmãos, o decálogo das medidas que urge levar por diante, na tarefa gigantesca

que me confiastes de renovar a face da Ecclesia, como Povo de Deus, Rosto do Senhor,

tão belo, mas tão desfigurado pelos nossos pecados. Somos um povo que caminha neste

mundo em direcção a uma pátria nova. Sabemos o que queremos e que o que queremos

não está neste mundo! Mas no peregrinar deste povo, precisamente em momento ímpar

de tão longa marcha, quase a atingir a montanha santa, há os que olham para trás e, não

raro, perdem-se na contemplação dos reinos terrenos. Muitos abandonam a caminhada,

muitos outros arrastam penosamente as pernas, e um sem-número parece ter a cabeça e

o coração longe do objectivo sublime que Cristo nos traçou: «Vinde, benditos, possuir o

Reino que vos está destinado!» Volto a repetir-me: que ninguém se escandalize. Mas que

todos pensem, antes, que chegou a hora — e é esta! — em que ninguém tem o direito de

ficar a olhar para o umbigo, para os privilégios que pode perder, para as cebolas do

Egipto. Porque o maná que o Senhor fará cair saciará a todos em abundância. — «Não

temais, filhinhos, Eu venci o mundo!...»

Seguiu-se um período de pedidos de esclarecimentos, no qual todos puderam

precisar as questões que a anunciada reforma "petrina" como ficou conhecida — iria

arrastar.

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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— E as obras necessárias para a recuperação dos "Palácios Apostólicos" arruinados

pelo temporal? — Perguntou, finalmente, um do grupo dos damani que se mantinham

mudos e surdos.

— Meu irmão, já se fez o possível para que não chova nas cabeças das pessoas.

Quanto ao resto, não vamos "investir" em palácios. Como referi, a nossa preocupação

fundamental é a causa dos pobres, dos excluídos — todos aqueles que vivem em

tugúrios, sem alimentação suficiente, sem assistência na doença, sem roupa para se

cobrirem e morrem diariamente na miséria, porque não há quem olhe para eles!

Deixemos os palácios aos palacianos. Os palácios representam o passado, irmão! E nós

estamos profundamente comprometidos com o presente. E este é sofrimento, é dor, é

miséria e morte, que nós podemos e temos o dever de impedir que avance! Nesta hora, o

Povo de Deus que optou pelo Amor exige outro investimento.

Perante esta resposta, os do grupo entreolharam-se, meteram os olhos aos

sapatos e cerraram a boca.

Esquecido de outros compromissos, respondi, ainda, pela noite dentro, a todas as

perguntas, sem evasivas e com todo o rigor.

Os opositores, porém, não desarmaram. Logo após a minha saída, reuniram

secretamente em casa do chefe, não longe do Vaticano, jurando executar o plano

aprovado pelo "venerável". As medidas anunciadas pelo Papa eram demais!

«Insuportáveis!» — Diziam. «Este homem enlouqueceu. Quem se julga ele? Aquilo

representa a destruição da história! Não o permitiremos! A revolução está em marcha?

Vamos à luta! Antes que seja tarde!»

— Irmãos no eterno Amor do Nosso Deus: o nosso irmão Estêvão — meu

companheiro fiel de todas as andanças pelo mundo — é capaz de ser mais expressivo que

eu na rememoração dos tempos que se seguiram. Compreendam... É que são coisas

muito duras — as que vivi, do outro lado! Com a permissão do nosso Bom Jesus e a vénia

do irmão Pedro Apóstolo, proponho que o ouçamos.

— É, meus queridos, sempre que possa ser útil à narração, podeis servir-vos da

minha humilde pessoa. Então, escutai:

Pedro II voava para qualquer parte do mundo onde os povos o chamavam. Sem

fanfarras, charangas ou charamelas, sem guardas de honra ou desfiles militares, sem

salamaleques protocolares, sem ósculos no betão das placas de estacionamento das

aeronaves, sem vestes exóticas, o Papa aparecia, como qualquer viajante — como Cristo,

em seu tempo, aparecia, aquando das suas viagens pela Galileia e pela Judeia — apenas

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animado de uma grande fé no que de sublime existe no coração de cada homem.

O anúncio de que todos os bens da Igreja seriam colocados ao serviço da

humanidade sofredora e injustiçada, gritado por todos os microfones do mundo, caiu

bem nos ouvidos dos chefes e dirigentes dos povos. E, bem depressa, o prestígio

internacional de Pedro II se afirmou à escala planetária. Mas o inferno assim não o

entendeu. E jogou a cartada que lhe faltava, no ódio contra toda e qualquer limpeza da

Igreja: enxovalhar o Papa, retirando-lhe credibilidade e legitimidade, era plano

maquiavélico que só a "grande prostituta" poderia ter parido! Pretendia-se, na confusão,

enfraquecer todas as suas iniciativas.

Nos jornais e revistas da especialidade fofoca, nos programas televisivos e

radiofónicos de todo o mundo, em que se faz a "realidade virtual", começou — muito

sub-repticiamente, a princípio — uma campanha organizada de mentira, acerca de tudo

o que dizia respeito a Pedro. Desde visitas que o Papa andaria a fazer de noite, sozinho, a

lugares esconsos e a pessoas da vida, até "milagres" que operava, a torto e a direito, ao

sabor dos caprichos pessoais e das notas que lhe metiam no bolso, de tudo — da

falsidade mais soez, da aleivosia mais nojenta, da perfídia mais safada — se serviam para

ridicularizar a pessoa de Pedro II que, quando se deu conta da sementeira, já os frutos da

sendeirice mafiosa enchiam as tertúlias dos intelectuais de pacotilha, as atelanas

cantadas ao banjo pelos ceguinhos das baiucas, as mesas dos cafés, as barracas listadas

da praia... A campanha estava lançada, tudo foi pormenorizadamente programado e

executado e, agora, era uma questão de ritmo — acelerar ou abrandar, conforme a linha

e a perícia do maquinista. Allegro ou Moderato, de harmonia com a satânica partitura ou

as opções do infernal maestro.

Numa segunda fase, editoriais de grandes periódicos de todo o mundo encenavam

hipóteses de explicação para aquilo a que já chamavam o "caso do Papa". Teóricos da

intelectualidade do serralho opinavam, então, sobre os "cenários" possíveis — obrigar

Pedro II a renunciar ou avançar imediatamente com um processo de interdição.

De nada valeram as quase diárias entrevistas de Pedro às grandes cadeias

televisivas de todo o mundo, aos serviços noticiosos da internet, às pregações dos bispos

e padres obedientes à autoridade de Pedro II, nem as chamadas de atenção das

conferências episcopais e até os apelos de inúmeros chefes de Estado e de Governo que

tomavam a defesa do Papa, que estava a ser vítima de uma campanha orquestrada com

muito excremento do diabo. A "grande prostituta" abrira as pernas. E muitos eram os

incautos que não resistiam à tentação. Quando, por fim, parecia madura a seara e o

vento soprava a favor, entrou de rompante a terceira e última fase do plano — a

"eleição", pelos domani, de um novo Papa! Dinheiro não lhes faltava. Podiam "encenar" à

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vontade. Os banqueiros de Deus — leia-se, da baixa nova-iorquina... — não se faziam

rogados.

Pedro encontrava-se em Brasília a presidir à cerimónia de abertura do Concílio

Ecuménico. Cardeais, bispos, religiosos, padres, teólogos de todo o mundo ali estavam

para ouvir a mensagem de Pedro a chamar a atenção para «a cizânia que o inimigo

colocara no meio da sementeira do trigo». Pedro, aliás, nunca se referira directamente à

campanha que contra ele estava abertamente em curso. Agora porém, com um vigor

inusitado, Pedro esclareceu ponto por ponto a mentira, a sanha, a pulhice de muitos

media ao serviço das máfias e dos interesses de grandes grupos e organizações

criminosas. Foi um discurso longo mas muito bem recebido por todo o mundo cristão e

por todos os homens de boa vontade que esperavam uma palavra de Pedro. E ela veio,

acutilante, cáustica, conhecedora da situação e dos remédios urgentes a aplicar.

Reunido nessa noite com a maioria dos bispos e teólogos, na exótica mas

imponente catedral de Brasília, Pedro soube da atitude «lamentável e a todos os títulos

condenável» dos domani que ficaram em Roma para o atraiçoar pelas costas. Em ilegal e

ilegítimo miniconclave, tinham feito "eleger" um outro papa — o cardeal Di Tronchetto,

de Siracusa, um dos que se havia recusado a viajar para o Brasil, a pretexto de trabalhos

"inadiáveis". Di Tronchetto aceitara de imediato a "eleição", tomando o nome de João

Paulo III! E, jurando fazer voltar a Igreja ao «esplendor e rigor» de outros tempos, tomou

como medida de efeitos imediatos a publicação de um pseudodecreto destituindo Pedro

II, por «manifesta incapacidade»! Mais: no mesmo "decreto" declarava nulas as

respectivas constituições, bulas e demais documentos disciplinares, bem como a

convocatória do Concílio de Brasília, ao qual negava qualquer legitimidade decisória e a

amplitude de ecumenicidade de que se arrogava.

Logo começaram as vassalagens e os protestos de obediência ao Papa legítimo —

Pedro II — por banda de todas as conferências episcopais e chefes de Estado de todo o

mundo, enquanto ao antipapa João Paulo III chegavam mensagens da «fanfarronice de

uma minoria de sectores ligados ao fundamentalismo pregado desde a torre rosada de

Manhattan que, em ligação com os duros das várias máfias italianas e internacionais,

defendiam a concepção de uma Igreja vocacionada para o poder, para o culto do chefe,

sustentada pelos senhores da alta finança, sempre apoiantes de regimes políticos

retrógrados, conservadores e fascizantes das chamadas direitas ou ultradireitas

mundiais, com tentáculos nos mais importantes centros de decisão, norte-americanos e

europeus, sempre avessos a qualquer cheiro de liberdade, de mudança, de novo espírito

de concórdia e paz entre os homens, assente no Amor que Cristo veio difundir no seio da

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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Humanidade.

Sei, meus irmãos, desta infindável Assembleia do Nosso Deus, que o nosso querido

Pedro do Rio ficou ferido de angústia para sempre. Naquela noite, não dormiu. A

diferença de fusos horários levava-o a ficar toda a noite à escuta de novos

desenvolvimentos da crise em Roma. Juntamente com Perez-Logano, Menezes e Costa e

Colombano Righetti, Pedro orava e escutava as notícias vindas do outro lado do

Atlântico. E tomou uma decisão: feita hora de descanso em Roma, viajaria com os três

cardeais amigos ao encontro dos rebeldes e tentaria uma solução para o caso que já

estava a «fazer sangrar dolorosamente o Rosto de Cristo». O Concílio continuaria os seus

trabalhos e, na manhã seguinte, em Brasília, faria distribuir à imprensa um breve

comunicado, no qual apelaria à unidade dos cristãos de todo o mundo em redor do

legítimo sucessor de Pedro Apóstolo e solicitaria aos cardeais rebeldes que

reconsiderassem a atitude que tomaram, depusessem toda a contumácia e pedissem

perdão ao Senhor de Misericórdia, para que, na chegada de Pedro II, estivesse criado o

ambiente propício a um diálogo frutuoso, conducente à paz na Igreja, suporte

incontornável da paz entre as nações.

Para além desta referência à «chegada de Pedro», nada mais se sabia em Roma

sobre como e quando o Papa regressaria ao Vaticano. Mas, logo nos jornais afectos ao

antipapa se desencadeava uma nova campanha de calúnias, não só contra Pedro, mas

também contra os seus mais directos colaboradores. A linguagem usada era de uma

agressividade manifesta e, à partida, indiciava uma recusa prévia de qualquer diálogo

entre as partes.

No aeroporto de Leonardo da Vinci, Pedro foi recebido por alguns diplomatas

acreditados em Roma e pelo próprio presidente italiano a quem o Papa comunicara o

desejo de se encontrar a sós, imediatamente após a chegada. Pedro permaneceu, cerca

de uma hora, numa das salas VIP da aerogare, conversando com as mais destacadas

figuras da Igreja e do Estado italiano. De todos ouviu promessas de fidelidade e de

reconhecimento absoluto da legitimidade de Pedro, como verdadeiro Papa da Igreja

Católica. Das autoridades italianas recebeu, ainda, a promessa de tudo fazerem para

circunscrever os efeitos demolidores do epifenómeno "João Paulo III" dentro dos limites

da cidade, limitando a acção e a propaganda dos seus seguidores.

Alguém espalhara, no Vaticano, às primeiras horas da manhã, a notícia de que

Pedro II já se encontrava em Roma. Quando o táxi parou junto à porta de entrada para os

museus, a Praça de S. Pedro mostrava-se já cheia de cristãos, turistas ou simples

curiosos, ávidos do sensacionalismo das últimas horas. Pedro não encontrou qualquer

resistência até à chegada aos aposentos que ocupava, agora na ala norte. Tudo estava

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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em ordem e ainda ninguém se atrevera a violar o espaço privativo e as coisas pessoais de

Pedro. Então, acompanhado dos três cardeais indefectíveis, Pedro ajoelhou e orou diante

do altar da Eucaristia, por quarenta longos minutos. (Quarenta... — o número bíblico que

marca o tempo de preparação de Cristo para o afrontamento do diabo.) Com as mãos

segurando o seu imenso carão, era manifesto que o Papa chorava. Os acompanhantes

não resistiram à emoção quando Pedro se voltou para eles e lhes pediu que rezassem os

quatro, em voz alta, a oração que Jesus fez ao Pai, no horto de Jetzémani: «Pai, afasta de

mim este cálice...»

A agonia, a quatro, teve para todos um extraordinário efeito catártico e

reconfortante. Todos ouviram, então, nitidamente, uma voz estranha, cava, vinda

ninguém soube donde: «A hora é de dor, Pedro, mas passará! Não temas! Vai em frente,

confirmando teus irmãos na fé!»

Pedro olhou estupefacto para os três amigos. Eles acenaram com a cabeça e

sorriram. Pedro perguntou-lhes: «Ouviram?» Ao que todos responderam: «Sim, Pedro,

ouvimos!» Mas ninguém perguntou quem falara… e donde falara.

Dirigiram-se, a seguir, para a loggia da basílica de S. Pedro. O Papa apareceu de

rosto muito triste, revestido de pluvial e estola, com a mitra na cabeça. Ao seu lado, os

cardeais, de romeira pela cabeça, em sinal de luto. Com voz forte que ecoou na colunata

de Bernini, fazendo tremer as estátuas dos santos e o enorme obelisco central, Pedro II,

depois de saudar os peregrinos que o vitoriavam constantemente, pediu silêncio, e o

silêncio fez-se. Falou então assim:

— Irmãos, aqui estou, nesta secular catedral de Pedro Apóstolo, levantada sobre o

lugar onde ele glorificou a Deus, deixando-se pregar de cabeça para baixo numa cruz,

para vos dizer que também eu — seu indigno sucessor — estou pronto a sofrer o mesmo

suplício ou aquele que Deus quiser reservar-me, para vos manter firmes na fé em Jesus —

Nosso Redentor e Senhor. Não sou mais que o Mestre, pregado no madeiro e morto no

Gólgota, por Amor de toda a Humanidade. E não sou mais que o primeiro Pedro, aquele

homem simples, mas de uma fé inquebrantável, que mereceu de Jesus o ciclópico encargo

de conduzir o rebanho dos crentes no Amor feito Homem até à Sua e por nós ansiada

Parusia. Não é, pois, o medo da morte que me traz apavorado! Mas sim o calafrio

causado pela faca da desunião que espetaram nas costas da Igreja! À traição! Como

outrora fizeram ao Mestre! O Amor une, aperta-nos contra o peito, faz-nos alegres e

confiantes na vitória final, na paz que Cristo quis ver instaurada em toda a terra. O ódio

quebra a união, produz a desconfiança, o confronto, a guerra. O nosso Bom Deus, o Deus

de Jesus Cristo, o Deus do Amor, não poderá deixar impunes as anacondas que destilam o

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mortífero veneno do ódio entre nós! Que triste espectáculo estamos a dar ao mundo,

nestes tempos de descrença generalizada, com estas sementes de guerra. Mais de dois

mil anos passados sobre a oração de Jesus ao Pai — «Que todos sejam um...» como é

possível que irmãos nossos se rebelem contra Pedro e, por interesses inconfessáveis, mas

sempre alheios àquela Mensagem de Amor que nos incumbe difundir por toda a

Humanidade, estejam a fazer — consciente ou inconscientemente — o jogo de Satanás, o

príncipe das trevas, que jurou vingança e eterno ódio ao Criador! Quem ama une. Quem

odeia divide. Quem trabalha pela unidade é de Jesus Cristo, Nosso Senhor, é do Reino da

Luz. Quem promove a desunião é do diabo, é do opressor, é do reino das trevas. Não há,

irmãos, meio termo, nem alternativa!

Vamos trabalhar, irmãos, vamos orar pela unidade de todos os cristãos. Que nada

neste mundo nos afaste deste caminho! Vinde Espírito Santo! Vinde Pai dos pobres!

Vinde, luz dos corações! Aquece o que está frio! Rega o que está árido! Lava o que está

sujo! Cura o que está doente!

Pedro ajoelhou-se e rezou com todos os peregrinos que se apinhavam na grande

praça oval. No fim, perguntou-lhes, encorajado e com voz potente:

— E vós, irmãos, com quem estais?

— Com Pedro! — Gritaram demorada e repetidamente.

— Sede, então, portadores desta fé... difundi e vivei a unidade.

Foi em perfeito delírio que a multidão aclamou Pedro, por longos minutos. Ele teve

de regressar à loggia por diversas vezes, abençoando todos os que o aclamavam.

Naquela noite, enquanto Pedro permanecia em oração na sua capela privada, na

loja, os domani não obtinham maioria para uma deliberação que desejavam obter: a

morte imediata de Pedro! Depois da antecipação deste e do espectáculo que dera,

perante a grande multidão que o vitoriara, em extremos de carinho e emoção pública, os

rebeldes, mesmo contra a vontade do chefe, queriam a sua eliminação física. O

"venerável", porém, não estava de acordo e concluiu a reunião extraordinária, afirmando

que quem promovesse qualquer atentado contra a vida de Pedro seria considerado

inimigo do plano traçado. «Com as consequências respectivas...» — Frisou muito

expressivamente isto, segundo as minhas fontes.

Pedro, entretanto, desenvolvia esforços no sentido de se encontrar rapidamente

com o antipapa, o cardeal Di Tronchetto. Mas este, entronizado em Latrão, escapava-lhe.

Um grupo de trabalho, presidido pelo cardeal Righetti, ficou encarregado de tratar de

todas as questões emergentes desta complicada situação. As portas do Vaticano estariam

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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de vigilância redobrada para que nenhum dos rebeldes tivesse ali entrada. Pedro fez

mesmo questão de, antes de embarcar de novo para Brasília, se encontrar pessoalmente

e pela segunda vez com o presidente da República Italiana, pedindo-lhe os seus bons

ofícios, no sentido de as forças policiais evitarem qualquer tentativa de perturbação da

ordem pública, mesmo dentro da muralha leonina. Na viagem para o aeroporto, Pedro

solicitou ao motorista que o conduzisse antes para Latrão. Foi Perez-Logano que

abandonou o táxi e pediu ao guarda do palácio autorização para falar com o cardeal

rebelde, auto-intitulado "João Paulo III". Resposta do guarda, um gorila de fato preto e

óculos escuros: «Sua Santidade não se encontra aqui». Pedro deixou então uma

mensagem em envelope cerrado, onde dizia apenas: «Irmão Di Tronchetto, peço-lhe, por

tudo o que de mais sagrado há na vida, pelos valores evangélicos da humildade, da

verdade, do Amor com que Cristo nos uniu na mesma tarefa de implantar no mundo o

seu Reino, que abandone a sua atitude de rebeldia, que não a sinto contra mim, mas

contra o nosso Mestre, verdadeira cabeça da Igreja, pela qual orou ao Pai, pedindo ex-

pressamente para que todos sejam um! Vou, novamente, a caminho de Brasília, onde o

Concílio prossegue a sua obra de reflexão e regeneração. O seu lugar está em aberto. E,

acredite, irmão, será grande a alegria de todos, da Igreja inteira, quando o vir ocupar esse

lugar. Abraça-o, cordialmente, Pedro.»

Indiferente a tudo e a todos os apelos ao bom senso, Di Tronchetto, numa

cerimónia em Latrão, apenas concorrida pelos curiosos e sequazes do "venerável", fez-se

coroar, à antiga, com uma riquíssima tiara pontifícia usada por Gregório VII. Durante o

cortejo, na catedral de S. João, foi transportado numa brilhante e dourada sédia

gestatória, entre dois flabelli — espécie de mosqueteiros gigantes, ornados de plumas

brancas de avestruz —, com toda a pompa e magnificência de outros séculos. No

discurso que fez, breve e sempre interrompido por ataques de tosse tabágica, distribuiu

anátemas e excomunhões a rodo para todos quantos não obedecessem aos respectivos

decretos. Solenizou a destituição de Pedro, proclamou a nulidade das deliberações do

Concílio de Brasília e anunciou a convocatória de um novo Concílio em Trento... ― o

"Trento II".

Os meios de comunicação social mais atentos ao epifenómeno do último antipapa

da história da Igreja Romana, vaticinavam um futuro negro para a cristandade e para o

mundo. «É óbvio o confronto entre o Amor e o ódio!» — comentava-se, amiúde, nos

mais influentes e atentos meios de comunicação. Em Pedro II, cuja legitimidade era reco-

nhecida pela generalidade dos católicos e chefes de Estado do mundo, viam o Amor. Em

João Paulo III apenas viam a ilegitimidade, a raiva, a vaidade, o ódio, a crapulice de todas

as secretas. Mesmo os governos de regimes mais musculados e com políticas mais

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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liberalizantes tinham dificuldade em reconhecer qualquer legitimidade ao antipapa. Este,

entretanto, tudo fazia para se afirmar, quer como chefe da Igreja de Roma, quer como

condutor mundial dos povos. Nunca, porém, se aventurara a uma saída de Roma, como

papa.

L'Oservatore Romano e a potente Radio Vaticana difundiam contínuas diatribes

contra Pedro. Colombano Righetti, em telefonema para Brasília, perguntava a Pedro se

desejava o silêncio forçado dos dois meios de comunicação do Vaticano. Pedro

respondeu-lhe com o Evangelho: «Deixai crescer tudo, o trigo e a cizânia. No dia da ceifa,

meu Pai os separará. Então, o trigo irá para os celeiros, enquanto o joio será lançado ao

fogo». Righetti conseguiu, ao menos, levar o antipapa a aceitar dar ordens aos directores

daqueles meios de comunicação, para se absterem de tomar partido por um ou por outro

e de usarem linguagem menos própria, numa referência aos excessos verbais cometidos

nos últimos dias contra Pedro. — «Se a caridade de Cristo é o nosso lema e objectivo,

irmão, não parece bem que os meios de comunicação social possuídos pela Igreja

estejam eles próprios a fomentar a divisão e, pior, usando linguagem que só serve o

descrédito de quem a produz.» — Era um período de uma das muitas cartas que Righetti

trocava com o antipapa. O irmão Colombano sabia perfeitamente a quem se devia a

truanice.

Em Brasília, Pedro falou aos conciliares reunidos na catedral, depois de uma

recepção calorosa, em que se vitoriou o Papa legítimo e se condenou o «triste

espectáculo da fractura da unidade que alguns estão a dar ao mundo e, com ele, a

macerar o rosto de Cristo!» Enquanto Pedro caminhava para o altar, gritava-se em

delírio: «Pedro vencerá! Pedro vencerá! Pedro vencerá!...» O coro cantava, em grande

polifonia: «Tu, es Petrus... et portae inferi non praevalebunt adversus eam...»

— Irmãos — disse, em voz plangente, mas forte — é com o coração amargurado, a

garganta sufocada e os olhos em lágrimas que vos trago a notícia mais triste da minha

vida e que o é também, certamente, para toda a Igreja: Irmãos nossos que tinham o

especial dever de não cair na tentação diabólica da fractura da unidade do corpo de

Cristo acabam de consumar, em Roma, o novo Calvário do nosso Bom Jesus. Em

inexplicável farsa conclavística, fraudulenta e condenável sob qualquer ponto de vista,

fizeram "eleger", dentre eles, um outro "papa" — um antipapa! Horror, meus irmãos,

horror é o que eu sinto, neste transe difícil da vida da Igreja. Eu sei que não é nova, na

história, a situação. Mas profundamente lamentável é que ela se repita no século XXI,

terceiro milénio da era de Cristo. Tempo em que seria legítimo pensar que factos destes

estariam para sempre arredados da vida daqueles que se dedicaram um dia à missão de

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testemunhar o Amor de Deus à Humanidade. Depois do Vaticano II, meus irmãos, parecia

inimaginável que tal viesse a acontecer Mas aí está a demonstrar que o inferno

escancarou as suas portas para vomitar ódio contra tudo o que tem o sinal da Cruz. Cruz

que é sinónimo de Amor sem limites, de perdão a quantos se arrependem dos seus

crimes, de paz para quem ama sinceramente e se dá, como Ele, até ao fim. Temos a

certeza de que Satanás não vencerá! Mais: o Verbo de Deus é cortante — O príncipe do

mal já está derrotado! Mas temos o dever de tudo fazer para que, na derrota final, não

arraste consigo aqueles que foram marcados com o sinal daquela Cruz — sinal mais...

daquele Amor! Isso sim, irmãos, é nosso dever intransmissível, e ai de nós se o não

cumprirmos rigorosamente, com todas as forças, com todo o empenho e entusiasmo,

mitigando, nesta hora dolorosa, as dores, o sofrimento da Igreja de Jesus.

Vamos, por isso, irmãos, cobrirmo-nos de saco e cinza… e orar, orar muito ao

Senhor de todos os corações, para que sugerindo aos rebeldes a consciência do mal que

estão a causar à Humanidade e a vontade de arrependimento, com o consequente

arrepiar do caminho errado que empreenderam, volte a reinar a unidade pela qual Ele

próprio tanto pediu ao Pai. Não sairá da minha boca qualquer anátema. Peço aos irmãos

conciliares que sigam este meu desiderato. Estamos aqui para aperfeiçoar e não para

cortar. Por amor tudo sofreremos, certos de que Deus aceitará o nosso sacrifício em

redenção dos que erram. A todos os presidentes das comissões peço especialmente que

dediquem ao fenómeno alguma reflexão, para que, posteriormente, em reunião conjunta

de todos, saia uma posição conciliar de apelo aos rebeldes.

Apelo veemente de toda a Igreja, no sentido de cessarem imediatamente todas as

acções fracturantes da unidade. E se a situação permanecer, após o termo deste Concílio

— o que Deus afaste — peço, desde já, a todos os irmãos no episcopado que

empreendam nas respectivas dioceses jornadas de oração e de reflexão pela unidade da

Igreja e cessação da contumácia dos rebeldes.

Finalmente, peço-vos, irmãos, que acelereis os trabalhos das diversas comissões,

redigindo documentos conclusivos sobre as mais diversas matérias, sempre em linguagem

simples e que se sinta impregnada do Espírito Santo de Deus: O Amor Eterno do Pai e do

Filho!

Depois de um dia de intenso trabalho com todas as presidências das comissões

conciliares, Pedro, mais uma vez acompanhado do cardeal, Perez-Logano, volta a Roma.

Os dois homens quase não falaram durante as longas horas de viagem. A leitura e o

Rosário fizeram a companhia nocturna do Papa e do adjunto.

Às primeiras horas da manhã do dia seguinte, ainda o sol mal espreitava pelos

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vidros do duomo de S. Pedro, já o táxi abrandava a marcha, ao chegar à porta de entrada

para os museus do Vaticano.

Aí, Pedro e Logano encontraram o primeiro sinal do endurecimento da situação. A

porta estava trancada. Nem um guarda para a abrir, mesmo depois de instantes e

prolongados toques na campainha. No pátio de S. Dâmaso, também tudo fora encerrado.

Experimentada a porta secreta, dois guardas impediam a entrada fosse a quem fosse.

Pedro, aí, não, se conteve. Passou por entre eles, como Cristo no Templo de Jerusalém,

pelo meio dos vendilhões. Adiante, uma patrulha de guarda suíça quis cumprir as ordens

que tinha. Mas, consultado o comandante, este apressou-se a franquear a entrada a

Pedro, ajoelhando-se, beijando-lhe o anel do pescador e pedindo perdão pelo

espectáculo. Aconselhou, porém, Pedro a desistir do confronto com o antipapa, pois ele

tinha tomado posse, na noite anterior, dos aposentos privados do Papa e estava rodeado

de homens possantes e armados até aos dentes. Pedro sossegou o bom comandante da

guarda e fez sinal a Logano para avançar. Os dois homens subiram a escadaria,

atravessaram a sala e tomaram o ascensor. Quando a porta automática se abriu, dois

canos de metralhadora ligeira, uma de cada lado, apontavam para os ilustres e agora

"estranhos" visitantes. Pedro fez que não viu e, logo seguido de Logano, avançou em

direcção aos seus aposentos privados. Um ruído de disparos em seco fez-se ouvir

repetidamente, por detrás dos "visitantes" inoportunos. Estes, dobrada a esquina do

pequeno corredor e quando se preparavam para entrar no gabinete de trabalho do Papa,

anexo à sua biblioteca pessoal, encontraram um verdadeiro batalhão de homens de fato

negro e óculos escuros, de armas automáticas em punho, barrando-lhes o caminho. (—

Peço vénia ao Senhor de todos os exércitos, de toda a cidade santa, ao nosso Deus de

Amor, Bondade e de toda a Misericórdia e a Sua Excelsa e nossa Mãe Maria, de toda a

Assembleia dos bem-aventurados, para a transcrição exacta da linguagem infernal que

urdiu os diálogos que se seguiram. Só assim se poderá compreender o vómito de Satanás

perante a presença de Pedro.)

