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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 1 Poemas completos de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa) 1. BIOGRAFIA E BIBLIOGRAFIA Fernando António Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa, aos 13 de junho de 1888, no Largo de S. Car- los. Em 1893, morreu o pai, Joaquim Seabra Pessoa, vítima da tuberculose, que também levou seu irmão Jorge em janeiro do ano seguinte. Essas perdas pare- ce que transformam a infância do menino, causando- lhe uma profunda solidão e isolamento. Essa pode ter sido a razão de seu primeiro heterônimo, Chevalier de Pas, como confessou por carta, anos depois, a Adolfo Casais Monteiro. A mãe, d. Maria Magdalena Pinheiro Nogueira, casou-se em dezembro de 1895, por procuração, com o comandante João Miguel Rosa, nomeado cônsul português em Durban, África do Sul. Fernando Pes- soa tinha apenas sete anos em 1896, quando viajou com a mãe para o estrangeiro. Em novembro do mes- mo ano, nasceu a primeira filha do casal, Henrique- ta Madalena. Em 1898, nasceu Madalena Henriqueta. Fernando Pessoa foi matriculado, em 1899, na Durban High School, onde permaneceu por três anos. Revelou-se um leitor assíduo de literatura inglesa. Foi nessa época que surgiu mais um heterô- nimo: Alexander Search. Em 1900, nasceu o tercei- ro filho do casal, Luís Miguel. A solidão de Pessoa intensificava-se com a atenção da mãe para os fi- lhos mais novos. Em 1901, toda a família viajou para Lisboa, le- vando o corpo de uma das irmãzinhas morta. Depois foram encontrar-se com a família da mãe nos Açores. Em junho todos regressaram para Durban, exceto ele, que voltou sozinho em setembro. No mesmo ano, foi matriculado na Commercial School. Em novembro de 1903, completou seus estudos e fez exame de admissão para a universidade do Cabo da Boa Esperança. Apesar de ter obtido um resultado medíocre, recebeu o prêmio Queen Victoria Memori- al Prize pelo melhor ensaio de estilo inglês. Voltou à High School. Em 1905, regressou definitivamente para Lisboa. Em 1907, desistiu da faculdade, pois se sentia de- cepcionado, e decidiu estudar por conta própria, pas- sando o tempo livre a ler os filósofos gregos, ale- mães e os decadentistas franceses. Sua avó morreu em agosto, deixando-lhe uma herança. Resolveu mon- tar uma tipografia (Empresa Íbis – Tipografia Edito- ra – Oficinas a vapor) com uma parte do dinheiro, mas não chegou a realizar qualquer atividade. Traba- lhou como correspondente comercial em línguas es- trangeiras durante toda a vida, pouco se preocupando com dinheiro e passando mesmo grandes apertos fi- nanceiros. Em 1914, Fernando Pessoa teve o “primeiro encon- tro” com seus heterônimos Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, como confirmará alguns anos mais tarde em carta para Adolfo Casais Monteiro. Em 1915, preparou a primeira versão de seu livro Antinous. Em março, saiu o primeiro número da re- vista Orpheu, com colaborações importantes de Pes- soa. Em setembro, Mário de Sá-Carneiro voltou para Paris e comunicou ao amigo por carta que não tinha dinheiro para o terceiro número da revista por causa de suas dificuldades financeiras e dos problemas com o pai. No ano seguinte, Mário de Sá-Carneiro suici- dou-se. Em 1916, surgiu a revista Exílio, com a qual Pes- soa colaborou. Em 1920, conheceu Ophélia Queiroz, no escritó- rio de “Félix, Freitas e Valladas”. A partir daí passa- ram a se corresponder e a namorar. Depois da morte do padrasto, sua mãe e irmãos resolveram voltar para Lisboa, e o poeta passou a viver com a família. Em novembro, interrompeu o seu relacionamento com Ophélia com uma carta: Que isto de “outras afeições” e de “outros caminhos” é consigo, Ophelinha, e não comigo. O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existência a Ophelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que não per- mitem nem perdoam. Em 1921, Fernando Pessoa fundou a editora Oli- sipo, onde publicou seus poemas English poems I, English poems II, English poems III, e Invenção do dia claro, de Almada Negreiros. Em 1924, dirigiu a revista Athena com Ruy Vaz.

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Poemas completos de Alberto Caeiro(Fernando Pessoa)

1. BIOGRAFIA E BIBLIOGRAFIA

Fernando António Nogueira Pessoa nasceu emLisboa, aos 13 de junho de 1888, no Largo de S. Car-los. Em 1893, morreu o pai, Joaquim Seabra Pessoa,vítima da tuberculose, que também levou seu irmãoJorge em janeiro do ano seguinte. Essas perdas pare-ce que transformam a infância do menino, causando-lhe uma profunda solidão e isolamento. Essa pode tersido a razão de seu primeiro heterônimo, Chevalierde Pas, como confessou por carta, anos depois, aAdolfo Casais Monteiro.

A mãe, d. Maria Magdalena Pinheiro Nogueira,casou-se em dezembro de 1895, por procuração, como comandante João Miguel Rosa, nomeado cônsulportuguês em Durban, África do Sul. Fernando Pes-soa tinha apenas sete anos em 1896, quando viajoucom a mãe para o estrangeiro. Em novembro do mes-mo ano, nasceu a primeira filha do casal, Henrique-ta Madalena. Em 1898, nasceu MadalenaHenriqueta. Fernando Pessoa foi matriculado, em1899, na Durban High School, onde permaneceu portrês anos. Revelou-se um leitor assíduo de literaturainglesa. Foi nessa época que surgiu mais um heterô-nimo: Alexander Search. Em 1900, nasceu o tercei-ro filho do casal, Luís Miguel. A solidão de Pessoaintensificava-se com a atenção da mãe para os fi-lhos mais novos.

Em 1901, toda a família viajou para Lisboa, le-vando o corpo de uma das irmãzinhas morta. Depoisforam encontrar-se com a família da mãe nos Açores.Em junho todos regressaram para Durban, exceto ele,que voltou sozinho em setembro. No mesmo ano, foimatriculado na Commercial School.

Em novembro de 1903, completou seus estudos efez exame de admissão para a universidade do Caboda Boa Esperança. Apesar de ter obtido um resultadomedíocre, recebeu o prêmio Queen Victoria Memori-al Prize pelo melhor ensaio de estilo inglês. Voltou àHigh School.

Em 1905, regressou definitivamente para Lisboa.Em 1907, desistiu da faculdade, pois se sentia de-

cepcionado, e decidiu estudar por conta própria, pas-sando o tempo livre a ler os filósofos gregos, ale-mães e os decadentistas franceses. Sua avó morreuem agosto, deixando-lhe uma herança. Resolveu mon-tar uma tipografia (Empresa Íbis – Tipografia Edito-ra – Oficinas a vapor) com uma parte do dinheiro,mas não chegou a realizar qualquer atividade. Traba-lhou como correspondente comercial em línguas es-trangeiras durante toda a vida, pouco se preocupandocom dinheiro e passando mesmo grandes apertos fi-nanceiros.

Em 1914, Fernando Pessoa teve o “primeiro encon-tro” com seus heterônimos Alberto Caeiro, Ricardo Reise Álvaro de Campos, como confirmará alguns anos maistarde em carta para Adolfo Casais Monteiro.

Em 1915, preparou a primeira versão de seu livroAntinous. Em março, saiu o primeiro número da re-vista Orpheu, com colaborações importantes de Pes-soa. Em setembro, Mário de Sá-Carneiro voltou paraParis e comunicou ao amigo por carta que não tinhadinheiro para o terceiro número da revista por causade suas dificuldades financeiras e dos problemas como pai. No ano seguinte, Mário de Sá-Carneiro suici-dou-se.

Em 1916, surgiu a revista Exílio, com a qual Pes-soa colaborou.

Em 1920, conheceu Ophélia Queiroz, no escritó-rio de “Félix, Freitas e Valladas”. A partir daí passa-ram a se corresponder e a namorar. Depois da mortedo padrasto, sua mãe e irmãos resolveram voltar paraLisboa, e o poeta passou a viver com a família. Emnovembro, interrompeu o seu relacionamento comOphélia com uma carta: Que isto de “outras afeições”e de “outros caminhos” é consigo, Ophelinha, e nãocomigo. O meu destino pertence a outra Lei, de cujaexistência a Ophelinha nem sabe, e está subordinadocada vez mais à obediência a Mestres que não per-mitem nem perdoam.

Em 1921, Fernando Pessoa fundou a editora Oli-sipo, onde publicou seus poemas English poems I,English poems II, English poems III, e Invenção dodia claro, de Almada Negreiros.

Em 1924, dirigiu a revista Athena com Ruy Vaz.

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Em março de 1927, José Régio publicou o primeironúmero da revista Presença. No terceiro número darevista, ele reconheceu em Fernando Pessoa o mestreda nova geração, que passou a colaborar na revista apartir de junho.

Em 1929, o relacionamento com Ophélia foi reto-mado. No mesmo ano, saiu o primeiro estudo sobre aobra de Fernando Pessoa, com a publicação de Te-mas, do crítico e amigo João Gaspar Simões. A datada última carta de Ophélia para Fernando Pessoa foimarço de 1931, o que indicaria o provável rompimentodo namoro nessa mesma época.

Os anos que se seguiram foram de dificuldadesfinanceiras e de problemas de saúde para o poeta,acometido de crises de neurastenia. Fernando Pessoachegou a ser preterido ao candidatar-se ao cargo deconservador-bibliotecário do Museu-Biblioteca Con-de de Castro Guimarães, em Cascais. Apesar da crisepsíquica, escreveu intensamente.

Em janeiro de 1935, escreveu uma extensa carta aoamigo Adolfo Casais Monteiro, na qual procurou ex-plicar a gênese de seus heterônimos. Em novembro,encontrou-se pela última vez com João Gaspar Simõese com Almada Negreiros. Poucos dias antes, o poetasofrera uma grave crise hepática que o fizera perder ossentidos. Nessa ocasião, o médico avisou sobre o peri-go fatal de mais um cálice de aguardente. No dia 29 denovembro, Fernando Pessoa foi internado no Hospitalde S. Luís dos Franceses, tendo recebido o diagnósticode cólica hepática. No dia 30 de novembro de 1935,faleceu o poeta, vítima de cirrose hepática.

As obras de Fernando Pessoa já publicadas são:Poesia: 35 Sonnets (1918); Antinous (1918); En-

glish poems I e (1921); English poems II (1921); En-glish poems III (1921); Mensagem (1934); Poesiasde Fernando Pessoa (1942); Pessoa, Fernando (1944);Poemas de Alberto Caeiro (1946); Odes de RicardoReis (1946); Poemas dramáticos (1952); Poesias iné-ditas de Fernando Pessoa — de 1930 a 1935 (1955);Poesias inéditas de Fernando Pessoa — de 1919 a1935 (1956); Quadras ao gosto popular de FernandoPessoa (1965); Novas poesias inéditas (1973); Poe-mas ingleses (1974); Obra poética (1986); O guar-dador de rebanhos de Alberto Caeiro (1986); PrimeiroFausto (1986); Livro do desassossego por BernardoSoares (1982).

