alberto caeiro por hipólito

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Cortesia de Nuno Hipólito

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  • 1. NUNO HIPLITONo Altar do Fogo Uma anlise do Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro 2007-2010 Nuno Hiplito

2. Era como a voz da terra, que tudo e ningum. lvaro de Campos 3. Introduo Alberto Caeiro, O Mestre. Assim o apelidava Pessoa, com uma deferncia de filho perante o pai, mesmo sabendo estar perante a sua prpria criao. Mas, ao contrrio do que se possa pensar, Caeiro no pretendia ser maior que todos os outros heternimos. Ele pretendia ser menor. O Mestre, porque reduziu ao essencial as suas palavras e as suas convices. Porque como um mestre achou na ausncia, no ascetismo, os significados maiores da sua religio pessoal. Pago sim, mas s pela simples razo de que quem venera muitos deuses, no venera deus algum. Era esse homem impossvel uma ideia em si mesma, que recusava existir ou conhecer-se. O Guardador de Rebanhos, obra pequena de 49 poemas, escrita na sua grande maioria num s dia de inspirao1, de p contra uma cmoda, no pretende ser um tratado de um mestre, a no ser pela inverso de princpios. Vamos observar que Caeiro no prescreve ensinamentos, como se esperaria de um mestre, mas antes descreve negativamente a realidade, despindo progressivamente as camadas do conhecimento. At restar o suficiente para que se viva sem preocupaes, em paz. o Guardador de Rebanhos ent~o um tratado de mestre deveras nico. Um tratado de antimetafsica, de algum que escreve como se banhasse os ps no Ganges como mtodo de purificao, de aceder pureza inicial, sem pecado. Reis, Campos, Soares, Search, Mora, mesmo Pessoa ele mesmo, todos se preocupam em atingir uma verdade, uma concluso. Pairam num cu de etreas incertezas. Caeiro no. Por isso ele se destaca, por isso ele O Mestre. Um mestre do esprito, mas no do cu, que prende por algum tempo Pessoa a certezas lmpidas, a uma sensao de conforto tranquilizadora2. Muitas vezes o elemento fogo (o preponderante em Caeiro) ligado s garras do Leo e isso pode simbolizar a preferncia pelas verdades simples da natureza e a fuga metafsica e s hipteses. (Mas o fogo aqui representa igualmente o cadinho final incandescente, a fase rubedo, em que a Obra atinge a sua essncia final). Prepare-se quem o ler para se despir tambm dos preconceitos da civilizao e da cultura, da modernidade. Dispa-se como os antigos sadhus indianos. Cubra-se como eles de p. Coma frutas selvagens. Sacie a sede nos ribeiros da montanha, que nascem do degelo invisvel. Porque este livro a busca do nada, da paz do esprito vazio3.Pessoa, na famosa carta sobre a gnese dos heternimos, dirigida a Adolfo Casais Monteiro em 13 de Janeiro de 1935, diz de facto: em 8 de Maro de 1914 acerquei-me de uma cmoda alta, e tomando um papel, comecei a escrever, de p, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, () Abri com um ttulo, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de algum em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Mas uma anlise mais cuidada do esplio leva concluso de que nenhum poema est datado desse dia. As datas vo de 4 de Maro a 7 de Maio de 1914 e nenhum poema tem a data de 8 de Maro, o famoso dia triunfal. Trs possveis explicaes: o gosto de Pessoa pelo drama e pela encenao, pela sua prpria memria futura, levaram a que ele ficcionasse o nascimento da obra maior de Caeiro num s dia; a segunda hiptese a de que ele, no se recordando exactamente desse perodo pouco mais de duas semanas, vinte anos atrs as sintetizasse num s dia, realmente um dia glorioso, que ele recordava por ser o dia em que tinha inventado os heternimos. (Parece ser esta a posio de alguma critica actual). A terceira hiptese, que ns prprios defendemos, que o dia 8 de Maro de 1914 tem um significado astrolgico especial para Fernando Pessoa, e por isso foi escolhido propositadamente pelo poeta. 2 Para caracterizar a importncia de Caeiro para Pessoa h uma nota curiosa, vinda da ateno de Jorge de Sena, que no podemos deixar de indicar. Notou Sena que, curiosamente, a Caeiro dada uma vida com os mesmos anos da de S-Carneiro, 26, e que morre tuberculoso como o pai de Pessoa, depois de uma vida em que teve frgil sade, depois tambm de ter 5 curtos anos de actividade potica, 5 sendo o nmero m|gico, os anos de felicidade do Menino de Sua Me, de 1888 a 1903 (Cf. Jorge de Sena, O meu mestre Caeiro de Fernando Pessoa e outros mais in Actas do I Congresso Internacional de Estudos Pessoanos, pg. 357, Braslia Editora, 1978). Acrescentamos duas interpretaes numerolgicas nossas: 8 de Maro de 1914 (8+3+1+9+1+4=26=26, a idade de Caeiro=2+6=8 o nmero da ressureio). 3 Tires, 26 de Maio de 2006. 1 4. Anlise geral e estilstica O Guardador de Rebanhos era apenas uma parte da obra global de Alberto Caeiro, que Fernando Pessoa pretendia editar dentro do que ele chamava de Fices do Interldio, titulo geral que incluiria, em mltiplos volumes, toda a obra dos seus heternimos. Curioso que Fernando Pessoa pretendia fazer esse livro sob o seu prprio nome. Ou seja, Fernando Pessoa tomaria o seu lugar como fonte geradora da obra dos seus heternimos4. A obra de Caeiro seria a primeira a ser editada num volume intitulado Fernando Pessoa Fices do Interldio I. Poemas completos de Alberto Caeiro (1889-1915). Naturalmente a primeira, por incluir as obras do mestre. O Guardador de Rebanhos uma parte da obra de Caeiro. O restante constitui-se pelos dezassete Poemas Inconjuntos e pelos oito poemas que formam o conjunto O Pastor Amoroso. H| no entanto algumas discordncias editoriais, visto que algumas edies incluem os poemas de O Pastor Amoroso em conjunto com os Poemas Inconjuntos, sob este ltimo ttulo. Certo que os Poemas Inconjuntos ficam fora do conjunto principal intitulado Guardador de Rebanhos, por serem mais tardios (escritos circa 1919) e muitas das vezes contraditrios com a viso inicial de Caeiro. Mas no nos cabe analis-los agora. Diremos que o Guardador de Rebanhos, obra que vamos analisar, constituda por 49 poemas5, todos com mtrica irregular e seguindo um esquema rmico de verso branco6 (sem rima). Todo o texto marcado por uma evidente pobreza lexical, com a predominncia de uma linguagem simples, familiar, o que enfatiza a pobre eduo de Alberto Caeiro (que supostamente apenas frequentou o ensino primrio). H um uso frequente do presente do indicativo ou do gerndio, reforando a ausncia do pensamento racional que se projecta sempre no futuro ou lembra as aces do passado. Podem ainda indicar-se como caractersticas dominantes, o uso de frases simples, o uso raro de metforas em detrimento do uso de comparaes, a adjectivao concreta e objectiva e um sistema de pontuao lgico e pouco criativo. Ao nvel fnico, o ritmo lento e alternam-se sons nasais e vogais abertas e semi-abertas. Em resumo, o Guardador de Rebanhos um livro escrito por um homem simples, que teve pouca ou nenhuma educao formal. Portanto e em principio um livro simples de ler e simples de ser entendido. Veremos que nem sempre ser bem assim. Por detrs da simplicidade do texto e do autor escondem-se uma variedade imensa de interpretaes. Isto porque Caeiro desconhece que, escrevendo, vai descobrindo ele mesmo aquilo que escreve e se vai a ele mesmo modificando. o que se pode ler na inteno de Pessoa, descrita numa carta a Joo Gaspar Simes, datada de 28 de Julho de 1932. Cf. Fernando Pessoa, Escritos ntimos, Cartas e pginas autobiogrficas, Publicaes Europa-Amrica, pgs. 202-3. 5 49 4+9 = 13 1+3 = 4: O nmero da unio dos elementos ar, terra, fogo e ar. 6 Curiosamente, se o verso branco domina, tambm o nome do poeta relacionado Caeiro, lembra a cal, o branco funerrio, o esquecimento e a abluo. Alberto ser um nome de origem germnica que quer dizer nobre, ou calmo. (Valemo-nos aqui das indicaes de Santino Borges) 4 5. I Eu nunca guardei rebanhos, Mas como se os guardasse. Minha alma como um pastor, Conhece o vento e o sol E anda pela mo das Estaes A seguir e a olhar. Toda a paz da Natureza sem gente Vem sentar-se a meu lado. Mas eu fico triste como um pr de sol Para a nossa imaginao, Quando esfria no fundo da plancie E se sente a noite entrada Como uma borboleta pela janela. Mas a minha tristeza sossego Porque natural e justa E o que deve estar na alma Quando j pensa que existe E as mos colhem flores sem ela dar por isso. Como um rudo de chocalhos Para alm da curva da estrada, Os meus pensamentos so contentes. S tenho pena de saber que eles so contentes, Porque, se o no soubesse, Em vez de serem contentes e tristes, Seriam alegres e contentes. Pensar incomoda como andar chuva Quando o vento cresce e parece que chove mais. No tenho ambies nem desejos Ser poeta no uma ambio minha a minha maneira de estar sozinho. E se desejo s vezes Por imaginar, ser cordeirinho (Ou ser o rebanho todo Para andar espalhado por toda a encosta A ser muita coisa feliz ao mesmo tempo), s porque sinto o que escrevo ao pr do sol, Ou quando uma nuvem passa a mo por cima da luz E corre um silncio pela erva fora. Quando me sento a escrever versos Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos, Escrevo versos num papel que est no meu pensamento, Sinto um cajado nas mos E vejo um recorte de mim No cimo dum outeiro, Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias, Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho, E sorrindo vagamente como quem no compreende o que se diz E quer fingir que compreende. Sado todos os que me lerem, Tirando-lhes o chapu largo Quando me vem minha porta Mal a diligncia levanta no cimo do outeiro. Sado-os e desejo-lhes sol, E chuva, quando a chuva precisa, E que as suas casas tenham 6. Ao p duma janela aberta Uma cadeira predilecta Onde se sentem, lendo os meus versos. E ao lerem os meus versos pensem Que sou qualquer coisa natural Por exemplo, a rvore antiga sombra da qual quando crianas Se sentavam com um baque, cansados de brincar, E limpavam o suor da testa quente Com a manga do bibe riscado. 4-3-1914O poema I um poema de definio, negativa certo, mas definio. Pessoa define em concreto o que esta obra, e mais, o que Alberto Caeiro no seu ntimo. Temos de imaginar o poeta debruado sobre a cmoda alta, no dia 8 de Maro de 1914 o dia triunfal7. Estava h dias a inventar uma personagem, em tentativas sucessivas, mas no lhe surgira a inspirao. O processo de construo assemelha-se ao de qualquer ideia criativa sabendo j o que pretendia (um poeta buclico, de espcie complicada), bastou esperar que o seu crebro inconsciente construsse a realidade antes de ela se aplicar no papel. Ela veio-lhe num jacto de trinta e tal poemas8. Nascera Alberto Caeiro. As razes psicolgicas para o nascimento do Mestre foram j| analisadas longamente por especialistas Pessoanos9. No nos vamos demorar nesta anlise, passando desde j ao texto em si e aos significados residentes no texto. Eu nunca guardei rebanhos, diz Caeiro no primeiro verso da sua obra, intitulada precisamente Guardador de Rebanhos. O que representa este paradoxo de abertura? Quer dizer que Caeiro, o poeta buclico, na verdade no um pastor, mas acima disso uma alma de pastor10. A sua contemplao da natureza, da beleza primordial, leva-o a sentir a realidade como se a vivesse intensamente, num modo de vida similar ao da pastorcia que rene os elementos solido e contemplao.Ver nota 1. Carta a Adolfo Casais Monteiro em 13 de Janeiro de 1935, in Fernando Pessoa, Escritos ntimos, Cartas e pginas autobiogrficas, Europa-Amrica, 1986, pg. 228. 