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PROJETO LEITURA E DIDATIZAÇÃO ALBERTO CAEIRO – POEMAS COMPLETOS FERNANDO PESSOA Possíveis dialogismos trabalhados neste Projeto: 1. Heteronímia e o confronto de paisagens (Leitura 1) I. Caeiro é Pessoa II. Caeiro é um “mestre” pastor III. Os sentidos e as sensações para o Mestre Caeiro e em cada um 2. O fazer poético (Leitura 2) 3. Áurea mediocritas, no século XX (Leitura 3) I. O pastoreio: estratégia e tema II. a.C/d.C – Antes e depois de Caeiro 4. Religiosamente, ao meu modo (Leitura 4) LEITURA 1 HETERONÍMIA E O CONFRONTO DE PAISAGENS Antes de iniciarmos qualquer estudo sobre a obra de Fer- nando Pessoa, é muito importante conhecermos as regras do jogo estabelecido por ele. Trata-se de uma obra singu- lar produzida a partir da divisão do próprio artista em per- sonalidades diversas, as quais chamou de heterônimos. Mas nada melhor do que o próprio Fernando Pessoa a ex- plicar-se, no trecho inicial de sua “Tábua bibliográfica”, escrita em 1928. Por Davi Fazzolari 1

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PROJETO LEITURA E DIDATIZAÇÃO

ALBERTO CAEIRO – POEMAS COMPLETOSFERNANDO PESSOA

Possíveis dialogismos trabalhados neste Projeto:

1. Heteronímia e o confronto de paisagens (Leitura 1)I. Caeiro é PessoaII. Caeiro é um “mestre” pastorIII. Os sentidos e as sensações para o Mestre Caeiro

e em cada um

2. O fazer poético (Leitura 2)

3. Áurea mediocritas, no século XX (Leitura 3)I. O pastoreio: estratégia e temaII. a.C/d.C – Antes e depois de Caeiro

4. Religiosamente, ao meu modo(Leitura 4)

LEITURA 1

HETERONÍMIA E O CONFRONTO DE PAISAGENS

Antes de iniciarmos qualquer estudo sobre a obra de Fer-nando Pessoa, é muito importante conhecermos as regras do jogo estabelecido por ele. Trata-se de uma obra singu-lar produzida a partir da divisão do próprio artista em per-sonalidades diversas, as quais chamou de heterônimos. Mas nada melhor do que o próprio Fernando Pessoa a ex-plicar-se, no trecho inicial de sua “Tábua bibliográfica”, escrita em 1928.

PorDaviFazzolari

1

TEXTO 1TÁBUA BIBLIOGRÁFICA

Nasceu em Lisboa, em 13 de junho de 1888. Foi educado no Liceu (highschool) de Durban, Natal, África do Sul, e na Universidade (inglesa) do Cabo de Boa Esperança. Nesta ga-nhou o prêmio Rainha Victória de estilo inglês; foi em 1903 – o primeiro ano em que esse prêmio se concedeu.

O que Fernando Pessoa escreve pertence a duas catego-rias de obras, a que poderemos chamar ortônimas e heterôni-mas. Não se poderá dizer que são anônimas e pseudônimas, porque deveras o não são. A obra pseudônima é do autor em sua pessoa, salvo no nome que assina; a heterônima é do autor fora de sua pessoa, é de uma individualidade completa fabricada por ele, como seriam os dizeres de qualquer perso-nagem de qualquer drama seu.