2. INTRODUÇÃO

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:“Navegar é preciso; viver não é preciso”.Quero para mim o espírito [d]esta frase,

transformada a forma para a casar como eu sou:Viver não é necessário; o que é necessário é criar.Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la

penso.Só quero torná-la grande,ainda que para isso tenha de ser o meu corpoe a (minha alma) a lenha desse fogo.

Fernando Pessoa indiscutivelmente transformoutoda a sua vida em criação literária. Viveu através deseus poemas, de seus textos em prosa, de suas perso-nagens. Afinal, essa foi sua missão e sua finalidademaior, o que acabou por torná-lo um poeta com a mes-ma dimensão de Luís Vaz de Camões. Considerado omelhor poeta moderno português e um dos maiores dalíngua, Fernando Pessoa é uma personalidade literáriamarcada por profunda complexidade. Sua produçãoliterária obriga-nos a separar o estudo de sua obra emetapas que deverão ser seguidas lentamente para umamelhor tentativa de compreensão de seus trabalhos.Essa personalidade intrincada, para não dizer misteri-osa, marcada tantas vezes por um paradoxismo inco-mum, pode ser observada no trecho da análise ouautobiografia que ele fez de si mesmo:

Ideologia política: Considera que o sistema mo-nárquico seria o mais próprio para uma nação or-ganicamente imperial como é Portugal. Considera,ao mesmo tempo, a Monarquia completamente in-viável em Portugal. Por isso, a haver um plebiscitoentre regimes votaria, embora com pena, pela Re-pública. Conservador do estilo inglês, isto é, liberaldentro do conservantismo, e absolutamente anti-reacionário.

Posição iniciática:Posição patriótica: Partidário de um nacionalismo

místico, de onde seja abolida toda infiltração católi-ca-romana, criando-se, se possível for, um sebastia-nismo novo, que a substitua espiritualmente, se éque no catolicismo português houve alguma vez es-piritualidade. Nacionalista que se guia por este lema:“Tudo pela Humanidade; nada contra a Nação.”

Posição social: Anticomunista e anti-socialista. Omais deduz-se do que vai dito acima.

Resumo destas últimas considerações: Ter sem-pre na memória o mártir Jacques de Molay, Grão-Mestre dos Templários, e combater, sempre e emtoda a parte, os seus três assassinos — a Ignorân-cia, o Fanatismo e a Tirania.

Lisboa, 30 de março de 1933.

Uma leitura mesmo superficial desse texto indicaque politicamente Fernando Pessoa era incoerente.Entretanto, nessa síntese autobiográfica, encontramostambém certas premissas que nos serão úteis paraentender na sua obra a vocação para um nacionalis-mo místico, para o sebastianismo racional, como elemesmo paradoxalmente classificava, por exemplo.

O primeiro aspecto para quem quiser entender

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Fernando Pessoa, é partir sempre da premissa de queos estudos sobre a sua obra ainda não se completa-ram; muito do que ele escreveu permanece ainda iné-dito: milhares de anotações entre poemas, textos emprosa, crítica literária etc, deixados por ele num baú(18.816 manuscritos, 3.948 datilografados, 29 cader-nos de variados conteúdos) e que só foram abertosalgumas décadas depois de sua morte a pedido dele.Além disso, não se estudou adequadamente boa par-te da obra publicada até aqui. Deve-se ter em mente,pois, que o mistério sobre sua produção artística con-tinua e ainda permanecerá despertando nossa curio-sidade por um bom tempo.

Fernando Pessoa é um caso sui generis na litera-tura mundial: não se contentou apenas em escreverpoemas, resolvendo também criar poetas, personagenspoéticas, personas (que significa as máscaras utiliza-das no teatro grego), que mantiveram absoluta auto-nomia de estilo, linguagem e temática em relação aoautor Fernando Pessoa, o que não se deve confundircom pseudônimos (nomes falsos com que um autorassina a própria obra). Essas personagens-poetas de-nominam-se heterônimos (outros nomes). Assim,qualquer estudo de sua obra leva à necessária divisãoem duas etapas mínimas, que se multiplicarão comoveremos: primeiro analisar os poemas que o próprioFernando Pessoa escreveu e assinou, chamados mui-to propriamente de poesia ortônima (próprio nome);depois, os poemas que ele escreveu, mas foram assi-nados por seus heterônimos. Assim, se o Modernis-mo exigia a criação de novos mitos, Fernando Pessoapareceu confirmar essa posição, pois foi um criadorde mitos: Desejo ser um criador de mitos, que é omistério mais alto que pode obrar alguém da huma-nidade1.

O fenômeno da heteronímia é, pois, um caso par-ticular de multiplicação ou desdobramentos de eus,uma tentativa de o poeta multiplicar-se através deoutros indivíduos para multiplicar-se também em te-mas, estilos e formas variadas.

Uma outra maneira de explicar os motivos de suaheteronímia foi apresentada pelo próprio FernandoPessoa: Com uma tal falta de literatura, como há hoje,que pode um homem de sensibilidade fazer senão in-ventar os seus amigos, ou, quando menos, os seuscompanheiros de espírito?2

A POESIA ORTÔNIMAFernando Pessoa publicou poucos livros, como

pôde ser observado em sua biografia. Os primeiros

livros foram escritos em inglês. A única obra em por-tuguês que viu publicada foi Mensagem (1934). Asdemais, atribuídas a ele-mesmo (poesia ortônima),foram publicadas postumamente. Deve-se ressaltarainda que, ao identificar-se com seus heterônimos,Fernando Pessoa acabava por projetar-se a si mesmotambém como uma espécie de heterônimo, máscarapor sua vez de máscaras3, já que se escondia atrásdas máscaras inventadas por ele próprio, ou seja, umheterônimo de si mesmo.

A POESIA HETERÔNIMAO problema da heteronímia é, sem dúvida, um

mistério instigante quando se estuda a obra de Fer-nando Pessoa. Cada um dos heterônimos nada mais édo que entidade única, com personalidade e vida pró-prias, além de estilos e visões de mundo autônomas.Os heterônimos refletem, indiscutivelmente, umamultiplicidade na unidade, já que se completam e seunem ao próprio criador, Fernando Pessoa.

Assim, consideraremos como ponto de partidaapenas o fato de que Fernando Pessoa procurou mul-tiplicar-se através de outros eus (os heterônimos),para melhor sentir ou enxergar a realidade e a totali-dade do mundo que o cercava:

Multipliquei-me, para me sentir,Para me sentir, precisei sentir tudo,Transbordei, não fiz senão extravasar-me,Despi-me, entreguei-me,E há em cada canto da minha alma um altar a um deus

[diferente.PESSOA, Fernando. “Passagem das Horas”.

Muitos foram os heterônimos ou semi-heterôni-mos criados por Fernando Pessoa, tais como Cheva-lier de Pas (1894), Jean Seul, Alexander Search, A.A. Crooss, L. Guerreiro, Vicente Guedes, C. Pache-co, Gervásio Guedes, António Mora (1930, filóso-fo), Raphael Baldaia (filósofo), Charles Robert Anon,Jean Seul, Pero Botelho, Thomas Crosse. Entretanto,seus principais heterônimos foram Alberto Caeiro,Ricardo Reis e Álvaro de Campos, para os quais oautor criou uma biografia própria, obras com carac-terísticas bem definidas, estilo pessoal, personalida-de e até mapas astrológicos para analisar apersonalidade de cada um deles. Não podemos nosesquecer de que Pessoa foi também profundamenteligado ao esoterismo, ao misticismo e a várias socie-dades secretas. A esses heterônimos, pode-se acres-centar Bernardo Soares, a quem se atribui O Livro dodesassossego, publicado muito tempo depois da morte

1 Fernando Pessoa. Prosa.2 Fernando Pessoa. Prosa.3 SEABRA, José Augusto. O heterotexto pessoano. São Paulo: Perspectiva, 1988. p. 28.

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do escritor, e que pode ser considerado como um semi-heterônimo, já que projeta o próprio Fernando Pes-soa em estado de raciocínio e afetividade. Teresa RitaLopes, estudiosa dos manuscritos e inéditos de Pes-soa, cita a existência de 72 heterônimos distintos.

Massaud Moisés considera que os heterônimos sãoprojeções arquetípicas do inconsciente (coletivo) dePessoa, e os arquétipos4 podem ser considerados he-terônimos, imagens coletivas, “pessoas” que falamde um “outro” no inconsciente de cada um.5 De umaoutra maneira, podemos observar que ao criar os he-terônimos, Fernando Pessoa inventou outros seres quematerializaram sua poesia em diversidade e multipli-cidade. Essas criações parecem atender ao desejo dopoeta de criar novos mitos, marcados agora por umamodernidade indiscutível.

O objeto deste estudo é a poesia de Alberto Caei-ro, mais especificamente os poemas que compõem olivro Poesias completas de Alberto Caeiro.

Alberto Caeiro nasceu no ano de 1889, em Lisboa,onde faleceu, vítima de tuberculose, em 1915. Levouuma vida simples junto a uma tia velha, tia-avó, numaquinta na região do Ribatejo. Viveu de pequenos ren-dimentos deixados pelos pais, que morreram cedo. Suainstrução foi rudimentar, só primária, e não teve pro-fissão. Caeiro tinha estatura média, era louro, sem core de olhos azuis. Escreveu quase toda a sua obra nocampo, exceto uma parte dos Poemas inconjuntos, ter-minados em Lisboa, pouco antes da morte. Pode serconsiderado o mestre de Álvaro de Campos, RicardoReis e do próprio Fernando Pessoa:

Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me umdia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro — de in-ventar um poeta bucólico, de espécie complicada, eapresentar-lho, já me não lembro como, em qual-quer espécie de realidade. Levei uns dias a elaboraro poeta mas nada consegui. Num dia em que final-mente desistira — foi em 8 de Março de 1914 —acerquei-me de uma cômoda alta, e, tomando umpapel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sem-pre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas afio, numa espécie de êxtase cuja natureza não con-seguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, enunca poderei ter outro assim. Abri com um título, Oguardador de rebanhos. E o que se seguiu foi o apa-recimento de alguém em mim, a quem dei desde logoo nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdoda frase: aparecera em mim o meu mestre.

Carta a Adolfo Casais Monteiro. In: PESSOA, Fernando.Poesias de Fernando Pessoa.