9 Em sntese ficam aqui algumas opinies: Gaspar Simes, o primeiro bigrafo, considerou Caeiro s um crnio, uma cabea, nada mais, reforando a sua opini~o de que o poeta buclico aparece a Pessoa para o tirar da insinceridade pura do perodo palico, para uma sinceridade intelectual, de transi~o, que preencheria o que em Pessoa ainda se revelava como falta de experincia de vida (Cf. Joo Gaspar Simes; Vida e Obra de Fernando Pessoa, Vol. I, pg. 260, Bertrand, 1950). Jos Augusto Seabra, de algum modo confirma esta viso de tabula rasa, chamando a Caeiro o grau zero da poesia em Pessoa. No entanto Eduardo Loureno parece compreender melhor (e de maneira mais vasta o fenmeno Caeiro), quando diz o contrrio de Seabra: Caeiro o grau mega da poesia, ou seja, o fim e no o incio, Pessoa o mais distante de si mesmo, parte de um percurso ontolgico negativo (e dialctico) (Cf. Eduardo Loureno, Fernando Pessoa revisitado, pg. 40, 3. edio Gradiva). Percurso que to brilhantemente Antnio Quadros iria descrever no seu artigo Heteronomia e Alquimia (Cf. Antnio Quadros, Fernando Pessoa, vida, personalidade e gnio, D. Quixote, pgs. 277-307), dando a entender Caeiro como um dos elementos da procura alqumica de Pessoa a reunio dos opostos da sua alma, em que cada heternimo seria um elemento (Caeiro claro, sendo a Terra). Mltiplos autores (Loureno, Casais Monteiro, Jacinto do Prado Coelho) chamam tambm ateno para a questo da linguagem potica, como arma de compreenso da realidade. Mais simples porm a viso, sempre magistralmente clara e evidente, de Agostinho da Silva. Para este pensador, Caeiro aproxima-se de Pessoa, como momento de alma, um estado de esprito e por isso a doutrina de Caeiro to frgil como a sua sade, o destino dele era morrer, ser passageiro (Cf. Agostinho da Silva, Um Fernando Pessoa, 3. edio, Guimares Editores, pg. 63). visvel que os grandes bigrafos de Pessoa cedo compreenderam que Caeiro, como os outros heternimos, no era apenas parte de um intrincado jogo de fico (ou mera reaco a influncias externas, como insinua Harold Bloom no seu The Western Canon), uma encenao sem sabor. Eles so um drama interior, como reconhece o mais moderno dos bigrafos Robert Brchon (Cf. Robert Brchon, Estranho Estrangeiro, Quetzal, 1996, pg. 222), cada um deles uma faceta do ser de Pessoa, que na discusso em famlia dos seus personagens pretende encontrar o segredo da vida pela sua negao. Veremos no futuro as verdadeira implicaes desta ousadia filosfica. 10 Ver a anlise ao poema IX. 7 8 7. O pastor o smbolo para a solido do pensamento contemplativo. um homem que est sozinho na natureza e cuja profisso vaguear com o seu rebanho, sem a perturbar, alimentando-se do que ela d, vislumbrando os seus segredos no silncio. Ele no altera nada, s v e vive o que v. Por isso Caeiro no guarda rebanhos, mas como se os guardasse. A sua alma como um pastor () anda pela mo das Estaes / A seguir e a olhar. Considera Pessoa impossvel que Caeiro fosse ao mesmo tempo um pastor e um poeta, um pensador pago da realidade? Trata-se afinal do antiqussimo problema, abordado por filsofos desde a antiguidade poder algum pensar a vida que simultaneamente vive?11 Pessoa pensa que no. Por isso isola Caeiro da profisso que ele imagina como sendo sua, mas que pratica apenas como convico. Isto explica que Caeiro seja um pastor em essncia. Incorpora em si mesmo as qualidades de um pastor, mas no limitado pela vida que um pastor leva. Serve-se, por assim dizer, da arte do pastor para atingir o estado contemplativo, como um budista se serviria da meditao. Por isso ele diz: a paz da Natureza sem gente / Vem sentar-se ao meu lado. / Mas eu fico triste como um pr-do-sol / Para a nossa imaginao. Se ele fosse um pastor, apenas um pastor, teria a Natureza este efeito nele? 12 H aqui um pensar. Calmo e tranquilo, mas um pensar. O estado meditativo profundo desse pensar a tristeza13. Por muito que Pessoa queira fingir Caeiro, ele atribui-se a si mesmo uma caracterstica cara a Pessoa o ser triste. Este ser triste ser pragmtico, no ter iluses, aceitar o sofrimento e o Destino. Sobretudo quando somos oprimidos, quando passamos mais dificuldades. A rendio ao Destino, prpria de quem acredita na Natureza, de quem se diz Pago, sem metafsica, confirmada pelos versos seguintes: a minha tristeza sossego / Porque natural e justa. A palavra justa de crucial import}ncia. Como pode a tristeza um estado de esprito ser justa? A no ser que seja uma imposio aceite livremente, uma submisso a algo superior, prpria Natureza. Qual o objectivo da medita~o (que em Caeiro a rendi~o ao Destino, a tristeza)? o sossego, ou seja, a paz. Esta a chave de todo o livro e uma chave que nos providenciada logo na singela abertura. A nica razo porque um asceta e Caeiro um asceta deixa para trs as posses, o conhecimento, todos os desejos humanos, para que atinja um mais alto grau de existncia. Esse Nirvana em Caeiro chama-se sossego, paz. Pela paz de esprito, Caeiro troca tudo o resto uma vida comum, dinheiro, desejo sexual, desejo de posse, inveja, futuro, passado, presente. um aniquilar da vontade prpria e da personalidade em busca de uma mais elevada existncia, s de sensaes, em concordncia com a Natureza, no conflituosa e por isso mesmo pacificada, sem querer mais, sem desejar. Sem nos querermos repetir, acentuaramos a semelhana com o processo budista de conhecimento. Os quatro passos de Buda assemelham-se aos passos iniciticos de Caeiro, medida que ambos se afastam da realidade de todos os dias, para aceder a uma verdade inicial, interior, essencial14. Diz Csar: Quero ter em roda de mim homens gordos, de face luzidia e que durmam de noite. Aquele Cssio tem um aspecto magro e esfaimado; pensa demasiadamente; homens assim so perigosos (in William Shakespeare, Jlio Csar, Lello & Irmo Editores, 1988, p. 35). Nietzsche acrescenta o seguinte, na sua ironia to prpria: No quero dizer nada que contradiga a opinio corrente. Serei eu feito para descobrir novas verdades? J h demasiadas antigas. (in Friedrich Nietzsche, A Gaia Cincia, Guimares Editores, p. 64, n. 25). 12 De facto, anuncia-se aqui a contiguidade entre Caeiro e a sua Natureza, que, na opinio de alguns pessoanos nada mais do que uma virtualizao do real (Cf. Victor Mendes, Introduction: Denaturalizing Pessoas Alberto Caeiro in Pessoas Alberto Caeiro, Portuguese Literary & Cultural Studies, 3, pg. 14, Outono, 1999). 13 Relembremos que a tristeza em Fernando Pessoa no um sentimento nulo, vazio, mas antes uma condio deliberada perante a vida. Eu no sou pessimista, sou triste (in Livro do Desassossego, 1. parte, pg. 245) quer isto dizer que o pessimismo uma rendio sem honra e a tristeza uma subordinao nobre ao destino. 14 No somos os primeiros a aproximar Caeiro do Budismo. O primeiro estudo definitivo foi de Leyla Perrone-Moiss (Cf. Leyla Perrone-Moiss, Fernando Pessoa, aqum do eu, alm do outro, So Paulo, Martins Fontes, 1982) e subsequentes artigos confirmaram esta anlise teremos oportunidade de os citar mais tarde. No entanto cremos essencial desde j a anlise comparativa entre os Quatro Passos ou Grandes Verdades de Buda e o processo que Caeiro descreve no Guardador. So as quatro verdades: 1) a existncia implica a dor; 2) a origem da dor o desejo; 3) a dor s cessa com o fim do desejo; 4) h u m caminho de 8 passos para cessar o desejo: a viso correcta, a inteno correcta, o discurso correcto, a aco correcta, a vida correcta, o esforo correcto, a atitude correcta e a concentrao correcta. 11 8. Esta conscincia da inconscincia uma busca arriscada, porventura impossvel, porque procura uma sntese de opostos o conhecer e o ignorar. Caeiro sabe isso e di-lo: Os meus pensamentos so contentes. / S tenho pena de saber que eles so contentes. como se fosse sempre um equilbrio instvel, essa paz, essa rendio. Um equilbrio que exige um esforo, de repetio, de ladainha. Esse esforo l-se ao longo do Guardador de Rebanhos, que nada mais que um longo mantra, uma litania sublime, elegante mas simples, em que Caeiro reafirma para si prprio a sua convico inicial15. Este incmodo reforado nos versos seguintes: Pensar incomoda como andar chuva / Quando o vento cresce e parece que chove mais. Numa bela metfora, Caeiro inclu a anlise que acabmos de fazer. Pensar como andar numa chuva cada vez mais intensa quanto mais chove, mais nos difcil avanar normalmente. Quanto mais pensamos mais difcil nos viver normalmente. Lembra-nos uma famosa fbula chinesa em que um sapo pergunta a uma centopeia por que ordem ela punha as pernas quando andava. Desde ento a centopeia tinha ficado imobilizada no seu buraco, sem saber como andar. No tenho ambies nem desejos, diz de seguida Caeiro, reafirmando a nossa anlise anterior, do despir da vontade prpria, do deixar de desejar como Buda. Ser poeta, no uma ambio minha, esclarece, a minha maneira de estar sozinho. Estar sozinho aqui estar sozinho com as suas ideias num estado contemplativo, de auto-reflexo. Ser poeta uma necessidade para atingir a paz. Se algum desejo ainda lhe resta um desejo residual, que escorre da realidade e se confunde com a Natureza um desejo infantil (desejo s vezes () ser cordeirinho), e tudo o que infantil no deliberado, racional. Esta infantilidade acentuada quando Caeiro confunde a Natureza com os homens16. Esta antropomorfizao da Natureza deliberada, para que a humanidade perca importncia relativa face a tudo o resto. Ser o rebanho todo negar que uma coisa s seja mais importante que as outras coisas todas juntas17. E quando a nuvem passa a mo por cima da luz, Caeiro a assumir que a Natureza tem uma vontade prpria, igual dos homens, e por isso inegavelmente presente, indiscutvel. Se a Natureza tem uma importncia ao nvel da presena humana, no h mal em estar sozinho. Estar sozinho na Natureza, como estar sozinho na humanidade so duas situaes comparveis18. H uma confuso imanente de sentidos e de significados. Nesta grande mistura primordial acha Caeiro uma direco, no caos da Natureza h um conhecimento verdadeiro. Mas no o conhecimento que se esperaria alcanar. O pastor ilusrio, pastor em essncia, que escreve versos num papel que est no seu pensamento, sentindo um cajado nas mos, um cajado que s sente, no possui, faz ele mesmo parte da confuso que descreve ele prprio a Natureza que desvenda. Por isso ele diz: vejo um recorte de mim / No cimo de um outeiro. Por isso o seu rebanho se confunde com as suas ideias. Tudo na sua mente catica uma amlgama de tudo o resto. Porqu? Porque para compreender o caos h que ser o caos. Como a Natureza no distingue as coisas de que composta, Caeiro procura assimilar esse princpio em si mesmo, para que possa compreender a Natureza e atingir assim um estado puro de pacificao, de falta de significados o Nirvana. Ser que esta iluso funciona realmente? Caeiro pretende no saber, mas ao mesmo tempo elabora uma extensa teoria sobre como deixar de saber. O fingimento ele mesmo sorrateiramente enganado Caeiro olha sorrindo vagamente como quem no compreende o que se diz / E quer fingir que compreende. A iluso funciona porque ele acredita nela. Enquanto ele acreditar, ela vai ser a sua nova realidade. Mantra uma palavra em snscrito composta pelo prefixo man- "pensar" (de manas "mente") e o sufixo -tra que significa instrumento. Os mantras so vistos como uma conduta espiritual, que permite atravs de palavras pronunciadas com determinado sentido vibratrio fixar a concentrao do crente. 