— Nem mais um passo ou um gesto! — Grita o chefe da força...

— Irmão... — Ia o Papa a falar, com a voz embargada, mas cheia de serenidade.

— Irmão, o caralho! — Interrompe o gorila, chefe dos gorilas. — Meia volta e toca

a abandonar imediatamente o local! Não me obriguem a desfazê-los em merda!

— Mas… eu sou o Papa!...

— Você aqui já não é nada. O nosso papa — João Paulo III, legítimo sucessor de

João Paulo II— está ali dentro, em reunião, e não quer ser importunado. Ouviu? Então,

não há mais explicações. Vou contar até três. Se me desobedecer, os meus homens

disparam!

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Pedro fechou os olhos, recolheu-se em rápida e profunda oração e,

imediatamente, de olhos semicerrados, perante o espanto dos gorilas, seguiu em frente e

abriu a porta do gabinete. Neste momento, um repetido som de armas que não

disparam, encravam, desencravam, mas não vomitam metralha, é sentido pelos dois

homens que avançam. O gabinete estava remexido, tudo de pernas para o ar. Seguem

para a biblioteca. Aí, a porta estava fechada. Pedro introduz a chave e abre

repentinamente. Apanhados de surpresa, todos se levantam, enquanto quatro gorilas,

estrategicamente colocados, um a cada canto, aponta as armas para os intrusos.

— Vá! Disparem!... Ou que esperam?... — Ouve-se, em voz rachada de tabaco e

álcool. Era o "venerável" que presidia à reunião...

— E que estamos nós a tentar fazer, desde que estes aqui entraram? Veja como

ficaram as putas das metralhadoras! — Era o chefe a tentar uma explicação para o facto

de as armas terem ficado todas encravadas.

— Mas que merda de arsenal é que compraram? Eu já trato da saúde do Corleone

V... Aquele cabrão, nem sequer sabe honrar o nome! Filho da puta... Já meteu mais uns

cobres ao bolso, comprando merda e fazendo-me pagar ouro! Eu já lhe digo...

Terminada a frase, o "venerável" maneja com rapidez a arma de defesa que traz

sempre no estojo debaixo do sovaco esquerdo, a coberto do casaco, com lenço de seda e

tudo. Mas a própria arma também não funciona. Puxa e repuxa a culatra, carrega e

descarrega, engatilha e desengatilha, mas... nada! A pequena maravilha da técnica de

matar que lhe tinha custado uma fortuna em Nova Iorque desta vez também não

funcionou. — «Afinal, a merda também atingiu a do chefe...» — fez o gorila-mor ao

ouvido do ajudante. Os dois sorriram lá por dentro...

Pedro nem deu importância às armas, nem à fétida casquinagem do "venerável".

Olhou em redor. Eram cerca de vinte pessoas sentadas à mesa. Obedecendo, porventura,

a uma qualquer lei de "quotas" de mulheres, estavam ali umas dez, no meio de uns

quantos velhos caquécticos, mas muito fumegantes. Dentre eles sobressaía a figura do

geronte ex-arcebispo de Siracusa, agora travestido — e muito mal, diga-se — de papa!

Uma sotaina branca, com faixa amarela e um solidéu branco, mal acabado e sujo.

Quando viu Pedro e Logano atrás, o velho Di Tronchetto meteu a cara entre as mãos e

disse qualquer coisa que ninguém entendeu. Pedro, logo que o palavreado soez do

"venerável" terminou, levantou os braços e tentou, junto do antipapa, arrastá-lo para

fora e dialogar. Não o conseguiu, porém. Di Tronchetto agarrou-se à cadeira e as cortesãs

meteram-se logo ao meio. Nesse momento, o fotógrafo de serviço disparou. Pedro

estava, então, inclinado para Di Tronchetto, mas com duas mulheres de seios

semidesnudos a seu lado tentando segurá-lo. Esta fotografia correu mundo, via net e,

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depois, através de todas as televisões, jornais e revistas, sempre acompanhada de

rodapés e comentários disparatados e soezes. Vendo que nada conseguia, Pedro

convidou Di Tronchetto para uma oração em conjunto. O antipapa, porém, não se

moveu. Até que, ao sinal do "venerável", os gorilas agarraram violentamente Pedro e

Logano e puseram-nos fora da porta.

Com o auxílio velado do comandante dos "suíços", Pedro permaneceu alguns dias

escondido, mas activo, no interior dos "palácios apostólicos". Sempre acompanhado de

Logano, Pedro veio a descobrir que a sede da "loja" se tinha mudado para ali. As reuniões

eram permanentes. E — cúmulo!... — a elas compareciam, às vezes, altas figuras do

Estado italiano, membros do governo, generais, comandantes dos carabinieri, etc. As

confidências de Pedro com o Presidente da República... Afinal... «Meu Deus — orava

Pedro, em silêncio — como é possível que toda esta gente esteja vendida ao império de

Satã? Senhor, agora vejo claramente a 'abominação da desolação, sentada no lugar

santo'...»

Quanto mais Pedro avançava com Logano nas investigações, mais chocado ficava

com o que via: prostitutas de todas as classes passeando-se livremente pelos corredores;

armazéns de armas e munições, encaixotadas e prontas a seguir pelo heliporto para

qualquer parte do mundo; montes de pacotes de coca, de heroína, de cannabis... que ali

eram procurados, de noite, para exportação, com a ajuda dos serviços estaduais. Pedro,

por momentos foi acossado de tal acesso de ira que confidenciou a Logano: «Vamos

mandar pelos ares este paiol do inferno?» Logano sorria e acalmava: «Pedro, quem sou

eu para te dar conselhos?! Mas a hora de Deus ainda não chegou. Deixa a "grande

prostituta" alargar mais as suas pernas de imoralidade. Que trafique, onde deveria ser

lugar de oração! Que espalhe o fedor do enxofre por todo mundo. Não há autoridade do

Estado; não existe polícia que não esteja corrompida; e também já não há justiça de

"mãos limpas". Todo podrido, Pedro, todo podrido!... Só o dinheiro manda. Só o

excremento do diabo impõe obediência. No momento certo, porém, todo o seu império

sucumbirá! Temos a promessa de Cristo. Ele não falha! Fujamos daqui, Pedro! Enquanto

é tempo. E dediquemos a nossa atenção àqueles que ainda acreditam que Jesus é o

Senhor!»

Pedro deixou uma carta escrita para ser entregue pelo comandante dos "suíços" ao

antipapa. E partiu, com Logano, para Brasília. Durante a viagem nocturna, antes de

adormecer, Logano viu Pedro a chorar continuamente. Num gesto de caridade, Logano

pediu um café e ofereceu-o a Pedro. Este aceitou e agradeceu. Depois, dormiram ambos,

por algum tempo. Pois foram acordados pelo comissário de bordo que lhes entregava um

telegrama recebido minutos antes. «Lamento informar bomba, a bordo stop Se não te

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safares desta bom para todos stop Tronchetto». Brincadeira de mau gosto ou não, o

certo é que o B777, que as autoridades de Brasília tinham colocado ao serviço de Pedro,

se preparava já para uma escala imprevista no aeroporto de Santa Cruz de Tenerife.

Umas horas depois, todos chegavam ao Galeão, sem qualquer problema, para além

do natural sobressalto. No aeroporto do Rio de Janeiro, Pedro reuniu, a sós, com o

Presidente da República Federativa do Brasil. Da conversa de cerca de uma hora nada foi

revelado à comunicação social. Mas Pedro diria mais tarde, em conferência de imprensa

havida durante o voo para Brasília, que a grave situação internacional foi tema

dominante dessa conversa e, como não podia deixar de ser, que «o Senhor Presidente

quis ser informado de todos os pormenores dos esforços em curso para fazer terminar a

embaraçosa situação de bicefalia da Igreja Católica».

No Concílio, Pedro foi mais uma vez recebido com entusiasmo e, perante o

plenário de todas as comissões, fez um relato circunstanciado de todos os seus passos

em Roma. Ao referir o estado em que encontrou a Basílica de S. Pedro e os edifícios do

Vaticano, agora albergando prostitutas, centros de narcotráfico e verdadeiros armazéns

de armamento ligeiro e pesado, com seus paióis de munições, o Papa não pôde simular

as lágrimas que lhe corriam abundantes pelo rosto e a comoção que lhe embargava a

garganta. Foi com grande custo que se ouviu Pedro revelar, em dor e angústia:

— A abominação da desolação está sentada no lugar santo. Lugar santo que é, não

só o lugar onde Pedro Apóstolo verteu o seu sangue por Cristo, mas — e sobretudo — o

"Coração do Homem"! Irmãos, preparemo-nos, com fé e muita confiança no Senhor, para

o sofrimento que há-de vir. A juntar à crise da Igreja, as nações, os povos do planeta

também não se entendem. Os alimentos que sobram aos ricos são deitados ao lixo e é

daqui que os pobres os vão tirar para aguentarem uma existência infra-humana. Os ricos,

em lugar de ouvir os clamores dos pobres, fecham-se no seu egoísmo feroz e preferem a

ameaça das armas. Os pobres do Sul gritam por justiça. Os do Norte tapam os ouvidos e

preparam os obuses... Mas ninguém vencerá ninguém pela guerra. A solução dos grandes

problemas mundiais está no Amor não nas políticas de ódio e guerra! A humanidade só

encontrará a felicidade amando-se como Cristo amou a humanidade. Isto está tudo

errado, irmãos. Os chefes de Estado nunca se entenderão senão no Amor! As cimeiras

serão sempre infrutíferas se não assentarem definitivamente no Amor, na solidariedade,

na partilha, na compreensão, no perdão. Depois, as organizações internacionais do crime

têm minadas todas as condutas do entendimento humano. Há mísseis com ogivas

nucleares por aí à venda, a boiar em cascos de submarinos, prontos a serem disparados a

qualquer momento! E há loucos que detêm todo o poder de os fazer explodir quando

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quiserem! Irmãos: está na hora de alijarmos definitivamente séculos de história. Acabar

com certos preconceitos de grandeza do papado. Para que o mundo veja em nós, apenas

e só, os anunciadores de um outro Reino — o Reino de Deus que é de Justiça, de Amor e

de Paz! Onde os pobres, os humildes, os excluídos têm lugar antes de todos! Para que o

mundo sinta que não queremos mais que ser continuadores da missão do Amor. É preciso

orar! Orar muito, como o Senhor no Jetzémani, para que todos sejam um! Para que o

Amor — Espírito Santo de Deus — emprenhe todos os actos dos dirigentes dos povos!

Despojai-vos, irmãos, de tudo o que é do mundo. Vistamo-nos de saco e cobramo-nos de

cinza, como fizeram os habitantes de Nínive. Façamos penitência! Talvez o Senhor nos

oiça e nos perdoe! Talvez a Sua Infinita Misericórdia nos faça passar incólumes a porta

estreita.»

O discurso de Pedro deixou todos os conciliares verdadeiramente prostrados. E

todos se questionavam: o que fazer?

Com a concordância de Pedro, o plenário decidiu enviar a Roma uma delegação

oficial, chefiada pelo presidente de todas as comissões, o cardeal Menezes e Costa, tendo

como adjunto Colombano Righetti que lá permanecera. Pedro aconselhou os membros

da delegação a fazer profunda vigília de oração e penitência, pois iam «enfrentar

verdadeiros demónios». Que se vestissem de serapilheira e cobrissem de cinza as

cabeças. «Nos corações, apenas uma imagem, um objectivo, uma finalidade: Cristo! E a

unidade do rebanho!...»

Enquanto os conciliares se recolhiam ao estudo e à elaboração dos projectos das

conclusões das matérias já discutidas e consensualizadas, Pedro reuniu com Logano, a

quem convidou para uma especial jornada de oração e penitência. Pedro de Alcaçuz e

Alcantilar procurava o momento para se recompor psiquicamente, dirigindo-se em

peregrinação ao local onde passou vários anos da vida, com os pobres índios e simples

caboclos das margens do Solimões, sítio onde estavam sepultados os mais autênticos e

queridos missionários que conhecera: os próprios pais.

Pela calada da noite, tomaram o avião para Manaus. Aqui os esperava a mulher

brasileira que, em Roma, havia sido escolhida para coordenar, naquela região, os

trabalhos da revolução em curso. Salomé se chamava e tinha em estatura física a

dimensão da inteligência e do coração: enorme! Ainda o sol mal espreitava por entre a

densa folhagem dos gigantes amazónicos e poucos eram os gritos das araras, já o

helicóptero do governador de Manaus, transportando Pedro, Logano e Salomé, poisava

lentamente no terreiro fronteiriço à Igreja de S. José de Nigaci, agora transformada em

grande catedral de tábua e folhas de palmeiras. Em frente, no mesmo lugar onde

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estavam as campas de Teófilo de Alcantilar e de Dina de Alcaçuz, erguia-se, agora, um

curioso mausoléu, sempre adornado pelos aborígenes daquela zona amazónica que

jamais cessaram de os chorar. Havia vários anos que eram invocados popularmente pelo

sugestivo nome de "os santos missionários dos pobres".

Ali se juntavam, todos os dias, multidões de peregrinos que, de toda a Amazónia e

mesmo do resto do país, vinham confiantes no milagre. Era a cura de maleitas de

humanos ou até de animais, era a conciliação de um casal desavindo ou o reencontro de

familiares perdidos. Os autocarros chegavam fumegantes, a estuprar a virgindade da

selva, carregados da gente pobre das malocas que tinha ouvido falar nas virtudes e na

santidade do casal missionário. Porém, depois de conhecida a notícia de que o filho que

deixaram se tornou no novo Papa de Roma, a devoção aos "santos" de S. José de Nigaci

não cessou de crescer. Assim, quando o heli sobrevoou a terra vermelha, muita gente foi

obrigada a afastar-se do centro da praça, por causa da imensa nuvem de poeira

levantada pela agitação súbita do vento à superfície, à medida que as enormes pás do

rotor do aparelho em movimento se aproximavam lentamente do improvisado heliporto.

Salomé foi a primeira a abandonar a aeronave, logo seguida de Pedro e Logano,

ambos em calça e camisa, mas tendo a cobrir-lhes todo o corpo, da cabeça aos pés, uma

túnica de serapilheira escura, que fechavam e levantavam um pouco, com a mão, à

frente, para que não tropeçassem. Ninguém os reconheceu. Ao vê-los sair do aparelho,

muitos pensaram tratar-se de altas figuras do Estado, disfarçadas, pelo que cada um

seguiu a sua peregrinação, de acordo com o próprio itinerário.

Conversando em surdina, depressa chegaram os três ao monumento construído

pelos índios. Era um mausoléu em forma de pirâmide, feito em tijolo-burro da região,

terminando num vértice pontiagudo, sobre o qual se formava uma base em globo que

sustentava uma enorme cruz, feita com duas catanas de grandes dimensões,

atravessadas uma sobre a outra. Na fachada, uma pequena porta, sempre guardada por

dois índios armados de vistosos terçados e em posição de sentido, tendo as cabeças

aureoladas das suas tradicionais e bem plumadas acanitaras. Por cima da porta,

desenhado em raríssima e enorme placa de xisto, estava um painel em que se viam bem

esculpidos os traços dos rostos de Teófilo e de Dina, olhando sorridentes uma infinda

multidão de outros rostos que se levantavam para o alto.

Sem retirarem o véu da serapilheira, Pedro e Logano aproximaram-se das

sentinelas, fizeram-lhes uma vénia, e Pedro falou-lhes no dialecto aborígene: «Quem

guardais?» A voz e o rosto inconfundível, mais descoberto por uma inoportuna lufada de

vento, fizeram os dois índios prostrarem-se por terra, beijando a mão de Pedro. O mais

alto exclamou rapidamente: «D. Pedro, guardamos os túmulos dos nossos santos

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missionários e vossos pais, fundadores desta terra!»

Pedro apertou mais a serapilheira sobre o rosto e agradeceu em lágrimas a

informação prestada. Avançou com Logano para o interior. Salomé precedia-os, sempre

solícita, agora no abrir caminho. Duas estátuas jacentes, representando Teófilo de

Alcantilar e Dina de Alcaçuz, encimavam os respectivos sarcófagos. Ao centro da parede

do fundo, uma estreitíssima janela de catedral gótica permitia a entrada de ar e de um

raio de sol que parecia fazer sorrir os rostos das estátuas. À cabeceira dos sarcófagos

existia um pequeno altar de pedra da região, onde era possível celebrar a Eucaristia. O

restante e apertado espaço estava coberto de pequenos e grandes ramos de flores de

todas as espécies que há no seringal, de coroas de verdes da selva, aqui e ali tecidos com

as mais aromáticas flores tropicais. Delas pendiam fitas de seda que recordavam os

nomes das terras das peregrinações e respectivas datas.

Pedro, a custo, levando Logano pelo braço, conseguiu ultrapassar a fila de

peregrinos que dava a volta aos sarcófagos e caiu de joelhos à cabeceira das estátuas.

Inclinando o rosto, sempre coberto pela serapilheira, chorou silenciosamente durante

longo período. Com os braços estendidos sobre as estátuas jacentes e enquanto Salomé

fazia sinais para que a pequena multidão observasse rigoroso silêncio, Pedro orou, em

voz carcomida pelo sofrimento dos últimos dias, mas bem vibrante, de forma a ser

ouvido por quantos se preparavam em longa fila para entrar no mausoléu dos "santos

missionários":

— Papai! Mamãe! Volto junto de vós, não para vos chorar! A glória que o nosso

Bom Jesus vos reservou não é para chorar, mas para festejar. Mas eu estou triste! Papai!

Mamãe! Ouvi-me! Estou muito triste, sim, por aquilo que o demónio vem fazendo à

Igreja, ao Povo de Deus, por quem Cristo deu a vida, há precisamente dois mil anos! Neste

momento terrível para a criação, quando mais se fazia sentir a necessidade do exemplo e

da palavra de Jesus, levada ao coração de todos os humanos pela vivência do Amor,

Belzebú semeia a discórdia, o ódio, a ganhuça miserável, a sede de destruição da própria

humanidade, arrastando com ela toda a criatura dos três reinos da natureza. E até

algumas das pessoas que deveriam ser agora exemplos vivos de abnegação, de entrega

ao serviço das comunidades cristãs, profetas do Reino da Vida, do Amor e da Paz, se

transformaram em horríveis serventuários dos agentes do diabo! Papai! Mamãe! O

centro histórico da cristandade virou casa de maldição, do crime, do lenocínio, da

prostituição, do tráfico de droga, do contrabando de armamento de qualquer espécie,

mesmo de armas químicas e biológicas de destruição maciça!... O próprio templo que é

símbolo da unidade de todos os cristãos, aquele que leva o nome do primeiro papa — o

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Pedro Apóstolo que ali verteu o sangue por Amor a Cristo e à Humanidade por Ele

redimida — está agora ao serviço de cerimoniais satânicos do crime organizado. Um

horror, papai e mamãe! Um horror! Que mais me esperará nesta vida? A vossa

intercessão junto de Deus, para que me dê força nesta hora difícil, é tudo o que vos venho

pedir! Eu sei que Ele nada pode fazer, se o homem O não quer amar! Se prefere as trevas

à Luz! Mas, papai e mamãe, por favor, com toda a corte celestial a pedir... muita coisa

poderia mudar. Acredito que a liberdade humana é um dogma, dos mais relevantes nas

páginas que traduzem a Mensagem do Verbo Encarnado. Mas, como Abraão, acredito

também que a vontade humana pode ser tocada, e, como em Nínive, até o rei pode

cobrir-se de saco e sentar-se nas cinzas, ao ouvir a palavra de Deus, transmitida pelo

profeta Jonas.»

Ainda Pedro não terminara a oração e um vento nada usual naquelas paragens

começa a fazer levantar enormes ondas de poeira avermelhada que tolda os raios de sol

ardente que, a meio do dia, naquela época do ano, costumava ser esplendoroso e

imperturbável. Ao forte zumbido do vento, veio juntar-se uma saraivada incrível,

fenómeno completamente alheio à meteorologia das paragens amazónicas. Sem se

vislumbrar no horizonte qualquer cúmulo, daqueles que fazem a noite mais cedo

anunciando tenebrosa borrasca, rebenta um violentíssimo estoiro de trovão que faz cair

por terra lamacenta todos os peregrinos de Nigaci. Outros se seguiram, aterradores,

como potentes engenhos explosivos, a deflagrar sobre uma cidade a destruir, em guerra

inimaginável.

Poucos minutos depois, o granizo esgotou-se e, das enormes bolas de gelo vindas

das alturas que encheram todo o recinto, começaram a desabrochar as mais belas flores

que jamais ser humano algum houvera contemplado. Mais que os campos holandeses

cheios de tulipas, mais que uma estufa pejada de orquídeas, mais que um enorme

canteiro de amores-perfeitos, ondulando o cetim das pétalas violáceas e amarelas ao

primeiro beijo da aurora, o terreiro de S. José de Nagaci ficou irreconhecível da beleza

mais bela da cor suave e infinitamente variada de todas as flores do universo. O perfume

que exalavam era de tal modo inebriante que não houve peregrino que se não tenha

levantado imediatamente e perguntado, ainda assustado, «o que é isto?...» e «que

perfume é este?...»

Pedro, Logano e Salomé, que permaneciam ajoelhados e silenciosos durante a

extraordinária e incompreensível tempestade, ao sentir o bulício dos peregrinos dentro e

fora do mausoléu, levantaram os olhos e depararam com uma luz indescritível que

poisava em feixes coloridos sobre os túmulos, luz que, a pouco e pouco, se transformou

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em nuvem de uma transparência luminosa, mostrando nitidamente o casal missionário a

agasalhar crianças e idosos com a própria roupa do corpo, a alimentá-los com o pão que

levavam para o almoço e a curá-los das chagas e doenças que os afligiam. Ao mesmo

tempo, uma voz dotada de uma suavidade nunca ouvida dizia: «Assim fizeram estes,

seguindo o exemplo que lhes dei. Assim deveis vós fazer também. Pedro, faz assim. E

ensina toda a Igreja a fazer o mesmo. Os dias de Satanás estão a acabar. Não tenhais

medo! Eu venci o mundo!» Seguiu-se um magnífico coral de vozes tão leves, entoando

harmonias de tal enlevo, que Pedro, Logano e todos quantos se encontravam dentro do

mausoléu ficaram por momentos sem saber onde estavam e que ambiente era aquele

que os envolvera. Salomé, reagindo à sua maneira, levantou-se e juntou a sua voz à dos

anjos que viu (disso deu testemunho) rodeando os túmulos e cantando a beleza da

criação. Quando terminou a harmonia celestial, Pedro e Logano olharam para a porta e

viram uma grande multidão ajoelhada num campo atapetado de flores de todas as cores

do arco-íris, batendo palmas e gritando «viva Pedro, viva Pedro, viva Pedro!»

Os missionários jesuítas que presidiam à missão e não sabiam da presença de

Pedro naquela hora e local, tendo ouvido dizer o que acontecera, ainda aterrorizados

pela tempestade de todo inexplicável, acorreram ao mausoléu. Muitos romeiros

contavam, então, cada um a sua versão dos acontecimentos. Tudo muito pouco em

relação ao que na realidade Pedro, Logano e Salomé viram e ouviram. Na pequenina

Igreja da missão, onde ainda se viam retratos do professor Teófilo e da médica Dina, com

descrições dos feitos mais relevantes da vida que ali viveram a ensinar, a alimentar e a

curar os índios, toda a gente sem terra, sem pão, mas com esperança, Pedro reuniu com

os missionários, pedindo-lhes que anotassem tudo o que de extraordinário acontecesse

naquela terra ou fora dela, com relação ao casal missionário ali sepultado. À multidão

solicitou o mais rigoroso silêncio sobre o que tinham observado. Acrescentando: «Não

são os milagres que mudam as consciências, mas sim os nossos exemplos de fé!»

Quando regressaram a Manaus e o helicóptero aterrou na praça da catedral, Pedro

ficou boquiaberto com a euforia da multidão que ali acorrera, tendo à frente o velho

arcebispo que, vestindo também uma túnica de serapilheira, incitava as crianças a agitar

as bandeirinhas e todo aquele povão a aclamar Pedro. Um grande coral misto entoava,

entretanto, com toda a solenidade e convicção: «Tu es Petrus! ...»

Na catedral de Manaus, Pedro presidiu a uma concelebração eucarística, dando a

palavra, no momento próprio, a Salomé. Nascida no meio amazónico, tinha na alma a

cultura da simplicidade cabocla, mas possuía também o verbo fácil e afiado da sabedoria

de uma fé inquebrantável, aliada a uma inteligência superior que desenvolvera nas

universidades do Rio, de Lovaina e de Friburgo. Salomé era mulher de vontade forte e

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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decidida. Mas era mãe de grande coração. Agradeceu, comovida, a deferência e, em

nome de Pedro II, testemunhou como o "nosso Papa" tinha vindo a S. José de Nigaci,

privadamente, como qualquer outro romeiro, em visita aos túmulos dos pais, e como,

afinal, tudo se havia transformado num acontecimento que lhe traria a força que já

faltava para continuar a acreditar na unidade da Igreja de Cristo. Referindo-se aos factos

extraordinários por si mesma verificados junto ao mausoléu de S. José de Nigaci, Salomé,

chorando de entusiasmo, pediu a Pedro que não impedisse a sua divulgação, pois bem

poderiam contribuir para a coesão eclesial. A terminar, em atitude de grande emoção,

ofereceu-se para ir a Roma «testemunhar a força do Espírito perante a incapacidade dos

contumazes. Quem sabe se, como em Nínive, a maldade, a perfídia humana será vencida

e, pelo triunfo do Amor, todos se unirão de novo e todos serão um?!»

O arcebispo de Manaus, já conhecedor dos pormenores dos factos relatados pelas

televisões e rádios, agradeceu a Deus a visita de Pedro e terminou com a frase que se

tornaria refrão e bandeira por todo o Brasil e em todo o mundo: «Pedro, não vaciles, o

Céu está contigo!»

Por longos minutos, a multidão presente gritou o refrão, com entusiasmo

contagiante.

No final da Eucaristia, Pedro, sustendo a custo as próprias lágrimas, falou:

— Irmãos, a palavra de mãe Salomé foi certeira, foi a voz da fé e do entusiasmo de

quem sabe porquê e em Quem crê! Quem disse que as mulheres destes tempos de

mudança não estão preparadas para assumir responsabilidades próprias na Igreja de

Jesus? Vede o exemplo desta grande mulher e sabereis porque foi escolhida para nossa

directa colaboradora. Digo-vos, irmãos, aqui em Manaus — terra onde vivi momentos de

grande emoção e alegria —, que é esta a hora de deixar de vez o androcentrismo de

séculos na direcção da marcha do Povo para a Nova Jerusalém e escutarmos

atentamente — nós, os homens — o que o Espírito de Deus tem para nos dizer, pela boca

daquelas irmãs, cuja vida profética é alerta constante para os perigos da caminhada. Há

coisas, irmãos, que só a mulher é capaz de entender e de explicar convenientemente. Só

ela pode ser MÃE! Só ela sabe dar a mão à criança que salta na rua, inconsciente quanto

aos perigos que a espreitam, mas inteiramente confiante de que está segura! Jesus — o

Deus Redentor da Humanidade — assumiu, no seio de uma MULHER, a natureza humana

de que carecia para poder responder como homem aos desafios da Redenção anunciada

logo após o primeiro acto de rebelião e, a seguir, pelos profetas. Depois dos primeiros

dois séculos de cristianismo, em que as mulheres tiveram sempre papel importante no

anúncio da Boa Nova, elas foram infelizmente esquecidas. Não o serão doravante!

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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Prometo-vos, aqui, solenemente! Meus pais, se aqui estivessem connosco hoje teriam,

certamente, uma das maiores alegrias da sua vida terrena. Qual de nós pensara já nas

imensas potencialidades de uma embaixada de pessoas como mãe Salomé, na solução da

gravíssima crise que se abateu sobre a Peregrinação deste Povo? O Concílio vai dar um

salto qualitativo enorme, também neste ponto, repondo a situação dos primeiros séculos

da Caminhada. O androcentrismo não tem, na Eккλέσiα, qualquer fundamento! É estéril,

é negação do Evangelho de Jesus! Irmãos, a hora é grave de mais para desperdiçarmos

valores essenciais no anúncio corajoso do "Reino"! Vamos todos rezar e rezar muito para

que o Espírito de Deus nos mostre sempre o melhor caminho a seguir, para o bem de

todos e de toda a Humanidade. O Concilio vai debater a questão levantada por Salomé. E

o que for decidido, na fidelidade absoluta ao Espírito, assim se fará. Por agora, volto a

insistir irmãos, oremos sem cessar ao Senhor que nos pode mostrar e iluminar as

veredas...

Noite cerrada, Pedro regressa a Brasília. O Concílio esperava-o. Era incontável a

multidão que enchia a belíssima catedral e todo o espaço envolvente. Os altifalantes

anunciaram a entrada do Papa. Foi o rastilho que fez explodir de alegria toda a minha

gente. Palmas sem fim, cânticos e vivas, hossanas e louvores ao Senhor acompanharam a

difícil caminhada de Pedro até ao altar-mor. Quando pôde levantar a cabeça e ver o

enorme painel que haviam colocado por detrás, com o dito refrão lançado pelo arcebispo

de Manaus poucas horas antes — «Não vaciles, Pedro, o Céu está contigo!» — Pedro não

resistiu. A emoção daquele dia foi demais... E voltou a chorar! À muita tristeza da hora,

juntava-se-lhe, agora, no coração, a imensa alegria do momento. Quem poderia resistir?