Na visão de Leyla Perrone-Moisés, Caeiro não ésomente o mestre dos outros heterônimos e do ortô-nimo, mas, primeiramente, o mestre aplicado em simesmo. Em sua poesia, há um constante desdobra-mento dialógico: nela, um ‘mestre’ da constatação eda sensação puras está sempre em debate com um‘discípulo’, que teima em reincidir na análise e naabstração. Assim, ele estaria todo o tempo ensinan-do-se a ser ele mesmo, Caeiro. Nesse caso, mestre ediscípulo são um só, o que revela o dialogismo6 nãodialético, mas oximórico7.8

Procuro despir-me do que aprendi,Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me

[ensinaram,E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,Mas um animal humano que a Natureza produziu.

OBRAO guardador de rebanhos (1911-1912), O pastor

amoroso, Poemas inconjuntos (1913-1915).

3. ANÁLISE DA POESIADE ALBERTO CAEIRO

A poesia de Alberto Caeiro é marcada por umasimplicidade formal e vocabular extremas, pois é umhomem simples, um poeta da natureza, que enxergao mundo como um reflexo de si mesmo, ou seja, daprópria natureza e não do pensamento. Não é à toaque é chamado de “poeta camponês”. Sua poesia éresultado do sensacionismo e não do pensamento, daía negação completa da metafísica por parte de Caei-ro: Porque pensar é não compreender… Desse modo,resulta de sua obra um realismo sensorial que o faznegar qualquer metafísica. Caeiro retira os disfarcespara desvendar a realidade de todas as coisas. Apesarde ser contra o pensamento e favorável às sensações,é considerado um “poeta filósofo”, que, de formaparadoxal, acabou criando uma antifilosofia, uma fi-losofia da negação da própria filosofia:

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,Mas porque a amo, e amo-a por isso,

4 Segundo C. G. Jung, os arquétipos são imagens psíquicas do inconsciente coletivo, que são patrimônio comum a toda a humanidade.5 MOISÉS, Massaud. Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge. São Paulo: Cultrix/ Edusp, 1988. p. 104-105.6 Arte de dialogar; figura que consiste em construir uma reflexão sob a forma de diálogo, com perguntas a que o próprio autor responde,ou em reproduzir em diálogo as idéias e os sentimentos dos personagens.7 Relativo a oxímoro, figura em que se combinam palavras de sentido oposto que parecem excluir-se mutuamente, mas que, no contexto,reforçam a expressão.8 MOISÉS, Leyla Perrone-.Aquém do eu, além do outro. 3. ed. rev. amp. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 198.

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Porque quem ama nunca sabe o que amaNem sabe por que ama, nem o que é amar…

Alberto Caeiro propõe uma espécie de filosofia;porém, ao avesso dos sistemas filosóficos de nos-sa tradição, despreza a razão e o intelecto, des-confia das explicações totalizantes. Promete, comoas religiões, uma harmonia, uma união, a paz inte-rior e a libertação. Caeiro consola como quem co-nhece o mal, por isso sua obra “é um repouso e umlivramento, um refúgio, uma libertação”.

Amar é a eterna inocência,E a única inocência não pensar…

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 205.

Alberto Caeiro valoriza a objetividade, o que deter-mina que não deseja aceitar nada para além da realidadeimediata. O senso de objetividade, por outro lado, estádiretamente ligado ao culto das sensações. […] o pen-sar transforma-se num correlato da visão, da audição,do tato, do olfato e do gosto: “E os meus pensamentossão todos sensações./Penso com os olhos e com os ouvi-dos/E com as mãos e os pés/E com o nariz e a boca”.9

Seus versos são livres e brancos, marcados pelaoralidade, coloquialismo, objetividade e pelo empregode um vocabulário simples, limitado, e, por isso, mar-cado por repetições. Essa modernidade radical parecepecar contra a disciplina pagã à qual aderiu desde mui-to cedo. Entretanto, não podia ser diferente, já que seuser poético procura o primitivismo mais original, o quepermite uma poesia que flui de maneira natural e es-pontânea, porém de maneira consciente e coerente, noque diz respeito ao seu rigor intelectual:

XIV

Não me importo com as rimas. Raras vezesHá duas árvores iguais, uma ao lado da outra.Penso e escrevo como as flores têm corMas com menos perfeição no meu modo de exprimir-mePorque me falta a simplicidade divinaDe ser todo só o meu exterior

Olho e comovo-me,Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado,E a minha poesia é natural como o levantar-se vento…

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 219.

Sua aparente inocência e simplicidade em relaçãoao mundo acabam por permitir um maior aprofunda-mento na objetividade e na materialidade do univer-so que o cerca. A realidade só existe enquanto objetode uma experiência sensorial particular, daquilo queele pode ver, desnudada de qualquer experiência trans-cendental ou metafísica:

Sou fácil de definir.Vi como um danado.Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma.Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque

[nunca cegueiPoemas inconjuntos. Op. cit., p. 237.

O paganismo é o centro das atenções de Caeiro.Ricardo Reis considera-o como o reconstrutor da es-sência do paganismo; enquanto Álvaro de Camposdizia que ele não era pagão, mas o próprio paganis-mo. Sem dúvida, ele rompe com quaisquer valoresou sistemas religiosos, emocionais, filosóficos e atémesmo poéticos.

Entretanto, seu paganismo “não representa umafé, mas uma visão intelectual da verdade”. Nem fi-losofia, nem religião, no sentido em que conhece-mos uma e outra, a sabedoria de Caeiro estápróxima de ambas mas num caminho divergente,que Ricardo Reis define: “Por uma intuição sobre-humana como aquelas que fundam religiões poréma que não assenta o título de religiosa, por isso querepugna toda a religião e toda a metafísica, estehomem escreveu [??] o mundo sem pensar nele ecriou um conceito do universo que não contém umainterpretação [?]”.10

O meu mestre Caeiro não era um pagão: era opaganismo. O Ricardo Reis é um pagão, o AntônioMora é um pagão; o próprio Fernando Pessoa se-ria um pagão, se não fosse um novelo embrulhadopara o lado de dentro. Mas o Ricardo Reis é umpagão por caráter, o Antônio Mora é um pagão porinteligência, eu sou um pagão por revolta, isto é,por temperamento. Em Caeiro não havia explica-ção para o paganismo; havia consubstanciação.

Poemas completos de Alberto Caeiro. Posfáciode Álvaro de Campos.

4. ANTOLOGIA COMENTADA

POEMAS COMPLETOS DE ALBERTO CAEIRO

O guardador de rebanhos

I

Eu nunca guardei rebanhos,Mas é como se os guardasse.Minha alma é como um pastor,Conhece o vento e o solE anda pela mão das EstaçõesA seguir e a olhar.Toda a paz da Natureza sem genteVem sentar-se a meu lado.Mas eu fico triste como um pôr-de-sol

9 GOMES, Álvaro Cardoso. Fernando Pessoa: As muitas águas de um rio. São Paulo: Pioneira/ Edusp, 1987. p.16.10 Idem, p. 149.

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Para a nossa imaginação,Quando esfria no fundo da planícieE se sente a noite entradaComo uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossegoPorque é natural e justaE é o que deve estar na almaQuando já pensa que existeE as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhosPara além da curva da estrada,Os meus pensamentos são contentes.Só tenho pena de saber que eles são contentes,Porque, se o não soubesse,Em vez de serem contentes e tristes,Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuvaQuando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejosSer poeta não é uma ambição minhaÉ a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezesPor imaginar, ser cordeirinho(Ou ser o rebanho todoPara andar espalhado por toda a encostaA ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),É só porque sinto o que escrevo ao pôr-do-sol,Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luzE corre um silêncio pela erva fora.

Quando me sento a escrever versosOu, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,Sinto um cajado nas mãosE vejo um recorte de mimNo cimo dum outeiro,Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu

[rebanho,E sorrindo vagamente como quem não compreende o

[que se dizE quer fingir que compreende.

Saúdo todos os que me lerem,Tirando-lhes o chapéu largoQuando me vêem à minha portaMal a diligência levanta no cimo do outeiro.Saúdo-os e desejo-lhes sol,E chuva, quando a chuva é precisa,E que as suas casas tenhamAo pé duma janela abertaUma cadeira prediletaOnde se sentem, lendo os meus versos.E ao lerem os meus versos pensemQue sou qualquer cousa natural —Por exemplo, a árvore antigaÀ sombra da qual quando criançasSe sentavam com um baque, cansados de brincar,E limpavam o suor da testa quenteCom a manga do bibe riscado.

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 203-204.

Comentário: O poema instaura os objetivos cen-trais da poesia de Alberto Caeiro: a simplicidade, osensorialismo (é só porque sinto o que escrevo ao pôrdo sol). A presença da metalinguagem é outro recur-so evidente no poema de abertura (Escrevo versos numpapel que está no meu pensamento, / Sinto um caja-do nas mãos / E vejo um recorte de mim). O versoMinha alma é como um pastor traduz a corporifica-ção da alma como coisa, reforçando desde o primeiropoema a valorização exclusiva da matéria e da capa-cidade de sentir a natureza.

A visão materialista também está presente, no fi-nal do poema, em sua integração com os objetos sim-ples do cotidiano, representativos de seu estado depaz com o mundo que o cerca e que deseja a seusleitores. Não é por acaso que Leyla Perrone-Moisésobserva nele uma visão de mundo marcada pela inte-gração com a filosofia zen.

II

O meu olhar é nítido como um girassol.Tenho o costume de andar pelas estradasOlhando para a direita e para a esquerda,E de vez em quando olhando para trás…E o que vejo a cada momentoÉ aquilo que nunca antes eu tinha visto,E eu sei dar por isso muito bem…Sei ter o pasmo essencialQue tem uma criança se, ao nascer,Reparasse que nascera deveras…Sinto-me nascido a cada momentoPara a eterna novidade do Mundo…

Creio no mundo como num malmequer,Porque o vejo. Mas não penso nelePorque pensar é não compreender…O Mundo não se fez para pensarmos nele(Pensar é estar doente dos olhos)Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,Mas porque a amo, e amo-a por isso,Porque quem ama nunca sabe o que amaNem sabe por que ama, nem o que é amar…

Amar é a eterna inocência,E a única inocência não pensar…

PESSOA, Fernando. Obra poética. O guardador derebanhos, de Alberto Caeiro. Rio de Janeiro:

Aguilar, 1977. p. 204-205.

Comentário: O repúdio de Caeiro a qualquer ele-mento metafísico está bem resumido no verso Porquepensar é não compreender… O realismo sensorial ex-pressa-se de forma evidente quando o poeta se recusaa pensar no mundo e afirma que crê no mundo apenasporque o vê (Porque o vejo. Mas não penso nele). Oser antimetafísico expressa sua repulsa à filosofia ereafirma a crença única nos próprios sentidos: Eu não

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tenho filosofia: tenho sentidos… Vale ressaltar que avisão é destacada por ser o mais objetivo dos sentidos,como observa Álvaro Cardoso Gomes.

III

Ao entardecer, debruçado pela janela,E sabendo de soslaio que há campos, em frente,Leio até me arderem os olhosO livro de Cesário Verde.