16 Sobre o conceito de Natureza em Alberto Caeiro ver o ensaio: Mrio Queiroz, Idias de Natureza em Alberto Caeiro in Terceira Margem, Rio de Janeiro, ano VIII, n. 9, pgs. 60-76, 2003. 17 diferente aqui o querer ser tudo de todas as maneiras, lema insinuante de lvaro de Campos 18 Esta vis~o impede tambm que o estar sozinho seja sinnimo de estar preocupado, ou estar inquietado. A segurana com que o estar sozinho assumido d| a Caeiro a certeza que esta solid~o n~o o preocupa, n~o o vai levar ao desespero e { anlise racional. quase um estar sozinho natural. 15 9. Por isso novamente a importncia do mantra, da reafirmao dos mesmos princpios em voz alta, hipnoticamente, para que a iluso tome o lugar da verdade e a verdade o lugar da iluso. Estabelecido quem Caeiro e o que ele pretende, Pessoa deixa cair o mantra para saudar o leitor, ironicamente. Sado todos os que me lerem, diz ele. Afinal ele um poeta, e quer tambm ter um pblico. Mas querer algo mais do que apenas um ouvido atento, uma aceitao que o ajude tambm ele a aceitar o que diz? Ao contrrio do Mestre que pretende, pelo ensinamento, enfeitiar o aluno, Caeiro no quer ensinar, apenas ser aceite como , ao mesmo tempo que lana um aviso. Ele sada gentilmente, humildemente, como homem do campo (mais ainda, da Natureza!), esperando que no lhe peam mais do que a gentileza firme de uma saudao passageira. Deseja no o conhecimento, mas a chuva quando precisa, seno o sol. Deseja uma cadeira, para que se sentem a ler os seus versos e se lembrem tambm os seus leitores da simplicidade que ele advoga to certo e deliberado 19. O seu maior desejo: que ao lerem os seus versos o pensem como coisa natural, como uma rvore antiga que conheceram crianas a brincar. No um desejo de somenos importncia. Quer Caeiro assumir-se Natureza, deixar de ser homem. Quer libertar-se das cadeias pesadas da realidade social, dos desejos humanos e das humanas invejas. E assim que quer ser visto por todos. Deixar de existir assim passar a existir de mil outras maneiras. No fim do primeiro poema sente-se j essa tristeza de que fala Caeiro. uma tristeza imensa, profunda como um poo, mas natural, como um relmpago ou uma cheia. o sentimento que preenche todo o vazio deixado pela falta de humanidade. O homem dilui-se na tristeza e perde a sua identidade para assumir uma existncia pacfica com a Natureza que pretende tomar como sua. Caeiro quer perde-se para se encontrar. Este foi o seu primeiro passo, mas um longo missal ainda se vai desenrolar para que ele consiga faz-lo plenamente20.Thomas Crosse, a figura pessoana que tinha por misso, entre outras coisas, divulgar em ingls a cultura portuguesa, diz que Caeiro no tem tica a no ser a simplicidade (citado em Alberto Ferreira, Louvado seja Deus que n~o sou bom: Alberto Caeiro, So Francisco de Assis e o menino Jesus, Universidade de Aveiro, pg. 1). 20 Parte desta miss~o ser| comear a pensar com os sentidos. Esta no~o (do conhecimento pelos sentidos) antiqussima e pode ser encontrada j nos filsofos pr-socrticos, tendo sido analisada na modernidade pelo poeta Alemo Hlderlin, precursor do idealismo germnico. Abordaremos progressivamente esta teoria medida que o Guardador avana. 19 10. II O meu olhar ntido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas Olhando para a direita e para a esquerda, E de, vez em quando olhando para trs... E o que vejo a cada momento aquilo que nunca antes eu tinha visto, E eu sei dar por isso muito bem... Sei ter o pasmo essencial Que tem uma criana se, ao nascer, Reparasse que nascera deveras... Sinto-me nascido a cada momento Para a eterna novidade do Mundo... Creio no mundo como num malmequer, Porque o vejo. Mas no penso nele Porque pensar no compreender... O Mundo no se fez para pensarmos nele (Pensar estar doente dos olhos) Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo... Eu no tenho filosofia: tenho sentidos... Se falo na Natureza no porque saiba o que ela , Mas porque a amo, e amo-a por isso, Porque quem ama nunca sabe o que ama Nem sabe por que ama, nem o que amar... Amar a eterna inocncia, E a nica inocncia no pensar... 10-5-1914Caeiro no poema I definiu-se negativamente. Alis, ser quase sempre negativamente que Caeiro expressar as suas convices o que diz muito do mpeto que o guia21. Enquanto no poema I foi expressa a base filosfica de Caeiro um sensacionismo radical, revelado numa objectividade quase dolorosa na anlise da realidade, no poema II Caeiro vai passar a falar mais em concreto do seu processo de pensamento22. Isto porque mesmo para deixar de pensar tem de se pensar. O que para muitos autores Caeiro revela no poema II a sua viso anti-metafsica do mundo que o rodeia. Ns discordamos com essa anlise, porque se trata de uma questo prvia mesmo da metafsica. Veja-se o que o texto nos diz. O meu olhar ntido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas () E o que vejo a cada momento / aquilo que nunca antes eu tinha visto. Quer Caeiro fingindo para ele mesmo querer dar-nos a entender que a sua viso das coisas natural, como uma criana. Sinto-me nascido a cada momento / Para a eterna novidade do Mundo, diz ele fingindo. Dizemos que Caeiro finge porque ele est ainda no incio do seu caminho doloroso para se livrar da pele do mundo. Ser-lhe-ia neste momento impossvel ser como uma criana, ter esses olhos nossa intuio que a insistncia no discurso negativo revela que Caeiro procura algo que ainda no tem e no que Caeiro explica algo que j| possui. Isto leva a que entendamos o Guardador de Rebanhos n~o como um livro confessional, mas como um livro que encerra em si mesmo a viagem de Caeiro em busca da inocncia primordial que ele mesmo enuncia como j| sendo sua. Afinal, e ao contr|rio do testemunho do prprio Thomas Crosse, Alberto Caeiro n~o surge do nada, mas antes vai surgindo de dentro de Pessoa. 22 Este poema foi o primeiro poema de Pessoa traduzido para Ingls num pas Anglo-saxnico, por Thomas Morton, um monge americano interessado no Budismo Zen. 21 11. inocentes, deixar-se s s sensaes. Se ele fala disso como uma teoria que v perfeita e quer para si mesmo. Cabe aqui recordarmos o prprio perfil psicolgico de Fernando Pessoa, para melhor analisarmos a viso de Caeiro. Devemos lembrar que Pessoa algum dolorosamente desligado da realidade, por via de episdios traumticos nomeadamente o abandono da me e a solido de uma vida de artista frustrado, forado a trabalhar. Quando lemos E eu sei dar por isso muito bem, lemos um verso sincero que no de Caeiro, mas de Pessoa ele-mesmo. No entanto esta sinceridade momentnea destri a passageira iluso de ele ser j uma criana, que v tudo na sua inocncia primordial23. Acreditamos que ele consiga ver tudo como se visse pela primeira vez, mas apenas por efeito do estar desligado da realidade. Muito cedo Pessoa comea a desenhar uma filosofia paralela que sustenta uma vida paralela { sua vida real, falando em muitos momentos nela como um sonho24. A base da viso anti-metafsica de Caeiro ent~o sustentada por uma vis~o de alienado da realidade que Pessoa j| possua em si mesmo. Resta-lhe pegar nesse princpio e tentar dar-lhe um seguimento lgico, para que na sua concluso ache a tal viso de criana, a inocncia do olhar, que levar a que o sensacionismo venha superfcie e inunde toda a sua viso do mundo. Repare-se como Caeiro ainda pensa e no v apenas. Ele diz que Creio no Mundo como num malmequer, / Porque o vejo. Mas no penso nele / Porque pensar no compreender. O seu mantra continua, mas ele tem uma teoria para que lhe falta ainda uma prtica continuada. Sabemos isto porque h| uma insistncia doentia nas explicaes dos seus actos. Ao Creio no Mundo (constatao) segue-se o desnecessrio complemento porque o vejo. Mas n~o penso nele (justificao). Se a sua convico fosse cega, forte, ele abandonaria o raciocnio justificativo. Mais uma vez lembra-nos Buda, que deixou os ensinamentos para os seus seguidores, no na forma de letra, mas de prticas. Foram eles, depois da sua morte, que iniciaram o culto da letra a teoria. Pensar estar doente dos olhos, diz Caeiro de seguida. uma expresso chave que Caeiro nos delega para reforar a tal viso anti-metafsica. No devemos procurar significados no mundo, devemos deixar-nos s sensaes puras. Os olhos vem, no pensam. Eu no tenho filosofia: tenho sentido, diz concluindo. Mas mente, ele tem uma filosofia, pr-cognitiva, como demonstrmos. Grande parte da sua misso ser transformar essa filosofia, pela prtica, numa no-filosofia, numa pura praxis. Veja-se como Caeiro logicamente segue o nosso raciocnio, de equiparar o seu objectivo de inconscincia, de pura prtica natural, ao amor. Isto porque quem ama nunca sabe o que ama / Nem sabe porque ama, nem o que amar. Ele procura esta inocncia porque sabe ainda no a possuir. Tem, certo, um vislumbre dela, o incio, mas o Guardador de Rebanhos a sua via crucis, o seu percurso doloroso para a atingir por completo. O poema II completa-se com o que ser de aqui em diante o seu grande objectivo: a inocncia. Amar a eterna inocncia, / E a nica inocncia no pensar. No pensar ento uma espcie de amor? Sim, um amor mas sem objecto. Um amor ideal. um amor pela Natureza, um amor por ser natural e no questionar. Isto porque Pessoa transfere para Caeiro a sua necessidade humana de ser acarinhado, mesmo que s no seio da me natureza. Por isso este amor sinnimo de aceitao incondicional25. Caeiro no um poeta naif, pelas razes apontadas neste trecho. Nunca poder ser verdadeiramente naif porque tem a pr-compreenso que um naif nunca possui, mesmo que depois em verdade a anule. 24 Basta lembrar as referncias no Livro do Desassossego, que apontam para o que seria um mtodo filosfico, uma verdadeira e prpria teoria do conhecimento Pessoano assente em duas bases fundamentais: o sonho e a inaco. (Cf. O Livro do Desassossego I, Relgio dgua editores, p|gs. 50-54). Falta ainda um estudo sequer superficial sobre esta vertente do pensamento de Fernando Pessoa 25 Quem persegue um amor incondicional, provavelmente sente-se vulnervel perante um amor que no seja incondicional, e que por isso n~o ideal. A raz~o para o medo do amor humano vem provavelmente do facto de Pessoa ter ficado com um trauma em relao sua me, culpando-a subconscientemente pela sua condio actual de desespero, abandono e indefinio. 23 12. Persegue Caeiro a inocncia como Mestre, para que Pessoa conquiste o amor como discpulo. 13. III Ao entardecer, debruado pela janela, E sabendo de soslaio que h campos em frente, Leio at me arderem os olhos O livro de Cesrio Verde. Que pena que tenho dele! Ele era um campons Que andava preso em liberdade pela cidade. Mas o modo como olhava para as casas, E o modo como reparava nas ruas, E a maneira como dava pelas coisas, o de quem olha para rvores, E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando E anda a reparar nas flores que h pelos campos... Por isso ele tinha aquela grande tristeza Que ele nunca disse bem que tinha, Mas andava na cidade como quem anda no campo E triste como esmagar flores em livros E pr plantas em jarros... 