Pedro foi informado das dificuldades sentidas em Roma pelo irmão Menezes e

Costa e respectiva delegação conciliar que não conseguira, ainda, falar com Di

Tronchetto. O papa voltou-se, então, para a assembleia e verificou que todos os bispos,

teólogos, religiosos e religiosas e muitas pessoas do povo vestiam a túnica de

serapilheira. Com os braços levantados e a sua voz de trovão, disse apenas:

— Irmãos, muito obrigado por estarem aqui, a esta hora, esperando um romeiro da

Amazónia... Cada um faça a romaria que entender possível, dentro do respectivo

enquadramento familiar Mas façam todos qualquer coisa! A hora continua a ser de

grande gravidade para todos. Crentes ou não, todos têm o dever de estarem atentos aos

sinais destes tempos que atravessamos e de fazerem o que puderem para ultrapassar a

crise. E que fazer, irmãos? — Amar! Ser bom. Amar! Os que não amam não são de Cristo!

E esses já estão condenados! Porque preferiram o ódio de Satanás ao carinho do Amor

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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Misericordioso de Deus! Irmãos, àqueles que puderem, peço que passem esta noite, aqui,

comigo, prostrados aos pés do nosso Bom Jesus, em contínua vigília de oração e

penitência! Quem sabe se não nos perdoará... e toque o coração dos que fazem a

discórdia? Quem sabe se, amanhã, as notícias nos dirão que cessou a contumácia, e a paz

e a união reinam, de novo, entre os irmãos?»

A noite foi grande na catedral de Brasília. Pedro mandou que a assistência aos

doentes e mais fragilizados que quiseram passar ali a noite fosse reforçada. E ordenou

que a todos distribuíssem café. Assistidos os corpos pôde o espírito manter-se alerta.

Jornada inesquecível — diziam uns. Noite santa — afirmavam outros. Horas preciosas —

lhes chamou Pedro, na homilia que pronunciou às primeiras horas da madrugada. As

televisões e muitas rádios brasileiras transmitiam em directo da catedral de Brasília.

Meios de comunicação de massas de todo o mundo não cessavam de referenciar os

passos mais importantes de Pedro, com particular destaque para os "fenómenos

estranhos" ocorridos na Amazónia, onde o Papa fora em visita privada aos túmulos dos

pais. E todos se referiam ao "milagre" da nuvem transparente e da voz suave que falara

com Pedro. Interrogavam-se romeiros e ouviam-se comentários e opiniões.

Em Roma, nada disto passava despercebido. A delegação conciliar ponderava tudo,

recebia instruções directamente de Pedro e aguardava o melhor momento para agir.

Entretanto, o Concílio decidira já, de harmonia com o desejo do Papa, enviar Mãe Salomé

para Roma, onde reuniria as colaboradoras das diversas regiões de Itália. Todas sabiam o

código do local. Depois, ficariam integradas na delegação conciliar de Menezes e Costa.

Do outro lado, um gabinete de homens da Camorra — agora aliada da Cosa Nostra

— anotava e trabalhava todas as notícias vindas do outro lado do Atlântico, transmitindo-

-as, depois, à secretaria do antipapa. Aqui, os "veneráveis" das respectivas "lojas", em

estreita união com os santos banqueiros da secreta da Lexington Avenue, analisavam

tudo e levavam ao conhecimento do velho Di Tronchetto que se limitava ao habitual

«Placet». Di Tronchetto deixara de presidir às reuniões das assembleias das lojas.

Também no Vaticano já ninguém se importava com ele. Prisioneiro dos respectivos

aposentos, apenas lia os jornais, via as televisões e, algumas vezes ao dia, recebia

delegações das várias máfias instaladas nos "palácios apostólicos". Aqui, na chamada

"Torre de Bórgia" — descobriram as primeiras emissárias secretas da delegação conciliar

— estava agora instalada uma requintada mansão, onde prostitutas mais qualificadas

atendiam altas personalidades da política, dos meios financeiros, das forças armadas e do

próprio clero. No chamado Palazzo Belvedere, do lado oposto, o movimento nocturno de

homens que entram e saem, carregando grandes camiões que se dirigem ao aeroporto

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ou aos portos do Adriático, era quase permanente, só abrandando e desaparecendo com

as primeiras claridades da aurora.

Transmitindo tudo a Pedro diariamente em relatórios electrónicos, o presidente da

delegação conciliar terminava o deste dia assim: «Tenebrae factae sunt!» (As trevas

envolveram toda a terra). Acrescentando:

«Ninguém aqui na delegação, porém, desespera. Ninguém caminha às escuras.

Temos a Luz que nos enviaram pelas nossas irmãs Salomé, Margaritta, Vicenza, Paola,

Giovanna.»

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III

Sic Deus dilexit mundum!...

— Continuo?...

— Se não estás cansado, irmão Estêvão, preferia. Claro, se o nosso irmão Pedro

Apóstolo e toda a Assembleia concordarem.

— Pela Misericórdia de Deus, quem fala em cansaço no Céu?

— Bom, o período que se seguiu foi difícil, muito difícil mesmo. Acompanhei Pedro

por todo o lado. E era para mim óbvio que ele pressentia o apocalipse. E isso trazia-o

ansioso em extremo!

E digo-vos, com a alegria que nos envolve, que me custou muito vê-lo sofrer. O

sofrimento de Pedro era o meu sofrimento! Mas, ao mesmo tempo, foi muito gratificante

e motivo de perfeição para mim ver a coragem e a constância de Pedro no Amor à Igreja,

ao seu Povo que via sofrer mais que ele e, muitas vezes — confessava com amargura —,

não podia consolar.

O reconhecimento da autoridade do antipapa tinha sido, a nível mundial, de muito

reduzida expressão. As representações diplomáticas eram as creditadas por Pedro II e só

a ele se mantinham fiéis. Nenhum governo dos povos, de resto, tinha praticado qualquer

acto modificativo da respectiva situação.

Os meios de comunicação afectos ao autodenominado João Paulo III, porém, não

cessavam de lançar veneno para o ar e para o papel, ora seduzindo, por um lado, ora

esgrimindo anátemas e excomunhões, por outro. Pedro II, já fulminado por incontáveis e

muito "canónicas" penalidades, agora que fora conhecido o "milagre" da Amazónia, era

ameaçado de morte pela fogueira, se continuasse «a cavilar com suas embustices

medievas». — Como se lia em L'Oservatore Romano.

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Até os menos fanáticos bispos seguidores das ordens da secreta sedeada na baixa

de Manhattan, apoiantes do antipapa — sobretudo espanhóis, polacos, bastantes

alemães, austríacos, franceses e alguns portugueses e italianos — não acharam piada

nenhuma a tal ameaça. Nas respectivas dioceses, saíram críticas veladas ao modo como o

"processo romano" estava a ser conduzido. Quando se tornou público, todavia, que o

endurecimento da posição de João Paulo III era ditado pela assembleia dos "veneráveis",

instalada no Vaticano, não poucos bispos que, a princípio, se haviam rebelado contra

Pedro começaram a rever essa posição e, pouco a pouco, a recusar a obediência ao

antipapa. Simultaneamente, na secretaria do Concílio, em Brasília, chegavam as primeiras

cartas de bispos que pediam perdão a Pedro e à Igreja e prometiam fidelidade inteira e

sem reservas ao «legítimo sucessor do Pedro Apóstolo». Alguns houve que tiveram a

coragem de aparecer pessoalmente diante de Pedro II e da assembleia conciliar, cobertos

de saco e cinzas, pedindo humildemente perdão. No dia seguinte, porém, todos eles

apareceram mortos, cada um em sítio diferente, mas todos com bala no palato.

Todos estes acontecimentos eram circunstanciadamente noticiados por todo o

mundo, com imagens televisivas arrepiantes e comentários das mais diversas tendências.

Numa coisa, porém, todos estavam de acordo — com a óbvia excepção dos órgãos

dominados pelos homens que se movimentavam no interior da muralha vaticana —, as

organizações secretas do crime tomaram conta do poder, ameaçando não somente as

estruturas religiosas da Igreja Católica, mas o próprio Estado Italiano. Este já não agia,

não havia governo, as instituições desmoronavam-se de dia para dia, a justiça parara, as

escolas fechavam, porque só o crime organizado mostrava a sua lei!...

Pedro, mais uma vez em segredo, voou para Roma, sempre acompanhado do seu

inseparável "vice" — Perez-Logano. Instalara-se em casa de um amigo, no refúgio do

insuportável Verão romano — as cercanias de Tivoli. Aqui recebia secretamente a

delegação conciliar que trabalhava à socapa, bem mais próximo do centro das operações

mafiosas. Volvidas duas semanas de estadia sigilosa na Sintra romana, Pedro II aparece

no primeiro canal da RAI, em hora de grande audiência, entrevistado por três dos

melhores jornalistas mundiais em assuntos religiosos e do Vaticano, num programa de

grande surpresa que vinha sendo anunciado, mas sem levantar a ponta do véu sobre o

que se passaria. Pedro vestia a túnica de serapilheira que o cobria da cabeça aos pés,

trazendo ao peito uma cruz com o crucificado, tudo em madeira escura e toscamente

trabalhada — oferta dos índios amazónicos —, pendente do pescoço por um cadeado de

flores secas, colhidas na missão de S. José de Nigaci. O seu enorme carão triste, mas

sereno, emprestava à cena um ar denso de incontestável seriedade.

Ao som do «Cristus vincit...» e do «Tu es Petrus...», o programa começou por

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mostrar uma curta reportagem, algumas cenas desconhecidas do grande público e que

salientavam a enorme simplicidade da vida do papa Pedro II e a ternura que se

desprendia das suas palavras. Entrevistas com algumas das mulheres que tinham sido

colocadas pelo Concílio nos mais diversos serviços de direcção da Igreja; com Lorenzo —

o homem de Siracusa que não tinha pernas e andou... com a mulher dele que não se

cansava de apregoar que Pedro era um santo; com um guarda-costas do "venerável" que,

agora, arrependido, aparecera a explicar toda a cena das pistolas que emperraram, no

dia em que Pedro entrou nos seus aposentos do Vaticano, depois da ocupação pelo

antipapa; com o arcebispo de Manaus, com os romeiros de Nigaci que presenciaram o

espectáculo misterioso da tempestade de granizo e trovoada e explicaram como as bolas

de neve se transformaram em flores, deixando o terreiro como o mais belo prado do

Maio europeu, coisa nunca vista naquelas paragens amazónicas; e, finalmente, com Pe-

rez-Logano, o homem que deixara a Sé de Buenos Aires para se tornar no companheiro

fiel do Papa e no seu mais íntimo confidente. Logano deu a sua visão de todos os

acontecimentos que lhe havia sido dado observar e viver, terminando por afirmar que Di

Tronchetto era vítima das forças infernais que tinham assaltado o Vaticano, fazendo

agora do lugar onde Pedro Apóstolo dera a sua vida pela Igreja nascente o centro das

mais hediondas actividades criminosas. Que, pessoalmente, não tinha dúvidas em

classificar esse diabólico sistema de poder assente no dinheiro obtido através de tais

métodos de verdadeiro anticristo, pois o "reino" agora proclamado pelos homens do

poder em Roma se encontrava exactamente nos antípodas do Reino de Deus, tantas

vezes anunciado e depois explicado e instaurado no coração dos crentes, pela morte e

ressurreição de Jesus.

Pedro ouvira tudo silencioso, de olhos caídos sobre as mãos que se cruzavam em

cima da mesa, dando-o as câmaras sempre em cena, compondo, de quando em vez, o

capuz da serapilheira que lhe cobria a cabeça.

Terminada a série de entrevistas prévias, foi o momento de Pedro II falar. E não se

fez rogado. Sempre muito sério e triste, o Papa respondeu a todas as perguntas que os

três jornalistas lhe faziam. Historiou a crise da sua eleição, o modo correcto como todos

os cardeais exprimiram a sua vontade e o ataque que, logo na noite seguinte, foi

deliberado e executado contra a sua pessoa, visando eliminá-lo fisicamente. No

momento, porém, em que ia começar a explicar toda a sanha com que fora brindado,

desde início, pelos cardeais que sempre se opuseram à sua eleição, mas que não tinham

tido a coragem para o exprimir no momento próprio, entra em cena um indivíduo com

modos de tresloucado e tenta disparar uma metralhadora ligeira contra Pedro. Foi detido

imediatamente pelos seguranças, não sem primeiro puxar o gatilho várias vezes e em

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diversas direcções. A perigosíssima arma, porém, ficou muda, para espanto de todos.

Nesta altura, um potentíssimo engenho explosivo mandava pelos ares a torre da antena

da RAI, ficando os telespectadores sem emissão para o resto da noite.

Pedro e Logano eram aguardados, na periferia dos estúdios, por Menezes e Costa e

mais dois delegados conciliares que tudo haviam preparado minuciosamente, contando

mesmo com a hipótese de um atentado. Quando viram pessoas a sair em correria e

grande confusão, logo se aperceberam de que algo estava errado. Pedro e Logano, com a

túnica de serapilheira debaixo do braço e chapéus de aba larga enterrados até às orelhas,

conseguiram correr no meio da confusão e já estavam dentro do veículo do meio,

quando Meneses e Costa e a — agora motorista — Margaritta, fora, davam passos

inquietos, esticando o pescoço, em busca das figuras que deveriam transportar a Tivoli.

Foi o motorista do carro da frente — um dos delegados conciliares, arcebispo auxiliar de

Roma e bom conhecedor do meio — que apontou a Meneses e Costa para o interior do

carro. De imediato os três automóveis, seguindo pelas vias menos conhecidas à

velocidade possível, saíram de Roma. Na primeira barreira policial que encontraram, à

saída da cidade, foram todos identificados e os carros revistados. «Nada de anormal» —

disseram os polícias uns aos outros — e os três Punto seguiram viagem. Mais três

operações STOP antes de chegarem a Tivoli. De modo que, quando atingiram a casa onde

se hospedavam Pedro e Logano, já estes tomavam um tranquilizante chá de tília. Pedro,

tentando superar a angústia, sorri, abraça Menezes e Costa e beija Mãe Margaritta,

dando-lhes os parabéns:

— Ó homem, olhe que essa de nos deixar na Termini foi genial. Viajámos em

segunda, no meio de noctívagos bêbados que nos tomaram por estrangeiros... E era

verdade!... Mas ninguém nos incomodou.

— Caso contrário, não estaríamos todos aqui, agora... A polícia está dominada

pelas máfias que controlam tudo, desde o chefe do Estado até à mais insignificante

instituição. E agora até o Vaticano!...» — Terminou, com uma lágrima no canto do olho.

— Não duvido, irmão! Ninguém duvida. Mas não vamos gastar tempo em

lamentações. A estratégia para amanhã?

— Durante a viagem contactei diversos amigos de confiança. — Respondeu pronto

o arcebispo auxiliar da diocese de Roma. — De modo que, se Pedro quiser, a abortada

entrevista da RAI poderá continuar agora na antena da rádio nacional, numa altura em

que toda a gente se prepara para sair para os empregos e, em casa ou no automóvel, não

perde o programa da manhã.

— Parece-me boa ideia. — Avançou Pedro. Só que, parece-me, não se deve passar

por cima da gente simpática da RAI. De resto, a situação impõe todas as cautelas. E não

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há tempo suficiente para preparar as coisas com segurança.

— O problema foi também colocado — retorquiu o arcebispo. — Em alternativa,

seriam convidados os mesmos jornalistas e o pessoal necessário da televisão, para

continuar o programa, fora de Roma, em local, dia e hora apenas conhecidos por nós que

aqui estamos.

Logano advertiu para a necessidade de escolher um cenário artificial, neutro, onde

qualquer identificação fosse impossível. Depois, participantes e técnicos, a partir de certa

altura do percurso, deveriam ser conduzidos para aí, de olhos vendados.

Pedro escutou todas as opiniões. No fim, bebendo uma nova chávena de chá, disse

da angústia que o invadia por sentir ter sido colocado numa situação de marginalidade,

mas também da alegria imensa que o enchia por ter a Igreja que agia, então, como nos

primeiros séculos do cristianismo — como toupeiras das estacas do império de Satã.

«Vamos em frente, irmãos, confio em vós, confio na vossa prudência, mas também na

vossa audácia. Deus está connosco. Ele vence!»

No dia combinado, os homens da rádio e da televisão compareceram. Estava-se

próximo de Cassino. Era uma área de serviço da A2 e o pequeno veículo branco lá estava,

com o motorista de serviço — o arcebispo auxiliar de Roma, feito turista das Américas —

encostado à traseira, fingindo ler o La Stampa. Após os cumprimentos formais e a

verificação das identidades, o motorista do mini branco, conforme acordado, vendou os

olhos do pessoal, enquanto os seus ajudantes revistavam bolsos e forros, buscando

eventuais meios de escuta electrónica. Os carros das estações emissoras de rádio e de

televisão, sem qualquer identificativo, foram então conduzidos por pessoas da confiança

do arcebispo que seguiram no encalço do mini. Numa quinta, perto do Monte Cassino, o

portão abriu-se ao primeiro sinal da chegada. Os carros entraram, e logo se fechou o

portão. Para Margaritta e para as outras mulheres do grupo nada podia ficar ao acaso.

(Quem disse que as mulheres não sabem guardar segredos?...) Foram, como sempre, de

uma eficiência e circunspecção à altura do momento e suas exigências. Uma densa

vegetação encobria uma pequena casa do feitor da propriedade. Nenhum heli

descobriria a casa, os carros, muito menos as pessoas. Foi numa pequena sala, sem

móveis, apenas algumas cadeiras, paredes brancas e pavimento de madeira antiga, que a

entrevista com Pedro continuou.

O «Papa legítimo» — como agora o apelidavam — falou desinibidamente sobre

todas as questões que lhe quiseram colocar. Sobre os últimos acontecimentos, disse

apenas que não tinha medo de morrer. — «Sei que, como qualquer mortal, a minha vez

há-de chegar. Não irei, porém, quando os homens quiserem, mas sim e só quando Deus

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achar que cumpri a minha missão». — Acentuou, referindo-se aos muitos atentados já

sofridos contra a sua pessoa.

Pedro falou, depois, das terríveis nuvens negras que se avolumam nos horizontes

da Humanidade. Sobre a fome, as doenças e as epidemias incuráveis, apesar de todos os

esforços da ciência, mas, particularmente, sobre a injustiça na distribuição dos recursos à

escala planetária. Dos milhões e milhões de seres humanos privados do essencial para

um mínimo de dignidade na vida e da criminosa abastança de uns tantos que tudo têm,

gastando somas incalculáveis em orgias, luxos e ostentações injuriosas à humanidade

sofredora e, por fim, em armamentos e sistemas de defesa, perfeitamente inúteis,

perante a ameaça nuclear. Sobre esta, recordou a situação de tais armas de destruição

maciça, hoje à mão de qualquer energúmeno internacional. Como, de um momento para

o outro, alguém pode carregar no botão vermelho e accionar a última hecatombe da

humanidade, o fim da vida sobre a terra e a pulverização do planeta!

Ao falar sobre a situação no Vaticano, Pedro chorou impressionantemente,

fazendo o mais emocionante apelo ao cardeal Di Tronchetto para que afaste a

contumácia, peça perdão ao Deus de toda a Misericórdia e não faça sofrer mais o povo

cristão. Depois, mostrou conhecer toda a gravíssima situação instalada nos chamados

"palácios apostólicos" e confessou-se disponível para dialogar com todos quantos

estivessem de boa fé. «Com o inferno, porém, não há diálogo possível!» — Concluiu.

— Mas quem é o inferno com o qual não dialogará? — pergunta, por fim, um

jornalista mais irónico.

— Todos aqueles homens e mulheres que cumprem as obras de Satã — resposta

pronta de Pedro.

— Como conhecê-los?

— Precisamente pelas suas obras. Quem semeia o ódio neste mundo? Quem

alimenta a guerra? Quem oprime o fraco, o indefeso? Quem promove a injustiça? Quem

busca apenas e só o dinheiro, o poder, a qualquer custo? Quem trafica droga? Quem

mata? Quem rouba? Quem calca diariamente os mais invioláveis direitos humanos?...

Esses são os fiéis de Satã. E com eles não há diálogo possível. Mas os seus dias estão a

terminar!...

— O que quer dizer?

— Que a vitória final é do Reino de Deus — Reino de santidade e de graça, Reino

de verdade e de vida, Reino de justiça, de Amor e de Paz! E contra Ele nada podem os

servidores de Satã... que é o pai de toda a mentira.

— Está, então, optimista?

— Neste fim da luta, com certeza. Nunca duvidei, nem duvido. Mas não assim,

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quanto àqueles aos quais tenho o dever de guiar, de tentar evitar que caiam nas ciladas

de Satã. Muito trabalho me espera, muitas lágrimas e angústias. Mas tudo suportarei,

«n'Aquele que me conforta!...» — Terminou, com a citação de Paulo de Tarso.

As despedidas foram rápidas e os homens da televisão e da rádio foram levados do

local como lá entraram — de olhos completamente vendados. Retomaram os comandos

das respectivas viaturas numa área de serviço da A24, cerca de L'Áquila.

A entrevista foi para o ar no dia seguinte, conforme o acordado, primeiro na rádio

e, à noite, na televisão.

No Vaticano, os homens de Tronchetto explodiam de raiva. A torre das emissões

da RAI já estava operacional, e todo o mundo pôde assistir às lágrimas de Pedro II e aos

veementes apelos à paz, à concórdia entre os povos, à justiça, à solidariedade, como

forma única de evitar a implosão da Humanidade e o aniquilamento do planeta. Ninguém

resistiu às lágrimas de Pedro, sobretudo quando apelou ao antipapa para afastar a

contumácia da sua posição ilegítima, causadora de tantos sofrimentos ao povo de Deus.

De todo o orbe católico, anglicano e de muitas confissões cristãs e não cristãs e da

grande maioria dos chefes de Estado do mundo surgiram mensagens de afecto e de

encorajamento a Pedro II, para que prossiga os seus esforços, nos caminhos da paz e da

solidariedade entre os povos. Dos católicos, especificamente, começaram a chover no

Concílio mensagens de arrependimento de alguns bispos que haviam estado com

Tronchetto e protestando a sua fidelidade a Pedro. Milhares e milhares de mensagens de

todas as latitudes e longitudes eram diariamente recebidas no secretariado do Concílio,

via postal, telefone, telégrafo, correio electrónico e mesmo através de programas

especiais das televisões, das rádios e de muitos órgãos da imprensa escrita, todas de

apoio a Pedro II e de desagrado pela ocupação ilegítima do Vaticano.

Pedro, entretanto, com Logano, depois de algumas peripécias para frustrar as

intenções das máfias que o procuravam ainda em Itália, voara já para Brasília, onde um

enorme mas discreto aparelho policial o resguardava de toda a investida das secretas do

crime organizado.

Mais uma vez recebido em triunfo pela assembleia conciliar e muito povo, na

catedral de Brasília, Pedro continuou a pedir as orações e a penitência de todos os

cristãos, «para que a hora de dor se transforme numa eternidade plena de alegria!...» —

Disse. Dirigindo-se especialmente aos bispos e demais responsáveis conciliares, além de

pedir ainda mais celeridade nas discussões dos documentos a aprovar, sobretudo através

de um método rigoroso que impeça a perda de tempo em discussões inúteis, solicitou-

-lhes encarecidamente que abandonassem, «em definitivo, toda a forma burguesa de

pensar e de viver». — «Uma renovação do espírito, segundo o rigor evangélico,

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parabolicamente ensinado por Jesus, na imagem tão certeira da simplicidade das aves do

céu... exige-se a todos os que receberam o carisma do serviço eclesial!» — Acrescentou.

A todos os cristãos do mundo, pediu enfaticamente que continuassem as preces ao céu,

organizando vigílias de oração e penitência pela Igreja e para que ela seja farol a iluminar

todos os povos. Falando, por fim, «aos chefes de Estado e a todos os poderosos e ricos

do mundo», Pedro pediu com toda a alma que olhassem para os povos que não têm que

comer, que não sabem o que é a alegria de viver, por falta de alimentos essenciais, por

falta de saúde, de ensino, de condições mínimas de vida. — «Irmãos, organizai-vos em

correntes de solidariedade — solicitou com os braços elevados e as lágrimas nos olhos —

abri os vossos corações e os vossos bens ao sofrimento alheio! Para que vos servirá a

riqueza, se amanhã os esfomeados vos saquearem e destruírem os vossos palácios e

impérios tão efémeros? Olhai, sobretudo, para os povos da África, da América do Sul, da

Ásia! Fazei qualquer coisa e já! Amanhã será tarde!» Não esquecendo o conflito entre

judeus e palestinianos — «vala aberta para receber constantemente cadáveres de ambos

os povos e pecado da humanidade que fecha os olhos ao genocídio mútuo.» — Pedro II

assumiu o tom de voz mais plangente que se lhe conhecia, anunciando aos conciliares e

ao mundo algumas das tentativas já implementadas no terreno, no sentido de acorrer às

mais gritantes necessidades dos palestinianos que morrem de fome e de lutas fratricidas

e pedindo aos chefes dos dois povos que aceitassem, de uma vez por todas, uma

negociação de boa-fé, para uma solução razoável do conflito. — «Rezo constantemente

ao Deus de Jesus de Nazaré, que é também o Deus de Abraão, que vos dê a coragem de

fazer a paz!» — Terminou, caindo de joelhos e prostrando-se por terra em oração, no

que foi seguido por todos quantos enchiam a catedral. Tudo isto era transmitido em

directo, por várias cadeias de televisão e rádio brasileiras, para todo o mundo. As

palavras de Pedro e o seu gesto de homem desprendido, sempre albergando a túnica de

serapilheira, pedindo a regra da humildade de Cristo a todos os bispos e cristãos do

mundo inteiro caíram bem em todos os corações rectos. A oração e o silêncio na imensa

catedral constituíram veemente testemunho, de uma autenticidade impressionante.

A fama de Pedro corria mundo. A entrevista da RAI, os gestos de abnegação e as

palavras cortantes de sinceridade e amor pelas populações de todo o orbe fizeram mais

em poucos minutos do que todas as embaixadas, todos os sermões, colóquios ou

cimeiras. Crentes e não crentes, muita gente houve que levou muito a sério as palavras

de Pedro. Muitos chefes de Estado começaram a chegar a Brasília, para se encontrarem

com Pedro II.

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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Entretanto, no Vaticano, as dissensões entre os "veneráveis" da "Camorra" e da

Cosa Nostra entre si e de todos com Tronchetto começavam a dar sinais de que algo

estaria a mudar... As pressões eram muitas e de todos os quadrantes mafiosos mais

recatados. Não estariam a cair no engodo das facilidades os senhores da alta e suja

finança mundial? A ânsia de globalizar o poder e o dinheiro que o suporta, a

esquizofrenia do tudo possuir — e já! — não lhes estaria a toldar o entendimento? Os

erros acumulavam-se, e alguém os pagaria. Segundo o código dos "padrinhos".

Sabia-se que Tronchetto se recusava, entretanto, a assinar documentos

importantes para o tráfico. O antipapa teria entendido o gueto em que se metera?

Encurralado entre a vaidade pessoal e um mais que certo projéctil disparado no palato,

qualquer dia... qualquer noite... por um qualquer verdugo de fato preto e óculos escuros,

a soldo de um qualquer "venerável", fumando "habanos", Tronchetto — como todos os

vaidosos — prefere a vaidade. E, de traição em traição à própria consciência, vai cedendo

às exigências, cada vez mais aberrantes, dos novos patrões do Vaticano. Agora, até lhe

impuseram que, todos os domingos, descesse à Basílica de S. Pedro, para celebrar, com o

fausto quase imbecil dos recuados tempos do esplendor renascentista, a missa em latim

e a bênção urbi et orbi... Com uma única diferença: na magnificência de outros tempos, a

nobreza fora substituída pela mais ridícula bacoquice dos homens fortes das secretas que

desfilavam à frente da sédia gestatória, barrigudos e fumegantes, de chapéus pretos

enterrados até às orelhas e os casacos profusamente medalhados pelas inúmeras

comendas que Tronchetto lhes concedera com a mais ampla prodigalidade. Quanto ao

objectivo destas manifestações... bom, é certo que todas as esmolas caídas nas caixas de

"S. Pietro" eram de imediato ensacadas para os cofres das lojas, sob a estrita ordenança

do conselho dos "veneráveis". Relativamente às demais, nomeadamente àquelas que os

homens de fato preto e óculos escuros extorquiam, mesmo pela violência, aos poucos

mas sempre néscios peregrinos da praça elíptica, parece que estaria cada um autorizado

a amealhar directamente para os respectivos bolsos. Esclareço o «parece»: havia notícias

desencontradas. Segundo os meus informadores — sempre fidedignos — o conselho dos

"veneráveis" exigia que toda a receita fosse parar ao respectivo banco, devendo a cada

um dos "cobradores" o caixa descontar uma pequena comissão. Mas — nunca pude

apurar isso com certeza — havia rumores de que o antipapa teria dado ordens para que

os seguranças encarregados dos peditórios nas celebrações realizadas na Piazza fizessem

seus os proventos das colheitas. E teriam sido tais ordens, dadas à revelia dos

"veneráveis", que estariam na base do primeiro grande conflito entre Di Tronchetto e a

corte.

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Menezes e Costa, porém, dirigindo o grupo de delegados do Concílio, continuava a

sua missão com muita coragem e persistência. O grupo mudava frequentemente de

alojamento e fraccionava-se em dois ou três, conforme as necessidades, pois os esbirros

dos "veneráveis" não desistiam de os perseguir. Nas localidades onde havia suspeitas de

se encontrarem os delegados conciliares, a cobardia dos atentados bombistas não

cessava de alarmar toda a Itália, espalhando terror, sangue e morte entre populações

indefesas e inocentes. Desde Milão a Palermo, passando, sobretudo, pela cidade e

subúrbios de Roma, não havia aglomerado populacional, estrutura social ou

equipamento público que não tivesse sofrido os efeitos devastadores da acção

indiscriminada dos beleguins das secretas.

O Concílio, entretanto, tinha informações seguras de que um grupo terrorista de

vários homens de uma das piores famílias mafiosas americanas que dominava grandes

outras da Rússia e, juntas, espalhavam o terror pelos países do Leste Europeu, agora

associadas a grupos extremistas e fundamentalistas do Islão que já tinham subvertido

toda a ordem social na América e se propunham levar a guerra ao coração da

cristandade, tinha chegado ao Galeão. O Brasil inteiro estarreceu com a notícia. Brasília,

principalmente, levou-a muito a sério e, a breve trecho, era uma cidade policial, armada

ostensivamente. As autoridades não queriam, de modo algum, que acontecesse qualquer

mal ao Concílio e especialmente a Pedro II.