Que pena que tenho dele! Ele era um camponêsQue andava preso em liberdade pela cidade.Mas o modo como olhava para as casas,E o modo como reparava nas ruas,E a maneira como dava pelas cousas,É o de quem olha para as árvores,E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai

[andandoE anda a reparar nas flores que há pelos campos…

Por isso ele tinha aquela grande tristezaQue ele nunca disse bem que tinha,Mas andava na cidade como quem anda no campoE põe plantas em jarros…

O guardador de rebanhos.Op. cit., p. 205.

Comentário: Esse poema traduz uma aproxima-ção entre o sensorialismo de Caeiro e o de CesárioVerde. Entretanto, em Cesário o mundo citadino ésentido de maneira atormentada, pelo conflito entreo mundo burguês e o proletário. Caeiro parece perce-ber essa “doença”, que pode ser traduzida por triste-za mesmo ou uma loucura, que estaria curada na trocada cidade pelo campo.

V

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?Sei lá o que penso do mundo!Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que idéia tenho eu das cousas?Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?Que tenho eu meditado sobre Deus e a almaE sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhosE não pensar. É correr as cortinasDa minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!O único mistério é haver quem pense no mistério.Quem está ao sol e fecha os olhos,Começa a não saber o que é o solE a pensar muitas cousas cheias de calor.Mas abre os olhos e vê o sol,E já não pode pensar em nada,Porque a luz do sol vale mais que os pensamentosDe todos os filósofos e de todos os poetas.A luz do sol não sabe o que fazE por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?A de serem verdes e copadas e de terem ramosE a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,A nós, que não sabemos dar por elas.Mas que melhor metafísica que a delas,Que é a de não saber para que vivemNem saber que o não sabem?

“Constituição íntima das cousas”…“Sentido íntimo do Universo”…Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.É incrível que se possa pensar em cousas dessas.É como pensar em razões e finsQuando o começo da manhã está raiando, e pelos lados

[das árvoresUm vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousasÉ acrescentado, como pensar na saúdeOu levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousasÉ elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.Se ele quisesse que eu acreditasse nele,Sem dúvida que viria falar comigoE entraria pela minha porta dentroDizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidosDe quem, por não saber o que é olhar para as cousas,Não compreende quem fala delasCom o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvoresE os montes e sol e o luar,Então acredito nele,Então acredito nele a toda a hora,E a minha vida é toda uma oração e uma missa,E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as floresE os montes e o luar e o sol,Para que lhe chamo eu Deus?Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;Porque, se ele se fez, para eu o ver,Sol e luar e flores e árvores e montes,Se ele me aparece como sendo árvores e montesE luar e sol e flores,É que ele quer que eu o conheçaComo árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,Como quem abre os olhos e vê,E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,E amo-o sem pensar nele,E penso-o vendo e ouvindo,E ando com ele a toda a hora.

O guardador de rebanhos.Op. cit., p. 206-208.

Comentário: O poema é, indiscutivelmente, umbom exemplo do modo de vida e do estilo de Caeiro,pois estão presentes o Sensacionismo, o realismo sen-

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sorial, a antimetafísica, a oralidade e sua ligação pro-funda com a natureza. A melodia dos versos brota daespontaneidade, da aparente despreocupação estéti-ca ou artística. A décima estrofe manifesta claramen-te o paganismo de Caeiro, que só consegue concebera existência de Deus a partir do sentido da visão, ouseja, de uma realidade palpável, material, concreta.Para Caeiro, a realidade está nos sentidos, principal-mente na visão, sendo descabido acreditar na exis-tência de uma coisa apenas em pensamento. Para ele,só é real o que pode ser sentido.

O panteísmo fica evidente na décima segunda es-trofe, pois Caeiro afirma acreditar em Deus apenasse ele se manifesta através da natureza, um deus comomanifestação por meio das flores, das árvores, dosmontes, do sol e do luar.

A ironia está presente na décima terceira estrofe,porque Caeiro interroga que motivo teria para cha-mar Deus de Deus se pode chamá-lo de flores, árvo-res e montes. O paganismo de Caeiro é, na verdade,uma negação do cristianismo e não a fé na volta daantiga crença.

VI

Pensar em Deus é desobedecer a Deus,Porque Deus quis que o não conhecêssemos,Por isso se nos não mostrou…

Sejamos simples e calmos,Como os regatos e as árvores,E Deus amar-nos-á fazendo de nósBelos como as árvores e os regatos,E dar-nos-á verdor na sua Primavera,E um rio aonde ir ter quando acabemos!…

O guardador de rebanhos.Op. cit., p. 208.

Comentário: O poema VI traduz, ainda uma vez,a visão da integração do homem com os elementossimples da natureza como aproximação com o ele-mento divino. Está presente no poema a idéia pagã epanteísta da divindade que emana da natureza.

VII

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do[Universo…

Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra[qualquer,

Porque eu sou do tamanho do que vejoE não do tamanho da minha altura…

Nas cidades a vida é mais pequenaQue aqui na minha casa no cimo deste outeiro.

Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para

[longe de todo o céu,Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos

[olhos podem dar,E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.

O guardador de rebanhos.Op. cit., p. 208.

Comentário: O poema VII pode ser lido como umcomplemento ao poema III, pois explica o fato de Caei-ro sentir dó de Cesário Verde, que só podia ver atravésda cidade e nestas a vida é mais pequena. Assim, apro-veitando-se o verso “Porque eu sou do tamanho doque vejo”, conclui-se que Cesário ficava também pe-queno e pobre, bem menor do que poderia ser.

VIII

Num meio-dia de PrimaveraTive um sonho como uma fotografia.Vi Jesus Cristo descer à terra.Veio pela encosta de um monteTornado outra vez menino,A correr e a rolar-se pela ervaE a arrancar flores para as deitar foraE a rir de modo a ouvir-se longe.

Tinha fugido do céu.Era nosso demais para fingirDe segunda pessoa da Trindade.No céu tudo era falso, tudo em desacordoCom flores e árvores e pedras.No céu tinha que estar sempre sérioE de vez em quando de se tornar outra vez homemE subir para a cruz, e estar sempre a morrerCom uma coroa toda à roda de espinhosE os pés espetados por um prego com cabeça,E até com um trapo à roda da cinturaComo os pretos nas ilustrações.Nem sequer o deixavam ter pai e mãeComo as outras crianças.O seu pai era duas pessoas —Um velho chamado José, que era carpinteiro,E que não era pai dele;E o outro pai era uma pomba estúpida,A única pomba feia do mundoPorque nem era do mundo nem era pomba.E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.Não era mulher: era uma malaEm que ele tinha vindo do céu.E queriam que ele, que só nascera da mãe,E que nunca tivera pai para amar com respeito,Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormirE o Espírito Santo andava a voar,Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.Com o primeiro fez com que ninguém soubesse que

[ele tinha fugido.Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruzE deixou-o pregado na cruz que há no céuE serve de modelo às outras.Depois fugiu para o solE desceu no primeiro raio que apanhou.Hoje vive na minha aldeia comigo.É uma criança bonita de riso e natural.Limpa o nariz ao braço direito,Chapinha nas poças de água,Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.Atira pedras aos burros,Rouba a fruta dos pomaresE foge a chorar e a gritar dos cães.

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E, porque sabe que elas não gostamE porque toda a gente acha graça,Corre atrás das raparigasQue vão em ranchos pelas estradasCom as bilhas às cabeçasE levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.Ensinou-me a olhar para as coisas.Aponta-me todas as coisas que há nas flores.Mostra-me como as pedras são engraçadasQuando a gente as tem na mãoE olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.Diz que ele é um velho estúpido e doente,Sempre a escarrar para o chãoE a dizer indecências.A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.E o Espírito Santo coça-se com o bicoE empoleira-se nas cadeiras e suja-as.Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.Diz-me que Deus não percebe nadaDas coisas que criou —“Se é que ele as criou, do que duvido.” —Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,Mas os seres não cantam nada.Se cantassem seriam cantores.Os seres existem e mais nada,E por isso se chamam seres.

E depois, cansado de dizer mal de Deus,O Menino Jesus adormece nos meus braçosE eu levo-o ao colo para casa.

[…]

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.Ele é humano que é natural.Ele é o divino que sorri e que brinca.E por isso é que eu sei com toda a certezaQue ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divinaÉ a minha quotidiana vida de poeta,E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta

[sempre.E que o meu mínimo olharMe enche de sensação,E o mais pequeno som, seja do que for,Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivoDá-me uma mão a mimE outra a tudo que existeE assim vamos os três pelo caminho que houver,Saltando e cantando e rindoE gozando o nosso segredo comumQue é saber por toda a parteQue não há mistério no mundoE que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.O meu ouvido atento alegremente a todos os sonsSão as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outroNa companhia de tudoQue nunca pensamos um no outro,Mas vivemos juntos e doisCom um acordo íntimoComo a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhasNo degrau da porta de casa,Graves como convém a um deus e a um poeta,E como se cada pedraFosse todo o universoE fosse por isso um grande perigo para elaDeixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homensE ele sorri porque tudo é incrível.Ri dos reis e dos que não são reis,E tem pena de ouvir falar das guerras,E dos comércios, e dos naviosQue ficam fumo no ar dos altos mares.Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdadeQue uma flor tem ao florescerE que anda com a luz do SolA variar os montes e os valesE a fazer doer aos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.Levo-o ao colo para dentro de casaE deito-o, despindo lentamenteE como seguindo um ritual muito limpoE todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha almaE às vezes acorda de noiteE brinca com os meus sonhos.Vira uns de pernas para o ar,Põe uns em cima dos outrosE bate palmas sozinhoSorrindo para o meu sono.[…]

Quando eu morrer, filhinho,Seja eu a criança, o mais pequeno.Pega-me tu ao coloE leva-me para dentro da tua casa.Despe o meu ser cansado e humanoE deita-me na tua cama.E conta-me histórias, caso eu acorde,Para eu tornar a adormecer.E dá-me sonhos teus para eu brincarAté que nasça qualquer diaQue tu sabes qual é.

[…]

Esta é a história do meu Menino Jesus.Por que razão que se percebaNão há-de ser ela mais verdadeiraQue tudo quanto os filósofos pensamE tudo quanto as religiões ensinam?

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 209-212.

Comentário: Esse poema é de um lirismo mar-cante dentro da poesia de Caeiro. A presença de ele-mentos narrativos (épicos) em nada diminui ou

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enfraquece sua expressão emocional e humana, já quesua utilização permite o deslizar da imaginação doeu lírico. As críticas ganham um tom de blague queapenas dessacraliza os mitos e mistérios que funda-mentam o universo cristão. Caeiro materializa a di-vindade de Cristo e rompe com os dogmas docristianismo ao transformar o ícone do catolicismonum menino comum.

X

“Olá, guardador de rebanhos,Aí à beira da estrada,Que te diz o vento que passa?”

“Que é vento, e que passa,E que já passou antes,E que passará depois.E a ti o que te diz?”