10-5-1914O poeta buclico que Caeiro est j definido no seu essencial nos dois primeiros poemas do Guardador de Rebanhos. E ele definiu-se como algum que gosta da vida no que a vida tem de essencial. algum que rejeita a anlise de realidade e prefere no contraponto a vivncia pura das sensaes, para atingir uma paz que apenas vem com a ausncia do pensamento racional. O poema III comea assim o livro propriamente dito. Caeiro comea a falar honestamente, no fingimento que lhe vem de Pessoa. Ou seja, comea a falar para comear a viagem de descoberta que lhe trar aquilo que ele ambiciona26. Vem-lhe primeiro memria as influncias que ele, como poeta, sente ter de libertar para comear a escrever o seu prprio livro. Quem lhe ocorre mencionar Cesrio Verde 27. Impressionista e realista, Cesrio Verde , sua maneira, tambm um poeta buclico como Caeiro pretende ser. Pelo menos ele pinta os seus poemas como quadros, baseando-se na descrio da natureza. Mas, ao contrrio de Caeiro, ele usa oposies nomeadamente entre a cidade e o campo, para atingir as suas concluses poticas. O Mestre Caeiro admira-o? Talvez no. Mas conhece-o e l-o, o que curioso. Isto porque o poeta pastor, com uma instruo primria, que nunca sai da sua aldeia, talvez no fosse capaz de entender Cesrio Verde. Pessoa/Caeiro usa aqui de uma ironia, de um sentido de humor elegante que lhe muito prprio. Ele diz: Que pena tenho dele! Ele era um campons / Que andava preso em liberdade pela cidade.Ver a anlise ao poema II. no perodo de 1905-6 altura em que frequenta o Curso Superior de Letras da Universidade de Lisboa que Pessoa entra em contacto com a poesia de Cesrio Verde (1855-1886). O prprio poeta indica o perodo de Outubro de 1905 a 1908 como aquele em que influenciado por Baudelaire, Cesrio Verde e Poe. Mas at ao fim de 1908, continua a escrever em ingls (Cf. Fernando Pessoa, Pginas sobre Literatura e Esttica, Europa-Amrica, pgs. 203-4). Cesrio era um poeta impressionista, natural, que descrevia com sensibilidade a vida do campo e da cidade e viria a influir decisivamente o nascimento de Caeiro e do prprio sensacionismo. o prprio Pessoa que o diz: o movimento sensacionista portugus () tem um precursor inconsciente. Esboou-o levemente, sem querer, Cesrio Verde (in Ob. cit., pg. 139). Pessoa considerava-o um mestre e o fundador da poesia objectiva (in Ob. cit., pg. 126). Soares lana at o elogio declarado: Se houvesse de inscrever () a que influncias literrias estava grata a formao do meu esprito, abriria o espao ponteado com o nome de Cesrio Verde (in Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego, 1. parte, Europa-Amrica, pg. 226). Fernando Martins vir posteriormente a indicar que de Cesrio partem os dois heternimos de Pessoa, Campos e Caeiro, ramos divergentes da oposio que vivia j em Cesrio entre a cidade e o campo (Cf. Fernando Cabral Martins, Cesrio Verde ou a Transformao do Mundo, Lisboa, Comunicao, 1988, p. 26). Sobre a influncia de Cesrio Verde em Fernando Pessoa ver o excelente ensaio de Jos Pereira, Cesrio em Pessoa. 26 27 14. como se Pessoa/Caeiro, pretendendo libertar-se das influncias primrias que formavam na sua mente o poeta buclico ideal, pegasse na figura de Ces|rio Verde (o modelo) e pretendesse ir ainda mais alm. Afinal Cesrio no fora um poeta da Natureza, pelo menos no ao nvel que um Caeiro pretende ser. Caeiro parte de onde Cesrio ficou e deixa para trs o que Cesrio tinha que ainda o podia prender realidade social, das cidades, da figura feminina. A crtica a Cesrio vai ao ponto de Caeiro lhe criticar a tristeza. Lembre-se que para Caeiro a tristeza essencial, um estado meditativo que d acesso a um alto grau de conscincia da vida. Isto revela-nos que Caeiro sabe distinguir a tristeza comum da tristeza que ele prprio advoga como mtodo. E a tristeza de Cesrio uma tristeza comum, de arrependimento, desespero simples, que nasce do facto de algum se sentir deslocado, deprimido, ausente, algum do campo que anda na cidade Cesrio era triste no porque queria, mas porque andava na cidade como quem anda no campo / E triste como esmagar flores em livros / E pr plantas em jarros. Ou seja, ele no conseguia ser um poeta natural em essncia as suas flores eram esmagadas em livros e as suas plantas viviam em jarros: era uma natureza artificial, porque incompleta. A natureza no pode ser limitada a uma memria entre duas pginas, nem numa floresta que no ultrapassa um vaso de barro. Liberta-se assim, quase selvaticamente, Caeiro da influncia de Cesrio Verde, o seu modelo de poeta buclico. Cesrio tinha aberto as portas ao modernismo, mas os modernistas consumiam o passado em chamas para abrir o futuro. 15. IV Esta tarde a trovoada caiu Pelas encostas do cu abaixo Como um pedregulho enorme... Como algum que duma janela alta Sacode uma toalha de mesa, E as migalhas, por carem todas juntas, Fazem algum barulho ao cair, A chuva chovia do cu E enegreceu os caminhos... Quando os relmpagos sacudiam o ar E abanavam o espao Como uma grande cabea que diz que no, No sei porqu eu no tinha medo pus-me a rezar a Santa Brbara Como se eu fosse a velha tia de algum... Ah! que rezando a Santa Brbara Eu sentia-me ainda mais simples Do que julgo que sou... Sentia-me familiar e caseiro E tendo passado a vida Tranquilamente, como o muro do quintal; Tendo ideias e sentimentos por os ter Como uma flor tem perfume e cor... Sentia-me algum que possa acreditar em Santa Brbara... Ah, poder crer em Santa Brbara! (Quem cr que h Santa Brbara, Julgar que ela gente e visvel Ou que julgar dela?) (Que artifcio! Que sabem As flores, as rvores, os rebanhos, De Santa Brbara?... Um ramo de rvore, Se pensasse, nunca podia Construir santos nem anjos... Poderia julgar que o sol Deus, e que a trovoada uma quantidade de gente Zangada por cima de ns... Ali, como os mais simples dos homens So doentes e confusos e estpidos Ao p da clara simplicidade E sade em existir Das rvores e das plantas!) E eu, pensando em tudo isto, Fiquei outra vez menos feliz... Fiquei sombrio e adoecido e soturno Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaa E nem sequer de noite chega. 10-5-1914Eis o real comeo do Guardador de Rebanhos. No poema I Caeiro definiu-se. No poema II definiu o modo como encarava a realidade, estabelecendo a sua posio anti-metafsica meditativa. No poema III ele libertou-se das suas influncias literrias, que poderiam poluir a sua escrita, se entrasse pela imitao dos seus modelos. 16. evidente a primeira quebra no texto que at agora tinha uma estranha continuidade. Caeiro vira subitamente a sua ateno para o exterior, finalmente para o exterior, que ele quer conquistar com a sua no-filosofia. Comea enfim a falar da realidade, do mundo que ele capta agora s pelas sensaes. E o tema que inicia o seu relato do mundo no poderia ser mais Pessoano. to cndida esta escolha que nos emociona ao revel-la no contexto da nossa anlise. Como se a criana realmente subisse agora janela, tal janela onde antes Caeiro adulto lia Cesrio Verde, e visse a natureza no seu esplendor inicial, no seu deslumbramento. Isto porque Caeiro escolhe a trovoada como seu tema de abertura. De toda a natureza, de todos os fenmenos naturais, ele escolhe aquele que mais fascinava e aterrorizava Fernando Pessoa28. A primeira parte da sua descrio traz laivos de paganismo latente. Pois ele diz: Esta tarde a trovoada caiu / Pelas encostas do cu abaixo () Como algum que duma janela alta / Sacode uma toalha de mesa, / E as migalhas, por carem todas juntas, / Fazem algum barulho ao cair. A metfora simples e infantil sugere presenas divinas por detrs dos fenmenos naturais. Embora divinas tm hbitos humanos Caeiro tr-las do infinito para o familiar da compreenso simples de um pastor. afinal tambm isto o paganismo, o aproximar as divindades de quem as reverencia. Continua esta aproximao nos versos seguintes. Os relmpagos sacudiam o ar () Como uma grande cabea que diz que no. Caeiro diz no ter tido medo, mas mesmo assim achou-se a rezar a Santa Brbara, a santa protectora contra as trovoadas, cujo dia curiosamente tambm um 4, de Dezembro. Mas ele diz que no tinha medo. Eis novo fingimento. Afinal, se ele tivesse medo se fosse como o Fernando Pessoa que sentido faria ele apelar a ser como a Natureza? No se pode temer o que nosso semelhante. Por isso Caeiro no teme as trovoadas, deixando esse medo para o Fernando Pessoa. E se Caeiro reza explica para se sentir ainda mais simples. () ainda mais simples / Do que julgo que sou. Repare-se no julgo que sou. como se Caeiro soubesse claramente que est a passar por um processo, em que vai abandonando a complexidade que ainda tem nele. O medo tambm uma complexidade, que torna nebulosa a compreenso da realidade29. Afinal o pastor (a alma de pastor) no se sentia verdadeiramente simples, como suspeitvamos inicialmente30. Lentamente essa simplicidade ter de ser alcanada, com esforo, com dedicao, com o eliminar dos medos, do sofrimento, da vida. Rezar a Santa Brbara ser ento mais simples, mais comum. o que o pastor faria, se visse uma tempestade aproximar-se do seu rebanho. A um intelectual o apelo religioso pareceria ridculo, mera superstio. No a Caeiro. No se Caeiro escolhe deliberadamente ser simples. ainda um fingimento? Talvez. Mas ento seria sempre um fingimento escolher sair da vida de todos os dias em busca do conhecimento interior. impossvel a vida de um monge, de um asceta, de um budista? A beleza desta misso porque uma misso de que se trata em que Caeiro embarca a continua superao dos nossos limites, mas desta vez de uma perspectiva negativa. Ser possvel a uma alma supremamente intelectual, racional, civilizada, despir-se dos seus vcios, das suas fraquezas e Fernando Pessoa aparentemente tinha um medo horrvel das trovoadas. Mais especificamente dos relmpagos como contou a sua irm Henriqueta Dias em entrevista ao Jornal de Letras em 1985. Conta Almada Negreiros que certo dia, no Martinho da Arcada, caf retiro do poeta, estava ele sentado mesa com Pessoa quando rebenta subitamente tremenda e memorvel tempestade. O Terreiro do Pao ficou logo ligado ao Tejo. Chuva () relmpagos, troves, um no parar. No me contive e vim porta. () Quando voltei mesa ele no estava. Mas estava um p debaixo da mesa. Puxei-o. Plido como defunto transparente. Levantei-o. Inerte seno morto. Pus-lhe os gestos de sentar-se e apoiar-se de corpo sobre a pedra da mesa (citado em Antnio Quadros, Fernando Pessoa, vida, personalidade e gnio, D. Quixote, pg. 97). O prprio Fernando Pessoa, em carta ao amigo Mrio Beiro, qualifica o seu medo das trovoadas como uma terrivelmente torturadora fobia (Cf. Fernando Pessoa, Escritos ntimos, cartas e pginas autobiogrficas, Europa-Amrica, pg. 75). 29 Aqui o medo como o sofrimento no budismo. 30 A figura do pastor, que ter impressionado Pessoa pela simplicidade, ter sido, dizem alguns, uma influncia de uma leitura de juventude o poema The Shepherdess de Alice Meynell. A primeira liga~o destes dois poemas foi feita logo em 1939 por Charles David Ley (V. George Monteiro, Alberto Caeiro and the Poetic Fallacy in Pessoas Alberto Caeiro, pg. 67). 