A catedral fechou ao público e as imediações foram cercadas de cordões policiais e

militares verdadeiramente intransponíveis. Tudo e todos estavam sujeitos a rigoroso

controlo, como no mais rigoroso dos serviços de vigilância nos embarques

aeroportuários. Detectores de metais foram montados em todas as entradas. E mesmo

os carros que transportavam os conciliares e o próprio Pedro não escapavam às

apertadas malhas da fiscalização.

Em todo o Brasil as forças de segurança e militares entraram em alerta máximo.

Hotéis, residenciais, pensões, apartamentos turísticos, parques de campismo, tudo ficou

sujeito ao apuradíssimo árgus policial e ao faro dos cães-polícia, procurando identificar

pessoas armadas, americanos do Norte, europeus de Leste ou outros grupos de

estrangeiros, cujo porte levantasse suspeitas, sobretudo se chegados nos últimos dias. As

barreiras nas estradas e saídas das auto-estradas eram constantes e muito duros os

agentes fiscalizadores. Caças de combate e helicópteros armados sobrevoavam

constantemente a cidade.

O parlamento federal, entretanto, fez publicar uma lei de excepção que punia com

a pena máxima todo aquele cidadão que albergasse em sua casa estrangeiros, sem que

as respectivas identificações fossem comunicadas no prazo máximo de vinte e quatro

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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horas aos serviços estaduais competentes. Na mesma dura penalidade incorreriam todos

quantos tivessem agido em co-autoria, material ou moralmente, no mesmo tipo de

crime.

No décimo segundo dia destas medidas extraordinárias de segurança, quando toda

a população da cidade capital da República já reclamava maior liberdade de movimentos

e se mostrava enfadada com a presença de Pedro e do Concílio, às quatro horas e

cinquenta minutos, Brasília — a formosa — estremeceu até à raiz, como que sacudida

por violento abalo telúrico, com o ruído imenso e as ondas de choque destruidoras de

uma potentíssima deflagração que mandou pelos ares grande parte da exótica catedral e

devastou as suas periferias.

Pedro e todos os conciliares haviam decidido na véspera que ninguém pernoitasse

nas imediações da catedral que, ao fim dos trabalhos do dia, fora completamente isolada

e os conciliares distribuídos por hotéis e outros alojamentos condignos, mesmo longe da

cidade. Por seu lado, Pedro II tinha viajado para Manaus, onde teve conhecimento da

notícia. — «Satã está raivoso!... Sente que é chegado o fim do seu reinado de ódio, de

terror e de morte!» — Comentou com o seu companheiro Logano e com o arcebispo da

capital amazónica. — «Irmãos, com a oração fervorosa, o jejum, a caridade e a

persistência dos apóstolos dos primeiros tempos da Igreja, vamos enfrentá-lo!

Corajosamente! Que ninguém tenha medo! Só nos acontecerá o mal que for fruto da

nossa miséria, da nossa pouca fé!» Acrescentou.

Interrompendo a viagem programada, Pedro regressou de imediato a Brasília, a

consolar os irmãos e as autoridades do Estado.

O Concílio — já na fase terminal da votação das conclusões traduzidas em decretos

— pôde continuar, sem perda de tempo, em edifício apropriado, cedido pelo governo.

Pedro aí permaneceu trinta e três dias, acompanhando de perto as votações e

promulgando todos os textos que lhe foram apresentados; em alguns, porém, com

emendas pessoais que achou mais aconselháveis, «no sentido de uma expressão mais

incisiva da essência da missão da Igreja num mundo em ebulição — a libertação de todo

o ser humano de todos os cativeiros que o oprimem, de todas as explorações que o

degradam, de toda a miséria que o destrói. Tal libertação é fruto das armas da Caridade!

Do Amor!» — Lia-se, num comunicado distribuído à imprensa.

O encerramento do Concílio Ecuménico de Brasília constituiu uma impressionante

festa da fé e da união de toda a Igreja com Pedro. Numa praça pública, enorme multidão

desafiou as ameaças das máfias. Com estandartes das diversas organizações religiosas e

cívicas, jovens de todo o mundo, vestidos com as respectivas cores nacionais, entraram

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na praça, vindos de diversos pontos e formando dezasseis filas muito vivas de cor e

agitação. Chegados ao centro, cada jovem subiu para o lugar previamente determinado,

numa enormíssima escadaria em cone, aí levantada para o efeito, levando os do vértice

os estandartes mais coloridos que inclinavam para fora. Quando todos ocuparam os

respectivos lugares, foi enorme a explosão de alegria de toda a incontável multidão que

se comprimia na praça. É que, formada, não por vigas de betão armado, mas pela alma

que erguia corpos de jovens, em movimento e vida, apareceu — como por milagre — ali

plasmada aos olhos humedecidos de todos, a bela concepção dos dezasseis montantes

parabolóides da catedral de Brasília, agora destruída. Em rodapé, formado por um cordão

de meninas agitando bandeirinhas verde, azul e amarelas, lia-se em enormes caracteres

inscritos numa faixa larga que as meninas seguravam e faziam girar, muito lentamente, à

volta da base do cone humano: «Podem destruir edifícios... A nós, a nossa fé, ninguém

destruirá! Nós somos o Templo de Deus!»

Comentando este pormenor significativo do arranjo da praça para as celebrações

do encerramento do Concílio, os mais avisados jornalistas de todo o mundo concordavam

num facto: a pesporrência estúpida das secretas e a cobardia mais ignóbil dos seus

esbirros já estão condenadas. A juventude mundial, presente em Brasília, julgou toda a

organização criminosa e o veredicto foi demolidor!

Pedro apareceu, como sempre, vestido da túnica penitencial que adoptara nos

últimos tempos. Todos os conciliares, em enorme cortejo saído do Palácio do Congresso,

o imitavam. Muitos populares adoptaram oficialmente o mesmo vestuário. Quando

todos ocuparam os respectivos lugares, a cena era impressionante na sua simplicidade e

rudeza.

Antes da concelebração da Eucaristia e depois de invocado, de joelhos em terra, o

fogo do Amor Divino — o Espírito Santo de Deus — teve lugar a solenidade da

promulgação de todos os decretos aprovados, nos quais era aposta, agora, a assinatura

de Petrus secundus... Foi o momento mais alto de toda a jornada conciliar que, em menos

de dois anos, conseguiu estudar e reunir consensos sobre questões dogmáticas e

disciplinares, sempre julgadas de capital importância para a caminhada do povo cristão,

num mundo tão carente de esperança. A expectativa era muita e de todos os cantos do

mundo choviam mensagens de confiança.

— Que não saiu frustrada?!... — Interrompeu Pedro Apóstolo.

— Não, irmão Pedro I, o Povo escolhido pelo nosso Deus sentiu nas decisões

conciliares de Brasília as vergastadas do Espírito. E o terreno estava preparado. Crentes

ou não, todas as pessoas de boa vontade esperavam da Igreja de Jesus uma palavra nova,

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uma práxis outra que cortasse radicalmente com séculos de miopia, de poeira, de poder.

— E o concílio disse essa palavra e mostrou tal práxis?!

— Sim, grande Apóstolo dos Gentios, o concílio foi a resposta pronta às muitas

interrogações de uma Humanidade angustiada.

— Podes resumir, irmão Pedro novíssimo, se não é pedir de mais?

— Com o beneplácito da Trindade do Amor em que mergulhamos e a vénia de toda

a corte dos santos, meu grande Paulo de Tarso, vou tentar uma síntese das principais

decisões conciliares de Brasília que mudaram a Igreja de Jesus — de regresso às

catacumbas.

Um imenso coro de assentimento deu a voz a Pedro.

— Irmãos, todo o trabalho de pesquisa dos homens e mulheres que tomaram

assento na aula conciliar se fundamentou na busca exaustiva de respostas novas aos

muitos problemas deixados em aberto pelo anterior concílio ecuménico, nomeadamente

na sua acertada definição da Igreja. Como se lembram, tinha sido dito — e bem — que a

Igreja de Cristo é o Povo de Deus. Mas, desta inspirada asserção, ninguém teve a

coragem de retirar as necessárias consequências. Pior, o poder que se fizera em séculos

de traição à Boa Nova do Reino, logo inverteu a lógica revolucionária do Espírito que

parecia rebentar com velhas mentalidades de domínio, para impor a mais absurda e

anacrónica prática reaccionária do monopólio da "Verdade"! O Evangelho de Jesus foi

subvertido!

— Irmão Pedro último, peço vénia pela interrupção, mas toda esta grande

assembleia dos santos é testemunha de como eu sofria ao ver, cá do alto, como o Povo

estava a ser conduzido, não raro, à bastonada.

— A quem o dizes, Irmão Pedro Apóstolo! A quem o dizes... Partia-me a alma a dor

que sentia ao verificar o nascimento de novas "verdades oficiais" e, claro está, de novos

"guardas" de tais "verdades", de novos inquisidores, novíssimos Torquemadas, sempre

prontos a mandar para a fogueira (havia, então, novas e mais sofisticadas maneiras de

"queimar" os "hereges". Tudo se fez, irmão Pedro Apóstolo, para inverter a marcha do

Espírito, iniciada com o Concílio Ecuménico Vaticano II. O que de mais puro, mais

genuinamente evangélico produziu aquele Concílio, foi propositadamente esquecido ou

abertamente subvertido. O Irmão Pedro Apóstolo sabe o que se trabalhou na feitura de

um "novo" Código de Direito Canónico, para que até as mais cândidas expressões dos

textos Conciliares do Vaticano II fossem abolidas. Primeiro, sempre me interroguei se a

Comunhão dos crentes em Jesus tinha de ser regida por um "código"!? Depois, a ser

verdade que algum acervo de normas práticas deveria existir, apenas como instrumento

do melhor acerto do passo de todos na "Caminhada" para a Jerusalém Celeste, tudo

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deveria ser reduzido a essa finalidade, evitando o erro de jurisdicizar o AMOR.

— E o tal "novo" Código foi recebido pela "Comunhão Peregrina" como?

— Um aborto, meu Irmão, um nado-morto, porque lhe faltava o sopro do Espírito.

Aquele que se fizera sentir nos textos saídos do Vaticano II. Só para dar uma ideia do

modo como a Comunhão Peregrina reagiu à publicação do tal "novo" código, peço vénia

à imensa e celestial Assembleia dos Santos, para citar uns contemporâneos (Peter Hui-

zing/Knut Wall) que escreveram numa revista do meu País: «O Código baseia-se numa

eclesiologia da societas perfecta que era não somente estranha ao Concílio Vaticano II, a

que o Concílio contrapôs a imagem da Igreja peregrinante, como Povo de Deus. Parece-

-nos que esta imagem estática da Igreja nasceu dum puro receio, do receio de qualquer

forma de mudança e evolução. O conceito de poder potestas é empregado de modo, por

assim dizer, inflacionário e muito especialmente sempre que se trata da posição jurídica

do Papa. Onde ficou a imagem da colegialidade? As novas instituições eclesiológicas do

Vaticano II foram a cada passo repelidas de forma absolutamente intencional ou foram

mutiladas de modo a tornarem-se lamentavelmente irreconhecíveis. Pensamos que o

novo Código não fala uma linguagem que atinja os homens da nossa Igreja.»

— O anticristo meteu-se decididamente nas mentalidades que dominavam os

"Palácios Apostólicos" (nem se davam conta da contradição dos termos...)

— Por mim, Irmão Pedro Apóstolo, nunca tive dúvidas. E, por isso..

Bom, com a Vossa permissão, continuarei. O Concílio de Brasília, reunindo os

melhores teólogos de ambos os sexos, vindos de todos os cantos do mundo,

independentemente das suas conhecidas posições acerca da liberdade na investigação

teológica, rezou muito — a Trindade Santíssima do Amor sabe quão duros foram aqueles

momentos... — trabalhou com os olhos na Comunhão Peregrinante e com o coração

aberto ao Espírito, como vós, Pedro Apóstolo, no Cenáculo. E a primeira decisão de fundo

foi a reabilitação do Espírito do Vaticano II. Partindo da constituição conciliar Lumen

Gentium, sobre ela trabalhou no sentido da sua melhor compreensão e prática pelo Povo

de Deus. Esta expressão — tão bela e tão significante — foi propositadamente objecto de

muita reflexão e aprofundamento. Do esforço de todos, da oração constante e

humildade de quantos, fora e dentro da basílica, participavam na inesquecível jornada

que empurrou a Humanidade para o Alto, foi possível chegar à definição de um princípio

basilar de orientação futura:

«Na Igreja de Cristo, entendida como Povo escolhido por Deus, em constante

peregrinação para a Nova Jerusalém, não há lugar a outra autoridade que não a da

Verdade!»

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Daqui se partiu para um conjunto de reflexões-paradigma que ficaram assim

consignadas na acta conciliar:

a) O único Sacerdócio da Nova Aliança é o de Cristo Nosso Senhor que, para revelar

seu Espírito de Amor à Humanidade, se entregou voluntariamente à morte e morte de

Cruz! De tal sorte que a ninguém — dentro da Assembleia (Eккλέσiα) dos que foram

baptizados no seu sangue — é legítimo usar nomes ou arrogar-se formas de exercício dos

serviços por Ele instituídos, que tenham ou suscitem ligações a qualquer tipo de poder ou

de dominação, dentro da mesma Ecclesia; Ele escolheu propositadamente nomes tirados

da vida comum das pessoas, nomes propositadamente civis ou profanos que nada tinham

que ver com o vocabulário religioso judaico ou pagão — como επiσкoπos, o bispo, aquele

que supervigia, πpεσβυτεpos, presbítero, o ancião (na fé...) e Δiαкоvos, o que serve à

mesa... — para designar esses serviços;

b) Este sacerdócio, único admitido na Nova Aliança, admite-se que, por reflexão

teológica posterior, haja sido considerado como qualidade de toda a Assembleia dos

baptizados que, pelo Espírito de Jesus, se oferece continuamente em sacrifício — no

trabalho, na alegria e na dor — ao Deus do Amor que a todos congrega, conforta e dá

alento para a caminhada até ao fim dos tempos;

c) Nem no texto, nem no contexto da revelação de Jesus à Humanidade é

compreensível uma afirmação de séculos de "magistério" que reclama a existência de um

"sacerdócio ministerial" na Igreja. O sacerdócio neotestamentário — de que o outro era

apenas metáfora — é uno e único e, por consequência, indivisível em diversos graus,

Cristo Jesus deixou em Pedro e nos apóstolos e, neles, aos seus sucessores, serviços que

cada um exerce segundo os seus "carismas"! Não ministérios, conceito que, não sendo

bíblico, é produto de uma reflexão posterior e não deixa de pôr os seus problemas

(citando o teólogo Hans Küng). As palavras relativas a "ministério" no Novo Testamento

são evitadas, quando relacionadas com as funções eclesiais: na verdade, exprimem uma

relação de domínio. Pedro, no seu serviço à comunhão dos crentes, congrega e confirma

os diversos serviços dos que têm de ensinar, santificar, etc. (bispos), mas estes nem são

inferiores a Pedro, nem este se pode considerar alguma vez superior ao colégio apostólico

ou episcopal. Pedro Apóstolo tinha a consciência da sua missão e, nunca por nunca, no

seu exercício se arrogou qualquer tipo de poder ou de chefe, como topo de uma pirâmide,

a submeter às suas opiniões as razões dos bispos ou da restante Eккλέσiα; Pedro Apóstolo

é testemunha de que a sua infalibilidade lhe advém da assistência do Espírito de Verdade

em favor da comunhão, afim de que esta não siga o pai da mentira; Pedro Apóstolo, tal

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como resulta dos Actos, apenas admitiu uma autoridade — a da VERDADE: «Somos

homens como vós!»;

d) Considera-se, por isso, abuso — a extirpar do léxico da nossa Кoivωviα

(comunhão eclesial) o emprego de palavras que traduzam essa realidade de domínio, as

quais Cristo excluiu expressamente da prática de todos os que a Ele e ao Seu Povo se

entregaram na obediência ao Espírito de Jesus — "Hierarquia" (santa soberania...),

"Sumo Pontífice", "Santo Padre", etc. — termos ligados a uma ideia de poder, ainda hoje

dominantes no seio da Cúria romana, mas que teremos de fazer um grande esforço de fé

para os considerarmos linguagem de um passado errado e do qual este concilio pede

perdão à Humanidade;

e) a função ou serviço confiado a Pedro — «confirma os teus irmãos...» não tem, no

contexto ou na letra do Evangelho, qualquer conotação de poder, de dominação, sendo,

por isso — e só!—, um serviço de direcção;

f) Jesus instituiu o "serviço" à comunidade dos crentes que confiou aos Apóstolos e,

nestes, aos bispos — os επiσкoπos - e, depois, aos anciãos — os πpεσβυτεpos, ou

presbíteros — por eles escolhidos; serviço tríplice, na sua função de pregação, de direcção

da comunidade e de assistência, aos quais Paulo chama "dons de Deus" ou "carismas";

Assim, é a Pedro e aos bispos — como legítimos sucessores dos apóstolos — que cabe o

especial serviço de implementação, em cada época, dos meios necessários e mais

adequados ao cumprimento do mandato que Jesus lhes confiou: «Ide por todo o mundo,

pregando tudo o que vos ensinei...»;

g) Deste modo, também a existência de uma classe sacerdotal ou cultual, ou de um

"sacerdócio ministerial", não pode continuar numa eclesiologia que se queira

fundamentada na Revelação; não significa isto que o sacramento da ordem fique

esvaziado de sentido. Ele continuará, com o sentido que Cristo lhe assinalou — «vistes o

que Eu fiz... assim deveis vós fazer uns aos outros...» — como sinal do dom de Deus à

Humanidade de "servidores" desta, enquanto peregrina para a Jerusalém Celeste. Mas

não pertence ao património da revelação que tais servidores se constituam em "classe"

social que os distinga dos demais cidadãos, crentes ou não no mistério de Jesus;

h) A Cúria Romana é uma instituição da história da Igreja, exercendo o colégio dos

cardeais apenas a função de conselheiros e assistentes do sucessor de Pedro Apóstolo que

a eles nunca fica vinculado; a transformação das pessoas suportes dessa função curial em

"corte" de uma "Monarquia Pontifícia" é um erro histórico que a nós incumbe reparar;

este Concílio pede perdão a Deus e à Humanidade pelo triste espectáculo que alguns

homens da cúria romana deram, durante séculos, em contradição com o Espírito de Jesus

exaltado na cena do "lava-pés", na última ceia, apropriando-se de um serviço e

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transformando-o em poder! E a eles — seus titulares — em "príncipes", intitulando-se,

mesmo, "príncipes da Igreja";

i) A função ou serviço dos bispos à Кoivωviα (comunhão dos crentes) — é,

principalmente, o de ensinar. Em união com Pedro, os bispos, como sucessores dos

apóstolos, mais que ninguém, devem viver o Evangelho, tê-lo no coração, para que o

possam comunicar com verdade aos irmãos da grande comunhão;

j) Neste esforço permanente de comunhão entre a cabeça e os membros

encarregados de transmitir a Mensagem de Libertação a toda a Humanidade, ninguém

pode fazer uma exigência selectiva de assistência do Espírito de Jesus. Este não actua

mecanicamente, mas exige de todos os que quiseram um dia ser seus instrumentos na

transmissão da Sua Mensagem — Verbo de Deus à Humanidade — que se esforcem, que

oiçam os teólogos, os cientistas e todos os que com o seu labor podem contribuir para

esclarecer; de um ponto de vista humano, o estado da questão a decidir;

k) O chamado "magistério da Igreja" é, afinal, a comunhão de esforços de todos

para o bem comum. Aí, sim, para que a verdade a que chegaram — depois de esgotarem

as ciências — não seja a vontade de um grupo humano, mas a vontade de Deus, legítima

é a invocação do Espírito que tudo santifica e afasta o pai da mentira;

l) Deste modo, a infalibilidade de Pedro outra coisa não é que a prometida

assistência do Espírito de Jesus, para que sua proclamação nunca seja havida como a

verdade da autoridade..., mas sempre e só apareça ao Povo de Deus, como a autoridade

da verdade! Não é a pessoa de Pedro que conta, mas sim o serviço que presta à

comunhão dos santos. E, na prestação desse serviço — visto que o faz voluntariamente e

por vocação de Deus —, tem o dever de saber «discernir os espíritos» e dizer com toda a

humildade de João, o Baptista: — «a mim importa, apenas, ocultar-me», para que só a

Verdade do Espírito de Jesus seja visível a toda a Comunhão caminhante!;

m) Porque há "espíritos" — e cada vez mais, em nossos dias — que nada têm que

ver com o Espírito de Jesus. Pior que se lhe opõem frontalmente. E existem mesmo no

coração de pessoas de boa vontade. Os exemplos de Pedro Apóstolo — caindo na

tentação de repreender Jesus por lhes ter dito que ia sofrer obrigando Cristo a chamar-lhe

nada menos que Satanás, pois o espírito de Pedro só via pelo funil humano; e dos

apóstolos que pediam fogo sobre os samaritanos que O não receberam, levando o Senhor

Jesus a repreendê-los severamente, porque não sabiam de que espírito eram;

n) A Igreja — todo o Povo de Deus, nele incluídos os seus servidores — nunca pode

perder de vista que não está «do lado de Deus» contra a Humanidade, tentando baptizá-

-la! Mas tem de agir sempre como estando no seio da Humanidade perante Deus! Só o

Espírito de Jesus lhe pode dar a força de fermento e de sal… para transformar — sem

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pressas, sem atropelos, sem imposições, sem medos, sem angústias, sem certezas

absolutas — a mesma Humanidade. Respeitando carinhosamente o ritmo, as fraquezas e

os percalços da Humanidade ou seus grupos e pessoas concretas;

o) O único magistério admissível na Igreja, neste sentido de respeito pelo homem e

seus ritmos (culturas, tradições, ideosincrasias...), e que, do mesmo passo, respeita o

Espírito de Jesus, é-nos apresentado por esta fórmula dada por João XXIII, um dos

sucessores de Pedro Apóstolo que mais dele se aproximaram: «Saltei da barca e, sobre as

ondas, caminho ao encontro de Cristo que me chama. A Igreja deve renunciar a suas

certezas, deve abandonar a segurança da barca... e caminhar decididamente sobre as

ondas. Chegará a noite, a tempestade, o medo. Porém, é esse o seu caminho, do qual não

pode retroceder. A Igreja está chamada para ir ao encontro do mundo».

Aqui chegados, apenas de olhos cravados no objectivo da constante e serena busca

da autoridade da Verdade e tentando, com toda a peregrinação, encontrar nela o Espírito

de Jesus, o Concílio, tendo à sua frente Pedro II, sucessor do Primeiro Pedro — o

Apóstolo — e a quem confiou todo o seu labor, tomou as seguintes deliberações,

julgadas, na unanimidade dos votos, como verdadeiras "línguas de fogo" a guiar a

caminhada futura do Povo de Deus:

1. A Cúria Romana é extinta, continuando, porém, todos os serviços em função,

com a finalidade única de garantir a transferência dos processos para um novo serviço de

apoio a Pedro que vai ser implementado de forma simples, nas proximidades da cidade de

Roma;

2. A partir de agora, não haverá, pois, mais nomeações de cardeais. Os ainda

existentes poderão requerer a respectiva jubilação ou, como bispos, a sua nomeação para

dioceses em vagatura e nas quais ainda se sintam úteis ao serviço do Povo de Deus;

3. As funções de conselho de Pedro, para as diversas matérias, passam para os

bispos que exercem funções pastorais em Roma, aos quais se juntarão os presidentes das

conferências episcopais, segundo os momentos e as necessidades;

4. As expressões de cunho sacral que ao longo da história referenciaram o poder na

Igreja, no sucessor de Pedro Apóstolo, nos bispos e presbíteros — "Santa Sé", "Santa

Igreja", "Santo Padre", "Sumo Pontífice", "Soberano Pontífice", "Cúria Sagrada",

"Hierarquia", "Santa Hierarquia", "clero", "padre", "sacerdote", "sacerdócio ministerial",

ou similares, as quais, não sendo bíblicas e impondo perspectivas erradas da existência de

um poder, uma relação dominial de alguns sobre a caminhada histórica do Povo de Deus

para o Reino anunciado por Jesus — relação, de resto, sempre vigorosamente afastada e

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repudiada por toda a Sua Mensagem — são abolidas e definitivamente proibido o seu

futuro uso em quaisquer circunstâncias, pregação ou documento emanado de todo o

serviço eclesial;

5. Por consequência, a distinção histórica e jurídica entre "clérigos" e "leigos" é

abolida de todos os usos da Comunhão Peregrina, onde cada um exerce a sua função,

conforme o respectivo carisma; pretende-se, com isto, a restauração do exemplo das

comunidades apostólicas, onde, na expressão de Paulo, «seguimos o Senhor que se fez

Homem, em tudo igual aos outros homens, excepto no pecado»;

6. Os bispos são escolhidos pelas respectivas conferências episcopais, de entre os

presbíteros ou anciãos que melhores provas tenham dado de humildade, dedicação e

saber no serviço, no discernimento dos espíritos e na capacidade de doação aos que

sofrem, depois de ouvida a respectiva comunidade cristã, segundo processos a

estabelecer localmente, sempre no respeito pelos costumes e tradições de cada

comunidade; a ratificação dessa nomeação pertencerá a Pedro, em união com todos os

bispos e cristãos que nela participaram;

7. Todos os cristãos, independentemente da raça, sexo, estado, instrução, profissão

ou capacidade económica, podem prestar à Comunhão Peregrina o serviço presbiteral,

segundo o respectivo carisma, desde que, para tanto, se sintam chamados pelo Espírito

Santo de Deus e hajam demonstrado na vida individual, familiar, profissional e social

serem pessoas de uma confiança ilimitada em Jesus; a escolha de qualquer cristão para o

serviço presbiteral da Igreja será efectuada por um processo de consultas a todos os

cristãos da comunidade onde a sua falta se faz sentir, sendo critério de idoneidade o

tratar-se de verdadeiro ancião (anciã) na fé e no testemunho que dá da entrega ao

serviço de toda a Comunhão; a ratificação da nomeação pertence ao bispo ou bispos da

respectiva diocese, depois de concluído o processo referenciado;

8. O diaconato ou quaisquer outros serviços, nas comunidades cristãs onde as

respectivas funções sejam reclamadas, podem ser conferidos a pessoas, dentro das

mesmas coordenadas, que para cada serviço estejam vocacionadas e para ele sintam o

respectivo "carisma";

9. Seja qual for o serviço que preste à comunhão dos crentes, a nenhum servidor é

permitido o uso de vestes ou insígnias que o distingam das demais pessoas. Como nos

Apóstolos que seguiram o Mestre, a única distinção admissível é a do exemplo de

santidade das suas vidas e o do Amor que praticam para com toda a Comunhão;

10. A todo o servidor na caminhada do Povo de Deus que, não auferindo

profissionalmente ou de outra fonte rendimentos capazes do próprio sustento e — sendo

caso disso — do respectivo agregado familiar, as comunidades cristãs, em espírito de

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partilha, cuidarão da forma localmente mais prática de ir ao encontro das necessidades

daqueles que vivem a entrega ao respectivo serviço;

11. Os bispos que presidem a comunidades de crentes no mistério de Jesus cuidarão

da instituição de formas de solidariedade entre os servidores do Povo de Deus, de forma

que a nenhum falte o necessário para uma vida condigna, quer durante o tempo em que

exercem a respectiva função ou serviço, quer em situações de incapacidade por doença

ou idade;

12. Este Povo que caminha para a Cidade de Deus será sempre uma pequena

porção da humanidade, mas inserida activamente no seu seio, como o fermento na

massa, ou o sal no alimento, tentando, por dentro dela, discretamente, transformá-la

pelo Amor — Espírito Santo de Deus — que é doação, entrega total ao outro, sem nada

esperar em troca;

13. Assim, ser cristão é, primordialmente, ser peregrino interventivo pela partilha,

testemunha viva desse Amor ou activista incansável da Sua difusão no coração da

Humanidade, não tanto pelo que diz, mas essencialmente pelas obras que realiza ao

serviço dos irmãos, na caridade;

14. Não se trata, deste modo, de um privilégio, mas de uma tremenda

responsabilidade, como nos vem sugerido pelas parábolas do fermento e do sal. Todo

aquele que aceitou o baptismo de Jesus sabe de antemão que é pelas obras de Amor que

a Humanidade será julgada. E, assim, é impelido a difundir esse conhecimento, para que

não haja surpresas, no dia do Juízo Final; é no surgimento de uma nova Кoivωviα — de

uma comunhão outra — ao modo dos primeiros séculos da Era Cristã, em que todos

partilham uns com os outros o que têm e são, que este Povo dará, hoje, o mesmo

testemunho, levando o nosso mundo a dizer, como ontem, «vede como eles se amam!...»

Neste sentido, o Concílio proclama que Deus está na Base! E que é esta o suporte do

tabuleiro da ponte para a globalização pela intercomunicação do Amor!... — O único

instrumento capaz de salvar a Humanidade da globalização do ódio!

15. De futuro, por isso, será cada comunidade cristã a julgar se determinada pessoa

é digna de receber o baptismo, tendo como critério apenas as provas dadas de

empenhamento na vivência e na difusão do Amor-doação-entrega-total à humanidade,

sobretudo nas pessoas dos mais pobres, dos marginalizados, dos excluídos desta

sociedade; é na vivência familiar de tal empenhamento que as crianças se prepararão

para assumir essa mesma responsabilidade.

Seguem-se, depois, meus irmãos da Cidade de Deus, as páginas que referem as

"ORIENTAÇÕES NO CAMPO DA MORAL".

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— Fruto de grandes e acesas discussões em Brasília, suponho, irmão Pedro

Novíssimo...