“Muita coisa mais do que isso,Fala-me de muitas outras coisas.De memórias e de saudadesE de coisas que nunca foram.”

“Nunca ouviste passar o vento.O vento só fala do vento.O que lhe ouviste foi mentira.E a mentira está em ti.”

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 213.

XI

Aquela senhora tem um pianoQue é agradável mas não é o correr dos riosNem o murmúrio que as árvores fazem…Para que é preciso ter um piano?O melhor é ter ouvidosE ouvir bem os sons que nascem.

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 213.

XII

Os pastores de Virgílio tocavam avenas e outras coisasE cantavam de amor literalmente.(Depois — eu nunca li Virgílio.Para que o havia eu de ler?)

Mas os pastores de Virgílio, coitados, são Virgílio,E a Natureza é bela e antiga.

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 213.

Comentário: O final do poema traduz de maneirasimples e direta o fingimento poético, porque consideraque os pastores nada mais são do que projeções poéti-cas do próprio poeta latino. Assim, a mimese aristotéli-ca parece ser invertida pela visão de Caeiro, já que aNatureza não é imitada diretamente, mas fingida.

XIII

Leve, leve, muito leve,Um vento muito leve passa,

E vai-se, sempre muito leve.E eu não sei o que pensoNem procuro sabê-lo.

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 213.XV

As quatro canções que seguemSeparam-se de tudo o que eu penso,Mentem a tudo o que eu sinto,São do contrário do que eu sou…

Escrevi-as estando doenteE por isso elas são naturaisE concordam com aquilo que sinto,Concordam com aquilo com que não concordam…Estando doente devo pensar o contrárioDo que penso quando estou são(Senão não estaria doente),Devo sentir o contrário do que sintoQuando sou eu na saúde,Devo mentir à minha naturezaDe criatura que sente de certa maneira…Devo ser todo doente — idéias e tudo.Quando estou doente, não estou doente para outra coisa.

Por isso essas canções que me renegamNão são capazes de me renegarE são a paisagem da minha alma de noite,A mesma ao contrário…

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 214.

XVI

Quem me dera que a minha vida fosse um carro de boisQue vem a chiar manhãzinha cedo, pela estrada,E que para de onde veio volta depoisQuase à noitinha pela mesma estrada.

Eu não tinha que ter esperanças — tinha só que ter[rodas…

A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco…Quando eu já não servia, tiravam-me as rodasE eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 214.

XVII

No meu prato que mistura de NaturezaAs minhas irmãs as plantas,As companheiras das fontes, as santasA quem ninguém reza…

E cortam-se e vêm à nossa mesaE nos hotéis os hóspedes ruidosos,Que chegam com correias tendo mantasPedem “Salada”, descuidosos…

Sem pensar que exigem à Terra-MãeA sua frescura e os seus filhos primeiros,As primeiras verdes palavras que ela tem, —As primeiras coisas vivas e irisantes11

Que Noé viuQuando as águas desceram e o cimo dos montesVerde e alagado surgiuE no ar por onde a pomba apareceuO arco-íris se esbateu…

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 214-215.

11 Cintilantes.

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XVIII

Quem me dera que eu fosse o pó da estradaE que os pés dos pobres me estivessem pisando…

Quem me dera que eu fosse os rios que corremE que as lavadeiras estivessem à minha beira…

Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rioE tivesse só o céu por cima e a água por baixo…

Quem me dera que eu fosse o burro do moleiroE que ele me batesse e me estimasse…

Antes isso que ser o que atravessa a vidaOlhando para trás de si e tendo pena…

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 215.

Comentário: O poema retoma a necessidade queo eu lírico sente de transmutar-se nos elementos maissimples. Como ocorre com o carro de bois do poemaXVI (Quem me dera que a minha vida fosse um carrode bois), ele deseja transformar-se no pó, nos rios,nas árvores (choupos), no burro do moleiro. Essa ne-cessidade de ser a matéria simples representaria, semdúvida, a anulação do pensamento, que parece reme-ter o eu lírico a um sentimento de autopiedade, quefica patente no último verso. Entretanto, cabe recor-dar que não há em Caeiro a angústia de identidadepresente em Álvaro de Campos e no próprio Fernan-do Pessoa.

XIX

O luar quando bate na relvaNão sei que coisa me lembra…Lembra-me a voz da criada velhaContando-me contos de fadas.E de como Nossa Senhora vestida de mendigaAndava à noite nas estradasSocorrendo as crianças maltratadas…

Se eu já não posso crer que isso é verdadePara que bate o luar na relva?

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 215.

Comentário: Caeiro confirma, nesse poema, suaindividualidade, pois não acredita muito na noção deconjunto, e a realidade só existe para ele enquantoresultado dos próprios sentidos.

XX

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela

[minha aldeiaPorque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes naviosE navega nele ainda,Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,A memória das naus.

O Tejo desce de EspanhaE o Tejo entra no mar em Portugal.

Toda a gente sabe isso.Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeiaE para onde ele vaiE donde ele vem.E por isso, porque pertence a menos gente,É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.Para além do Tejo há a AméricaE a fortuna daqueles que a encontram.Ninguém nunca pensou no que há para alémDo rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 215-216.

Comentário: O discurso paradoxal faz-se presentenos primeiros versos do poema, dos quais o que resul-ta é a afirmação de que se deve aceitar a realidade pró-xima em vez de buscar o que os sentidos não alcançam.

XXI

Se eu pudesse trincar a terra todaE sentir-lhe um paladar,Seria mais feliz um momento…Mas eu nem sempre quero ser feliz.É preciso ser de vez em quando infelizPara se poder ser natural…

Nem tudo é dias de sol,E a chuva, quando falta muito, pede-se.Por isso tomo a infelicidade com a felicidadeNaturalmente, como quem não estranhaQue haja montanhas e planíciesE que haja rochedos e erva…

O que é preciso é ser-se natural e calmoNa felicidade ou na infelicidade,Sentir como quem olha,Pensar como quem anda,E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,E que o poente é belo e é bela a noite que fica…Assim é e assim seja…

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 216.

Comentário: A naturalidade existencial humana,para o eu lírico, resulta exatamente da capacidade desentir os altos e baixos da vida, esse fluir da existên-cia que se renova e reacende a chama do caráter hu-mano. A Natureza recria o mesmo ciclo, o que traduz,na visão de Caeiro, uma unidade em plenitude com aNatureza e uma conformidade com as leis naturais.

XXIV

O que nós vemos das cousas são as cousas.Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nosSe ver e ouvir são ver e ouvir ? O essencial é saber ver,Saber ver sem estar a pensar,Saber ver quando se vê,E nem pensar quando se vêNem ver quando se pensa.

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Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),Isso exige um estudo profundo,Uma aprendizagem de desaprenderE uma seqüestração na liberdade daquele conventoDe que os poetas dizem que as estrelas são as freiras

[eternasE as flores as penitentes convictas de um só dia,Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelasNem as flores senão flores,Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 217-218.

Comentário: Alberto Caeiro emprega aqui a téc-nica de um interlocutor invisível que, como já foi co-mentado, é ele mesmo na busca de aprender adesaprender para afirmar a si mesmo — o poeta queacredita apenas no realismo sensorial e que rejeitaqualquer matéria que resulte do pensamento.

XXV

As bolas de sabão que esta criançaSe entretém a largar de uma palhinhaSão translucidamente uma filosofia toda.Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,Amigas dos olhos como as coisas,São aquilo que sãoCom uma precisão redondinha e aérea,E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,Pretende que elas são mais do que parecem ser.

Algumas mal se vêem no ar lúcido.São como a brisa que passa e mal toca nas floresE que só sabemos que passaPorque qualquer coisa se aligeira em nósE aceita tudo mais nitidamente.

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 218.

Comentário: Um comentário de Leyla Perrone-Moisés sobre esse poema é indispensável: O poeta teveum insight filosófico-estético ao contemplar as bolasde sabão; a marca desse insight é a sensação de que“qualquer coisa se aligeira” nele, e o faz aceitar omundo mais nitidamente. O hábito de Caeiro de argu-mentar em defesa da transparência das coisas obriga-oa tentar provar seu ponto de vista: São translucidamenteuma filosofia toda; São aquilo que são; E ninguém,[…] Pretende que elas são mais do que parecem ser.

XXVII

Só a natureza é divina, e ela não é divina…

Se falo dela como de um enteÉ que para falar dela preciso usar da linguagem dos

[homensQue dá personalidade às coisas,E impõe nome às coisas.Mas as coisas não têm nome nem personalidade:Existem, e o céu é grande e a terra larga,E o nosso coração do tamanho de um punho fechado…

Bendito seja eu por tudo quanto não sei.Gozo tudo isso como quem sabe que há o Sol.

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 218-219.

XXVIII

Li hoje quase duas páginasDo livro dum poeta místico,E ri como quem tem chorado muito.

Os poetas místicos são filósofos doentes,E os filósofos são homens doidos.

Porque os poetas místicos dizem que as flores sentemE dizem que as pedras têm almaE que os rios têm êxtases ao luar.

Mas as flores, se sentissem, não eram flores,Eram gente;E se as pedras tivessem alma, eram coisas vivas, não

[eram pedras;E se os rios tivessem êxtases ao luar,Os rios seriam homens doentes.

É preciso não saber o que são flores e pedras e riosPara falar dos sentimentos deles.Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.Graças a Deus que as pedras são só pedras,E que os rios não são senão rios,E que as flores são apenas flores.

Por mim, escrevo a prosa dos meus versosE fico contente,Porque sei que compreendo a Natureza por fora;E não a compreendo por dentroPorque a Natureza não tem dentro;Senão não era a Natureza.

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 219.

Comentário: Caeiro utiliza uma interessante téc-nica de construção poética para deixar clara a suamaneira de ver o mundo. Ele fala de como os outrosdevem enxergar para decifrar a si mesmo. Ainda valeressaltar que o poeta toca mais uma vez na idéia dadoença, no caso a loucura metafísica, mal do qualtambém padecem Fernando Pessoa e Álvaro de Cam-pos. A materialidade que Caeiro atribui à naturezapode ser claramente identificada no penúltimo ver-so: “Porque a Natureza não tem dentro”.

XXX

Se quiserem que eu tenha um misticismo, está bem,[tenho-o.

Sou místico, mas só com o corpo.A minha alma é simples e não pensa.

O meu misticismo é não querer saber.É viver e não pensar nisso.

Não sei o que é a Natureza: canto-a.Vivo no cimo dum outeiroNuma casa caiada e sozinha,E essa é a minha definição.

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 220.

XXXI

Se às vezes digo que as flores sorriemE se eu disser que os rios cantam,

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Não é porque eu julgue que há sorrisos nas floresE cantos no correr dos rios…É porque assim faço mais sentir aos homens falsosA existência verdadeiramente real das flores e dos rios.

Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezesÀ sua estupidez de sentidos…Não concordo comigo mas absolvo-me,Porque só sou essa coisa séria, um intérprete da Natureza;Porque há homens que não percebem a sua linguagem,Por ela não ser linguagem nenhuma.