28 17. comodidades, para achar um estado de esprito pacfico, a alma de pastor? possvel a um ocidental cnico, cptico, citadino, moderno, adequar-se a uma realidade menor? Caeiro acredita firmemente que sim. Basta ver o que ele faz de seguida. Depois de rezar a Santa Brbara ele diz: Sentia-me algum capaz de acreditar em Santa Brbara / Ah, poder crer em Santa Brbara!. (Quem cr em Santa Brbara, / Julgar que ela gente visvel / Ou que julgar dela?). incrvel que Caeiro em cinco versos decisivos se transfigure novamente. Se antes ele rezava para ser mais simples, ele agora, depois de rezar, duvida at da crena simples na Santa. Como se num s passo o fingimento de Caeiro o levasse mais uma vez para alm da simplicidade do modelo que ele procura. J o fizera antes com Cesrio Verde, f-lo novamente com o simples pastor que reza perante a tempestade que se aproxima. A realidade que nem a Santa Brbara existe. Existe apenas a Natureza. Depois do raciocnio, depois da crena, h o estrato duro da realidade natural. Caeiro confirma isso mesmo, dolorosamente: (Que artificio! Que sabem / As flores, as rvores, os rebanhos, / De Santa Brbara?... Um ramo de rvore / Se pensasse nunca podia / Construir santos nem anjos. Antes era-lhe difcil sair do seu fingimento e rezar. Agora -lhe difcil sair da realidade natural que assume ser a sua e rezar. Pessoa cai lentamente do seu cu de certezas racionais e assume-se como Caeiro, um cultor na Natureza, heterodoxo, convicto, inamovvel. Ah, como os mais simples dos homens / So doentes e confusos e estpidos / Ao p da clara simplicidade / E sade em existir / Das rvores e das plantas!, diz Caeiro de seguida. Devemos fazer uma pausa repentina. Julga-se Caeiro como as rvores e as plantas? Talvez levado pela sua epifania moment}nea O seu exagero evidente, porque nasce de uma an|lise. por ver o erro dos outros que ele deixa de ser seu semelhante. Caeiro est| a pensar Pessoa v isso mesmo e corrige rapidamente: () pensando em tudo isto, / Fiquei outra vez menos feliz. Como se Caeiro se castigasse a si mesmo pela sua febril arrancada. Comea a ter noo de como difcil manter o que os budistas chamam via do meio. Tambm Buda lutou por atingir o conhecimento reduzindo demasiado o mundo em seu redor em erro achou que o ascetismo total, a privao mesmo do que era essencial seria a resposta s suas dificuldades. Mas o erro quase lhe custava a morte. Ele viu mais tarde que a resposta no teria de ser to extrema, mas antes um caminho de compromisso, em que a realidade ainda era aceite, e ele nela, como veculo de uma nova descoberta. Caeiro quer ser natural, quer ser como a Natureza. Mas ele sabe agora que no pode ser s a Natureza. Ele ainda e ser sempre homem. tambm como homem, como ser vivo, que ele dever achar o seu lugar na Natureza. Se procurar a sua prpria completa anulao, nunca poder fazer parte de algo maior do que ele mesmo. Ficar no limbo, sombrio e adoecido e soturno / Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaa / E nem sequer de noite chega. 18. V H metafsica bastante em no pensar em nada. O que penso eu do mundo? Sei l o que penso do mundo! Se eu adoecesse pensaria nisso. Que ideia tenho eu das coisas? Que opinio tenho sobre as causas e os efeitos? Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma E sobre a criao do Mundo? No sei. Para mim pensar nisso fechar os olhos E no pensar. correr as cortinas Da minha janela (mas ela no tem cortinas). O mistrio das coisas? Sei l o que mistrio! O nico mistrio haver quem pense no mistrio. Quem est ao sol e fecha os olhos, Comea a no saber o que o sol E a pensar muitas coisas cheias de calor. Mas abre os olhos e v o sol, E j no pode pensar em nada, Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos De todos os filsofos e de todos os poetas. A luz do sol no sabe o que faz E por isso no erra e comum e boa. Metafsica? Que metafsica tm aquelas rvores? A de serem verdes e copadas e de terem ramos E a de dar fruto na sua hora, o que no nos faz pensar, A ns, que no sabemos dar por elas. Mas que melhor metafsica que a delas, Que a de no saber para que vivem Nem saber que o no sabem? Constituio ntima das coisas... Sentido ntimo do Universo... Tudo isto falso, tudo isto no quer dizer nada. incrvel que se possa pensar em coisas dessas. como pensar em razes e fins Quando o comeo da manh est raiando, e pelos lados das rvores Um vago ouro lustroso vai perdendo a escurido. Pensar no sentido ntimo das coisas acrescentado, como pensar na sade Ou levar um copo gua das fontes. O nico sentido ntimo das coisas elas no terem sentido ntimo nenhum. No acredito em Deus porque nunca o vi. Se ele quisesse que eu acreditasse nele, Sem dvida que viria falar comigo E entraria pela minha porta dentro Dizendo-me, Aqui estou! (Isto talvez ridculo aos ouvidos De quem, por no saber o que olhar para as coisas, No compreende quem fala delas Com o modo de falar que reparar para elas ensina.) Mas se Deus as flores e as rvores E os montes e sol e o luar, Ento acredito nele, Ento acredito nele a toda a hora, 19. E a minha vida toda uma orao e uma missa, E uma comunho com os olhos e pelos ouvidos. Mas se Deus as rvores e as flores E os montes e o luar e o sol, Para que lhe chamo eu Deus? Chamo-lhe flores e rvores e montes e sol e luar; Porque, se ele se fez, para eu o ver, Sol e luar e flores e rvores e montes, Se ele me aparece como sendo rvores e montes E luar e sol e flores, que ele quer que eu o conhea Como rvores e montes e flores e luar e sol. E por isso eu obedeo-lhe, (Que mais sei eu de Deus que Deus de si prprio?), Obedeo-lhe a viver, espontaneamente, Como quem abre os olhos e v, E chamo-lhe luar e sol e flores e rvores e montes, E amo-o sem pensar nele, E penso-o vendo e ouvindo, E ando com ele a toda a hora. 10-5-1914Depois de cair no erro de se pensar superior a todos os homens, considerando-se semelhante s rvores e s plantas, Caeiro recua31. A anlise que ele levou a cabo no fim do poema IV deixou-o numa encruzilhada. Para saber que semelhante Natureza ele tem de pensar nos erros dos homens, como por exemplo o erro de rezar a Santa Brbara quando h trovoada. Mas isso para Caeiro metafsico. Em rigor, para Caeiro metafsica tudo o que vai alm das sensaes imediatas. O simples acto de pensar ento metafsico. Trata-se, como bvio, de uma interpretao muito estreita desta actividade humana bsica. No entanto Caeiro tem de tomar uma deciso. Tem de decidir se pode viver as suas convices sem pensar nelas. Ele decide que sim. Isto porque h metafsica bastante em no pensar em nada32. Trata-se de uma declarao paradoxal. Por um lado Caeiro quer livrar-se da metafsica, do acto racional, da anlise pelo pensamento. Por outro lado ele precisa da metafsica, mesmo que a um nvel superficial, para avanar na sua misso de abandonar a realidade33. Como o Buda analisa o seu sofrimento, ele tem de o viver para se curar. A partir de agora a metafsica, o pensamento, vai servir-lhe apenas para ele se livrar da sua necessidade. Tal como Buda usa a conscincia do seu prprio sofrimento para se curar dele. S que Buda usa a meditao, Caeiro usa a tristeza. A negatividade segue-se, numa catadupa de declaraes que ficam quase sem resposta concreta. O que penso eu do Mundo?; que ideia tenho eu das coisas? / Que opinio tenho sobre as coisas e os efeitos? / Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma / E sobre a criao do Mundo?Recua e simultaneamente avana, saindo do animismo e humanizao da Natureza que, como vamos ver mais frente, ele considera ser uma atitude clssica dos msticos, como Teixeira de Pascoaes. (V. a este respeito Cecilia Pinheiro, Op. Cit., pg. 87). o princpio tambm do percurso interior de Caeiro. 32 Sobre o significado da metafsica em Caeiro ver: Ken Krabbenhoft, Fernando Pessoas Metaphysics and Alberto Caeiro e companhia in Pessoas Alberto Caeiro, pg. 73 e segs.). 33 Tambm Brbara Ferraz acha este paradoxo no seu interessante ensaio H metafsica bastante em estar espera de Godot, no qual analisa o poema V luz do teatro do absurdo de Samuel Beckett. Curiosa ligao de seguida se pode fazer, atravs do paradoxo, com a filosofia de Kierkegaard, que defendia que sem paradoxo no podia haver f. A verdadeira f no se entende, muito menos se define. Por isso pode at defender-se que Caeiro, deixando de lado qualquer compreenso do divino, chega compreenso do divino que impossvel a todos os outros que buscam essa compreenso (Cf. Cludio Carvalhaes, Kierkegaard, poeta do desconhecido, pg. 11 e segs.). 31 20. Caeiro diz no saber34. Pensar nisso estar doente. Se para Scrates a vida uma doena que termina com a morte, para Caeiro a doena o pensamento, que termina com a rendio ao destino e Natureza. Caeiro prefere no ver os significados e faz dessa escolha consciente a sua vontade. Trata-se de uma deciso a um nvel ontolgico que o liberta de certo modo dos compromissos que enredam todos os outros homens no mundo. Se Caeiro no se livra da condenao a viver de Sartre, a sua pena ser cumprida no vazio de significados, por sua livre escolha. Resta saber se a sua fora a bastante para esta misso. O mantra continua e Caeiro pretende reforar a sua convico, de que as sensaes so suficientes, que no necessrio o raciocnio35. Alis, no ser s Caeiro a indicar que a busca do conhecimento um percurso doloroso para o homem, que muitas das vezes est descontente com a falta de respostas. O mistrio das coisas?, Caeiro rejeita-o. Para qu pensar no mistrio das coisas se nunca vamos ter uma resposta que nos satisfaa? Sendo assim, o mistrio haver quem pense no mistrio. Devemos perder-nos na inconscincia das coisas, como os animais, as plantas e as rvores. Est a uma felicidade, mesmo que pobre, que a felicidade que existe em no pensar. Quem est ao sol e fecha os olhos / Comea a no saber o que o Sol. De onde vem esta energia para a reduo? Apetece perguntar. Pensamos que da desiluso. 1914, o ano que nasce Caeiro provavelmente o ano da dissoluo do eu de Pessoa36. No seu dirio ele escreve: Cada vez estou mais s, mais abandonado. Pouco a pouco quebram-se-me todos os laos. Em breve estarei sozinho 37. Mais frente ele fala de como lhe difcil esquecer a sua presena metafsica na vida. A criao do personagem Caeiro pode ser um passo decisivo na direco do apagamento da prpria personalidade de Fernando Pessoa, que progressivamente se vinha protegendo das ameaas exteriores sua delicada personalidade. Este fenmeno psicolgico, que evitaria que ele procurasse outras solues mais imediatas e radicais, como o suicdio, ou entrasse numa mais profunda depresso, viria a gerar grande actividade literria, precisamente a partir de 1914-1915, at ao ano da sua morte em 1935. Se por um lado Pessoa sobrevive, custa de se anular a si mesmo. Nunca mais ele vai ser o mesmo, transfigurando-se progressivamente para as personagens que cria para partilharem o seu sofrimento. Apenas num momento h esperana de um regresso, em 1920, quando ele conhece Ophlia, mas porventura tarde de mais, e Ophlia instrumento demasiado dbil para to monstruosa tarefa. Por detrs de um elaborado plano h sempre um simples objectivo. No caso de Pessoa/Caeiro, o objectivo evitar mais desiluses. Caeiro o primeiro passo na certeza que Pessoa busca para si mesmo. Certeza que o protege da morte, substituto frio mas til do amor que perdeu da sua me. Catarina Pedroso de Lima v na ausncia de respostas e na impacincia de Caeiro um sinal de uma posio antiessencialista e pragmtica (V. Catarina Pedroso de Lima, Rorty em Caeiro: Uma aprendizagem de desaprender in Pessoas Alberto Caeiro, pg. 87 e segs.). 