— É verdade, irmão Pedro Apóstolo. Os tempos eram difíceis. Até onde poderia ir a

Mensagem do nosso Deus, na interpretação dos nossos conciliares, homens de grande

sentido de doação ao Povo e de coragem na mudança, do que eram "odres velhos"...

Durante muitos séculos a Igreja tomou como impróprias de um cristão atitudes vitais que

só cada um, no uso da sua liberdade e no esclarecimento da própria consciência, estaria

em condições de validar. Chegou-se a um tempo em que a sexualidade humana era

considerada tabu por banda de muitos hierarcas da Igreja e, na prática, o centro da

chamada "Teologia Moral". E a sociedade, fortemente laicizada, respondeu a um sombrio

pan-pecado (tudo é pecado) com um desinibido e libertino pan-sexualismo (tudo é

sexo...)

— Perante esses extremos, que fazer?

— Irmão Pedro Apóstolo, foi preciso muito trabalho, muita oração e muita

coragem, para que do Concílio saísse um conjunto de orientações (não é um código...) ao

Povo de Deus em Peregrinação que não podia parar ou estagnar no pântano da

indiferença de muitos, do medo de outros e da lubricidade geral. Era preciso, sobretudo,

deixar bem claro que a VIDA HUMANA é inviolável, tanto desde a sua concepção, como

através de toda sua existência, até ao fim. Eis, então, o que ficou aprovado:

a) A inviolabilidade da vida humana, enquanto obra do Amor Eterno, e a sua

dignidade incomensurável, advinda do facto da sua participação nessa torrente inefável

que, saída das mãos de Deus, atravessa a história e atinge a sua plenitude no fim do

tempo, quando regressa à origem e contempla, sem reservas e sem tempo, esse mar

imenso da Bondade e da Ternura divinas, exige que todos os povos do mundo se dêem as

mãos e, num gesto sem precedentes, acabem de uma vez por todas com o ódio e a cobiça

que fazem as guerras e com os arsenais das armas que as alimentam;

b) A destruição de todos os armamentos e a reconversão das indústrias da guerra

serão objectivos prioritários da missão da Igreja, no contacto com os chefes das nações,

de modo que a todos tente convencer da necessidade urgente de investir essas somas em

acções humanitárias, a dar de comer a tantos milhões de seres humanos que não têm o

indispensável para o seu sustento, a dar um tecto a quantos vivem ao relento, a vestir a

nudez de muitos, a curar tantos que sofrem doenças e epidemias curáveis e a instruir, nas

letras e na vida, muitos outros dos quais ninguém ainda se aproximou a dizer: Queres?

Vem comigo. Mostrar-te-ei a beleza da vida!

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c) Todos os cristãos estão obrigados, a exemplo do Mestre, a tal aproximação...

Sem ela, é inócua a fé no Deus de Jesus Cristo! Está morta! — No dizer de Paulo. Assim,

lutar, neste campo, por todos os meios ao alcance da Igreja, é para ela imperativo

constitucional, pois, no seu cumprimento, se materializa a verdadeira razão da sua

própria existência no seio da humanidade; não mais o luxo e a ostentação em pessoas

que servem a comunidade dos crentes, porque tudo será investido no cumprimento das

obras de misericórdia;

d) Promover o diálogo e a solidariedade entre todos os povos, de modo a afastar o

perigoso fosso entre os do Norte — mais ricos — e os do Sul — mais pobres —, é, assim,

consequência daquele imperativo do qual a Igreja se não pode afastar, sem traição ao

Espírito do Seu Fundador;

e) Empregar toda a sua energia para que a globalização se não faça à custa de

mais e mais feroz exploração dos pobres, que podem ficar privados de todos os meios de

defesa contra os abusos dos grandes senhores das multinacionais do capital, é,

igualmente, corolário do referido dever cristão da aproximação samaritânica,

transportada para os nossos dias;

f) Entrar, activamente, em todas as formas de denúncia das arbitrariedades

cometidas pelos poderosos contra a qualidade da vida e seus ecossistemas e em

movimentos de informação e formação de todos os habitantes do planeta, no sentido de

os consciencializar para a gritante necessidade de tudo fazerem para não poluir nem

destruir os recursos naturais da Criação, é, ainda, um inalienável dever de todo o cristão e

de todas as suas comunidades;

g) É no escrupuloso cumprimento destes deveres que todo o cristão se assume

campeão dos direitos humanos e defensor da vida em colectividade;

h) No plano da individualidade, para além do estrito dever de acatar os ditames da

consciência e das normas sociais de respeito por todos os direitos da pessoa humana,

relativamente à vida intra-uterina, a Comunhão Peregrina de quantos esperam entrar por

Jesus Cristo, na nova Jerusalém, lutará sempre, com a mensagem evangélica no coração,

para que os mesmos princípios de inviolabilidade e de dignidade de todos os seres

humanos lhe sejam aplicados, por forma a que quem for concebido no seio materno

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possa vir a este mundo, sem atropelos aos seus fundamentais direitos,

independentemente da parcela de tempo que já leve de existência embrionária;

i) A vida humana é dádiva do Criador mesmo quando a fertilização utilize meios

laboratoriais por impossibilidade de uma normal fecundação; mas nunca poderá estar

dependente do arbítrio ou de indiscriminada manipulação de células vivas, mesmo com

fins de elevada relevância social, pois os clones humanos — como pessoas — têm os

mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres de todas as demais criaturas

humanas; e nunca por nunca se pode pensar numa existência de segunda, sem liberdade,

pois sujeitas a um destino predeterminado de simples cobaias ao serviço de interesses

alheios e, eventualmente, inconfessáveis;

j) A sexualidade humana, como complexo de elementos psicofisiológicos e

anatómicos definidores do ser homem ou mulher, é obra do Criador que assim quis

associar as próprias criaturas à imensa alegria do Seu acto supremo e misterioso de

expansão da Sua Divina Essência — o Amor; toda a doutrinação que não respeite este

princípio não é seguramente inspirada nos textos da Nova Aliança e atenta contra a

própria natureza dessa incontornável Festa da Vida que Deus imprimiu no coração da Sua

Criatura;

k) Como tal, a sexualidade humana ou é vivida dentro destes parâmetros —

expansão do Amor criador, realização suprema de todo o ser humano, permanente festa

da vida — ou se transforma numa perversão sem regresso, não só pela turpitude da

exploração comercial que escraviza homens e mulheres, mas também pelos degradantes

níveis de irracionalidade que atinge;

l) Para quem vive a sexualidade dentro daquelas metas finalísticas do Acto Criador,

nenhuma interferência é legítima, pois só o juízo da consciência recta de cada um pode

ditar a norma do agir, em cada momento, para que as expressões de doação mútua

brotem espontaneamente de dois corações em festa;

Disse-vos, irmãos desta magnífica e na terra impensável Assembleia de Santos, que

vos mostraria as mais relevantes medidas tomadas pelo Concílio de Brasília. Ora, depois

das actas que se reportam à doutrina, vem, por fim, o decreto que define a revolução

empreendida, porque exigida por todas as comunidades cristãs e não-cristãs, mas

atentas ao fenómeno da coerência entre a moral que se prega e a que se vive:

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«A existência do Vaticano, como Estado dentro de outro Estado, não tem hoje

qualquer sentido apostólico, opõe-se aos princípios fundamentais da Boa Nova do Reino

de Deus e é motivo de não poucas preocupações pastorais e mesmo de algum escândalo

entre as comunidades cristãs; assim, vistos os estudos efectuados pela comissão especial,

por este Concílio e acolhendo as sugestões e a boa vontade das autoridades italianas.

Este Concílio Ecuménico de Brasília DELIBEROU — sendo esta decisão

simultaneamente publicada, na parte em que lhe diz respeito, pelo Estado Italiano, em

seu órgão oficial:

1. É revogada a Concordata entre a então chamada "Santa Sé" e o Estado Italiano;

2. Em sua substituição, será celebrado entre Pedro II, como sucessor do Primeiro

Pedro-Apóstolo e, por isso, como entidade responsável máxima de todo o serviço eclesial

— por um lado —, e o Presidente da República Italiana e o Ministro das Relações

Exteriores do Governo Italiano — por outro — um simples convénio, pelo qual, sem

prejuízo de continuarem sedeados em Roma os serviços essenciais da Igreja, são

entregues ao património do Estado Italiano todos os bens imobiliários do Vaticano e de

CastelGandolfo que deles cuidará e manterá acessíveis ao público, obrigando-se à sua

reconstrução e classificação no plano do património museológico do País, nele incluído a

chamada Basílica de S. Pedro e respectiva praça berniniana, sem prejuízo de estes dois

espaços continuarem a ser o ponto de encontro por excelência de todos os cristãos e não-

-cristãos do mundo inteiro que ali acorram para celebrar livremente a sua fé ou proceder

a reuniões ou encontros de pessoas de boa vontade que buscam a paz e a concórdia entre

os povos;

3. Em contrapartida, o Estado italiano coloca à disposição da Igreja-Comunidade-

-Cristã que se revê na sucessão do serviço de Pedro um edifício moderno, na periferia de

Roma, para sede dos respectivos serviços centrais, reconhecendo a esse local um estatuto

de "legação especial", semelhante ao das legações diplomáticas — uma especial

imunidade — sendo, ainda, da responsabilidade do Estado italiano a manutenção de um

serviço de segurança eficaz, quer à pessoa de Pedro, quer às instalações dos serviços

sedeados no país; no plano internacional, caberá ao Conselho de Segurança das Nações

Unidas deliberar o reconhecimento dessa imunidade à pessoa de Pedro e às suas

representações (conferências episcopais) nos diversos países, observado princípio da

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igualdade, relativamente aos chefes e delegações de outras confissões religiosas, de

acordo com a respectiva Carta e demais normas do Direito Internacional;

4. Com toda a veemência e caridade cristã, com o coração nas mãos, lágrimas nos

olhos e muita dor na alma, todos os bispos do mundo, com Pedro à frente, pedem aos

irmãos que em Roma se refugiaram em situação ilegal e contumaz, apropriando-se dos

imóveis e de outros pertences do Vaticano, para fins inconfessáveis e que a consciência

cristã universal e o mais simples bom senso reprovam, que deponham a contumácia,

olhem de frente Cristo crucificado, vejam o sangue por todos derramado e n'Ele

encontrem motivo seguro de arrependimento que os leve a regressar à casa do Pai,

dizendo como o filho pródigo da parábola: Pai, perdoai-nos, que pecámos contra Ti e

contra o Céu!... A todos o Concílio garante que outro gesto lhe não caberá, senão o do pai

enternecido que a todos abraçará e mandará fazer uma grande festa...

5. Neste sentido, aguardar-se-á o tempo razoável para que as conversações com o

grupo de irmãos que se rebelaram contra Pedro dêem esses almejados frutos de

ressurreição; porque tais bens passam, a partir de agora, para a posse do património do

Estado Italiano, a ele incumbirá fazer, esgotado esse prazo e todo o processo de

aproximação, o que tiver por conveniente, com a finalidade de recuperar e classificar

esses imóveis e seus recheios como espaços museológicos do País e, como tais, abertos

aos visitantes.

Em consequência:

6. É extinto o Instituto para as Obras Pontifícias (IOR), sendo os respectivos bens

distribuídos pelas conferências episcopais, para financiamento de projectos de

solidariedade julgados prioritários para minorar o sofrimento e os atrasos estruturais das

populações mais carendadas dos respectivos países ou dos países que mais necessidades

lhes fizerem sentir em cada ano;

7. As chamadas "Nunciaturas Apostólicas "são extintas, considerando-se, de futuro,

representações da cabeça da Igreja apenas as conferências episcopais, sendo o respectivo

presidente o responsável pelas relações internas — com Pedro — e externas com o Estado

respectivo;

8. Os presidentes das conferências episcopais são eleitos democraticamente pelos

respectivos pares;

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9. Os seminários, como instituições de formação do extinto clero, terminam nessa

função, devendo reconverter-se em centros de aprofundamento da fé e do testemunho

evangélico no mundo, abertos a todos os cristãos que desejem preparar-se melhor para o

serviço das comunidades cristãs;

10. Os actuais membros do extinto clero que o desejem, podem solicitar ao

respectivo bispo ou a Pedro — conforme se trate de presbíteros ou bispos — a

exoneração de funções e dispensa dos respectivos votos, afim de melhor se encontrarem

consigo próprios e, em profunda reflexão e oração, escolherem livremente o estado civil

em que querem viver e servir;

11. O único distintivo que socialmente identifique o servidor da comunidade cristã

será, doravante, a sua conduta de vida em harmonia com as regras básicas de

simplicidade e caridade evangélicas;

12. São abolidos da prática da Igreja central ou local todos os títulos honoríficos ou

para-funcionais, como os de "monsenhor" e de "cónego", solicitando este Concílio aos

actuais titulares que, voluntariamente, renunciem a todas as conexas formas e sinais de

identificação do respectivo título, de ostentação e / ou privilégios;

13. Fica suspenso o chamado "Código de Direito Canónico". Um comissão nomeada

por este Concílio vai estudar a melhor redacção para as regras de procedimento dos

membros da Peregrinação — regras muito simples e sempre cheias do Espírito que paira

sobre esta Assembleia — tendo somente em conta que, sendo o Evangelho o único Código

da nossa caminhada, tudo o resto só pode ser instrumento de perfeição de situações

concretas, para que nenhum dos caminhantes se perca...

— Irmãos, peço novamente ao nosso querido fraterlino Estêvão e com a vénia

desta Assembleia de Deus que continue o relato do que se seguiu. Ele, melhor do que eu,

tem memória sólida e expressão fluente para contar tudo, mesmo aquilo que, a mim,

passou de lado. E a voz que o Nosso Deus lhe deu é verdadeiramente celestial.

As inebriantes vozes do coro dos anjos e santos, com o calor do Espírito Trinitário,

fizeram-se ouvir, então, em sinal de aprovação da proposta de Pedro. E logo a voz suave

do fraterlino:

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— Bom, irmãos, todos os documentos conciliares, com a assinatura promulgatória

de Pedro, foram lidos, em voz pausada, através de potentes altifalantes que faziam ecoar

a voz pelo Planalto, num dia de perfeita paz da natureza. Sol amazónico, translúcido, céu

de um azul encantador, miríades de aves de todas as espécies e feitios que há no maior

pulmão do mundo, cantando cada uma seu salmo de louvor ao Criador e esvoaçando por

cima das cabeças da multidão, em sobressalto, pois nunca tinham visto por aquelas

bandas juntas tantas cabeças e instrumentos coloridos em agitação permanente. O

silêncio da multidão só era cortado por palmas, por vivas a Cristo Redentor e a Sua Mãe

Aparecida, a Pedro e à Igreja, como aconteceu quando o leitor anunciou o fim do Estado

do Vaticano, do clero, dos cardeais, das sedas escarlates em homens que apenas

deveriam vestir o escarlate do sangue de Jesus pela Humanidade, como Ele se

esfarrapando pelos pobres, pelos injustiçados, pelos sem tecto... e da possibilidade de

todos os cristãos, sem discriminação de sexo — desde que chamados pelo Espírito de

Jesus e comprovado o respectivo carisma — puderem dedicar-se ao serviço do

presbiterado e, consequentemente, do episcopado, num tema que vinha sendo muito

caro a todos os brasileiros, cujas comunidades cristãs estavam à beira da ruptura por

falta de quem presidisse à celebração pascal da partilha do Pão Eucarístico! Aí, a

assembleia espalhada por todo o Planalto vibrou de entusiasmo e ficou por minutos

dando largas à sua alegria e satisfação. Mas, no ponto em que a cassete acabou e o meu

pobre gravador de frade do Monte Célio... se desligou automaticamente, um grupo de

jovens de um sector próximo do palco onde se desenrolavam as cerimónias irrompia

agora com vibração completamente entusiástica em vivas a Pedro, à Igreja, ao Espírito

Santo de Deus. A multidão, logo contagiada, fez o Planalto estremecer com uma salva de

palmas como jamais alguém no mundo presenciou ou ouviu. Os vivas, os cânticos e, por

fim, o «Christus vincit...», seguido do «Tu es Petrus...», produziram tal emoção colectiva,

que logo obrigaram Pedro a levantar-se e, erguendo os braços para agradecer e acalmar,

arrastou a mole imensa ao mesmo gesto e, de braços bem alevantados — como via os de

Pedro —, vitoriava, em delírio, tudo o que acabara de ver e ouvir.

De lágrimas abundantes escorrendo pelas faces e com a emoção bem expressa no

rosto, perante o espectáculo grandioso que enchia o Planalto, uma das teólogas que mais

trabalharam na preparação dos documentos finais, segredou ao ouvido de Pedro:

«Irmão, este foi, na verdade, um Concílio em que o Espírito Santo pôde falar!...»

Pedro sorriu condescendentemente, ajoelhou-se e prostrou-se no palco, coberto

da serapilheira, preparando-se para dar início à celebração eucarística. Depois, olhando

para o lado e vendo Leonardo Boff — o teólogo seu patrício que sempre admirou —

ajoelhado e chorando também, aproximou-se dele, repetiu-lhe o dito da irmã teóloga e

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acrescentou, em notório ar de contentamento: «Sim, irmão, por isso é que eu penso: —

Que maravilha este grande "dogma" revelado pelo Deus de Jesus Cristo — o da Liberdade

Humana!... Quando o Homem quer ser recto, justo, confiante, com ânsia de verdade, o

Espírito de Jesus superabunda na distribuição dos bens! Louvemos o Senhor, irmão!»

Depois, voltou ao seu lugar e ficou em silêncio e recolhimento. Todos quantos ali

estavam e o espaço o permitia seguiram o gesto de Pedro. E, durante longos minutos,

fez-se silêncio absoluto no Planalto. Só ao entusiasmo incontido e incontível dos gorjeios,

em longínqua sinfonia, das aves todas que tem o céu que cobre a infindável chã

amazónica era permitido violar uma ordem espontaneamente imposta e aceite por

todos. Depois, num conjunto polifónico impressionante, com a suavidade e a beleza

musical de uma composição celestial, ouviu-se o coro, acompanhado da orquestra

sinfónica, entoar as estrofes do hino « Veni, Sancte Spiritus, et emite coelitus lucis tuae

radium... Veni Pater pauperum... Veni Lumen cordium... Veni Dator munerum... Lava quod

est sordidum... Riga quod est aridum... Fove quod est frigidum... Sana quod est

devium!...» («Vem, Espírito Santo, e emite um raio da Tua luz celestial... Vem, Pai dos

pobres... Vem, Luz dos corações... Vem, Dador de todos os bens... Lava o que está sujo...

Rega o que está árido... Aquece o que está frio... Cura o que está doente!...»)

No momento da homilia, Pedro, de pé, diante da maior assembleia que até então

tinha visto, agarrado a um cajado de pastor, feito de pau-preto e encimado por uma

tosca imagem de Cristo ressuscitado, obra dos caboclos de S. José de Nigaci, na querida

Amazónia dos pais, começou assim, com todo o vigor de uma voz robusta mas

suavemente inconfundível:

— Irmãos, todos vós que amais e viveis o Espírito de Jesus que é um Espírito de

Amor: — Aleluia!... Aleluia!... Aleluia!... Porque o mundo estava surdo e ouviu-nos!

Porque o Nosso Senhor Jesus abriu os ouvidos a toda a gente! Bendito seja o Senhor do

Céu e da Terra, porque fez maravilhas! E querem maior maravilha do que esta que esta-

mos a viver? Então, numa altura em que o inferno tenta vomitar sobre nós todo o

potencial de iniquidade de que é capaz o Espírito de Deus congregou-nos neste Planalto

do mundo, para lhe respondermos com toda a coragem de quem confia no Senhor: Não

tentarás ao Senhor Teu Deus? Que não são os impérios deste mundo que buscamos, que

decididamente estamos aqui a dizer não à vaidade e ao poder, que apenas nos importa a

comunhão com os irmãos e de todos com o Nosso Bom Deus?!...

Irmãos, o que este Concílio aqui acaba de dizer ao mundo é que só o Amor salva! Só

a partilha é capaz de levar a Humanidade à paz! Mas que a partilha exige

desprendimento dos que possuem os bens. E que só os que confiam no Senhor se atiram à

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agua! Vede, irmãos, com as reformas que foram anunciadas, não pretendemos, não

pretende a Igreja-Comunhão-de-Deus causar escândalos, levar à cena peças es-

pectaculares, para que nos aplaudam. O que ficou aqui decidido é, antes de mais, um

acto de humildade, ao acabar com o erro e dele pedir perdão a todas as gerações que nos

precederam. A história assistiu a muita miséria sentada no lugar de Pedro Apóstolo!

Nestes tempos de rápida mudança e de aceleração da história, o Espírito de Jesus que

invocámos e buscámos deu-nos essa perspectiva das necessidades dos que não têm pão...

E o Concílio decidiu-se pela entrega, pela partilha de tudo o que a Igreja acumulou

indevidamente ao longo dos séculos da sua velha história. Para alimentar quem tem

fome, para dessedentar quem morre de sede, para vestir quem anda nu e esfarrapado. E,

também, para arrancar, como exemplo forte, um grande movimento internacional de

partilha, de forma a que os ricos ponham ao serviço dos pobres o que conquistaram, nem

sempre com legitimidade e humanidade. Deixámos as sedas e os privilégios, despimos as

honrarias e as grandezas deste mundo... para vivermos como o nosso Mestre que não

tinha sequer onde reclinar a cabeça! Porque a Igreja não vive para si, mas para ser

fermento que levede a massa que todos os povos hão-de comer. Medo do terrorismo?

Não, irmãos, não temos. O terror só nasce onde impera o ódio. Onde há povos

espezinhados pelos impérios. Não, a nossa luta será pelo fim dessa visão da Humanidade.

A nossa luta é por uma paz assente no Amor do Espírito de Jesus — única via da Justiça e

da Verdade. Da Verdade, sim, irmãos! Não da verdade da autoridade, como até agora se

viveu. Mas da autoridade da Verdade, como se tentará viver! Caminharemos sobre as

ondas, provavelmente muito alterosas. Mas a nossa fé será a nossa prancha. Parti,

irmãos, parti para as vossas terras, levando convosco este fogo do Espírito. Alimentai-o

com as vossas boas obras. Partilhai sempre com os mais pobres o que tendes. Ninguém

chame seu ao que lhe pertence e tudo seja feito de todos. O inferno será derrotado,

quando vir que nos amamos! Esta é a nossa revolução! A nossa violência! A violência da

Boa Nova! E, nos dias de dor, nunca esqueçais, irmãos, aquilo que o Senhor disse:

«Filhinhos, confiai em mim, Eu venci o mundo!»

Para todos aqueles que continuam a ousar desafiar a Bondade e a Misericórdia

infinitas do Nosso Bom Jesus, negando-se a qualquer diálogo com os nossos irmãos

emissários deste Concílio, ousamos nós também rezar, pedir insistentemente ao Senhor

que domina os corações, implorar ardentemente para que se afastem da loucura dos

infernos, deixem de vez a fractura que estão a causar no Rosto Santo de Deus, peçam

perdão e se salvem. A eles, também, se dirige o apelo final deste Concílio: Irmãos, tende

confiança... e a certeza: «As portas do inferno não prevalecerão!...»

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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Já perto da noite, quando o frio amazónico começava a tolher os mais

desprevenidos, as palmas aqueceram por muito tempo o ambiente do Planalto que, em

milhões de anos, nunca tal presenciara. No dizer de um dos melhores cronistas do

Concílio de Brasília: «A Amazónia foi a grande metáfora do Amor!...»

— «Assim Deus amou o mundo!...»

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

124

IV

Meretrix magna Babiloniam corruit...

No Vaticano, Di Tronchetto, que se fechara no gabinete, acompanhara emocionado

em frente ao televisor o desenrolar da cerimónia em Brasília. Bem refastelado numa

ampla poltrona, grosso charuto havano fumegante na mão esquerda, mesinha ao lado,

com variedade de digestivos, águas minerais e máquinas prontas a produzir a bebida que

mais lhe agradasse, o antipapa, ao ouvir as decisões do Concílio sobre o fim do Vaticano,

começara a sentir-se apopléctico e convulso. — Mais um espresso, generosamente

batizado com grappa... — pensou — seria o bastante para afastar aquele estado. Assim

fez. No fim, acende novo havano. Psicologicamente, a situação parecia estar sob

controlo. Mas, quando nas imagens que lhe chegavam de Brasília, através do plasma

gigante que os "veneráveis" lhe prodigalizaram, vê Pedro em grande plano, coberto de

serapilheira, prostrando-se e, com ele, toda a assembleia de mais de dois milhões de

pessoas, em silêncio perturbante, terminado alguns minutos depois pela invocação

soleníssima e quase misteriosa do Espírito Santo de Deus, o velho arcebispo de Siracusa

não resistiu. Começou a soluçar, cada vez com mais violência. Entre expectorações e cada

vez mais sôfregas fumaças tiradas ao havano, sobreveio-lhe uma tosse de rebentar o

peito e fazer saltar os olhos. Logo a seguir, vieram os suores frios, uma dor aguda a

apertar-lhe o lado esquerdo do tórax, a respiração a encravar-se na garganta. Di

Tronchetto prostrou-se, também, mas para não mais se levantar.

Os "veneráveis" que na sala ao lado faziam as contas dos negócios sujos da noite

anterior — quantos blindados roubados aos russos, quantos mísseis vendidos aos árabes,

quanta cocaína e heroína traficadas para Amesterdão e Zurique, quantas esmeraldas,

rubis e safiras creditadas em Nova Iorque, quantas mulheres a render em Hamburgo,

Berlim, Paris, Lisboa, Londres, Roma, Istambul, Moscovo, nos confins da Ásia ou das

Américas, quantos meninos e meninas vendidos para os paraísos do sexo — tendo-se

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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apercebido de ruído estranho, acorreram ao gabinete do "seu" papa, rebentaram a porta

a pontapé e verificaram que estava morto. O televisor continuava ligado e a transmitir,

em directo de Brasília, a Eucaristia, estando Pedro II no momento da homilia, a pedir a

Deus perdão para a rebeldia de quantos ousaram fracturar a unidade da Igreja...

— O caralho!... (— Esta e subsequentes citações dos diálogos entre os filhos das

trevas que ocupavam o Vaticano são, naturalmente, impróprias para esta Assembleia

celestial, mas era assim o inferno daquela gente, e parece-me importante não dever

omitir nada, a fim de se compreender como os acontecimentos decorriam a uma

velocidade de queda no abismo, prenúncio sensível do fim...) — gritou encolerizado o

"venerável" mais barrigudo, enquanto desferia um soleníssimo coice no aparelho, onde

se via, de Roma, tudo o que se passava no Planalto. O enorme televisor ainda sambou em

cima dos pés, mas acabou por tombar, fumegante, até estoirar e incendiar o aposento,

cujos cortinados e tapeçarias ardiam tão rapidamente como feno seco em dia de vento

do Adriático. Os homens de mão apareceram imediatamente, armados de extintores,

mas o "venerável" barrigudo fez-lhes sinal para não actuarem, enquanto ordenava, na

linguagem própria da sua honorabilidade de comendador do santo sepulcro: «Deixem

arder essa merda!...»

— Mas... chefe, o morto... — Apontava para o cadáver do antipapa.

— É mesmo essa merda que deve arder. — Casquinou o "venerável", por entre a

tosse convulsa, por causa dos fumos — o do charuto e o... "dessa merda"... a arder!

— Vamos imediatamente para outro lado! — Ordenou o "venerável" barrigudo a

todo o conclave já reunido para dar sucessão ao rebelde, cujo corpo ardia, agora,

juntamente com as tapeçarias, os óleos, os brocados, as mesas, as cadeiras e os vernizes.

Nem se incomodaram que o fogo depressa tenha alcançado a riquíssima biblioteca do

papa, mesmo ao lado, começando a destruir impiedosa e irrecuperavelmente exemplares

únicos de valor incalculável. Na ala oposta, os padrinhos debatiam-se entre duas

correntes — ou travestir um deles de "papa"... ou chamar a esse lugar um dos poucos

clérigos que ainda lhes eram fiéis. Venceu, por fim, a corrente mais moderada.

— Mas quem? — Inquiria o "venerável" lingrinhas, sempre armado com dois

terríveis pistolões à cintura e mais outros dois nos sovacos, sustentados por correias de

couro de boi.

— Ora, quem?!... O espanhol, já se vê! — Responde prontamente o barrigudo,

sempre armado nos dedos queimados por eterna ponta de havano.

— Qual espanhol?... — Faz o lingrinhas, de olhar retorcido para o candeeiro do

tecto.

— O da secreta dos banqueiros de Nova Iorque, já se vê — resposta pronta do

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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chefe. — Uns carinhas tortas de santaneiros... mas por dinheirinho e poder são piores

que todos nós juntos. Cuidado com eles! Se nos apanham distraídos, logo os veremos

sentados nos nossos lugares! Cuidado, repito.

— Então não percebo — insiste o lingrinhas. — Se os tipos só querem dinheiro e

poder, como é que vamos colocar um deles à nossa frente?

— Este merdas é mesmo burro... — comenta, para a banda, o barrigudo,

meneando a cabeça, com ares de quem se prepara para zaragata. Mas, de imediato,

acalmando o lingrinhas, mestre no manejo dos pistolões, que já deitava a mão direita ao

sovaco esquerdo. — Então tu não vês que nós só queremos quem dê a cara ao público,

fazendo crer que é o papa? Ele só faz o que nós lhe mandarmos. Não lhe damos espaço

para mais.

E votaram todos no espanhol.

Era um bispo relativamente novo, mas muito vaidoso, cheio de tiques nervosos e

gostos esquisitos. Sempre bem perfumado com os melhores produtos de Grasse que a

"irmã" Consuelo lhe enviava, D. Alonso Melilla lbañes, que exercia funções de chefia na

torre rosa do 243 da Lexington Avenue, admirador e muito devoto do santo fundador,

adorava a vida faustosa e a companhia dos endinheirados e poderosos.