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 220.

XXXIV

Acho tão natural que não se penseQue me ponho a rir às vezes, sozinho,Não sei bem de quê, mas é de qualquer coisaQue tem que ver com haver gente que pensa…

Que pensará o meu muro da minha sombra?Pergunto-me às vezes isto até dar por mimA perguntar-me coisas…E então desagrado-me, e incomodo-meComo se desse por mim com um pé dormente…

Que pensará isto de aquilo?Nada pensa nada.Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem?Se ela a tiver, que a tenha…Que me importa isso a mim?Se eu pensasse nessas coisas.Deixaria de ver as árvores e as plantasE deixava de ver a Terra,Para ver só os meus pensamentos…Entristecia e ficava às escuras.E assim, sem pensar, tenho a Terra e o Céu.

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 221-222.

XXXV

O luar através dos altos ramos,Dizem os poetas todos que ele é maisQue o luar através dos altos ramos.

Mas para mim, que não sei o que penso,O que o luar através dos altos ramosÉ, além de serO luar através dos altos ramos,É não ser maisQue o luar através dos altos ramos.

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 222.

Comentário: O poema define claramente o rea-lismo sensorial em que se baseia toda a poesia de Caei-ro; ele teoriza a coisificação, ou seja, as coisas são oque são, nada mais do que coisas.

XXXVI

E há poetas que são artistasE trabalham nos seus versosComo um carpinteiro nas tábuas!…

Que triste não saber florir!Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um

[muro

E ver se está bem, e tirar se não está!…Quando a única casa artística é a Terra todaQue varia e está sempre bem e é sempre a mesma.

Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem[respira.

E olho para as flores e sorrio…Não sei se elas me compreendemNem se eu as compreendo a elas,Mas sei que a verdade está nelas e em mimE na nossa comum divindadeDe nos deixarmos ir e viver pela TerraE levar ao colo pelas Estações contentesE deixar que o vento cante para adormecermosE não termos sonhos no nosso sono.

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 222.

Comentário: O poema retoma a idéia de Caeirode fazer uma poesia livre, espontânea e natural, frutode um exercício supremo de romper com todas as re-gras em favor da naturalidade, da oralidade.

XXXIX

O mistério das coisas, onde está ele?Onde está ele que não aparecePelo menos a mostrar-nos que é mistério?

Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?Sempre que olho para as coisas e penso no que os

[homens pensam delas,Rio como um regato que soa fresco numa pedra.

Porque o único sentido oculto das coisasÉ elas não terem sentido oculto nenhum.É mais estranho do que todas as estranhezasE do que os sonhos de todos os poetasE os pensamentos de todos os filósofos,Que as coisas sejam realmente o que parecem serE não haja nada que compreender.

Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —As coisas não têm significação: têm existência.As coisas são o único sentido oculto das coisas.

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 223.

Comentário: O tema da aparência das coisas e nãode sua essência é retomado nesse poema, conformeexplicam os versos: Porque o único sentido oculto dascoisas / É elas não terem sentido oculto nenhum.

XL

Passa uma borboleta por diante de mimE pela primeira vez no Universo eu reparoQue as borboletas não têm cor nem movimento,Assim como as flores não têm perfume nem cor.A cor é que tem cor nas asas da borboleta.No movimento da borboleta o movimento é que se move.O perfume é que tem perfume no perfume da flor.A borboleta é apenas borboletaE a flor é apenas flor.

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 224.

Comentário: Caeiro aplica nesse poema um certoantinominalismo, já que não dá a qualquer coisa outra

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significação que não seja a própria aparência (transpa-rência) ou o que representa, coisa, esvaziando-a de sig-nificações ao fazê-la refletir sobre si mesma. Suatécnica consiste em substantivar as palavras, negandoas relações entre estas, e tornando os próprios substan-tivos em atributos da coisa.

XLII

Passou a diligência pela estrada, e foi-se;E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia.Assim é a ação humana pelo mundo fora.Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos;E o Sol é sempre pontual todos os dias.

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 224.

Comentário: Esses versos traduzem a filosofia devida de Caeiro de maneira espontânea, o que tambémocorre no poema que segue XLII (Antes o vôo da ave,que passa e não deixa rasto). Em sua concepção davida, ele considera que, nós humanos, como todos osseres e coisas, apenas passamos, sem nada tirar ou co-locar, e depois esquecemos. Apenas o sol fica.

XLV

Um renque de árvores lá longe, lá para a encosta.Mas o que é um renque de árvores? Há árvores apenas.Renque e o plural árvores não são coisas, são nomes.

Tristes das almas humanas, que põem tudo em ordem,Que traçam linhas de coisa a coisa,Que põem letreiros com nomes nas árvores absoluta-

[mente reais,E desenham paralelos de latitude e longitudeSobre a própria terra inocente e mais verde e florida do

[que isso!O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 225.

XLVI

Deste modo ou daquele modo,Conforme calha ou não calha,Podendo às vezes dizer o que penso,E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,Vou escrevendo os meus versos sem querer,Como se escrever não fosse uma coisa feita de gestos,Como se escrever fosse uma coisa que me acontecesseComo dar-me o sol de fora.

Procuro dizer o que sintoSem pensar em que o sinto.Procuro encostar as palavras à idéiaE não precisar dum corredorDo pensamento para as palavras.

Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nadoPorque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.

Procuro despir-me do que aprendi,Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me en-

[sinaram,E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,

Mas um animal humano que a Natureza produziu.

E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem se[quer como um homem,

Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.E assim escrevo, ora bem, ora mal,Ora acertando com o que quero dizer, ora errando,Caindo aqui, levantando-me acolá,Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.

Ainda assim, sou alguém.Sou o Descobridor da Natureza.Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.Trago ao Universo um novo UniversoPorque trago ao Universo ele-próprio.

Isto sinto e isto escrevoPerfeitamente sabedor e sem que não vejaQue são cinco horas do amanhecerE que o Sol, que ainda não mostrou a cabeçaPor cima do muro do horizonte,Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedosAgarrando o cimo do muroDo horizonte cheio de montes baixos.

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 225-226.

Comentário: O mestre desconfia do pensamentoe da própria linguagem, pois sabe da necessidade doconhecimento direto das coisas. A anulação do pen-samento representa a aceitação da Natureza como ele-mento vital para o encontro definitivo da paz deespírito. Ainda uma vez, Caeiro manifesta a necessi-dade de desaprender o que lhe ensinaram, a fim deanular Caeiro e ser apenas um animal humano pro-duzido pela Natureza. A presença da metalinguagemé outro elemento de destaque no poema.

XLVII

Num dia excessivamente nítido,Dia em que dava a vontade de ter trabalhado muitoPara nele não trabalhar nada,Entrevi, como uma estrada por entre as árvores,O que talvez seja o Grande Segredo,Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam.

Vi que não há Natureza,Que Natureza não existe,Que há montes, vales, planícies,Que há árvores, flores, ervas,Que há rios e pedras,Mas que não há um todo a que isso pertença,Que um conjunto real e verdadeiroÉ uma doença das nossas ideias.

A Natureza é partes sem um todo.Isto é talvez o tal mistério de que falam.

Foi isto o que sem pensar nem parar,Acertei que devia ser a verdadeQue todos andam a achar e que não acham,E que só eu, porque a não fui achar, achei.

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 226-227.

Comentário: Nos poemas XLV e XLVII, perce-be-se que Caeiro investe contra a nomeação das coi-

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sas em sua pluralidade, valorizando apenas seus as-pectos individuais, preferindo nomeá-las particular-mente. Com isso, ele evita a abstração e permite quecada coisa possa ser sentida de modo singular.

XLIX

Meto-me para dentro, e fecho a janela.Trazem o candeeiro e dão as boas-noites,E a minha voz contente dá as boas-noites.Oxalá a minha vida seja sempre isto:O dia cheio de sol, ou suave de chuva,Ou tempestuoso como se acabasse o mundo,A tarde suave e os ranchos que passamFitados com interesse da janela,O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,Sem ler nada, sem pensar em nada, nem dormir,Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito,E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 227-228.

Poemas inconjuntos

A espantosa realidade das coisasÉ a minha descoberta de todos os dias.Cada coisa é o que é,E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastantes poemas.Hei-de escrever muitos mais, naturalmente.Cada poema meu diz isto,E todos os meus poemas são diferentes,Porque cada coisa que há é uma maneira de dizer isto.

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.Não me ponho a pensar se ela sente.Não me perco a chamar-lhe minha irmã.Mas gosto dela por ser uma pedra,Gosto dela porque ela não sente nada,Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum

[comigo.

Outras vezes ouço passar o vento,E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena

[ter nascido.

Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem

[esforço,Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar;Porque o penso sem pensamentos,Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

Uma vez chamaram-me poeta materialista,E eu admirei-me, porque não julgavaQue se me pudesse chamar qualquer coisa.Eu nem sequer sou poeta: vejo.Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:O valor está ali, nos meus versos.Tudo isso é absolutamente independente da minha

[vontade.PESSOA, Fernando.Obra Poética. Poemas inconjuntos.

Rio de Janeiro: Aguilar, 1977. p. 234-235.

Comentário: Caeiro valoriza a realidade e des-preza os rótulos à sua pessoa: recusa considerar-sepoeta e chama a atenção para o fato de que a únicacoisa que pode ter valor são seus versos, porque inde-pendem de sua vontade.

Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha[biografia,

Não há nada mais simples.

Tem só duas datas — a da minha nascença e a da[minha morte.

Entre uma e outra cousa todos os dias são meus.

Sou fácil de definir.Vi como um danado.Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma.Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque

[nunca ceguei.Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanha-

[mento de ver.Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes

[umas das outras;Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.Compreender isto com o pensamento seria achá-las

[todas iguais.

Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.Fechei os olhos e dormi.Além disso, fui o único poeta da Natureza.

Poemas inconjuntos. Op. cit., p. 237.

Comentário: A passagem Compreendi que as cou-sas são reais e todas diferentes umas das outras; /Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensa-mento deixa claro o realismo sensorial de Caeiro.Outro aspecto de relevo é a concepção que Caeirotem da morte, que não poderia ser mais simples e tran-qüila, uma vez que a considera não como fim ou co-meço de qualquer coisa, mas apenas como a inocênciado sono de uma criança. Para ele não existe perda oulucro, já que, entre o nascimento e a morte, todos osdias lhe pertenceram. Caeiro não fez uma poesia mar-cada pela inconseqüência ou inconsciência: foi pla-nejada e ele sabe que seu grande elemento foi anatureza, à qual se integra por intermédio do sensori-alismo marcadamente visual. Foi o cantor da maté-ria, da coisa em si, das flores, das pedras, das estrelas,dos elementos da natureza.