35 Rosana Santos indica que, em paralelo, as sensaes competem em realismo com as |rvores imaginadas pelo poeta. Tal intuio confirma o que pensamos que Pessoa procura a consistncia da vida real na sua vida interior. Eis como ento Pessoa caminhava firmemente em direco ao homo poeticus em que se pretendia tornar, invocando pela imaginao um completo e original novo sentido do real. (Cf. Rosana Santos, A fenomenologia da imaginao na palavra de Alberto Caeiro e Manoel de Barros in IV Congresso Internacional da Associao Portuguesa de Literatura Comparada). 36 Para sermos mais exactos, pensamos que a desconstruo de Pessoa vem j desde a sua mais tenra juventude provavelmente desde que ele chega frica do Sul (Leia-se s este pedao de lvaro de Campos para perceber isso:Outra vez te revejo / Cidade da minha infncia pavorosamente perdida / Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui / Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei, / E aqui tornei a voltar, e a voltar. / E aqui de novo tornei a voltar? / Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram, / Uma srie de contas-entes ligadas por um fio memria, / Uma srie de sonhos de mim de algum fora de mim (in Lisbon Revisited, 1926). Pessoa divide-se em vrios para que a sua essncia seja preservada, ai que vai sempre residir a sua liberdade, que sempre de pensamento e no de aco. 1914 talvez o culminar de um processo tortuoso em que as opes do jovem Pessoa, de se refugiar no intelecto e na escrita, lhe permitem abrir novas portas sua prpria conscincia. Ele ser sempre algum que nunca aprendeu a viver, que usando as suas prprias palavras nunca aprendeu a esquecer-se da sua prpria presena metafsica. 37 Fernando Pessoa, Escritos ntimos, Cartas, Publicaes Europa-Amrica, pg. 45. 34 21. A luz do sol no sabe o que faz / E por isso no erra e comum e boa. Eis uma afirmao de criana, confirmando o que dissemos atrs. Quando no h pensar, no h incertezas, no h armadilhas. A Natureza no tem traies, no esconde a sua inteno. Os homens, por outro lado, escondem sempre as suas intenes, so perigosos e volteis. A atraco da Natureza a atraco da nulidade. Mas tambm um engano. A Natureza simples porque no sabe que simples. Caeiro ter de enfrentar este problema. Referindo-se s rvores, novamente s rvores, Caeiro diz: que melhor metafsica que a delas, / Que a de no saber para que vivem / Nem saber que o no sabem?. Caeiro est a ser ingnuo, ao pretender possuir de imediato opostos que ele sabe anularem-se de imediato quando reunidos. Viver e no saber que se vive ser um objectivo realmente possvel? O falso pastor debate-se com os significados que ainda o assombram. Expresses que no cabem na boca de quem tem apenas a instruo primria: Constituio ntima das coisas e sentido ntimo do Universo. Pessoa que fala38. Pessoa que ainda no se consegue libertar da sua parte racional, justificando-se pela anlise. Pensar no sentido ntimo das coisas. No acredito em Deus porque nunca o vi. H inequivocamente um sentimento de algum que est perdido, que est procura de solues, de sadas da sua confuso mental. Algum que continua a errar na anlise, algum que ainda insiste em pensar. A nica soluo mais frente Caeiro sabe isto melhor no trazer para esta longa meditao os conceitos que envenenam o pensamento simples, natural. Veja-se que Caeiro comea a insinuar isto mesmo quando diz: se Deus as rvores e as flores () chamo-lhe flores e rvores. O paganismo aqui serve de consolo ausncia do pensamento. Se Deus est em tudo, se Deus se identifica com a Natureza, porque h a necessidade de lhe chamar Deus? Chamemos-lhe apenas Natureza, ou nem isso, nem lhe chamemos nada, porque tudo a mesma coisa, e essa mesma coisa no tem significado, porque existe, porque . Ele quer que eu o conhea / Como rvores e montes e flores e luar e sol, conclui Caeiro. Ser natural ento tambm obedecer a Deus. Obedecer a Deus apenas viver, no crer, nem rezar, muito menos questionar. Deus afinal paz e amor39. Para Caeiro paz no pensar, amor ser semelhante a tudo o resto.De facto, ao longo de todo o Livro, Caeiro debate-se por existir. Isto porque ele uma ideia impossvel a unio de opostos. Tem alguma verdade a noo de alguns crticos que apontam Caeiro como sendo apenas uma ideia de Pessoa, um fingimento. Mas veremos a que ponto ele no passa a existir e a deixar Pessoa ele mesmo para trs, oco de significado, esvaziado de sentido, em favor da ideia-real-Caeiro 39 Por isso , quanto a ns, errado dizer que Caeiro reduz tudo ao demonaco, Terra, como insinua Nataneal Silva no seu artigo O divino e o demnico em O Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro. 38 22. VI Pensar em Deus desobedecer a Deus, Porque Deus quis que o no conhecssemos, Por isso se nos no mostrou... Sejamos simples e calmos, Como os regatos e as rvores, E Deus amar-nos- fazendo de ns Belos como as rvores e os regatos, E dar-nos- verdor na sua primavera, E um rio aonde ir ter quando acabemos!... 10-5-1914O paganismo em Caeiro reduz-se tambm ao essencial. Ser natural obedecer indirectamente a Deus. Deus no pode ser pensado, porque no existe fora da Natureza. Todo este pensamento faz parte de um objectivismo globalizante que Caeiro quer trazer para a compreenso da realidade. No questionar o princpio de entender, partindo da base que tudo porque , seno era de outra maneira qualquer. Deus quis que o no conhecssemos / Por isso se nos no mostrou. H aqui ainda um questionar uma dvida quando Caeiro no se fica pela primeira parte e acrescenta uma explicao. Mas j um ponto de partida, o estabelecer da desnecessria compreenso de tudo. Lembremos que o objectivo final de Caeiro ver tudo s com os olhos, no com a mente. Deus , logicamente, o primeiro objecto do conhecimento a ser desligado da razo humana, por ser aquele que est mais distante dela40. Parece agora que Caeiro verdadeiramente empreende um percurso intelectual, mesmo que negue a metafsica e o pensamento clssico cientfico, de anlise dos objectos do conhecimento sensvel. Mas no rigorosamente assim. Antes de mais, Caeiro usa a linguagem potica para compreender a realidade essencial do mundo, no para chegar a concluses sobre o seu significado imanente ou total. Depois, Caeiro desliga os objectos dos seus significados tradicionais, pretendendo analis-los tal como s~o. Isto leva a um rumo potencialmente original, se bem que falvel e perigoso, que se afasta de um percurso intelectual, ou racional, somente intuitivo. Sejamos simples e calmos o lema da nova teoria do conhecimento de Caeiro. tudo o que o homem moderno j no consegue ser. tudo o que Bernardo Soares no , nem lvaro de Campos. Nem muito menos Pessoa ele-mesmo. ser menos que todos eles. Desejar menos. H que questionar se na intuio de Caeiro no h ainda inteligncia41. Por enquanto h, ainda h, num alto grau, mesmo que dissimulado. Veremos mais frente se Caeiro consegue progressivamente desligar a inteligncia da intuio e dar-se completamente falta de significados, paz de uma mente vazia e contemplativa.Caeiro, na sua teoria do conhecimento, pretende a longo prazo desligar todos os objectos uns dos outros, pretendendo assim compreender a Natureza tal como ela , sem as mistificaes humanas. Outros poetas, como Whitman (ou Campos), procuravam um mtodo oposto, o de ligar caoticamente uns objectos aos outros, em busca desesperada do mesmo conhecimento. Caeiro renega por isso uma viso de totalidade, o que o impede de chegar a concluses. 41 V. Antnio Pina Coelho, Os Fundamentos Filosficos da obra de Fernando Pessoa, vol I, p. 329. 40 23. VII Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo... Por isso a minha aldeia to grande como outra terra qualquer Porque eu sou do tamanho do que vejo E no, do tamanho da minha altura... Nas cidades a vida mais pequena Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro. Na cidade as grandes casas fecham a vista chave, Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o cu, Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar, E tornam-nos pobres porque a nossa nica riqueza ver. 1914Vejamos como Caeiro agora embarca numa descrio que note-se a importncia disto muito menos racional, analtica e muito mais simples e calma. O seu princpio, depois de estabelecido, aplicado sua compreenso natural da realidade: Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo... 42 / Por isso a minha aldeia to grande como outra terra qualquer. A sua mente parece estar mais tranquila do que anteriormente. Esta afinal a mesma voz que no poema II considerava o no pensar a nica inocncia, mas que depois caa no erro de se achar semelhante s rvores (poema IV) ou de ainda pensar que h metafsica no silncio (poema V). A confuso que invadia a mente de Caeiro, confuso natural de quem empreende uma tal difcil misso a de despir as vestes racionais e emocionais que perfazem o ser humano social comea a desfazer-se lentamente. As suas concluses tm de ser como ele pretende ser, mais naturais, com menor uso da retrica e por isso mesmo mais objectivas, como uma descrio de uma paisagem que inclua em si mesma as suas razes de existir. Eu sou do tamanho do que vejo / E no do tamanho da minha altura j uma proeza de filosofia simples. Trata-se de uma anlise que no entanto no tem em essncia planos distintos de realidade, entre o dever-ser e o ser ou entre o que se v e o que se pode pensar. Trata-se fantasticamente de uma constatao. o mesmo homem de antes que a faz, mas um homem diferente, menor, mais depurado. A sua nova perspectiva d-lhe um poder de sntese sem paralelo. Ele no tem de querer ver mais longe do que a sua aldeia e a sua aldeia passa a ter tudo o que tem o resto do Universo. Para qu ir mais alm, ter ambies? um renovado despir dos desejos primordiais. Caeiro chega mesmo a uma singular descoberta: Nas cidades a vida mais pequena () as grandes casas fecham a vista chave () tornam-nos pequenos porque () porque a nossa nica riqueza ver. este o mesmo poeta buclico que antes questionava o sentido ntimo do Universo? Sim e no.Eis uma subtil metfora: Caeiro o poeta da realidade absoluta da terra (A. Quadros) v da sua aldeia (o seu domnio, a sua realidade), o que se pode do Universo vislumbrar da terra. Ou seja, sabe-se desde j limitado a viso da terra e Caeiro apenas o incio (embora um fim em si mesmo) de uma outra viagem maior, que o levar a passar por outros heternimosapeadeiros. (Cf. Antnio Quadros, Fernando Pessoa, vida, personalidade e gnio, D. Quixote, pg. 284 e segs.). Recordemos a este propsito uma passagem do Dirio, datada de 1914: Hoje, ao tomar de vez a deciso de ser Eu () reentrei de vez, de volta da minha viagem de impresses pelos outros. () A superioridade () de renncia e de silncio que se veste. () Um raio hoje deslumbrou-me de lucidez. Nasci. (V. Fernando Pessoa, Escritos ntimos, Europa-Amrica, pg. 47; tambm curiosa a leitura de Oct|vio Paz, que considera o ano de 1914 o do nascimento de Pessoa cf. Octvio Paz, Fernando Pessoa, o desconhecido de si mesmo, Vega, pg. 13). 