D. Alonso aceitou a "eleição" dos padrinhos, claro está. E, com a mesma perfeição

com que vestia a indumentária violácea de bispo, aparecia então diante do conselho dos

"veneráveis", vestido de sotaina branca, romeira branca, faixa de seda branca à cinta,

solidéu branco na nuca, sapatos brancos, meia branca e um grande anel de ouro no

anelar direito, gravado com o símbolo da Cosa Nostra e o escudo do Vaticano.

Só nesta altura, porém, é que o conselho dos "veneráveis" se deu conta de que era

preciso anunciar ao mundo a morte do "papa", para poder entronizar o outro. Correram

então à ala oposta, a ver em que estado se encontrava o cadáver. O fogo lavrava, cada

vez com maior violência, em toda a zona dos aposentos papais, estando mesmo a atingir

o que ainda restava da Capela Sistina. Escadas de bombeiros estavam já lançadas pela

parte de fora, mas ninguém ainda combatia o incêndio, perante o espanto de milhares de

pessoas que acorreram à Praça de S. Pedro, logo que as sirenes dos autotanques e

demais carros de combate às chamas cruzaram Roma a gritar, espalhando o alvoroço por

toda a população. Junto às escadas, centenas de bombeiros, prontos a subir e a intervir,

discutiam acaloradamente com indivíduos fortes, de fato negro e óculos escuros que lhes

apontavam os canos de metralhadoras ligeiras, afirmando que tinham ordens internas

para não deixar apagar o incêndio. Aparece, entretanto, o comandante operacional dos

bombeiros a dar ordens de "destroçar". Carros e pessoal voltaram aos respectivos

quartéis, enquanto o fogo destruía já e para sempre a obra-prima de Miguel Ângelo — o

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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"Juízo Final" e os demais frescos do tecto da Capela Sistina que tinham resistido à

borrasca do dia anterior a Pedro II.

— Eh!... Esta merda arde depressa! Onde isto já vai!... Ó Mani, ó Pirró, ó Bari, vinde

cá, caralho! Então não há quem apague este inferno, porra?! — Gritava o barrigudo, com

os outros atrás, tapando o nariz com o lenço.

— O chefe disse para não apagar...

— Pois disse, minha besta, mas era só os aposentos da "merda", ou será que tu

não entendeste, meu estúpido?!

O desgraçado do gorila-mor nem teve tempo de treplicar. Uma bala certeira no

lado esquerdo do tórax deixou-o prostrado com a palavra atravessada na língua e a

metralhadora no chão, à espera que o seguinte na hierarquia tomasse posse dela.

— Atirai-o aí para o meio do fogo! — Ordenou, com frieza de cascavel, o barrigudo.

— Chamo os bombeiros, chefe? — Perguntou o número dois a tremer.

— Não é preciso bombeiros, meninos. Vamos a isto.

O barrigudo tira o casaco, dá ordens para abrir as bocas-de-incêndio, estender as

mangueiras, trazer todos os extintores distribuídos por todos os corredores do palácio.

Toda a gente foi mobilizada e até o novo antipapa, em camisa, despejava água contra o

tecto da Capela Sistina, precisamente quando a última língua de fogo devorava o que

ainda restava de "A Criação".

Ao fim de algumas horas, o incêndio estava extinto, mas as toneladas de água

atirada sem planificação nem perícia tinham danificado irremediavelmente obras de arte

de valor incalculável, não só naquele piso, mas em todos os inferiores.

A população que não arredara pé da elíptica praça berniniana pensara que os

bombeiros tinham decidido atacar o fogo pelas traseiras. E quando notaram que as

chamas se extinguiram, começaram a debandar. Foi então que numa única rádio romana,

controlada pelos homens da Camorra, apareceu uma voz feminina a anunciar, «em nome

das autoridades do Vaticano» que «o papa João Paulo III sucumbira no incêndio que esta

noite deflagrou nos seus aposentos e se estendeu rapidamente a outras dependências do

palácio apostólico». Acrescentava que, na mesma catástrofe, perdeu a vida também «um

dos guardas pessoais de sua santidade».

No dia seguinte, a mesma voz convidava «todos os católicos» para se juntarem na

Praça de S. Pedro, a fim de «prestarem as últimas homenagens ao papa que soube

conduzir os negócios da Igreja Católica no melhor sentido e no respeito pela tradição».

A quantos estrangeiros se interrogavam sobre muitas coisas incompreensíveis em

toda esta história, como a fuga dos bombeiros, após acesa discussão com os gorilas

armados à entrada do Pátio de S. Dâmaso, a ausência de qualquer aparato policial na

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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área do fogo, a omissão de pronúncia de quaisquer autoridades sobre a tragédia,

respondia um velho taxista romano, encostado ao seu cansado Fiat: «É assim a Itália,

amigo! Aqui mandam os padrinhos. Desde o Presidente da República ao mais pequeno

funcionário, toda a gente lhes obedece. É a lei da vida. Instinto de sobrevivência.»

Aos funerais do arcebispo de Siracusa, compareceram alguns colegas que não se

encontravam em Brasília. Para espanto de todos, o bispo espanhol D. Alonso

apresentara-se travestido de papa e a presidir à liturgia. Dizia-se eleito pelo "conclave do

Vaticano" na noite anterior, devendo ser "coroado" no Domingo seguinte. Ah! E mais:

que adoptara o nome de João Paulo IV...

Os homens da Cosa Nostra e da Camorra tinham conseguido silenciar toda a

informação vinda de Brasília, de modo que os romanos e a generalidade dos italianos só

podia saber o que se passava do outro lado do Atlântico através de estações de rádio

estrangeiras e emissões televisivas por satélite. Nos bastidores do Concílio, porém, as

terríveis notícias iam chegando a Pedro, por artes de Meneses e Costa e dos seus

colaboradores.

Em Brasília, era o dia das despedidas de quantos, ao longo de vários meses, tinham

dado o seu melhor para uma rápida conclusão dos trabalhos do Concílio Ecuménico.

Pedro estava visivelmente satisfeito ao falar, de manhã, a todos os conciliares.

Quando, porém, se preparava para iniciar a despedida de cada um dos bispos e

teólogos participantes, Logano entra na sala, apressado, com ar de muita perplexidade e

diz qualquer coisa ao ouvido de Pedro. O rosto de Pedro mudou instantaneamente: ficou

tenso e muito triste. Depois de alguns minutos de silêncio, pediu a todos um pouco de

paciência, pois queria comunicar-lhes factos ocorridos na noite anterior em Roma, factos

de uma tal gravidade que o obrigavam a partir imediatamente para Itália. Aguardava,

porém, um comunicado da delegação presidida por Menezes e Costa. E, enquanto

esperavam a chegada do expediente, por telecópia, solicitou a todos os presentes que, ali

mesmo, rezassem pela alma de Di Tronchetto, falecido em circunstâncias não

esclarecidas, bem como pelo fim da situação dolorosa que se estava a viver nos palácios

do Vaticano e na Igreja de Cristo.

Alguns minutos mais tarde, o comunicado chegou, acrescentando à notícia da

morte do antipapa, outros factos de não menor gravidade, como a do incêndio que

devorou os aposentos do papa e tudo o que ainda tinha ficado de pé na Capela Sistina,

após o temporal, e — pasme-se! — a da escolha, pelas máfias, para suceder ao rebelde

siracusano, do bispo espanhol D. Alonso de Melilla Ibañes — que a si próprio se inti-

tulava "o papa do século". O telex da delegação chefiada por Menezes e Costa atestava,

por fim, que D. Alonso assumiu o significativo nome de João Paulo IV.

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Pedro leu o texto perante a assembleia em voz pesarosa e disse, em lágrimas:

— Irmãos, o calvário da Igreja continua! O Senhor nos acuda! Parti, irmãos, para as

vossas Igrejas locais e fazei tudo o que estiver ao vosso alcance, para que todo o Povo de

Deus sinta esta segunda crucificação do Mestre como em sua própria carne e, comigo,

chore... e, comigo, ore... sem cessar, comigo force o Misericordiosíssimo Coração de Jesus

para que, com a intercessão de Maria, Sua Mãe e Mãe da Igreja, nos conceda a graça do

perdão, do arrependimento sincero e da unidade e da paz da Sua Igreja. O mundo dos

pobres, dos que sofrem na pele as injustiças de regimes opressores e corruptos, não se

compadece com este tipo de atitudes fraccionárias e de mau gosto dos homens do crime

organizado que sublevaram e mantêm em rebelião alguns cristãos que o inferno cegou,

para que não vejam a realidade. Irmãos, é preciso dizer ao mundo que a fraude instalada

em Roma nada significa para o êxito da missão de Pedro. Que o opróbrio cairá sobre os

que na cloaca se meteram e aí, voluntariamente, se mantêm. Que, se todos quiserem,

com a força do Espírito, tudo será renovado. Vamos em frente, irmãos! As portas do

inferno nada poderão contra a Igreja. Se tudo o que fizermos levar o selo da doação aos

que sofrem, o selo do Espírito de Jesus, nada temos a temer! É preciso que todos se dêem

conta de que em Brasília morreu um império. E que os respectivos "súbditos" começam a

aprender a obedecer apenas à autoridade da Verdade! Os povos vão reconhecer a nossa

acção pela Humanidade, se virem em todos — bispos, presbíteros e demais servidores da

Comunhão Peregrina —pessoas que deixaram os pergaminhos de outrora e se viraram

exclusivamente para as misérias alheias. Pessoas que se fazem próximas dos que sofrem,

que lhes tratam as feridas, que lhes dão de comer; que as curam das doenças, que as

elevam à dignidade de filhos de Deus! Ide e rezai, ide e trabalhai, implantai nas vossas

dioceses as reformas de Brasília — o Espírito de Jesus — que vos levará a trocar

definitivamente e em qualquer circunstância as sedas pela estamenha, os sinais de poder

pelos instrumentos de entrega arrojada e voluntariosa aos humildes, a morte para o

espírito deste mundo... pela vida que nasce deste Espírito e vos conduzirá, com o Povo de

Deus, para a Verdade da Vida Eterna. Irmãos, vivei como Paulo nas suas atribulações,

mostrando sempre que é Cristo e só Ele o vosso viver e que nesse viver de entrega, de

Amor, quereis incendiar o mundo dos corações de boa vontade! Então, a crise actual será

breve, as portas do inferno não mais vomitarão sobre a Humanidade a sua mentira e as

convulsões de hoje se transformarão em paz, porque ninguém pode o que quer que seja

contra o Espírito Santo de Deus! — Concluiu.

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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Logano foi instruído no sentido de comunicar imediatamente à delegação em

Roma — que, terminado o Concílio, passava a "Comissão para a Unidade", dependente

directamente de Pedro II — para continuar os contactos oportunos em ordem ao diálogo

e para preparar o alojamento provisório do Papa e dos serviços necessários. O regresso

de Pedro a Roma ficaria dependente da existência de condições mínimas de segurança e

funcionalidade.

Menezes e Costa era um bom diplomata. E tudo estaria preparado dentro de

poucos dias. Um prédio onde Pedro se alojaria com a respectiva equipa, bem como a

segurança pessoal de todos os seus companheiros e de todas as pessoas ligadas aos

serviços essenciais foram conseguidos secretamente, em negociações com alta patente

do exército italiano, conhecido pela sua luta feroz contra o poder das máfias. Um

aquartelamento desactivado, fora de Roma, era o local escolhido para nova sede dos

serviços do papa. O local era ermo e nada denunciava a nova função do edifício. Os

contactos com o exterior seriam efectuados exclusivamente por telefones celulares e por

satélite, para o que se instalaram de noite, nas traseiras, os meios técnicos julgados

necessários. O batalhão de soldados das forças especiais para ali destacados fora

conveniente e secretamente preparado. Quem violasse a lei do sigilo sobre o que ali

estava a ser guardado seria julgado em conselho de guerra e, se condenado, seria

imediatamente fuzilado.

Righetti partira logo para a capital italiana, juntando-se à delegação papal. Como

bom conhecedor do terreno minado pelas máfias, o ex-cardeal logo preparou Mãe

Salomé para um diálogo telefónico com Alonso, tentando convencê-lo a não tomar posse

de um cargo para o qual sabia bem estar prenhe de ilegitimidade. Do outro lado do fio,

apenas a recusa em alterar o programa do domingo seguinte. Que não havia nada a

fazer, uma vez que «o Concílio tomou decisões ilegais e, por isso, não se lhe devia

obedecer». Que estava a respeitar a história. E que, de futuro, não queria mais conversa

sobre o assunto. Salomé insistiu. Que não, que não era assim. Que o bispo D. Alonso

tinha perfeita consciência de que estava, apenas, a seguir ditames diabólicos do poder

das secretas do crime organizado. Nada feito, porém. O homem desligou.

A Comissão para a Unidade, agora reforçada com a presença de Righetti, não

baixaria os braços, nem a voz, nem a força das suas convicções.

«É preciso que Pedro venha depressa!» — Dizia Mãe Margaritta, insistindo na ideia

de Salomé tentar, por todos os meios legítimos ao alcance da Comissão, obter uma

entrevista com D. Alonso. — «Sabem, irmãos, ela tem dons de muitos desconhecidos...»

Salomé sorriu e os restantes membros bateram palmas.

Assim, enquanto uns preparavam, ao pormenor, a chegada de Pedro, as Mães

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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Margaritta e Salomé minariam, como toupeiras, o terreno do Vaticano.

Menezes e Costa, com Righetti e o arcebispo auxiliar de Roma, iria, por seu lado,

tentar encontrar os meios disponíveis, para iniciar uma sistemática campanha de

esclarecimentos à população romana e a todas as legações diplomáticas, para se

absterem de qualquer diálogo com o novo antipapa, mesmo que por ele convidados para

qualquer cerimónia pública no Vaticano. Por outro lado, insistia-se para que o governo da

República Italiana tomasse medidas para encerrar os palácios anexos à Basílica de S.

Pedro, para sua reconstrução, remodelação e classificação como museus, já que lhe

pertenciam, de pleno direito, depois do convénio assinado por Pedro II e pelo Presidente

da República, bem como pelo ministro das relações exteriores, em representação do

governo italiano.

No dia em que Pedro chegara, secretamente, a Roma, depois de muitas hesitações

dos políticos, de ordens e contra-ordens, um coronel do exército italiano, cujo nome

agora vou revelar a esta Assembleia da Cidade Santa — chamava-se Massimo Cristiano —

comandando um corpo especial de tropas e com o auxílio dos mais destacados membros

da guarda suíça, à paisana, bem conhecedores do meio, movimentou forças, pela

madrugada, formando cerco a toda a muralha do Vaticano. Às primeiras horas da manhã,

potentes altifalantes instalados em carros de assalto lançaram o ultimato: «Atenção,

pede-se a todas as pessoas que estão dentro dos edifícios do Vaticano que saiam

ordeiramente para a rua, de mãos cruzadas na nuca e em silêncio, pela única porta

aberta para o efeito — a porta de entrada para os museus, na muralha, lado Norte.

Ninguém correrá perigo se obedecer às ordens do comando que cerca o território.»

Os soldados que, fortemente armados, tinham por missão identificar, um a um,

todos quantos aparecessem àquela porta, esperaram cerca de uma hora para que

começassem a sair algumas pessoas. Entretanto, o comando ia repetindo de cinco em

cinco minutos a mesma ordem, acrescentando «dentro em pouco, abrir-se-á fogo contra

alvos já seleccionados».

Cerca de duas horas depois do primeiro aviso, no heliporto, começou a

movimentar-se, empurrado por quatro homens, um pequeno aparelho que, de imediato,

com hélices em movimento, se preparava para abandonar o local. Foi imediatamente

metralhado pelo fogo das baterias camufladas sobre a muralha e explodiu. Os quatro

ocupantes ficaram irreconhecíveis.

Mulheres, muitas prostitutas, alguns funcionários e bastantes clérigos obedeceram

à voz do comando. Identificados, eram levados em camiões do exército para

interrogatórios.

Faltava, porém, o grosso da coluna que se sabia armado até aos dentes. Alguns

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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vultos espreitavam por entre os cortinados das janelas, mas logo se retiravam se

notassem estarem a ser fotografados.

Já perto do fim da tarde, o oficial comandante das forças sitiantes dá um último

prazo a todos os que não haviam ainda abandonado os edifícios do Vaticano: «Dentro de

dez minutos, começará o fogo e os palácios serão tomados pela força!»

Ninguém mais apareceu. Expirado o prazo, o fogo pesado começa a vomitar

metralha sobre os jardins, cobrindo o assalto das tropas. Um ou outro gorila que

apareceu a fazer frente foi logo dominado. Mais adiante, quando os soldados se

preparavam para tomar a Rádio Vaticano, uma enorme explosão mandou pelos ares o

edifício e estilhaçou os vidros da Casina Pio IV. Esta incendiara-se de seguida,

provavelmente por efeito de algum pedaço de material em chama, projectado pela ex-

plosão. Cinco soldados italianos e vinte e três gorilas da guarda pessoal dos "veneráveis"

pereceram na explosão.

O contingente foi reforçado pelos soldados que flanqueavam o Átrio das Quatro

Portas e as tropas avançaram rapidamente para o interior dos museus. Só que aí

depararam com uma resistência que não esperavam: um outro esquadrão do mesmo

exército defendia a entrada no palácio papal. Os comandantes das duas forças

parlamentaram segundo as regras. Mas, sem resultado. Cada um exigia do outro a

rendição. Sem mais. O comandante da força sitiante procurou então ganhar tempo,

simulando diversas diligências e contactos. Era sua intenção distrair o inimigo. Mas

quando fez sinal para atacar foi o fim. Os edifícios estavam completamente minados e o

rastilho ligado a um enorme paiol de munições, no Cortile delIa Biblioteca. Alguém

carregou no botão antes do tempo. O efeito foi o de uma detonação de uma

potentíssima bomba de muitas toneladas de explosivos.

A população romana — que já acorrera à Praça de S. Pedro, aquando da primeira

explosão — ao sentir semelhante rebentamento que abalou a cidade inteira e arredores,

ficou apavorada e as sirenes dos bombeiros, os carros da polícia e do exército a

atravessar ruas e avenidas e a engarrafar todo o trânsito, fizeram o resto. O clima do

terror, do medo, do atentado, da destruição e da morte instalou-se por todo o lado.

Foram mortos todos os soldados dos dois contingentes beligerantes, todos os

"veneráveis", seus gorilas e demais pessoal das máfias que dominavam o Vaticano,

destruídos todos os edifícios, palácios, museus, bibliotecas e a própria basílica de S.

Pedro ficou quase irreconhecível. Depois de dominados os incêndios, apenas se

conservavam de pé meia fachada e parte do duomo, restos das paredes laterais e o "altar

da confissão", com o baldaquino de Bernini completamente intocado, como se nada lhe

tivesse caído em cima.

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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O Presidente da República Italiana desapareceu. O governo evaporou-se. E os

chefes militares, divididos entre o grupo dos mafiosos e daqueles que há muito

desejavam uma Itália livre do crime organizado de todas as secretas, logo se apoderaram

do aparelho de Estado, tentando, cada um a seu modo, a conquista de adeptos e o

ensaio da contagem das espingardas... A guerra civil era, agora, a realidade cruel de uma

Itália, em grande parte dominada pelas organizações do crime e do terror. Muitos

fundamentalistas islâmicos, vindos de vários países asiáticos e do Norte de África,

juntaram-se ao caos instalado e todos os dias havia assaltos, explosões, atentados a

pessoas inocentes… tudo impune! Nem lei nem ordem! A Itália era, então, um País a

saque, sob o império das máfias, agora unidas sob o comando do "grande imperador",

com trono assente do outro lado do Atlântico! Só então se soube, em todo o mundo, o

que era e quem era este "imperador", dotado de um poder verdadeiramente luciferiano.

A Comissão da União Europeia marcou uma reunião para o dia seguinte, para avaliar a

situação. Daí saiu uma decisão: realizar, no curto espaço de quinze dias, em Bruxelas,

uma cimeira de chefes de Estado e de Governo, com a seguinte agenda: discussão da

situação em Itália e das medidas a tomar para auxiliar um Estado Membro em crise.

Antes de prosseguir o relato dos últimos tempos do tempo, permiti, irmãos, todos

participantes da glória dos justos, que vos revele algo mais da personalidade e da visão

do último Papa, o que faço com seu aceno de permissão. Estávamos sentados — eu e o

arcebispo do Rio — naquele lugar que ele classificou já de "mansão do alívio" — a Villa

Celimontana, onde se situava o convento. Havia um jardim bem tratado, com bancos de

pedra para o visitante descansar, dispersos por entre miríades de pétalas das mais

variadas e fortes cores. Em tal recanto se juntavam duas características essenciais que o

tornavam, para mim e para Pedro, uma autêntica metáfora do Céu: ar puro e silêncio. Ali,

era possível ouvir a alma...

Na conversa que precedeu a resolução de avançar com uma estratégia de

abortamento da tentativa das gentes da secreta dos santos banqueiros de Manhattan

fazer aclamar um dos seus como papa, mesmo antes de realizado qualquer conclave,

Pedro, sempre de olhos postos no horizonte que ultrapassava Roma, dissertou por longos

minutos, em voz cava e dolente, sobre aquilo que ele considerava os "sinais do fim".

Depois de me recordar as palavras do Mestre sobre o estertor dos últimos dias da

Humanidade, o arcebispo do Rio mostrou-me realidades sobre as quais eu ainda não

tinha reflectido. A certa altura, interrompeu subitamente o discurso, esfregou os olhos

com as duas mãos e continuou:

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

134

«Sabes, irmão e meu amigo Estêvão, dois impérios se degladiam até à morte: o do

dinheiro e o da fome! O primeiro tem exércitos poderosíssimos. O segundo tem biliões de

seres humanos deprimidos. E sabes o que acontece sempre em qualquer depressão? Na

hora de pico, explode. Um terço da humanidade detém a riqueza. O resto vegeta. Este

resto, constituído por dois terços da população mundial está a tomar consciência do seu

real poder. O pico da depressão está a ser atingido. O confronto já começou. Lembras-te,

irmão, dos acontecimentos que sacudiram o outro lado do Atlântico? E de como reagiram

os donos desse império? Loucos, letalmente loucos! Os frutos estão à vista. Aquilo que

chamaram de "terrorismo", como objectivo a eliminar com bombas, renasce das cinzas!

Parecem cogumelos em dia de tormenta. Os biliões de famintos de todo o mundo estão à

beira da grande explosão. E porque não há quem os oiça, a explosão será o fim da

Humanidade e do planeta. Duvidas? Olha, irmão, para a quantidade de armas, mesmo

nucleares e biológicas, ao dispor de qualquer fanático. E mais: olha para as mãos de

quem detém o poder, no império do outro lado. Por isso te digo, irmão, a Igreja de Cristo

tem de sofrer um forte abanão! Para que acorde para a realidade de um mundo à beira

do abismo! Não podemos continuar a olhar para o umbigo. A grande assembleia dos que

acreditam no Deus revelado em Jesus Cristo tem de tomar consciência destas realidades,

para deixar a segurança da barca e atirar-se ao mar revolto, estendendo bóias de

salvação aos náufragos que as queiram usar.»

Retenho esta lição do então arcebispo do Rio, para concluir agora que a visão dele

estava correcta. A conciliação entre os dois impérios foi de todo impossível, apesar dos

esforços do último Papa. Judeus, apoiados pelo império do outro lado e por toda a

panóplia de banqueiros do mundo descendentes do tronco de David, arrotavam poderio

e ódio contra o inimigo — o segundo império — então imbecilmente apelidado de "eixo

do mal".

Os povos da fome, conscientes da força da razão que lhes assistia, uniram-se num

único objectivo: pulverizar a arrogância do império de Satã. Assim, no conflito

palestiniano, os filhos de Israel nunca aceitaram a proposta do bom senso, formulada por

Pedro II, secundada pelo secretário-geral das Nações Unidas e por muitos chefes de

Estado do mundo inteiro, para que Jerusalém — a cidade santa, terra de profetas, para as

três religiões monoteístas em presença — se tornasse numa urbe desmilitarizada,

património de toda a humanidade, a ser colocada, então, sob a administração de um

conselho municipal nomeado e supervisionado pela ONU e no qual tivessem assento

membros eleitos por judeus, palestinianos de obediência corânica e por uma delegação

de cristãos, nomeada por Pedro II e pelos dirigentes das ortodoxias ali implantadas. Se,

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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para os palestinianos, a proposta era negociável, para o orgulho dos primeiros era

intolerável!

Depois de imensas reuniões e cimeiras, nada se avançou. A não ser no número de

mortos das mais violentas e cruéis batalhas de destruição mútua. Os anos passaram e

não havia já sensibilidade mundial para a situação. As movimentações de tropas judaicas

levavam por diante a apropriação de terras, com a construção de um muro de betão e

arame farpado, expulsando os palestinianos dos seus territórios e a destruição

sistemática das suas casas. Em nome do combate ao terrorismo, os helicópteros de

combate com a estrela de David metralhavam diariamente bairros de palestinianos, na

Cisjordânia ou na faixa de Gaza, matando indiscriminadamente homens, mulheres e

crianças e reduzindo a escombros os respectivos tugúrios. A raiva palestiniana, por seu

lado, contagiava povos vizinhos. E, de repente, a velha Jerusalém, sobre a qual Jesus

Cristo chorou, estava a saque. Mesquitas, sinagogas e templos tão caros ao cristianismo,

como a Basílica da Natividade, a Igreja do Santo Sepulcro ou a do Dominus flevit eram

palco de confrontos demolidores. Pouco a pouco, a cidade voltava aos tempos da

destruição romana. Os ódios cresciam entre os dois povos e a máquina satânica de

destruição não parava. De ambos os lados aumentavam os meios de guerra e o desejo de

genocídio mútuo.

Os apelos à contenção e ao bom senso vinham de muitos chefes de Estado e de

Governo. A Europa, preocupada com o próprio umbigo que já quase nem se enxergava,

deixou de se preocupar — «Aumentemos o terror sobre a Europa e sobre a América —

lia-se numa curta mensagem em árabe, descodificada por uma agência noticiosa de

Roma — Tornemos-lhes a vida insuportável. Quando já não souberem o que hão-de

fazer, entraremos triunfantes pelas suas terras, pilharemos os seus haveres e empurrá-

-los-emos para o mar.»

Exércitos asiáticos e africanos realizavam manobras conjuntas, com meios

humanos, logísticos e de ataque nunca antes vistos. As ameaças, a princípio veladas, mais

agressivas depois, apareciam em quase todas as televisões dos países islâmicos, desde o

arquipélago malaio, até ao Médio Oriente e ao Norte de África. Os meios de comunicação

social do planeta davam conta das movimentações, dos encontros, das cimeiras, dos

discursos dos mais altos dirigentes mundiais, incitando à guerra uns, travando a escalada

outros, mas adivinhava-se que ninguém estava a medir as consequências trágicas para a

humanidade de um acto tresloucado.

Pedro Apóstolo fez-me sinal. E, voltando-se para o último dos seus sucessores:

— Estavas mesmo perdido, meu caro irmão!... Era muito para um homem só...

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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— Não, irmão Pedro Apóstolo, eu estava até bem acompanhado. Não esqueças os

verdadeiros Dons de Deus que sempre eram para mim Logano, Menezes e Costa e o de

Veneza, o vivaço Righetti. E conheces também a valia das nossas irmãs que, em boa hora,

consegui colocar no terreno.

— Foste, nessa altura, tentar uma assembleia-geral da ONU. Como foi isso e que

resultados?

— É verdade, irmão, achei que o tempo urgia, os sinais do fim dos tempos

pareciam-me evidentes e só os dirigentes mundiais estavam ainda a olhar para as cebolas

do Egipto. Foi tudo muito bem preparado. Agia, agora, em coordenação perfeita com as

conferências episcopais, cujos presidentes eram os meus representantes junto dos

respectivos governos e povos. Como se tratava de pessoas conhecedoras dos res-

pectivos meios, tendências e entrega no ardor da fé e, por outro lado, homens de altas

qualidades de inteligência, bom senso e de uma dignidade por todos reconhecida, era

mais fácil levar as questões às pessoas certas, dentro dos governos de cada nação.

Preparadas, então, as pastas no esconderijo que me reservaram nos subúrbios de

Roma, longe dos olhares das máfias e seus esbirros que me faziam, ainda, em Brasília,

recebi, na noite antes de partir para Nova Iorque, um velho amigo oficial dos exércitos

libertadores, garantindo-me uma guarda discreta mas eficaz até Nice — para onde

viajaria de comboio — e, daí, seguiria guardado por experientes militares franceses à

paisana, num voo especial para a sede das Nações Unidas. Meneses e Costa

permaneceria em Roma, tentando levar por diante o seu trabalho de toupeira antimáfia,

sendo agora acompanhado de Righetti e Estêvão que tinha, no seu convento do Monte

Célio, montada uma autêntica bateria de frades em voluntário jejum e oração contínua,

pedindo à Misericórdia Infinita do Senhor Jesus a protecção e os resultados positivos

para o mundo da intervenção de Pedro II no areópago das Nações. A eles se juntavam as

nossas irmãs servidoras que no mundo inteiro tinham tudo em verdadeiro estado de

alerta máximo.

A recepção que me foi dispensada no átrio do Palácio de Vidro foi discreta. Assim

fora previamente combinado, por causa dos muitos telefonemas anunciando atentados.

Uma vez na sala das sessões, recebi os cumprimentos, mais ou menos calorosos,

de todas as legações presentes que me pediam para mediar os conflitos aqui e ali,

falando-me especialmente do problema Israelo-árabe, do terrorismo e a psicose colectiva

da guerra, como meio de resolver os problemas da Humanidade, particularmente no

subcontinente asiático.

Quiseram que fosse eu o primeiro a usar da palavra. Imaginem o que sentia…

diante daqueles homens e mulheres com os olhos e a esperança ou, pelo menos, alguma

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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expectativa, estampada nos rostos.