5. ESTRUTURA DA OBRA

Poesias completas de Alberto Caeiro é uma cole-tânea formada por uma introdução ou prefácio deRicardo Reis, por O guardador de rebanhos, O pas-tor amoroso e Poemas inconjuntos, além de um pos-fácio, assinado pelo heterônimo Álvaro de Campos,que analisa o próprio mestre Caeiro. A primeira parte

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apresenta um total de 49 poemas de formas variadas,em versos livres e brancos. A segunda parte é forma-da por seis poemas também de formas e dimensõesvariadas. A última possui um total de 49 poemas, al-guns extremamente breves, quase em forma de hai-cais.

A crítica divide-se quanto ao melhor da produçãode Alberto Caeiro. Alguns, como o próprio autor daintrodução, acreditam que o melhor de sua produçãoesteja reunido nos Poemas inconjuntos. De maneirageral, costuma-se ter como produção essencial deCaeiro os poemas que compõem a primeira parte daobra que se está analisando.

Em O pastor amoroso, Caeiro vê-se comovido peloamor, como o título já indica, o que afeta a maneirade enxergar a natureza, elemento permanente de suadevoção. O amor altera a intensidade do seu sentir.

Amar é pensarE eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.

PESSOA, Fernando. Obra Poética. O pastor amoroso. Riode Janeiro: Aguilar, 1977. p. 230.

A terceira parte coincide com a proximidade damorte de Caeiro, como se vê anunciado em váriospoemas dessa parte.

Quando tornar a vir a PrimaveraTalvez já não me encontre no mundo.

Creio que irei morrer.Mas o sentido de morrer não me move […]

O pastor amoroso. Op. cit.

Last poem

(ditado pelo poeta no dia da sua morte)

É talvez o último dia da minha vida.Saudei o Sol, levantando a mão direita,Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus,Fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada.

O pastor amoroso. Op. cit.

6.ESTILO DE ÉPOCA

O Modernismo surgiu em Portugal a partir da edi-ção da revista Orpheu em 25 de março de 1915, pu-blicação que se pretendia luso-brasileira e cujoprimeiro número teve a direção de Luís de Montal-vor e do brasileiro Ronald de Carvalho.

OS ISMOS LUSITANOSNão se pode estudar a primeira geração do Moder-

nismo português, conhecida como Orfismo, sem fa-

larmos antes de alguns movimentos precursores dessatendência, tais como o Saudosismo e o Paulismo, oumesmo de outros ismos decorrentes da geração órfica,como o Interseccionismo e o Sensacionismo.

A publicação da revista Águia, em 1910, pode serconsiderada como marco precursor do Modernismoportuguês, uma espécie de Pré-Modernismo portu-guês, que estabeleceu o surgimento do Saudosismo.Sua edição visava restaurar e revigorar a cultura por-tuguesa, conforme desejo de seus principais líderesTeixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão e LeonardoCoimbra. Teixeira de Pascoaes (1878-1952) criou atra-vés dessa revista o Saudosismo, e procurou enunciaruma doutrina filosófica que valorizava o espírito na-cional lusitano, tentando retomar o patriotismo, umapretensa “alma portuguesa”, a partir da saudade:

… a saudade é o próprio sangue espiritual da Raça; oseu estigma divino, o seu perfil eterno. […] É na saudaderevelada que existe a razão da nossa Renascença; nelaressurgiremos, porque ela é a própria Renascença, origi-nal e criadora.

Teixeira Pascoaes

Fernando Pessoa participou do Saudosismo comuma série de estudos críticos sobre a nova poesia por-tuguesa a partir do quarto número da revista Águia,deixando definitivamente o grupo em 1914.

O outro movimento que antecedeu o Modernismofoi o Paulismo, que se caracterizou pela fusão entre osubjetivo e o objetivo, em desconexas associações deidéias, empregando uma sintaxe bizarra, frases nomi-nais exclamativas, maiúsculas para traduzir a profun-didade essencial das palavras, e que procurava valorizarprofundamente o tédio, o vazio, o vago, a busca dealgo que não se explica, o anseio de outra coisa. Esseismo foi criado pelo próprio Fernando Pessoa em seupoema Impressões do crepúsculo, cuja primeira pala-vra (pauis) deu nome ao movimento estético e signifi-ca pântanos, ou terras baixas e alagadiças.

Pauis de roçarem ânsias pela minh’alma em ouro…Dobre longínquo de Outros Sinos… Empalidece o louroTrigo na cinza do poente… Corre um frio carnal por

[minh’alma…Tão sempre a mesma, a Hora!… Balouçar de cimos de

[palma!…Silêncio que as folhas fitam em nós… Outono delgadoDum canto de vaga ave… Azul esquecido em estagnado…Oh que mudo grito de ânsia põe garras na Hora!Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora!Estendo as mãos para além, mas ao estendê-las já vejoQue não é aquilo que quero aquilo que desejo…12

O Paulismo intermedeia o Orfismo, o Simbolis-mo-decadentista e o Saudosismo. Sua linguagemlibera o sentido da imagem, obrigando o significado

12 PESSOA, Fernando. Fernando Pessoa: Obra poética. Cancioneiro. Rio de Janeiro: Aguilar, 1977. p. 108.

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a subordinar-se ao seu significante, libertando-se doencadeamento lógico-racional.

Também o Interseccionismo serviu de fundamen-to aos primeiros modernos portugueses. Essa corren-te foi uma espécie de adaptação do Paulismo àsvanguardas, como o Futurismo e o Cubismo. Nela,o poeta expressa a complexidade e a intersecção dassensações percebidas, aproximando-se do Cubismo.Sua expressão caracteriza-se na intersecção de pla-nos objetivos e subjetivos, passado e presente, havendouma sobreposição de imagens. A grande expressãodesse ismo foi exatamente o poema Chuva oblíqua,de Fernando Pessoa. Entretanto, esse ismo contrapõe-se ao dinamismo, herança do Futurismo que influ-enciou os modernos da geração de Orpheu, uma vezque se deixa levar por intensa subjetividade e umaatitude de estaticidade, valorizando aspectos abstra-tos, oníricos e tediosos da existência.

I

Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinitoE a cor das flores é transparente de as velas de grandes

[naviosQue largam do cais arrastando nas águas por sombraOs vultos ao sol daquelas árvores antigas…

O porto que sonho é sombrio e pálidoE esta paisagem é cheia de sol deste lado…Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrioE os navios que saem do porto são estas árvores ao sol…

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo…O vulto do cais é a estrada nítida e calmaQue se levanta e se ergue como um muro,E os navios passam por dentro dos troncos das árvoresCom uma horizontalidade vertical,E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma

[dentro…

Não sei quem me sonho…Súbito toda a água do mar do porto é transparentee vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá

[estivesse desdobrada,Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder

[em aquele porto,E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passaEntre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagemE chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,E passa para o outro lado da minha alma…

O Sensacionismo representou a tentativa de viveras sensações em sua plenitude. Pode-se enxergá-locomo a soma do Paulismo e do Interseccionismo.Para Fernando Pessoa, a dispersão é a característicafundamental do sensacionismo. Para ele, a sensaçãoé ao mesmo tempo reflexão, emoção e memória. Suateoria da sensação passa por três estágios: a sensaçãopura e simples, a consciência dessa sensação, que lhedá um valor estético, e a intelectualização, que lheproporciona poder de expressão. Ele considera a arte

como sensação, que não se oporia à reflexão, à emo-ção e à memória. A transformação da emoção vividaem emoção artística seria feita através da racionali-zação. A realidade seria decomponível em elementosgeométricos psíquicos para aumentar a consciênciahumana. A figura geométrica seria o cubo, mas nabusca da sensação das coisas e não em sua decompo-sição apenas, como fizeram os cubistas. O Sensacio-nismo é a base moderna do Orfismo.

Afinal

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.Sentir tudo de todas as maneiras.Sentir tudo excessivamente,Porque todas as coisas são, em verdade, excessivasE toda a realidade é um excesso, uma violência,Uma alucinação extraordinariamente nítidaQue vivemos todos em comum com a fúria das almas,O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugasQue são as psiquês humanas no seu acordo de sentidos.

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias[pessoas,

[…]Álvaro de Campos

Quando

Quando olho para mim não me percebo.Tenho tanto a mania de sentirQue me extravio às vezes ao sairDas próprias sensações que eu recebo.O ar que respiro, este licor que bebo,Pertencem ao meu modo de existir,E eu nunca sei como hei de concluirAs sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente reparei,Se na verdade sinto o que sinto. EuSerei tal qual pareço em mim?

Serei tal qual me julgo verdadeiramente?Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.

Álvaro de Campos

O Sensacionismo de Alberto Caeiro consegueatingir uma simplicidade absoluta, o que não é cons-tatado na obra do próprio Fernando Pessoa ou emÁlvaro de Campos:

IX

Sou um guardador de rebanhos.O rebanho é os meus pensamentosE os meus pensamentos são todos sensações.Penso com os olhos e com os ouvidosE com as mãos e os pésE com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-laE comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calorMe sinto triste de gozá-lo tanto.

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E me deito ao comprido na erva,E fecho os olhos quentes,Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,Sei a verdade e sou feliz.

O guardador de rebanhos. Op. cit., p. 212-213.

Comentário: O realismo sensorial pode ser cla-ramente percebido a partir da primeira estrofe quan-do Caeiro nega o pensamento, elemento metafísicopor excelência, para valorizar as sensações: tato, ol-fato e paladar. Para Caeiro, felicidade é obter o máxi-mo de sensações que a natureza pode proporcionar, oque se traduz como a única realidade, como os doisúltimos versos podem comprovar. O verso O reba-nho é os meus pensamentos materializa ou objetiva,através da substantivação metafórica, a metafísica,reforçando a materialização do pensamento.

A repetição é outro recurso forte da poesia de Al-berto Caeiro, como a anáfora que está presente narepetição do termo “e com”, nos versos cinco e seisda primeira estrofe.

A GERAÇÃO DE ORPHEU: O ORFISMOA geração de Orpheu surgiu a partir do encontro

entre alguns jovens poetas em cafés da baixa de Lis-boa em 1913, tais como Fernando Pessoa, Mário deSá-Carneiro, Almada Negreiros, Amadeo de SousaCardoso, Raúl Leal e Santa Rita Pintor, que discuti-am as estéticas de vanguarda européias. Luis de Mon-talvor (Luís da Silva Ramos), António Ferro eArmando Cortes Rodrigues também se juntaram aosdemais para projetar uma revista que conseguisse reu-nir as diversificadas tendências artísticas desses jo-vens e agitasse a intelectualidade lusitana, terminandopor representar o momento inicial do próprio Moder-nismo lusitano. A revista Orpheu foi financiada pelopai de Mário de Sá-Carneiro. Participaram do primeironúmero Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Al-mada Negreiros, Cortes Rodrigues, Alfredo PedroGuisado, Álvaro de Campos (heterônimo de Fernan-do Pessoa) e José Pacheco, que foi o responsável peladireção gráfica. A introdução foi assinada por Luisde Montalvor, que foi o primeiro diretor, junto comRonald de Carvalho, o espírito prático que viabilizouo surgimento da revista.