42 24. Caeiro sabe agora que no precisa de se incomodar com o mundo, com o Universo. Apetece dizer que se h universo na rua dos Douradores43, h certamente universo na pequena aldeia onde ele vive, alto no seu outeiro Limitando o objecto do seu conhecimento ele limita o campo dos seus erros sobretudo o erro de desejar demasiado. Pessoa parece de novo interferir com a nossa anlise. Isto porque Pessoa o pensador, o filsofo frustrado, feito enorme poeta, que pretendia embarcar na sua compreenso todos os fenmenos humanos e divinos, sem nunca sair de Lisboa. Se o fazia, transfigurava o seu entusiasmo para Campos, era Campos a conduzir o Chevrolet a Sintra, a lembrar a viagem distante de barco ou a tomar o comboio que tardava sempre e no partia nunca44. Como que dizendo que no preciso sair de um quarto para desvendar todo o Universo, Pessoa reafirma em Caeiro que faz das suas horrendas fraquezas, foras descomunais. Alm do mais, a simplicidade encerra todos os significados fora de si. Fora de si para que eles sejam apenas vistos ao longe e no analisados de perto. O poder da viso das coisas advm de nos alhearmos delas, pondo entre elas e ns a suficiente distncia, razovel perspectiva. Ficamos mais pobres certo, desejando menos, possuindo quase nada, mas ganhamos o resto, a iseno, a calma e a paz de quem s v e no o que v. As semelhanas com a via budista s~o evidentes. A aldeia de Caeiro a mente vazia de Buda. Caeiro renega a cidade como Buda renega as riquezas da sua famlia pelo frio da floresta, do alheamento. A cidade tem demasiadas riquezas, o mesmo dizer demasiadas distraces para a mente de quem quer apenas ver.Mas enfim, tambm h Universo na Rua dos Douradores. Tambm aqui Deus concede que no falte o enigma de viver (in Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, 1. parte, Europa-Amrica, pg. 318). 44 V. Fernando Pessoa, Poesias de lvaro de Campos, Europa-Amrica, pgs. 117-118. 43 25. VIII Num meio-dia de fim de primavera Tive um sonho como uma fotografia. Vi Jesus Cristo descer terra. Veio pela encosta de um monte Tornado outra vez menino, A correr e a rolar-se pela erva E a arrancar flores para as deitar fora E a rir de modo a ouvir-se de longe. Tinha fugido do cu. Era nosso demais para fingir De segunda pessoa da Trindade. No cu era tudo falso, tudo em desacordo Com flores e rvores e pedras. No cu tinha que estar sempre srio E de vez em quando de se tornar outra vez homem E subir para a cruz, e estar sempre a morrer Com uma coroa toda roda de espinhos E os ps espetados por um prego com cabea, E at com um trapo roda da cintura Como os pretos nas ilustraes. Nem sequer o deixavam ter pai e me Como as outras crianas. O seu pai era duas pessoas... Um velho chamado Jos, que era carpinteiro, E que no era pai dele; E o outro pai era uma pomba estpida, A nica pomba feia do mundo Porque no era do mundo nem era pomba. E a sua me no tinha amado antes de o ter. No era mulher: era uma mala Em que ele tinha vindo do cu. E queriam que ele, que s nascera da me, E nunca tivera pai para amar com respeito, Pregasse a bondade e a justia! Um dia que Deus estava a dormir E o Esprito Santo andava a voar, Ele foi caixa dos milagres e roubou trs. Com o primeiro fez que ningum soubesse que ele tinha fugido. Com o segundo criou-se eternamente humano e menino. Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz E deixou-o pregado na cruz que h no cu E serve de modelo s outras. Depois fugiu para o sol E desceu pelo primeiro raio que apanhou. Hoje vive na minha aldeia comigo. uma criana bonita de riso e natural. Limpa o nariz ao brao direito, Chapinha nas poas de gua, Colhe as flores e gosta delas e esquece-as. Atira pedras aos burros, Rouba a fruta dos pomares E foge a chorar e a gritar dos ces. E, porque sabe que elas no gostam E que toda a gente acha graa, Corre atrs das raparigas Que vo em ranchos pelas estradas Com as bilhas s cabeas E levanta-lhes as saias. 26. A mim ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que h nas flores. Mostra-me como as pedras so engraadas Quando a gente as tem na mo E olha devagar para elas. Diz-me muito mal de Deus. Diz que ele um velho estpido e doente, Sempre a escarrar no cho E a dizer indecncias. A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia. E o Esprito Santo coa-se com o bico E empoleira-se nas cadeiras e suja-as. Tudo no cu estpido como a Igreja Catlica. Diz-me que Deus no percebe nada Das coisas que criou Se que ele as criou, do que duvido Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glria Mas os seres no cantam nada. Se cantassem seriam cantores. Os seres existem e mais nada, E por isso se chamam seres. E depois, cansado de dizer mal de Deus, O Menino Jesus adormece nos meus braos E eu levo-o ao colo para casa. Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro. Ele a Eterna Criana, o deus que faltava. Ele o humano que natural, Ele o divino que sorri e que brinca. E por isso que eu sei com toda a certeza Que ele o Menino Jesus verdadeiro. E a criana to humana que divina esta minha quotidiana vida de poeta, E porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre, E que o meu mnimo olhar Me enche de sensao, E o mais pequeno som, seja do que for, Parece falar comigo. A Criana Nova que habita onde vivo D-me uma mo a mim E a outra a tudo que existe E assim vamos os trs pelo caminho que houver, Saltando e cantando e rindo E gozando o nosso segredo comum Que o de saber por toda a parte Que no h mistrio no mundo E que tudo vale a pena. A Criana Eterna acompanha-me sempre. A direco do meu olhar o seu dedo apontando. O meu ouvido atento alegremente a todos os sons So as ccegas que ele me faz, brincando, nas orelhas. Damo-nos to bem um com o outro Na companhia de tudo Que nunca pensamos um no outro, Mas vivemos juntos e dois Com um acordo ntimo Como a mo direita e a esquerda. Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas No degrau da porta de casa, 27. Graves como convm a um deus e a um poeta, E como se cada pedra Fosse todo um universo E fosse por isso um grande perigo para ela Deix-la cair no cho. Depois eu conto-lhe histrias das coisas s dos homens E ele sorri, porque tudo incrvel. Ri dos reis e dos que no so reis, E tem pena de ouvir falar das guerras, E dos comrcios, e dos navios Que ficam fumo no ar dos altos-mares. Porque ele sabe que tudo isso falta quela verdade Que uma flor tem ao florescer E que anda com a luz do sol A variar os montes e os vales E a fazer doer aos olhos os muros caiados. Depois ele adormece e eu deito-o. Levo-o ao colo para dentro de casa E deito-o, despindo-o lentamente E como seguindo um ritual muito limpo E todo materno at ele estar nu. Ele dorme dentro da minha alma E s vezes acorda de noite E brinca com os meus sonhos. Vira uns de pernas para o ar, Pe uns em cima dos outros E bate as palmas sozinho Sorrindo para o meu sono. Quando eu morrer, filhinho, Seja eu a criana, o mais pequeno. Pega-me tu ao colo E leva-me para dentro da tua casa. Despe o meu ser cansado e humano E deita-me na tua cama. E conta-me histrias, caso eu acorde, Para eu tornar a adormecer. E d-me sonhos teus para eu brincar At que nasa qualquer dia Que tu sabes qual . Esta a histria do meu Menino Jesus. Por que razo que se perceba No h-de ser ela mais verdadeira Que tudo quanto os filsofos pensam E tudo quanto as religies ensinam? 1914Publicado na revista Presena em Janeiro de 1931 45, o poema VIII do Guardador de Rebanhos porventura o mais polmico de todo o livro, por tocar em matrias fundadoras da religio crist46.Mais precisamente foi publicado com o ttulo "O oitavo poema de O Guardador de Rebanhos", na revista Presena, Coimbra, vol. II (30), Jan.-Fev., 1931, pgs. 6-7. 46 Qual a raiz deste poema violento? Todos conhecem o desdm de Pessoa pelas igrejas organizadas, que provavelmente comeou quando frequentou o colgio de freiras em Durban. Alberto Ferreira indica ainda, como acrscimo, a viso de Campos sobre a origem deste poema quando recorda as palavras do Mestre: Lembro-me perfeitamente de como escrevi esse poema. O Padre B... tinha estado l em casa a falar com a minha tia e esteve a dizer tantas coisas que me irritaram que eu escrevi o poema para respirar. Para este poema podia Pessoa tambm ter encontrado inspirao no poema satrico A Velhice do Padre Eterno, de Guerra Junqueiro. (Cf. Op. cit., pg. 9). 45 28. Trata-se, o que bvio numa primeira leitura, de uma nova quebra na continuidade do texto, quando comparado com os poemas anteriores. , ao que nos parece, agora uma quebra propositada, intencional, para que o leitor sinta a gravidade do que Caeiro vai agora dizer. Lembremos que Caeiro est numa misso longa e dolorosa, misso durante a qual ele vai lutar para se livrar progressivamente dos males que nublam a sua vis~o natural das coisas. A sua viso simples, sensacionista, de poeta da Natureza, vai requerer que ele declare a sua posio sobre uma variedade de temas. Vemos que ele abarcou j e apenas este o oitavo poema de quarenta e nove temas complicadssimos: as bases da ontologia (quem ele ), da gnosiologia (o que ele pretende conhecer), elaborou o princpio de uma nova teoria do conhecimento, aceitou o paganismo e recusou a metafsica. Como um homem rico que despe as suas roupas, num processo asctico de conhecimento, Caeiro despe-se de tudo o que envenena a sua viso47. No poema VIII chega a vez da Trindade crist, Pai (Deus), Filho (Jesus) e Esprito Santo. No h nada mais simblico da f crist do que esta cruz sagrada, principio, meio e fim da f. Deus o bastio da crena, o repositrio da identidade humana. Jesus o intermedirio humano dessa f, que traz a compreenso de Deus e dos seus desgnios. O Esprito Santo o instrumento dessa f no mundo material. Como o Deus nico ao vir destruiu o panteo dos deuses pagos, substituindo-os pela unidade, o inverso tambm pode ocorrer. Para esse fim, Caeiro vai desmantelar a unidade do Deus nico, quebrando os seus elementos constituintes para criar o paganismo, a multiplicidade. Por isso Caeiro escolhe a Trindade. Porque se a Trindade se quebrar, a multiplicidade novamente substitui a unidade. Simbolicamente este tambm um regresso {s origens48. A substituio de uma crena racional, apoiada numa vasta teologia, por uma crena natural, quase infantil e lgica, sem apoios, intuitiva. como se o ser pensante, crente no Deus nico da modernidade, deixasse de pensar e regressasse ao ponto de partida original, vazio, despido, sozinho. Como comea Caeiro a desagregar a Trindade nos seus elementos constituintes? Num sonho. Porqu num sonho? Na antiguidade, antes sequer de existirem religies organizadas, j os xams em sonhos encontravam caminhos para o divino, interpretando simblicas representaes da Natureza. Caeiro funda o novo paganismo. E funda-o num sonho, como um profeta ou xam. Ele v Jesus descer dos cus, cair da Trindade. V-o menino, porque infantil, ainda sem a vida negra de pregador, antes de ele virar as mesas dos cambistas no Templo, antes de clamar pelo pai na cruz, no estertor final. o menino Jesus que desce dos cus e o menino Jesus ainda Jesus, mas o Jesus infantil, criana, no o Jesus homem, envenenado pela sociedade. esse Jesus que foge do cu. Veja-se como caricata e divertida a imagem, se bem que necessariamente polmica, mesmo hertica. A candura conquista-nos hoje, mas decerto iria chocar um leitor dos anos 30. A chave do poema segue-se: Tinha fugido do cu. / Era nosso demais para fingir / De segunda pessoa na Trindade. Afastar a religio tambm afastar-se da gerao de poetas simbolistas (impregnados de misticismo e religiosidade) em direco a uma modernidade na poesia. H pois uma utilidade funcional neste poema, que, como bem indica Carlo Vittorio Cattaneo no blasfemo e de mau gosto, antes motivado pelos princpios bsicos do Neopaganismo, tal como foram anunciados pelo heternimo Antnio Mora (Cf. Carlo Cattaneo, Um poema blasfemo de Fernando Pessoa in Colquio Letras, n. 50, Julho de 1979, pgs. 9-21). 