Começando por agradecer a todos os presentes a gentileza de esperarem ouvir a

voz de um não poderoso — que, em Brasília, se despojara voluntariamente e com ele

toda a Igreja que dirigia, de toda a forma de "poder", como contrária ao Espírito do seu

Fundador — (ao que estalou na grande sala enorme salva de palmas que me comoveu às

lágrimas), disse-lhes também que, ao contrário dos meus antecessores, Pedro II, já não

era chefe de Estado, porque o Estado do Vaticano acabara. Que, como Cristo, havia dois

mil anos, pelas terras da Judeia e da Galileia, apenas me considerava aquilo que na

realidade era, por eleição do meu povo crente e fiel ao Espírito de Jesus — um servidor-

-coordenador de toda a actividade e sentir da Igreja, espalhada por todo o mundo e com

a responsabilidade máxima de conduzir este Povo de Deus para a Jerusalém Celeste, ou

seja para a posse definitiva da felicidade eterna, no Amor do Nosso Deus. Finalmente,

acentuei que a nossa única arma, neste combate difícil contra as forças do mal, era a

força das nossas convicções no Amor que salva, no Amor que redime, no Amor que

transforma.

— Quererá a Humanidade entender-se — continuei, agora com grande firmeza e

determinação — desejará a Humanidade a verdadeira Paz? Irmãos, um único caminho

vos anuncio: o do Amor! Amar sem medida... é a única medida do Amor de Deus à

Humanidade. Substituir a lógica do terror, pela lógica do Amor, eis o remédio de que

precisamos. Palavras!... Palavras!... Palavras!... — Parece-me ouvir de alguns sectores.

Meus queridos irmãos, membros como eu desta Humanidade sofredora e à beira do

abismo total: aqueles de vós que já tiveram tempo de ler e reler os textos produzidos pelo

Concilio Ecuménico de Brasília, todos firmados por mim, sabem perfeitamente que o que

vos digo não fica em bonitas palavras de circunstância. Não quero — nunca quis — a

hipocrisia dos eufemismos. Por mim e por nós, na Igreja de Cristo, demos e

continuaremos a dar o exemplo da inversão da lógica, de que, agora, não ficaremos em

palavras de discurso clerical. O clero acabou. Para que só a voz do homem de hoje possa

falar e ser entendida como a voz da Verdade. A única autoridade agora reconhecida na

Igreja de Cristo: a autoridade da Verdade. E qual é a verdade destes tempos de terror? É

que os povos ricos pilharam e continuam a pilhar as riquezas dos pobres! Resultado: os

ricos estão cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres! Por nós, irmãos, já

fizemos aparecer no terreno acções destinadas a inverter tal situação: acabámos de vez

com o famigerado IOR (que não passava de um banco do Vaticano, onde se lavava

criminosamente dinheiro sujo!) Com o punho cerrado em cima da mesa, dissemos,

claramente, NÃO! A Igreja de Cristo foi centro de Poder? — Pois, de ora em diante, essa

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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Igreja acabou! Cobrimo-nos de saco e cinza. Pedimos perdão à Humanidade pelos

desvarios de uns tantos. Pegamos no azorrague e corremos os vendilhões. Agora, é tempo

de purificação, de pegar nos bens acumulados e distribui-los pelos mais carenciados,

estejam onde estiverem, pertençam à raça que pertencerem, sejam deste ou daquele

credo. Onde houver um homem, uma mulher ou uma criança sofredora, aí estaremos com

a solicitude do Espírito de Jesus que nos mandou cuidar do rebanho. Todos os bens

existentes nas Igrejas locais e na Igreja de Roma, tudo será distribuído pelas conferências

episcopais, nossas representantes em cada país, para financiar projectos de ajuda aos

mais carenciados: na fome, na saúde, na educação, no crescimento e no desenvolvimento

psicofísico e social. As prestações pecuniárias que o Estado Italiano se obrigou a pagar

pela transferência de todos os bens do Vaticano para a posse da cidade de Roma e seu

governo, terão todas a mesma finalidade. Mas, atenção: a nossa lógica exige que, mesmo

para financiar os custos das minhas viagens e da minha vida e bem assim da dos irmãos

que comigo se entregam ao labor da causa deste Povo que nos foi por Deus confiado,

faremos como Paulo Apóstolo: trabalharemos com as nossas próprias mãos. Não nos

será, hoje, necessário recorrer à manufactura de tendas, mas não faltará quem nos dê

trabalho digno com salário justo para vivermos humildemente, sem constituirmos

encargo para os nossos irmãos. Só assim entendemos o serviço à comunidade. Como?

Algum de vós parece querer interpelar-me? (Era o representante do governo chinês.) Faça

o favor, irmão, coloque a sua questão, com a vénia do senhor presidente da mesa e de

todos os presentes.

— Quer dizer V. Ex.ª — titubeava o chinês, num inglês pouco arrumado — que,

doravante, vai com os seus colaboradores trabalhar cada um no seu oficio, para ganhar o

salário com que viverão? Então as esmolas dos crentes não vão alimentar os vossos vícios

e preguiça, os vossos luxos e poder? E que sabem vocês fazer de produtivo para a

sociedade? Quer responder?

— Respondo, meu irmão da Humanidade que habita o maravilhoso País que é a

China, mas dividindo a resposta em três partes, quantas as questões que me colocou:

1. Vamos, a exemplo de Paulo Apóstolo, trabalhar com as nossas mãos. Significa

isto, no mundo de hoje, que vai cada um de nós trabalhar naquilo para que tem

preparação profissional. Eu, por exemplo, sou médico, licenciado e doutorado pela

Universidade de Fortaleza, no Brasil. Por isso, no meio onde vivo, exerço e exercerei a

medicina, em favor daqueles que a mim recorrerem. Destes, se alguns tiverem dinheiro,

pagarão os honorários do médico. Com justiça. Se não tiverem, o médico perdoá-los-á.

Escusado será dizer que, daquilo que recebermos do nosso trabalho, pagaremos, como

qualquer cidadão, os nossos impostos para o bem comum!

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2. As esmolas dos crentes em Jesus não mais alimentarão vícios, preguiças ou luxos

e poder. Segundo os decretos do Concílio de Brasília, todo o irmão servidor do Povo de

Deus que o faça, será julgado e, se condenado, será expulso do serviço, até que, fazendo

penitência e mostrando-se arrependido, dê provas de estar possuído de uma vontade

nova de servir em Espírito de Verdade.

3. Terceira e última questão que me colocou: todos sabemos fazer qualquer coisa

de produtivo — como diz — para a sociedade em que vivemos. Dou-lhe somente mais

dois exemplos, das pessoas que directamente comigo trabalham na condução do Povo de

Deus pelos caminhos da Verdade e do Amor: o irmão Perez-Logano, argentino, embora a

idade dele lhe permitisse ter uma subvenção de reforma para viver continua a trabalhar

como professor de Direito numa universidade italiana e, através de trabalhos científicos

que escreve, a honrar a cátedra que deixou em Buenos Aires, quando sentiu o

chamamento de Deus e se escondeu por detrás da humilde estamenha com que ali o

vedes. O segundo, o irmão Menezes e Costa, também de idade avançada, continua a

fazer o que sempre fez para ganhar a vida: trabalhos em pau-preto africano, verdadeiras

obras de arte que são vendidas em qualquer mercado mundial, sob as iniciais que agora

vos divulgo: MnC. Se isto não acham V.Ex.as trabalhos produtivos... (A frase não foi

concluída. De pé, incluindo o delegado chinês, toda a Assembleia Geral das Nações

Unidas aplaudia e dava vivas a Pedro!) A muito custo, pude, por fim, continuar: —

Irmãos, se as minhas palavras, secundadas pelas acções já implementadas no terreno,

vos merecem credibilidade, se à lógica da guerra é urgente opor a lógica da Paz, se esta é

fruto do Amor que afugenta os resquícios do ódio, se este tem origem na clamorosa

situação de desigualdade na distribuição das riquezas, à escala planetária, então, irmãos,

é forçoso, é urgente que nos sentemos à mesma mesa e aí, falando claro, busquemos as

soluções que o problema impõe: — dividir por todos o que é de todos! Chamemos-lhe a

Globalização do Amor! É isso o que a Humanidade precisa. Quero, para tanto, convidar-

-vos — a vós todos os chefes de Estado e de Governo dos Países do Mundo para uma

conferência a realizar em Brasília, com o seguinte lema: ―"Pelos pobres do mundo — as

Nações estão Unidas!" Iniciaremos a época do pós-liberalismo egoísta, faremos nascer a

da partilha, no Amor, onde não mais se gastarão milhões em armas para destruir e sim

em instrumentos para produzir. Onde ninguém mais chamará seu ao que tiver produzido,

porque tudo é de todos. Então o mundo terá compreendido a Mensagem de uma criança

nascida numa gruta de Belém, há cerca de dois mil anos! Então o mundo dos homens, das

mulheres e das crianças de hoje vos louvarão, vos baterão palmas, inscreverão os vossos

nomes na história, porque tivestes a coragem imensa de criar um mundo novo!

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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— Grande discurso, irmão! Como foi recebido?

— Olha, meu irmão Pedro Apóstolo, creio que com entusiasmo pelos mais

pobres...

— Mas não arrancou uma enorme salva de palmas por toda a plateia?

— É verdade que sim. O resultado, porém, viu-se, depois, em Brasília. Alguns

meses depois, tendo havido uma preparação intensiva a todos os níveis e em todos os

países, tivemos lá a presença dos dirigentes dos países africanos — não de todos... — de

alguns de maioria islâmica, de outros de obediência ortodoxa, mas sempre mais

preocupados com o meu protagonismo... e domínios, do que com o fundo das questões a

solucionar. De resto, do primeiro império, tivemos alguns delegados, sem poderes para

decidir o que quer que fosse, em matérias sensíveis, como a da distribuição das riquezas

e do aprovisionamento das matérias-primas que pertencem aos pobres. Irmão, o mundo

dos ricos estava já demasiado empedernido e denegrido pelas faúlhas do inferno! O

dinheiro e o poder que ele dava eram o seu deus! Adoravam-no, como os judeus fizeram

com o bezerro de oiro! Por ele, tudo faziam: escravizavam, espezinhavam, matavam!

Quando saí de Brasília, acompanhado de alguns dirigentes europeus — almas boas que

compreenderam o nosso apelo, mas faltava-lhes a força para levar por diante uma

efectiva prática de partilha — tive a nítida sensação de mais uma batalha perdida! O

"grande imperador" tudo tinha subvertido. Os apalhaçados dirigentes desses povos já

nada podiam fazer. De resto, todos eles eram escolhidos pelos homens do poder do

dinheiro. E com eles partilhavam o bolo nas multinacionais, entretanto transformadas em

sociedades do crime, porque este compensava. Só no mais poderoso conjunto de Estados

dos últimos tempos do tempo existiam milhares de centros de decisão e acção infernal

que ditavam suas ordens ao governo. E os respectivos titulares que as não cumprissem

tinham os dias contados. Irmãos, o inferno tinha vomitado sobre a Humanidade redimida

pelo Nosso Bom Jesus toda a baixeza das suas entranhas. É claro que havia, ainda,

pessoas boas, rectas, honestas, que entendiam a situação e queriam fazer qualquer coisa.

Mas, na prática, era impossível atingir resultados, a não ser na ajuda pontual a povos da

fome, através de organizações não-governamentais e, em parte, de algum pessoal ao

serviço de departamentos das Nações Unidas.

— Obrigado, irmão, meu homónimo e último sucessor nos cuidados com o Povo

Redimido, pelos teus esclarecimentos à nossa Assembleia. Se permites, o nosso atento

irmão Estêvão, a quem peço desculpa pela interrupção, pode continuar o seu relato dos

últimos tempos.

― Com a vénia dos Pedros, mais a condescendência da Assembleia dos Santos,

continuo.

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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De regresso ao seu esconderijo romano, após uma viagem atribulada entre o Rio e

Zurich, seguida da cansativa viagem de comboio até à Termini, onde o aguardava o bispo

auxiliar de Roma, com o seu Punto branco e velho, Pedro andou alguns dias perdido

entre papéis e passos sem nexo. Righetti, sempre atento, aconselhou-o a uma ida ao

médico. Era para todos nós que com ele trabalhávamos intensamente muito claro que o

seu sistema nervoso estava a dar provas de cansaço. Ele mesmo, consciente da realidade,

retirou-se, outra vez, para as cercanias de Tivoli. Perez-Logano também não andava nada

bem. Foi com Pedro. De resto, a terapia fundamental de que careciam era a mesma, e a

companhia que ambos se faziam mutuamente tinha, aí, um valor importantíssimo. Valia a

todos a minha saúde de ferro e a das irmãs Salomé, Margaritta, Vicenza e — agora,

também — Paola, que chegara do Sul com notícias encorajadoras, as quais me auxiliavam

no despacho e executavam as directivas do também cansado Righetti. Cancelavam audi-

ências e respondiam às muitas solicitações das conferências episcopais e dos governos

que directamente queriam uma palavra com Pedro II. E como eram eficazes e corajosas

essas irmãs sem sono!

Quase três meses durou a cura de Pedro II (não a de Logano, cujo mal era bem

pior) em Tivoli. Foram, além de tudo, meses por ele mesmo considerados importantes

para o repensar de tudo o que se acumulava no tabuleiro das expectativas criadas. O

Concílio de Brasília tinha despertado uma enorme vaga de esperança. Também de

contestação. Mas, esta, já era esperada. Os sectores mais reaccionários da Igreja Romana

e, um pouco por todo o lado, sobretudo nos domínios do "grande imperador", onde os

bispos se tinham habituado ao poder e aos privilégios correlativos, mas não ao fim do

Vaticano, com tudo o que ele representava, ao fim da classe clerical e suas alcovas e, por

fim, ao regresso às catacumbas, resistiram sempre, enquanto puderam, a qualquer

intenção de alguém lhes tocar na barriga. Alguns houve, mesmo, que expediram

inqualificáveis parelhas. Mas perante a situação mundial que se agravava, com a

globalização do terrorismo e o constante rufar dos tambores de guerra — dança macabra

que cada dia era acelerada pelos meios de comunicação social ao serviço de presidentes

e dirigentes idiotas e vesgos de tanta ânsia de dinheiro e poder —, foram muitos os

bispos que começaram a entender que a guerra era irracionalmente desejada pelos seus

líderes, como forma de aniquilar países e povos inteiros, para lhes ficar com as riquezas

e, assim, não só deixaram de hostilizar as reformas do Concílio nas respectivas dioceses,

como, até, pediam eles próprios a presença de Pedro em concílios provinciais, para

estudar maneiras de pôr em prática, em diálogo com os potentados económicos

multinacionais, modos de fazer chegar aos mais pobres os financiamentos que tardavam.

É curioso que foi precisamente durante esses dois ou três anos em que se

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discutiam por todo o lado, e especialmente nos fóruns mais credíveis das nações, formas

práticas de financiar projectos de eliminação da fome, da miséria, das doenças, da falta

de habitação condigna nos vários países do então chamado Terceiro Mundo, que os

ataques de terror estiveram suspensos. Os meus secretos informadores, em contacto

com as mais diversas organizações que tinham por missão espalhar o terror no coração

dos países ricos, diziam-me que todas essas organizações tinham acordado em dar o

benefício da dúvida à acção da Igreja de Pedro que lhes estava a merecer um juízo de

credibilidade.

O tempo passava, porém, os anos esgotavam-se uns atrás dos outros e, de

concreto, o que se havia conseguido era realmente muito pouco, tendo em conta o que

havia para fazer! É certo que as conferências episcopais dos países mais carenciados

tinham recebido verbas substanciais para tentar mudar as respectivas situações de fome

e miséria. Mas, como todos se lamentavam, o que recebiam não passava de gota no

oceano quase infinito de carências em toda a linha. Na emergência, Pedro lançou mão de

"mensageiras da paz" que iriam percorrer todos os países do primeiro império, como

mendicantes, pedindo aos Estados e às grandes empresas ajudas substanciais para a

erradicação da fome. A ideia resultou, em boa parte. Mas o produto não era suficiente.

As organizações do crime iam perdendo a paciência. Primeiro, deixaram anúncios —

pequenas explosões, em lugares onde não deveriam causar vítimas. Ninguém os quis

ouvir. Os sinais passam-nos sempre ao lado, quando nos incomodam. O melhor é

esquecê-los e dizer que não passam de brincadeiras de mau gosto. É! Só que nós

tínhamos informações muito precisas de que os ataques mundiais em grande escala

recomeçariam. Lançámos imediatamente, pelo canais próprios, avisos à navegação.

Finalmente, Pedro gritou como louco, uma vez mais, perante a Assembleia Geral das

Nações Unidas, sem que para tanto haja sido convidado. Julgaram-no histérico e

conduziram-no para fora da sala. Pedro protestou veementemente e, durante dois dias,

fez-se examinar por peritos médicos ao serviço da ONU. Todos, por unanimidade,

atestaram a perfeita saúde mental do Papa. Pôde, então, entrar e falar livremente na

Assembleia Geral. Disse, então, aos representantes dos países ali reunidos que estava

disposto a aceitar todas as humilhações, como Cristo as tinha recebido, calado, diante de

Pilatos, mas que, se não decidissem, em oito dias, dar sinais muito concretos de querer

efectivamente solucionar de vez os problemas da Palestina e da fome nos subcontinentes

da América Latina, da África, da Coreia do Norte e da Indochina, o caos instalar-se-ia no

mundo e toda a actividade económica seria paralisada.

— Reacções?...

— Irmãos, mais uma vez as de sempre: «Bom, o senhor é um homem de boa

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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vontade, está convencido da sua missão e tenta levá-la avante por todos os meios, mas

tenha calma, que as coisas se resolverão por si mesmas e com o tempo.»

Lembro-me de que Pedro saiu daquela assembleia repetindo o gesto que o Nosso

Mestre mandou aos discípulos fazerem em tais circunstâncias: sacudiu ostensivamente o

pó dos sapatos à porta da sala. E corremos os dois para um táxi que nos transportou ao

aeroporto. Então, voámos directamente para Frankfurt. Era a única hipótese. À chegada,

soubemos do horroroso ataque perpetrado contra o centro histórico de Londres, com

enorme devastação em pessoas e bens! Segundo as informações desencontradas que

corriam em Frankfurt, às primeiras horas da manhã, quando toda a gente se apressava

para entrar nos empregos, um pequeno míssil transportando pequena carga nuclear —

possivelmente disparado de submarino rápido, do alto-mar — caiu sobre a city com

enorme fragor e bola de fogo e fumo que fizeram lembrar Londres sob o ataque dos

aviões nazis. Mais tarde, o Financial Times disse ter recebido uma mensagem em árabe

reivindicando o atentado e ameaçando com novos actos destruidores da economia

inglesa, caso a política do governo de Londres se não afastasse da do "grande

imperador". O arcebispo de Frankfurt recebeu-nos com um misto de grande efusão e de

tristeza, e os três dirigimo-nos à catedral. Aí, orámos por longo tempo. Pedro,

aproveitando a circunstância de se encontrar em território alemão, foi ao encontro do

chanceler chefe do governo, por quem tinha bastante admiração. O governante mostrou-

-se muito preocupado pelo que acontecera em Londres, pois — disse — há já estimativas

muito elevadas sobre o número de mortos e feridos nos escombros do centro da capital

britânica. Garantiu, porém, que da parte do governo alemão, o orçamento do país iria

incluir uma percentagem significativa do PIB, para acorrer às situações mais aflitivas do

Terceiro Mundo. Prometeu, ainda, que tudo faria com os demais chefes do "primeiro

império" para se avançar com a ideia de um estatuto definitivo de neutralidade para a

cidade de Jerusalém, tentando superar a única dificuldade ainda existente entre as partes

no conflito.

Em segredo e com disfarce profundo, Pedro e Righetti, acompanhados das irmãs

Salomé e Margaritta e por mim próprio, dirigiram-se a Roma, a fim de verificar in loco o

estado da situação e delinear a estratégia de uma grande jornada de oração na

devastada Piazza di S. Pietro, no dia de Pentecostes. Um horror. Da basílica nada ficou de

pé. Dos edifícios ao lado e da própria colunata berniniana que ladeava a praça elíptica,

apenas escombros, montanhas de entulho, imagens de pedra completamente desfeitas.

Um pavor!

Ficou entre nós assente que, apesar de tudo, seria aquele o lugar para a celebração

do Pentecostes, custasse o que custasse. Caminharíamos, para isso, com a determinação

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de Pedro Apóstolo sobre as águas ao encontro do Mestre. — «Será ali que convocaremos

os cristãos do mundo inteiro. Será ali que diremos às máfias e aos senhores da guerra

que já estão condenados! Será naquele lugar santo e conspurcado que o Espírito de Jesus

irá falar mais alto que as armas. Será ali que o templo de Deus — os corações dos

homens, das mulheres e das crianças de boa vontade — será elevado aos céus, lavrando

a condenação de Satã e seus súbditos, todos os que operam nas trevas do crime! Todos

os filhos do diabo! Todos os esgares do inferno!» — Era a conversa directa aos ouvidos

de cada um.

— O irmão Estêvão — imagino — teve muitas dores de cabeça, para organizar essa

jornada e, sobretudo, a segurança das pessoas.

— Irmão Pedro Apóstolo, foi o arranque para a libertação! Tinha a intuição de que

o último dia do Pentecostes (e eu não sabia que seria o último...) se transformaria em

qualquer coisa semelhante ao primeiro, acontecido havia cerca de dois mil anos em

Jerusalém. Tu, irmão, é que sabes como foi esse dia um do Pentecostes, o nascimento da

Igreja. Só que, comigo, tratava-se do nascimento, sim, mas da Jerusalém Celeste!

— Se sei!... Todos ficámos baralhados com a força e a ciência que, de repente,

começámos a sentir e as línguas dos povos de todo o lado que sabíamos falar! Bom, mas

deixa lá isso, porque esta Assembleia já o sabe. Diz-nos como foram esses meses de

preparação.

— Gostaria que fosse o nosso companheiro Righetti a falar disso, pois foi ele quem

mais de perto liderou os trabalhos de planeamento e, depois, de execução.

— Eu não era homem para conversas. Por feitio, gostava mais de fazer. Mas,

agora... e se é Pedro que mo pede e esta assembleia já dá sinais de me querer ouvir, os

Céus escutarão a minha humilde voz, porque assim mo consente o Amor.

Em discursos transmitidos quase diariamente por um canal de televisão pirata,

Pedro chorava a destruição do Vaticano, mas chorava ainda mais o clima de terror

instaurado em Itália e um pouco por todo o lado, com dirigentes das nações a vomitar

ódio em cada discurso que proferiam, completamente esquecidos e indiferentes às

promessas de trabalhar pela paz, feitas diante de Pedro, na sala da Assembleia do pa-

lácio de vidro em Nova Iorque. Posso testemunhá-lo aqui: Pedro era um homem robusto

fisicamente, mas espiritualmente tinha personalidade de leão! As suas convicções

afloravam-lhe à epiderme e ficava chocado por não poder abrir todas as portas ao Amor

de Jesus, para fazer feliz uma Humanidade que se abeirava perigosamente da

hecatombe. Sem se fazer convidado, Pedro voou para Londres, apresentando

condolências ao governo e ao povo britânico. Do mesmo modo, aparece em Bagdad,

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

145

solicitando aos serventuários do primeiro império um encontro urgente. Que não, que

nada havia a discutir com o Papa de Roma, pois, também ele, na pessoa do seu

antecessor, tinha estado contra a guerra de ocupação do Iraque. Pedro II insistiu, mas

quando viu o que se passava na terra de Abraão, limpou novamente o pó dos sapatos e

partiu para Jerusalém. O chefe do governo judaico também não o quis receber. Três dias

aí demorou Pedro, enviando emissários, dizendo que trazia boas novas de paz. Mãe

Salomé foi convincente na sua habitual diplomacia dos sorrisos. O governo de Jerusalém

acedeu, por fim, em enviar ao hotel onde nos hospedáramos uma delegação chefiada por

um alto funcionário do ministério das relações exteriores. Quando ouviram, porém,

contar a história do domínio do mundo pelas secretas do crime, riram-se da

"ingenuidade" de Pedro e mandaram-nos embora. Pedro protestou energicamente e,

mais uma vez, limpou o pó dos sapatos. — «Estamos, irmãos, nos domínios do primeiro

império. Ninguém o esqueça!» — Disse ao grupo, pesaroso, a caminho de Belém. Aqui,

fomos recebidos prontamente pelo chefe dos palestinianos e seu governo que acolheram

de bom coração as notícias sobre os esforços de Pedro II para solucionar rapidamente o

conflito de muitas décadas. Pedro contou o sucedido em Jerusalém. Não se admiraram os

palestinianos. Sempre superiores a todos, sinais destes passam-lhes ao largo. Com a

ajuda do governo palestiniano, Pedro tentaria arrastar o homem sensato da Síria. Os dois

deram um salto a Damasco. A três, foi posto em marcha um plano para convencer Israel

a negociar a paz. Nada conseguiram. Para os judeus, a paz assentaria no reconhecimento

de grande parte das conquistas sobre os palestinianos e a indiscutibilidade de Jerusalém

indivisa, sob a total soberania de Israel e como capital do país. Durante a viagem de

regresso a Roma, Pedro, profundamente abatido, quase sempre de olhos cerrados, via-se

que chorava e orava.

— A grande prostituta desfez Babilónia.

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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V

Veni, Domine! Veni!...

Esgotado, cansado, mas não vencido, Pedro II chegou a Roma, mais uma vez em

segredo. Não havia tempo a perder, nem para chorar sobre batalhas passadas.

Novamente arregaçou as mangas e reuniu com todo o seu grupo de toupeiras do

império. — «Querem afastar-me da empresa que o Senhor me impôs de chamar os

homens à razão. Mas não me calarei. Enquanto as forças me assistirem, continuarei a

gritar... até ao fim! Terei, acaso, feito já todas as diligências possíveis, para tentar levar os

chefes dos povos ao império do bom senso, do Amor e da Paz?...» — Disse-lhes, em tom

de grande e carinhosa emoção, lembrando o discurso do Mestre na última ceia. A

"equipa das catacumbas" respondeu com novos planos.

As imagens televisivas tinham mostrado (durante a sua ausência em Londres e no

Médio Oriente) Pedro diante da fachada da Basílica e prostrado frente ao "altar da

confissão", orando e chorando copiosamente sobre os escombros. Estas imagens corriam

mundo, através de quase todas as cadeias televisivas que atravessavam o espaço. Depois

apareciam as imagens de Pedro sobre os escombros da city londrina, orando com os

chefes espirituais britânicos. Por fim, eram imagens horrorosas dos massacres, dos

desencontros de Pedro, dos tumultos, da guerra civil no Iraque, da pesporrência do

governo judaico, da conferência com o novo chefe dos palestinianos — «um homem

bom, com quem é possível chegar a consensos!» — diria mais tarde — e dos inúteis

esforços feitos pelo presidente da Síria.

Ao ter conhecimento desta contínua peregrinação de Pedro, a consolar os que

sofrem e a dar força aos homens de quem pode depender o apaziguamento da crise

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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mundial, gente de todas as condições sociais acorre aos templos, repetindo o gesto de

Pedro. Organizam-se mais prementes e dramáticas jornadas de oração e penitência pela

Paz. Bispos, presbíteros e demais servidores do Povo de Deus vestem-se de saco, jejuam,

juntando-se ao povo na prece pública pelo entendimento entre os povos e pela Paz.

Os chefes espirituais de outras religiões juntam-se a Pedro na oração pela

concórdia universal. Esquecem-se divergências históricas entre as diversas confissões

cristãs. Cristãos das diversas ortodoxias orientais, de todos os quadrantes das Igrejas da

reforma e de toda a catolicidade dão-se as mãos e por todo o orbe celebram encontros

de oração pela paz, donde saem veementes apelos aos dirigentes de todos os povos do

planeta, para que façam o mesmo e abram os respectivos corações ao bem supremo da

Humanidade.

A Pedro, porém, estava reservada, ainda, uma outra prova — uma das mais difíceis

que já teria suportado. Ao chegar ao esconderijo romano, Meneses e Costa entregou-lhe

um sobrescrito lacrado:

— Ninguém já ouve ninguém. O inferno vomita ódio. E faz sentir os seus esgares. A

maior parte dos meios de comunicação está nas mãos dos idólatras do diabo. Que, por

eles, vai incendiando a seara. O assalto ao dinheiro torna-se no objectivo essencial da

existência humana. Tudo se sacrifica ao seu império. Programas televisivos incitam a

juventude ao prazer, ao sexo, ao dinheiro. As mais abomináveis perversões sexuais são

agora exibidas em público, entram sem licença em todas as casas, chegam ao consciente

de qualquer pessoa, de qualquer idade, como se de comportamentos recomendáveis se

tratasse. Nem as crianças inocentes são poupadas. A pedofilia é, agora, um comércio. A

indústria do sexo é promovida, como vestuário de qualidade para os endinheirados.

Psicotrópicos são oferecidos a quem quiser experimentar momentos de fuga à realidade.

Ninguém respeita ninguém. E todos vilipendiam todos. Filmes e mais filmes saem em

catadupas a ensinar a matar, a torturar, a estuprar, a sugar o sangue dos inocentes. A

violência sai dos ecrãs e entra no quotidiano social. E à violência dos indivíduos

respondem as sociedades e os Estados com a mais aviltante e desproporcionada violência

do poder. Nem os acordos internacionais para salvar o planeta são já respeitados. É,

seguramente, o período mais conturbado da história do homem sobre a terra. A

humanidade, à escala cósmica, parece ter enlouquecido. Pedro, desculpa, mas vou partir.

Não te faltará a força do Senhor Jesus. Continua a tua missão de confirmar os teus irmãos

na fé! Até breve! — Perez-Logano».

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Pedro vê-se então privado do seu inseparável braço direito, companheiro de tantas

horas de trabalho, de amor pela Humanidade. Pedro ficou mais triste. Mas mais

determinado no combate contra a miséria social e contra o perigo dos loucos dirigentes

deste mundo. Pediu-me, com toda a simplicidade, banhado em lágrimas:

— Aceitas substituir Logano?