O segundo número saiu em junho e teve a direçãode Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Colabo-raram nessa edição Mário de Sá-Carneiro, EduardoGuimaraens, Fernando Pessoa, Angelo de Lima, RaulLeal, Luis de Montalvor, Santa Rita Pintor, Violantede Cisneiros (provável pseudônimo de Armando Cor-tes Rodrigues) e Álvaro de Campos. Um terceiro nú-mero chegou a ser preparado, mas a morte de Mário

de Sá-Carneiro e as dificuldades financeiras enfren-tadas pelo grupo impediram sua publicação.

O Orfismo acabou reunindo todos os ismos lusi-tanos e também os vanguardistas, propondo a criaçãode uma literatura que chocasse os valores burguesesatravés de sua irreverência formal e das provocações,e que procurasse também aproximar culturalmentePortugal do resto da Europa. Entre seus objetivos, nãose pode esquecer a intenção de criar escândalo, bemcomo a falta de compromisso de seus integrantes comquaisquer caracteres históricos, políticos ou científi-cos. O Orfismo era contra o passado romântico e re-alista, valorizando as estéticas de vanguarda européias,principalmente o Futurismo de Marinetti, ainda queseus criadores estivessem mais profundamente liga-dos ao Simbolismo-decadentista e ao Saudosismo.Sua atitude foi, antes de mais nada, irreverente quan-to à forma, o que pode ser constatado nos versos li-vres e brancos, na valorização dos temas cotidianos,do prosaísmo, do sentimento pessimista em relaçãoao homem e à sociedade. O Orfismo apresentava ain-da uma visão mística ou esotérica da vida, o que porsi só fundamenta a sua herança neo-simbolista.

Sem dúvida esse espírito novidadeiro e rebeldedesencadeou de maneira precoce o Modernismo por-tuguês, como observa Otávio Paz: O assombroso é oaparecimento do grupo, à frente de seu tempo e desua sociedade.13

7. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

BRADBURY, Malcolm e McFarlane, James. Moder-nismo — Guia geral. São Paulo: Companhia das Le-tras, 1989.FRANÇA, Isabel Murteira. Fernando Pessoa na inti-midade. Lisboa: Dom Quixote, 1987.GIL, José. Fernando Pessoa ou a metafísica das sen-sações. Lisboa: Relógio d’Água, s/d.GOMES, Álvaro Cardoso. Fernando Pessoa: as mui-tas águas de um rio. São Paulo: Pioneira /Edusp, 1987.MOISÉS, Leyla Perrone-. Aquém do eu, além do ou-tro. 3. ed. (rev. amp.) São Paulo: Martins Fontes, 2001.MOISÉS, Massaud. Fernando Pessoa: o espelho e aesfinge. São Paulo: Cultrix / Edusp, 1988.MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa em pers-pectiva. São Paulo: Atlas, 1994, v. 4..PAZ, Otávio. Signos em rotação. 2. ed. São Paulo:Perspectiva, 1976.PESSOA, Fernando. Fernando Pessoa: Obra poéti-ca. Rio de Janeiro: Aguilar, 1977.

13 PAZ, Otávio. Signos em rotação. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1976.

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QUADROS, António. Fernando Pessoa — Obra po-ética e em prosa. Porto: Lello & Irmão, 1986.SARAIVA, António José e LOPES, Óscar. Históriada literatura portuguesa. 13. ed. (cor. e atual.) Porto:Porto Editorial, 1985.SEABRA, José Augusto. O heterotexto pessoano. SãoPaulo: Perspectiva, 1988.SIMÕES, João Gaspar. Vida e obra de Fernando Pes-soa (História de uma geração). 2 volumes. Lisboa:Livraria Bertrand, 1954.TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia eModernismo brasileiro. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 1986.

Leia o texto abaixo para responder à questão 1:

Não me importo com as rimas. Raras vezesHá duas árvores iguais, uma ao lado da outra.Penso e escrevo como as flores têm corMas com menos perfeição no meu modo de exprimir-mePorque me falta a simplicidade divinaDe ser todo só o meu exteriorOlho e comovo-me,Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado,E a minha poesia é natural como o levantar-se vento…

A respeito do texto transcrito responda:a) A leitura atenta do texto permite afirmar que Alberto

Caeiro valoriza a simplicidade e a espontaneidade. Querecurso formal é recusado pelo eu lírico?

b) Que elementos do texto caracterizam a poesia de Al-berto Caeiro?

(Fuvest-SP) Leia o seguinte poema de Alberto Caeiro:

Ponham na minha sepulturaAqui jaz, sem cruz,Alberto CaeiroQue foi buscar os deuses…Se os deuses vivem ou não isso é convosco.A mim deixei que me recebessem.

a) Identifique, no poema, a modalidade religiosa que opoeta rejeita e aquela com que tem maior afinidade.Explique sucintamente.

b) Relacione a referência a “deuses” (plural), no poema,com o seguinte verso, extraído de outro poema de Al-berto Caeiro: “A natureza é partes sem um todo”.

(Fuvest-SP) Comparando-se as concepções relativasà natureza presentes no excerto de Guimarães Rosa comas que se manifestam nos poemas de Alberto Caeiro, veri-fica-se que, em Rosa, _______ , ao passo que, em Caeiro,_______ .Mantida a seqüência, os espaços pontilhados podem serpreenchidos corretamente pelo que está em:a) a observação da natureza provoca um desejo de nome-

ação e até de invenção lingüística — o ideal seria o deque os elementos da natureza valessem por si mesmos,sem nome nenhum

b) a natureza é pura exterioridade, desprovida de alma —ela é um ente animado, dotado de interioridade e per-sonalidade

c) a natureza vale por seus aspectos estéticos e simbóli-cos — ela tem valor prático e utilitário, ou seja, é valo-rizada na medida em que, transformada pela técnica,serve para suprir as necessidades humanas

d) a relação com a natureza é pessoal e até íntima — anatureza apresenta caráter hostil e, mesmo, ameaçador

e) a natureza é misteriosa e indecifrável — ela é portado-ra de uma mensagem mística que o homem deve deci-frar, servindo-se dos instrumentos da razão

Assinale a alternativa que apresente o excerto de umpoema de Alberto Caeiro que comprove o enquadramentode sua visão de mundo no realismo sensorial:a) O meu olhar é nítido como um girassol.

Tenho o costume de andar pelas estradasOlhando para a direita e para a esquerda,E de vez em quando olhando para trás…E o que vejo a cada momentoÉ aquilo que nunca antes eu tinha visto,E eu sei dar por isso muito bem…Sei ter o pasmo essencialQue tem uma criança se, ao nascer,Reparasse que nascera deveras…Sinto-me nascido a cada momentoPara a eterna novidade do Mundo…

b) Quando me sento a escrever versosOu, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,Sinto um cajado nas mãosE vejo um recorte de mimNo cimo dum outeiro,Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,E sorrindo vagamente como quem não compreende o

[que se dizE quer fingir que compreende.

c) O mistério das cousas?Sei lá o que é mistério!O único mistério é haver quem pense no mistério.Quem está ao sol e fecha os olhos,Começa a não saber o que é o solE a pensar muitas cousas cheias de calor.Mas abre os olhos e vê o sol,E já não pode pensar em nada,Porque a luz do sol vale mais que os pensamentosDe todos os filósofos e de todos os poetas.A luz do sol não sabe o que fazE por isso não erra e é comum e boa.

d) Mas se Deus é as árvores e as floresE os montes e o luar e o sol,Para que lhe chamo eu Deus?Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;Porque, se ele se fez, para eu o ver,

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Sol e luar e flores e árvores e montes,Se ele me aparece como sendo árvores e montesE luar e sol e flores,É que ele quer que eu o conheçaComo árvores e montes e flores e luar e sol.

e) Sejamos simples e calmos,Como os regatos e as árvores,E Deus amar-nos-á fazendo de nósBelos como as árvores e os regatos,E dar-nos-á verdor na sua Primavera,E um rio aonde ir ter quando acabemos!…

Leia o trecho a seguir para responder às questões 5 e 6.

O que nós vemos das cousas são as cousas.Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nosSe ver e ouvir são ver e ouvir ?O essencial é saber ver,Saber ver sem estar a pensar,Saber ver quando se vê,E nem pensar quando se vêNem ver quando se pensa.Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),Isso exige um estudo profundo,Uma aprendizagem de desaprenderE uma seqüestração na liberdade daquele conventoDe que os poetas dizem que as estrelas são as freiras

[eternasE as flores as penitentes convictas de um só dia,Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelasNem as flores senão flores,Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.

O Guardador de Rebanhos, Op. cit. p. 217-218.

Que características de Alberto Caeiro estão presentesno poema?

Assinale a alternativa incorreta sobre o trecho trans-crito:a) O poeta posiciona-se a favor de uma realidade sentida

e não pensada.b) O eu lírico valoriza o sentido da visão.

c) Observa-se a presença da coisificação, que sugere queas coisas não são mais do que coisas.

d) O poeta procura abstrair-se do sentido aparente dascoisas para conhecer seu sentido mais profundo.

e) O poema pode ser definido como antifilosófico, por-que se nega a aceitar o pensamento.

Respostas

1. a) O eu lírico recusa o emprego das rimas porque não enxer-ga na natureza duas coisas iguais. Ele valoriza o empregode versos brancos, sem rimas.

b) O texto apresenta uma linguagem simples, versos livres,oralidade e a visão de Caeiro de que o modo de vida sim-ples e tranqüilo é a única maneira de encontrar a felicida-de. Outro aspecto relevante é a idéia de uma poesia quesurge de forma natural e resultante de uma visão de mun-do realista e sensorial, como o verso “De ser todo só omeu exterior” pode comprovar.

2. a) O poeta rejeita o catolicismo (cristianismo), representadopela presença da cruz, porque o percebe como crença me-tafísica, espiritual. Por outro lado, afirma sua afinidadecom o paganismo, visto como aproximação com as forçasda natureza e, portanto, material.

b) Caeiro recusa a idéia de uma natureza una e de um con-ceito abstrato, porque acredita que existam partes concre-tas que mantêm sua individualidade (flores, pedras,estrelas). Para o poeta, as coisas não necessitam de umnome, porque são o que são. Ele recusa o nominalismo e aidéia de unidade. Isso também é aplicável aos deuses, umavez que o paganismo recusa a unidade e valoriza a plura-lidade dos deuses, sua individualidade.

3. a4. c

A alternativa transcreve um trecho que define a realidadecomo algo que não deve ser pensado, mas percebido atravésdo sentido da visão.

5. O trecho apresenta a valorização sensorial em detrimento davisão metafísica (realismo sensorial), a simplicidade voca-bular através da repetição, a aproximação com a linguagemfalada (oralidade) e a liberdade formal (versos livres e bran-cos).

6. dO eu lírico procura valorizar exatamente o sentido aparentedas coisas, e não o sentido abstrato ou profundo.