48 E, tal como se quebra a unidade da religio crist, voltando ao paganismo, tambm se inverte a noo de natureza que advinha de Plato e que acompanhava essa mesma viso religiosa o dualismo ideal/real. Veja-se que a viso do mundo invertida, e agora residem na Terra e no no Cu, as ideias, os modelos iniciais do conhecimento. Por isso Caeiro pode ser entendido como antiplatnico (Cf. Mrio Queiroz, Op. cit., pg. 63). 47 29. Porque foge ele? Porque no cu era tudo falso, tudo em desacordo / Com flores e rvores e pedras. No podia ser menino, sincero. No cu tinha de estar sempre srio / E de vez em quando de se tornar outra vez homem / E subir para a cruz, e estar sempre a morrer / Com uma coroa toda roda de espinhos. Caeiro lembra um Jesus humano, natural. Um Jesus pago, ou menos que isso, nem sequer divino, s criana que por azar do destino serviu de condutor a algo que o ultrapassava e ele nem sequer compreendia. Claro que Caeiro usa do choque para libertar Jesus da Trindade. Mas afinal a Igreja no usou tambm o fogo para se livrar do paganismo que encontrava? Este fogo de Caeiro desprende Jesus da cruz, desliga-o do Pai e do Esprito Santo e deixa-o cair Terra, dando-lhe um carcter de diabinho. Afinal ao menino Jesus nem sequer o deixavam ter pai ou me () o seu pai eram duas pessoas. Duas pessoas, Jos e o Esprito Santo (a pomba). A sua me, outra farsa, No era uma mulher: era uma mala / Em que ele tinha vindo do cu. O retrato de Caeiro cru e agressivo, mesmo desafiante. Mas ele quer com a sua linguagem simples e rude revelar a criana detrs do homem e o homem detrs do Salvador. De maneira dissimulada Caeiro quer que o leitor considere o ridculo que a proposta crist, em face da religio que ele prope, o paganismo. Para defesa do paganismo Caeiro elege Jesus ele-mesmo. Jesus que foge, porque se sente preso a uma misso sem sentido. Ele no o Salvador, apenas uma criana sem pai, com uma me estranha, e uma pomba estpida que o persegue. Jesus ele mesmo pago, porque recusa a sua prpria santidade. Jesus criou um Cristo eternamente na cruz () depois fugiu. Pessoa cria aqui um inteligente artifcio, dividindo o nome de Jesus Cristo em dois. Jesus quem foge e Cristo quem fica no cu49. Livrado da sua santidade, Jesus uma criana bonita de riso e natural. Faz tudo o que uma criana normal de aldeia deve fazer. Limpa o nariz, chapinha na gua, colhe flores e atira pedras, rouba fruta e persegue raparigas Caeiro imagina tudo o que a Bblia se esqueceu de contar. Imagina a infncia de Jesus, como uma criana normal, precisamente porque isso denota a sua falta de santidade50. Mas o paganismo de Caeiro no destinado destruio da religio crist, nem tem o intuito de chocar e ser puramente hertico. O seu paganismo quer reduzir, quer ainda Jesus, mas diferente, quer o Jesus menino, inocente, que vive a vida sem pensar na morte ou nos significados. Por isso Caeiro diz: a mim ensinou-me tudo / Ensinou-me a olhar para as coisas. Foi o menino Jesus que lhe ensinou simbolicamente claro. Ele considerou a figura de Jesus em criana e viu nela o modelo perfeito para aquilo em que ele prprio acreditava. A genialidade da intuio de Caeiro diz-lhe que se Jesus adulto pregava a semelhana e a irmandade de todos os homens, em criana pregaria a semelhana de todas as coisas. Deus vilipendiado. um velho estpido e doente / Sempre a escarrar no cho. A virgem Maria passa o tempo na costura e o Esprito Santo a coar-se com o bico O quadro realmente ridculo. Tudo no cu estpido como a Igreja Catlica, desabafa Caeiro pela voz do jovem Jesus.A palavra Cristo tem a sua origem na palavra grega Christos, que o equivalente da palavra Hebraica Messias. Ambas tm o mesmo significado: o consagrado ou o ungido. Trata-se por isso, no de um nome, mas de um ttulo cerimonial. Compreende-se ent~o que Caeiro deixe o ttulo no cu e desa { terra o nome. 50 Curiosamente a infncia a parte da vida de Jesus que omitida na Bblia. So relatados com grande pormenor a concepo e o nascimento de Jesus, mas h um hiato inexplicvel entre o nascimento em Belm (Lc, 2:1-7) e o aparecimento de Jesus adulto, com 30 anos, quando baptizado por Jos Baptista no rio Jordo (Mt, 3:15). 49 30. Jesus que, cansado de brincar e falar, adormece com uma sentena final: Os seres existem e mais nada / Por isso se chamam seres. Tambm ele est| cansado de pensar e quer apenas ser uma criana. Destruda a Trindade, Caeiro apropria-se de Jesus. Ele () o deus que faltava, diz Caeiro entusiasmado. Ele o humano que natural / Ele o divino que sorri e que brinca. Na verdade Caeiro pensa ter encontrado a inesperada (mas desejada) unio de opostos. Algum divino que no pensa (ainda) na sua divindade, algum adulto que (ainda) criana. um ser divino que no srio, que mltiplo como a Natureza que o acolhe, que como ela tem estaes no seu corao, que corre e cai, que se cansa e adormece. Mas de sbito E a criana to humana que divina / esta minha quotidiana vida de poeta. Caeiro assume finalmente que tudo uma alegoria, que afinal o menino Jesus est dentro de si, como inspirao e modelo. porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre. / E que o meu mnimo olhar / Me enche de sensao. como se a sua poesia se pudesse tornar ela mesma numa figura humana. E essa figura seria o menino Jesus. Uma criana divina, mas humana, conhecedora de tudo mas ignorante de possuir esse mesmo conhecimento, um impossvel encontro de opostos, uma sntese perfeita do ver e do conhecer. Sempre foi assim? No. Mais uma vez podemos confirmar que Caeiro procurava (e ainda procura) esta paz que v como perfeita. A poesia apenas a linguagem que ele utiliza na sua busca impossvel, porque a poesia a linguagem do inefvel. Este Jesus menino, esta Criana Nova, sinnimo para aquilo que cresce dentro de Caeiro e que similar a uma revelao, mesmo que ele a procure. Criana porque vis~o sempre nova da realidade, vis~o natural e inocente, sem os preconceitos de uma vida; Nova porque nasce agora, progressivamente, medida que Caeiro se transforma, que Caeiro se despe da racionalidade, como Buda se despira das riquezas e dos desejos. Este Jesus cado da cruz e do cu, tornado menino eterno , no entanto, ainda mediador. Mas no mediador como antes, entre Deus (seu pai) e os homens (o seu rebanho), mas sim entre a realidade e Caeiro. Por isso ele diz: A Criana Nova () d-me uma mo a mim / E a outra a tudo o que existe / E assim vamos os trs () gozando o nosso segredo comum / Que o saber () que no h mistrio no mundo. Deve reforar-se a import}ncia para Caeiro desta nova vis~o, desta Criana Nova que ele traz pela mo e que o auxilia a ver as coisas de uma nova perspectiva. A criana reside dentro dele, mas ele ainda vai ter de aprender a incorpor-la, sem ter de a referir como uma terceira pessoa entre ele e a realidade. Quando o conseguir fazer, ser o fim da sua misso e Caeiro ver por ele mesmo a simplicidade em todas as coisas. Ter| ent~o Caeiro olhos de criana e n~o uma Criana Nova em si. Caeiro quer iludir-se e negar esta diviso que persiste ainda nele. Nunca pensamos um no outro, diz Caeiro. Mas tambm diz: vivemos juntos e dois / Com um acordo intimo / Como a mo direita e a esquerda. E sabemos bem como por vezes a mo direita discorda da esquerda, mesmo parecendo ambas em comum acordo Nesta altura de certa maneira irrelevante a discusso desta diviso. O importante a realar que Caeiro sabe que a Criana Nova de sacramental import}ncia para o seu percurso de conhecimento. 31. Mas um sinal que existe ainda essa diviso evidente na referncia ao jogo das pedrinhas51. Caeiro sofre ainda o estigma dele ser um poeta e a sua criana um deus. Essa oposio mantm-se nos versos seguintes. Conto-lhe histrias das coisas s dos homens (), como se Caeiro no fosse ele mesmo um homem, mas um ermita, um asceta que, como Zaratustra, observa a humanidade desde a sua alta caverna, lanando sobre ela o seu juzo superior. O menino Jesus ri-se do que lhe conta Caeiro, porque Caeiro quer que a toda a realidade no tenha significado e isso lhe seja confirmado pela sua Criana Nova. Essa confirma~o leva-o a pensar mais uma vez a pensar que o mundo pode ser ignorado se virmos nela a sua intrnseca falta de significados. Na realidade esta anlise ao extremo racional, obsessiva, revelando ainda uma grande intranquilidade. Caeiro tem de pensar o mundo para o recusar e enquanto fizer isso no vai conseguir atingir a paz que tanto deseja. Depois ele adormece. Mais uma vez o menino Jesus sucumbe ao cansao de ouvir os problemas do mundo, contados por Caeiro. Levado para casa, despido e permanece silencioso no seu sono pacfico, de criana, no interior da mente do poeta buclico, apenas intervindo por vezes nos seus sonhos lcidos. Caeiro aceita-o como coisa estranha dentro de si 52. Que pena temos agora de Caeiro H dentro dele uma grande mgoa, que tambm uma luta interior. Quando eu morrer filhinho, / Seja eu a criana, o mais pequeno, diz ele amargurado. simultaneamente um desejo do regresso infncia (ao paraso perdido, usando uma expresso de Joo Gaspar Simes53) e uma esperana lanada para o futuro, para um futuro diferente em que Caeiro v a sua paz. curioso que o futuro encontra semelhanas com o passado, como se a paz de Caeiro se encontrasse realmente no exacto momento em que Pessoa perdeu a sua paz de menino da sua m~e. Caeiro tem de regressar ao passado de Pessoa para encontrar o seu futuro. Pega-me tu ao colo / E leva-me para dentro da tua casa. / Despe o meu ser cansado e humano / E deita-me na tua cama () para eu tornar a adormecer. Toda a tristeza se assume agora veculo de acesso verdade inicial. Caeiro est no seu estado meditativo, no seu transe medinico sem infinito, porque olha apenas para dentro de si mesmo. O que ele deseja? Deseja a inverso de papis. Que ele seja novamente o menino. O menino que alvo dos cuidados carinhosos, que esquece o sofrimento da vida e o cansao, para adormecer. Adormecer aqui quer dizer literalmente esquecer, limpar todo o sofrimento, atingir a paz. D-me sonhos teus para eu brincar / At que nasa qualquer dia / Que tu sabes qual , diz Caeiro para finalizar o seu desejo secreto. O renascimento ganha aqui um novo significado. Caeiro no quer renascer ou ressuscitar, como deseja Pessoa a D. Sebastio na Mensagem por exemplo, mas sim deseja o esquecimento, o despir de significados, o sair da vida para entrar na paz superior, de quem j no deseja mais do que ver e deixou j de ter de compreender. Como uma criana. Como uma criana que um adulto. esta a histria do meu Menino Jesus, diz Caeiro ironicame