— Não posso fazer outra coisa! — Respondi-lhe, com um sorriso de confiança,

dando-lhe um forte abraço.

Deu-me, então, instruções sobre aspectos organizativos da grande jornada do

Pentecostes que se aproximava e partiu em nova correria contra o tempo à volta do

planeta, tentando convencer as autoridades a impedir o uso da força para modificar a

situação. Desta vez apenas levou consigo o nosso irmão Estêvão, a quem, por isso, passo

a palavra.

— O Senhor dá-me o Seu alento, Righetti. Por isso, aceito continuar.

Fomos recebidos com frieza, em Pequim, com muitas vénias em Tóquio, com

aberta hostilidade em Jerusalém, com desdém na Rússia, com aparente satisfação na

Austrália, na União Europeia, com fé e empenho na América Latina e em boa parte do

continente africano, com muitos sorrisos amarelos, na central do primeiro império —

sorrisos que logo mudaram em aberta hostilidade, quando Pedro condenou, sem rodeios,

todas as políticas armamentistas, todo o terrorismo, «mesmo o de Estado», quando se

usa implacavelmente a força dos exércitos, para ocupar territórios indefesos e toda a

degradação do ambiente, «sobretudo por aqueles países que nem sequer respeitam os

tratados internacionais a que se obrigaram». O grande imperador tomou, então, a

medida que esperávamos: expulsou-nos, dando-nos vinte e quatro horas para

abandonarmos o seu território.

Regressados secretamente a Roma, eu ia fazendo o que podia para que a presença

na cidade e na Piazza di S. Pietro, no dia de Pentecostes, de muitos milhares de

peregrinos de todo o mundo fosse uma demonstração, não só da vitalidade da fé em

Jesus Cristo Redentor, mas da mais forte resposta aos senhores da guerra e do crime

organizado. O arcebispo auxiliar de Roma que não descansava e percorria a cidade vezes

sem conta por dia, depois do jantar, ia dizendo, com o desânimo estampado nos lábios:

«Irmão, sente-se no ar que respiramos um intenso cheiro a ódio!... em vez de estrelas no

céu, acho que é visível a olho nu uma autêntica loucura cósmica! Que nada parece poder

curar!» Que mais Pedro conseguirá fazer?...

Em Itália, a guerra civil intensificava-se. Palermo, Siracusa e quase toda a Sicília

eram, então, terras onde já se respirava a liberdade dos homens antimáfia; em Nápoles

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e, no geral, a Sul de Roma, havia violentíssimos combates, mas como as populações

aderiam e ajudavam os movimentos contra a tropa da Camorra, era consolador verificar

que os libertadores ganhavam terreno; a Norte, com a excepção de Milão, onde o que

restava das famílias mafiosas ia espalhando terror, em atentados a políticos e

magistrados, as coisas permaneciam aparentemente calmas. Entretanto intensificavam-

-se as acções religiosas pregadas pelos bispos, segundo o desejo de Pedro. Em todos os

países onde existiam fortes tentáculos mafiosos surgiam também escaramuças nos

respectivos exércitos. A exemplo dos italianos, todos começam movimentos de

libertação contra as sociedades do crime. E as guerras civis espalham-se por todo o lado.

Pedro procurava, agora em Itália, encontrar-se com os mais influentes políticos e

com os chefes das facções em conflito. Aos cristãos pedia muita oração e penitência. A

estação de televisão pirata, agora com lugar em satélite, continuava a difundir os apelos

do Papa e todas as suas movimentações, nos caminhos da Paz.

No dia em que visitava os campos onde se travavam as maiores batalhas, perto de

Nápoles, tentando socorrer os mutilados e assistir os moribundos, Pedro, envergando

uma túnica branca e trazendo na mão uma enorme cruz iluminada para ser vista de

noite, tomba sob o fogo cruzado dos obuses. A metralha atingiu-o no braço esquerdo que

voou desfeito como farelo. Com um pedaço da túnica, Pedro consegue suster a

hemorragia e caminhar por entre os mortos. Mas, quando se dirigia, sozinho, para uma

ambulância do exército fiel, foi sequestrado por um grupo de terror. Vendaram-no,

arrastaram-no para sítio escuro e fizeram-no sentar em qualquer coisa que Pedro logo

percebeu não ser cadeira. Pelo cheiro nauseabundo, era óbvio tratar-se de uma tábua de

latrina. As horas passavam e a correria do sangue do braço estilhaçado não dava sinais de

obedecer aos esforços de garrote. Pedro rezava com toda a alma, como Pedro Apóstolo,

in vinculis, confiava. E, noite avançada, quando tudo à volta parecia calmo, a frágil e tosca

porta de madeira do imundo cubículo escavado numa barreira cede a um simples

empurrão e Pedro, febril, cambaleando, sai dali acompanhado por alguém que não

conhece, mas a quem também não pergunta quem é. Pedro sente que a seu lado

caminha alguém que conhece bem o meio. Quando começa a dar sinais de não aguentar

a caminhada, o companheiro cobre-o com uma grande capa e levanta-o com o braço

direito, correndo, quase voando, por sobre montes e vales. Encontrado um velho camião

da tropa, o companheiro de Pedro põe-no em marcha e conduz a alta velocidade até

Roma. Pedro, tendo perdido muito sangue, entra na clínica inconsciente. Entregue à

equipa médica, o companheiro desapareceu. Mais tarde, o aparecimento em Roma

daquele veículo militar que tinha sido abandonado, havia vários anos, por inoperacional,

deu azo a desencontradas teorias. Pedro foi operado, com êxito, ficando, porém, sem o

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braço. A notícia deixou perturbada a cristandade e, em geral, todas as pessoas de boa

vontade. Muitos lembraram, então, uma velha profecia de uma revelação particular da

Virgem a um trio de pequenos pastores, no início do século XX, em que se previa que

«um bispo vestido de branco» tombaria e caminharia pelo meio de um campo de

batalha, consolando os moribundos e ajudando os feridos.

Sem interlocutores válidos, Pedro lança pela televisão avisos directos aos exércitos

em presença. Ou param as armas ou será o caos. — «Os ventos que sopram de Leste são

terríveis. No Médio Oriente, está, de novo, tudo a ferro e fogo. Chefes judaicos, ao ver os

seus homens morrerem aos montes, debitam no ar ameaças directas de destruição

maciça... e, no terreno, novos meios materiais de guerra convencional vão enchendo de

cadáveres Jerusalém, Ramalah, a Faixa de Gaza. Nem Belém foi poupada. Mas porquê?»

— Perguntava, indignado. Mas ninguém lhe respondera. No dia seguinte, a pequena

cidade de tantos encantos espirituais, o símbolo mais belo da união de Deus com a sua

Humanidade, a metáfora do lobo e do cordeiro bebendo juntos a mesma água do

Jordão... foi pura e simplesmente riscada do mapa da Palestina. Mas, porquê?... «Que

mal fazia um pobre berço de palha e uma criança recém-dada à Humanidade?...» —

Interrogava, em toda a sua simplicidade, o velhinho monge que, durante mais de setenta

anos, fora guardião daquele lugar santo. E morreu, sem que alguém lhe tenha

respondido.

O cúmulo da loucura vem agora dos lados asiáticos: a China acabara de invadir a

Formosa. Os fumos dos gigantescos incêndios eram visíveis desde Tóquio a Manila.

Nuvens de terríveis gafanhotos metálicos despejavam, desde a madrugada, toneladas e

mais toneladas de bombas sobre a ilha. As defesas foram heróicas, mas por pouco

tempo. As forças de Pequim semearam a morte por todo lado. Taipé já não existia.

Para cúmulo: umas horas depois, os exércitos da Coreia do Norte cercam Seul.

Aqui, como em Taiwan, há combates violentíssimos e a ambos os lados acorrem

"marines" das bases e porta-aviões do primeiro império sedeados na área. A fúria das

hostes chinesas não olha a meios para destruir toda a resistência dos ilhéus. A ameaça de

utilização de armas químicas e de destruição global deixa de ser velada. A brutalidade

dos homens de Pyongyang sobre o Sul deixa a comunidade internacional e as Nações

Unidas em estado de choque. O grande imperador aconselha cautelas, mas vai dizendo

para não brincarem com o fogo. Uma ameaça a que os chineses logo responderam com

um novo ensaio nuclear que fez estremecer todo o continente e ainda parte da Europa,

até Moscovo.

No Norte de África, o fundamentalismo muçulmano dominava agora todos os

países que se não cansavam de mostrar os dentes aos europeus e americanos. Em aliança

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com os demais servos de Maomé nos países do Médio Oriente, todos os dias exibem

poderio militar, capaz de «arrasar judeus e todos os infiéis», segundo o texto de um telex

enviado a uma das maiores agências noticiosas europeias.

Pedro, curado, agora sem um braço, fez a sua última viagem pelo mundo, na

companhia de Mãe Salomé e deste vosso servo. Insistia com as autoridades, suplicava o

abandono dos projectos de destruição, implorava, em nome da Humanidade, o fim da

ganância e do ódio entre as nações e os povos. Durante mais de dois meses, esteve

ausente de Roma. Reuniu com todas as conferências episcopais da cristandade. Em todo

o lado, promoveu novas jornadas de oração e penitência. Pregou a humildade e o espírito

de pobreza. Mas aos pobres deixou a certeza de que lhes assiste o direito à indignação e

à luta contra todos os espoliadores. Das dádivas que recebia de países ricos, Pedro ia

distribuindo, por aqui e por ali, dinheiro a instituições que no terreno cuidavam dos

esfomeados, dos estropiados e de todas as vítimas das guerras. Em todo o lado deixou

viva a chama do Amor. Amor por todos os humanos, amor por todas as culturas, amor

pelo planeta Terra que muitos teimam em matar, destruindo os seus ecossistemas. —

«Todos os seres vivos morrerão em pouco tempo, o próprio planeta se desintegrará, se

nada se fizer para o salvar da poluição que acabará por destruir as mais elementares

condições de vida!» — Apelava diante das mais diversas autoridades. E muitos foram os

dirigentes mundiais que acreditaram, porque viam em Pedro II um Papa diferente, sem

palácios, sem guardas, sem pompas, sem riquezas... Muitos recordavam, então, o que

leram e ouviram: «Não são os milagres que mudam as consciências, mas o que formos

capazes de fazer, em obras de amor, pela humanidade! O grande milagre é a nossa

capacidade de amar!»

Guardado por uma força especial, reaparece em Roma, no dia do Pentecostes, a

concelebrar com todos os bispos italianos e com aqueles estrangeiros residentes em

Roma uma Eucaristia de Acção de Graças, no "Altar da Confissão", sob o famoso

baldaquino de Bernini, rodeado de escombros. Uma enorme multidão — como Roma

nunca antes vira — espalhada pela Praça de S. Pedro e por cima da montanha de ruínas

daquilo que foram os jardins, os palácios e a basílica vaticana, partilhou com o Papa as

suas alegrias e grandes tristezas. Rezou-se, cantou-se, invocou-se o Divino Espírito Santo

de Deus, para que desça, em novo Pentecostes, sobre a Humanidade, trazendo-lhe a Paz

do seu Amor Misericordioso. E Pedro II, depois de historiar a angústia dos últimos meses

nas viagens efectuadas em busca da paz, do Amor entre todos os povos do planeta, fez

um dramático apelo a quantos combatem, semeando a dor e a morte, no Médio Oriente,

na Itália, nos mares da China e da Coreia e em qualquer parte do mundo: «Deixem a

Humanidade viver! Deixem de destruir e matar! Não mais o império do medo! Não mais

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o império de Satanás! O Amor vencerá!

Nas ruínas da Basílica e da Praça de S. Pedro, a distribuição do Pão Eucarístico aos

participantes foi acto que demorou muito tempo. Aos cânticos e às preces sucediam-se

minutos de um silêncio estranho. Parecia que toda a assembleia mergulhara em êxtase.

O sol atingia o seu ponto mais alto, naquela manhã quente de Junho. O calor desse dia

estava mesmo insuportável.

Ao pronunciar as palavras finais «Ide em Paz...», no preciso momento em que o

sino grande de S. Pedro iniciava as doze badaladas do meio-dia, Pedro deu um lancinante

grito, caindo fulminado e, com ele, todos quantos se encontravam na cidade e nas

periferias. Na sua frente, uma luz intensíssima rebentou-lhe os olhos. Um horroroso e

inaudito estrondo, um rebentamento sem fim, um ronco de morte e desolação,

prolongado no tempo e nas colinas, nos montes, nas serras, nos vales e nos mares abalou

e devastou imediatamente toda a região. Então, uma enormíssima coluna de fumo negro

e detritos cósmicos que se levantava do chão, lá para os lados de Ostia, formando no

topo uma cúpula de gigantesco cogumelo, por segundos, foi ainda vista, com os cabelos

em pé, por muita gente horrorizada que logo começou a tombar inerte, sob as

violentíssimas ondas de choque destruidoras e da imensa nuvem de poeira radioactiva

que cobriu e incendiou a cidade inteira e seus arredores, tudo reduzindo a cinzas, em

poucos segundos. Momentos depois, no Norte e no Sul da Itália rebentaram mais ogivas

nucleares, vindas provavelmente do Norte de África e do Médio Oriente. Do primeiro

império e de todas as suas bases mundiais, partem imediatamente foguetes, com ogivas

múltiplas, que vão estender a destruição e a morte a todos os continentes. Cruzam-se

com os que da Ásia partem em direcção às Américas e à Europa. Das ilhas nipónicas,

ainda conseguem disparar alguns foguetes para Washington. Eram contas velhas que os

japoneses faziam questão de saldar. As ogivas russas, orientadas para terras do "novo

mundo", não chegaram a sair dos silos. Rebentaram todas em casa. A Israel também

ainda sobrou tempo para carregar no botão nuclear e dirigir cumprimentos à Síria, ao

Irão e, claro está, aos palestinianos. Esqueceram-se, porém, que, com as terríveis ondas

de choque e as poeiras radioactivas que deixaram os desertos sem areia e os mares todos

mortos, mesmo antes de receberem iguais mimos dos fiéis de Maomé, estavam a

autodestruir-se. Coisas de judeus. Nunca ninguém os entendeu!...

E a velha Jerusalém que todos reivindicavam ficou em pó! E a Roma, de que todos

se orgulhavam, ficou em pó! E Pequim, que todos temiam, ficou em pó! E Moscovo, em

que reinavam todas as máfias, ficou em pó! E Washington, que a todos desprezava, ficou

em pó! E Londres, Berlim e Paris, que todos adoravam, ficaram em pó!... Todas as

cidades, vilas e aldeias, o orbe terrestre, de Norte a Sul, de Este a Oeste, tudo ficou

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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reduzido a um gigantesco montão de escombros a arder.

O mar levantou-se em ondas que chegavam aos céus. A violenta evaporação das

águas, qual efeito de gigantesco alguidar onde tomba um infernal braseiro, provocou um

ruído ensurdecedor que rebentou tímpanos e aumentou o terror de um dia assim. A

voracidade dos mares sobre a terra era terrivelmente devastadora. Nunca ninguém viu

coisa assim, desde que o homem foi criado.

A elevadíssima temperatura atingida no planeta tinha secado o mar. E o mar

acabou. E com ele os peixes e todos os monstros marinhos. E todos os corais. E toda a

flora maravilhosa! E toda a vida que havia debaixo das suas águas. O vapor salgado das

águas dos oceanos que já não eram misturou-se com as negras nuvens de poeiras

radioactivas para acabar com o que restava do cosmos.

Tudo morreu! Em estertores horrorosos.

Os que exploravam morreram a explorar;

Os que esmagavam morreram a esmagar;

Os que não pagavam salários morreram sem os pagar;

Os que entesouravam morreram a entesourar;

Os que roubavam morreram a roubar;

Os que defraudavam morreram a defraudar;

Os que fornicavam morreram a fornicar;

Os que faziam gala das próprias perversões morreram nos seus esgares de idiotas;

Os que traficavam morreram a traficar;

Os que mentiam morreram a mentir;

Os que vomitavam fel morreram com fel na boca;

Os que odiavam morreram a odiar!

Mas...

Os que amavam morreram a amar!

E um cântico, nunca antes escutado por qualquer humano, se levantou suave,

inebriante, sobre os escombros fumegantes. Dizia: «Benditos os que tingiram as vestes

no sangue do Cordeiro e amaram Sua Humanidade!»

A desolação da devastação total era, agora, a única certeza.

Toda a glória humana caiu!

Todo o poder ruiu!

Todas as teorias, todas as filosofias, todo o maquiavelismo humano se calou. Para

sempre.

Toda a catedral gótica, todo o monumento construído com o suor de escravos,

todo o castelo, toda a arte de todos os tempos, tudo acabou! Toda a vida desapareceu.

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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Num ápice!

Dos gregos e dos troianos, dos persas e dos egípcios, dos babilónios e dos assírios,

dos ugaritis e dos incas, dos romanos e dos godos, de todos os povos e reinos que

existiram sobre a terra, ninguém mais falará! Não ficou ninguém para falar!

O tempo parou!

A história acabou!

O próprio sol morreu. A noite chegou mais cedo no último dia da Humanidade.

Nem a lua foi mais o símbolo da beleza romântica a iluminar corações

apaixonados. Não mais pôde mostrar a sua cara cheia de bonomia e tolerância.

E até os restantes astros que havia no sistema solar e em todas as galáxias

acabaram por andar aos encontrões, esmurrando-se, partindo-se, pulverizando-se, num

universo desfeito, num cosmos fumegante, em aceleração máxima para o nihil.

O reino das trevas dominava uma precária existência, dum crucificissent, enquanto

Satanás e seus sequazes consumavam a crucificação global da Criação.

Era meio-dia, ainda, quando parou o relógio da torre de uma pequenina Igreja de

Punta Arenas, no extremo Sul do Chile, no preciso momento em que sucumbia o último

ser humano que ainda resistia ao apocalipse do último Pentecostes. Na sua simplicidade,

compreendeu os sinais dos tempos e, enquanto as suas carnes se consumiam em chagas

e dor, provocadas por queimaduras que nada poderia curar, deitado de costas no chão

da casa que já não era, sentindo a derrocada de tudo à sua volta e o enorme calor que

tudo incendiava e reduzia a cinzas, abriu pela última vez os olhos e, distinguindo

perfeitamente que nem o relógio, nem a torre, nem a igrejinha, nem a aldeia existiam já,

balbuciou, muito a custo, de braços levantados para um céu escuro e sem estrelas... todo

em ruínas de fumo e poeiras: «Vem, Senhor Jesus! Vem!...»

Eu — o humilde Estêvão do Monte Célio — a quem a graça de Deus concedeu

ainda tempo para ver a minha Terra.

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VI

Ecce nova facio omnia...

A imensa Assembleia da Cidade Santa bateu palmas, cantou e deu glória a Deus,

quando terminaram os relatos dos últimos dias da Humanidade. Depois, fez-se silêncio

total. E por toda a Assembleia da Nova Jerusalém, ressoou a voz do Amor:

— Pedro Apóstolo, conduz agora até junto do Trono da Trindade o teu irmão e

novíssimo Pedro e, com ele, todos os que vieram da grande tribulação.

— Senhor, eu não sou digno!...

— A dignidade tem-na quem a vestiu, Pedro! Foste fiel na missão que a Igreja te

confiou, lutaste até ao fim das tuas forças para a todos encaminhar para esta Jerusalém

Celeste, a Cidade Santa — de que a outra fora apenas metáfora —, e que, desde toda a

eternidade preparei para todos os que, livremente, se decidiram pelo Amor. Deste

testemunho forte do mesmo Amor que o Nosso Verbo levou à Humanidade! Lavaste a

muitos no Sangue do Cordeiro! Vês, agora, esta multidão imensa que te acompanha? É

justa a recompensa que te está reservada! Vem receber a coroa de glória que atribuímos

a quem voluntariamente deu tudo! Ultrapassaste a barreira da primeira etapa da Vida...

estás agora do outro lado! Não vês a luz, a claridade imensa que te ilumina, a ti e a todos

os santos?

— Vejo, sim, meu Senhor e Meu Deus!

— Sim, Pedro, vês o que nunca te fora dado ver, porque as primeiras coisas

passaram... e os teus olhos estão agora libertos das trevas da finitude.

— Vejo, sim, AMOR INFINITO, a claridade que não cega mas atrai e consola, o

nosso Redentor, o Ressuscitado, o Senhor Jesus sobre imensa nuvem branca, formada

por multidão de anjos, a afastar d'Ele os que não quiseram amar... e a convidar todos os

outros — os que amaram e, amando, inscreveram os seus nomes no livro da Vida — a

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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa

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entrar no Reino, da VERDADE que viveram, da JUSTIÇA que praticaram!

— Sou Eu, Pedro! Sou Eu, irmãos vindos da grande tribulação!

Sim, sou Eu — VERITAS — o Alfa e o Ómega, o princípio e o fim de todas as coisas,

o Verbo de Deus! Por esta Palavra Eterna, tudo foi criado. E n'Ela, a criação foi redimida.

Por Ela, foi reduzido a cinzas o reino das trevas. Satanás não mais terá poder algum sobre

aqueles que mergulharam suas túnicas no sangue do Cordeiro.

À ordem do Senhor todo Luz e Misericórdia, Pedro Apóstolo levou-me — a mim e a

toda a Peregrinação que acabara de chegar ao cimo da Montanha — a ver a magnitude

da beleza que Deus dispensou a quantos O amam e, amando-O, amam os irmãos. Vi

então, como João em Patmos que já não é, «um novo Céu e uma nova Terra, porque o

primeiro Céu e a primeira Terra haviam desaparecido e o mar já não existia. Vi a cidade

santa, a nova Jerusalém que descia do Céu, de junto de Deus, bela como a esposa que se

ataviou para o seu esposo».

E ouvi, como João em Patmos que já não é... uma voz forte que dizia: «Não haverá

mais morte, nem prantos, nem gritos, nem dor, porque as primeiras coisas passaram».

— É esta a era das coisas novas. Que nunca mais terá fim!

Então perguntei ao Senhor:

— E o que vai ser daquele montão de cinzas que ficou do outro lado?

— Não te preocupes. Nunca leste: «Eis que faço novas todas as coisas?»

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VII

Visionem vidi...

Tinha trabalhado até altas horas. Ao deixar pela primeira vez o meu querido povo

do Rio, tinha o especial dever de ordenar o trabalho que recairia sobre o mais velho dos

meus bispos auxiliares, de sorte que nada ficasse ao acaso. Antes de me deitar, pedi o

registo telefónico de despertar: às oito horas! Tudo programado para sair pelas dez,

depois de visitada a casa-mãe da obra dos meninos da rua. O sono que dormi, porém,

nem foi longo, nem reparador. Bem pelo contrário. Depois de um turbilhão onírico que

me manteve em suspenso durante o tempo nocturno em que estive deitado, caí num

sono profundo, às primeiras horas do dia. De forma que não ouvi o telefone pelas não sei

quantas vezes que terá tocado. Só o sol quente do Rio foi capaz de me acordar, quando

começou a bater-me forte no rosto. Inquieto, o meu auxiliar dispunha-se, então, a abrir a

porta com o duplicado da chave, quando ouviu o ruído do salto que dei para fora da

cama, esfregando os olhos e abrindo a janela.

— D. Pedro — gritou, aflito, do outro lado — são quase dez horas e o voo para

Roma parte do Galeão, às onze! Há, por aí, alguma coisa de errado?

— Meu querido Irmão — disse, abrindo a porta — nada de errado... não sei...

talvez não!... Sei lá, foi um enorme pesadelo, um sonho terrível, como nunca me

acontecera na vida. Nem quero lembrar! Não ouvi o despertador. Mas tens a certeza de

que ainda consegues deixar-me no aeroporto em tempo?

— Tem mala aviada, papéis em ordem, tudo pronto?

— Ó meu amigo, sabes como eu sou quando viajo: não me deito de véspera sem

primeiro passar revista a tudo o que hei-de levar. Tudo. Esta mala está pronta a seguir

para o carro. Se me fizeres o favor. Só aguardas cinco minutos e estarei no meu lugar.

A caminho do aeroporto, dei conta ao meu bispo auxiliar de algumas cenas

terríveis do meu pesadelo e fiz-lhe as últimas recomendações.

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— O meu arcebispo tem mesmo necessidade de repouso absoluto. Lembre-se

daquilo que o psiquiatra lhe disse: «está à beira da depressão!»

Já no aeroporto, aguardando embarque, recebi mensagem classificada de

"confidencial" de um amigo do Vaticano que me dava conta: — «Papa muito mal. Stop.»

Por momentos ainda hesitei. Viajo para Tivoli? Não?... E o médico depois que me

vai dizer? E que direi eu à minha consciência se entretanto o meu estado piorar?

Última chamada dos senhores passageiros do voo Varig 1319, para Roma: «devem

dirigir-se imediatamente para a porta número vinte e três».

— Olha, meu caro bispo auxiliar, vou! Tivoli é o meu destino secreto. Só tu sabes

onde me encontrar. Telefona-me sempre que for julgado necessário. De resto, vou

cumprir à risca os mandamentos do Dr. Cardoso: «Ligar à terra!»

— Mas… e essa da mensagem? Se o Papa, entretanto...

— Estarei perto dos acontecimentos. Cuida do nosso rebanho. Que nenhuma

ovelha se perca. Quanto ao mais, sempre assim foi, sempre assim será — a um Papa

segue-se outro Papal...

— Farei tudo o que estiver ao meu alcance. Pode o meu arcebispo descansar. — E,

em aparte — que bem precisa...

— Como? — Os dois homens despediam-se, já na plataforma de embarque. Mas

Pedro, intrigado com a última frase do auxiliar, ainda se volta para trás: — Olhe,

pensando bem, aquilo que eu tive esta noite não foi pesadelo, não... Eu tive uma visão!...

— «Visionem vidi...»

— Uma visão?... — Perguntava, ainda, D. Arcílio Fazendeiro, acenando ao

arcebispo, como que em gesto de me fazer voltar atrás.

— Não sei, meu Irmão. Eu estou doente e a minha doença é psíquica. Estou

cansado, esgotado, não é?... Depois darei notícias. — Quase gritava junto do primeiro

degrau da escada de acesso à aeronave. Olhando para trás novamente, vi que o meu

auxiliar chorava. Fiz-lhe sinal de adeus com as duas mãos. E segui em frente, pois não

aguentava mais.

Quando o aparelho descolava e se fazia às alturas, de rosto entre as mãos assentes

sobre os joelhos, eu chorava também como nunca. Pensava e repensava tudo, tentando

descobrir qualquer ponta de lógica naquele quadro confuso, verdadeiramente surrealista

e apocalíptico do sonho horrível de uma noite irrepetível. Mas não me saía da cabeça

que, no meio de tanta confusão, havia coisas de um realismo atroz, dados de tal verdade,

que (quase) legitimavam a afirmação — «eu vi»!... Enfim, qualquer coisa me dizia que o

pesadelo da noite anterior era muito mais que uma exacerbada actividade onírica de

qualquer mente à beira do abismo.

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Em Roma, tive notícias de ligeiras melhoras na saúde do Papa. — «Aquela gente

ainda é capaz de o embalsamar, escolhendo o dia, o mês e o ano, para dar a notícia da

morte!» — Era a voz mordaz do meu amigo que quis ter a gentileza de me esperar no

Leonardo Da Vinci e de me transportar a Tivoli.

— Obrigado, meu bom Amigo. Agora, se me permite, vou descansar.

— Foi um prazer, meu caríssimo D. Pedro do Rio. Descanse bem. Cumpra à risca

tudo o que o Dr. Cardoso lhe prescreveu. Sobretudo, distraia-se por entre a vegetação e

as belezas naturais das elevações de Tivoli e a arte que, por ali, se encontra exposta. Mas

converse com as pessoas. Não se isole. Ah! E procure esquecer tudo o que está para

trás... Uma coisa, porém, deve ter como certa: ao menos o Monte Célio é uma

realidade!...

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Índice

7 - I. Tu es Petrus...

49 - II. Tenebrae factae sunt...

94 - III. Sic Deus dilexit mundum!...

124 - IV. Meretrix magna Babiloniam corruit...

146 - V. Veni, Domine! Veni!...

155 - VI. Ecce nova facio omnia...

157 - VII. Visionem vidi...

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Pedro do Rio, cardeal brasileiro, é aclamado como o novo Papa depois

de várias tentativas frustradas em conclave. Surpreendentemente,

escolhe o nome de Pedro II. Porque na linha directa de Pedro I, Pedro

II vai terminar com todos os negócios obscuros do Vaticano,

devolvendo-o à maior pureza. Porque o Vaticano vai mudar!

«O mundo do Século XXI afunda-se num individualismo grosseiro. As

nações ricas fomentam a guerra entre os povos mais atrasados,

vendendo-lhes as armas com que estes se matam, para lhes levar as

riquezas naturais que possuem, ao preço das balas e do sangue que

elas fazem! Populações inteiras do Terceiro Mundo são vítimas de

genocídios horrorosos, de limpezas étnicas de uma brutalidade nunca

antes vista na história da Humanidade, de fome generalizada que

ceifa, antes de outras, as vidas de inocentes que apenas cometeram o

pecado de terem nascido naquelas coordenadas. O tráfico de

menores para os chamados paraísos do sexo ou, não raro, para

pesquisas laboratoriais, como se de ratos se tratasse, ou, pior ainda,

para as grandes clínicas dos países ricos, a fim de serem "dadores de

órgãos"; a passagem de droga que destrói famílias e mata a nossa

juventude; a lavagem de dinheiro sujo, proveniente das explorações

mais ignominiosas do ser humano, tudo é feito hoje com a

consciência tranquila das autoridades nacionais e das instâncias

internacionais, dentre elas o próprio Vaticano que retira

despudoradamente desses negócios satânicos chorudos rendimentos

que vão parar aos cofres do I0R.»