As obras heterônimas de Fernando Pessoa são feitas por, até agora, três nomes de gente – Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos. Estas individualidades devem ser consideradas como distintas da do autor delas. Forma cada uma, uma espécie de drama; e todas elas juntas formam ou-tro drama. Alberto Caeiro, que se tem por nascido em 1889 e morto em 1915, escreveu poemas com uma, e determinada, orientação. Teve por discípulos – oriundos, como tais, de di-versos aspectos dessa orientação – aos outros dois: Ricardo Reis, que se considera nascido em 1887, e que isolou naquela obra, estilizando, o lado intelectual e pagão; Álvaro de Cam-pos, nascido em 1890, que nela isolou o lado por assim dizer emotivo, a que chamou “sensacionista”, e que – ligando-o a influências diversas, em que predomina, ainda que abaixo da de Caeiro, a de Walt Whitman – produziu diversas compli-cações, em geral de índole escandalosa e irritante, sobretudo para Fernando Pessoa, que em todo o caso não tem remédio senão fazê-las e publicá-las, por mais que delas discorde. As obras destes três poetas formam, como se disse, um con-junto dramático; e está devidamente estudada a entreação intelectual das personalidades, assim como as suas próprias relações pessoais. Tudo isto constará de biografias a fazer, acompanhadas, quando se publiquem, de horóscopos e, tal-

vez, de fotografias. É um drama em gente, em vez de em atos. (Se estas três individualidades são mais ou menos reais que o próprio Fernando Pessoa – é problema metafísico, que este, ausente do segredo dos Deuses, e ignorando portanto o que seja realidade, nunca poderá resolver.)

PESSOA, Fernando. In: Presença. Coimbra, n. 17, dez. 1928

(Edição fac-símile. Lisboa: Contexto, 1993).

I – CAEIRO é PESSOA

TEXTO 2PASSAGEM DAS HORAS (DOIS EXCERTOS)

Sentir tudo de todas as maneiras,Viver tudo de todos os lados,Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,Realizar em si toda a humanidade de todos os momentosNum só momento difuso, profuso, completo e longínquo.

(...)

Multipliquei-me para me sentir,Para me sentir, precisei sentir tudo,Transbordei, não fiz senão extravasar-me,Despi-me entreguei-me.E há em cada canto da minha alma um altar a um deus di-ferente.

PESSOA, Fernando. “Passagem das horas”. In: ÁlvarodeCampos–

Livrodeversos. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização

e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.

MetafísicaéumsegmentodaFilosofiaqueestudaepro-cura entender o ser e sua complexa realidade. AlbertoCaeiromostra-sesempremuitoirritadocomametafísica,oucomousoquesefazdela,porconsiderá-laresponsávelpordebatesvazios.

2

1. No texto 1, lê-se a expressão “drama em gente”. Relacione-a ao texto 2, destacando ao menos dois de seus versos.

2. Quem são os autores dos textos 1 e 2 e quem são os hete-rônimos?

3. O que, em sua opinião, Fernando Pessoa/Álvaro de Cam-pos quer dizer quando usa o verbo “sentir”?

TEXTO 3CARTA A ADOLFO CASAIS MONTEIRO, ESCRITA EM 13 DE JANEIRO DE 1935 (EXCERTO)

Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poe-ta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de março de 1914 – acerquei-me de uma cômoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que pos-so. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o ab-surdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imedia-tamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reação de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.

Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe desco-brir – instintiva e subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis laten-te, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jato, e à máquina de escrever, sem inter-rupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.

Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, co-nheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Pa-rece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.

PESSOA, Fernando. Escritosíntimos,cartasepáginasautobiográficas.

(Introdução, organização e notas de Antônio Quadros.) Lisboa:

Publicações Europa-América, 1986.

4. Destaque do texto 3 o momento em que Fernando Pessoa descreve o surgimento de Alberto Caeiro.

5. Que característica Fernando Pessoa atribui imediatamen-te ao heterônimo Caeiro?

Adolfo Casais Monteiro,alémdepoeta,foicríticoehis-toriadordeliteratura.NasceuemPortugal,nacidadedoPorto,em1908,efaleceunoBrasil,emSãoPaulo,em1972.SeunomeédestaquenosestudossobreaobradeFernandoPessoa,tendorecebidodeleafamosacartaqueesclareceaorigemdosheterônimos.

3

6. Por que, em dado momento da carta, seu autor, sendo Fernando Pessoa, vale-se da terceira pessoa para falar de Fer-nando Pessoa?

7. Destaque do texto 3 o modo como Fernando Pessoa/autor da carta refere-se ao poeta Fernando Pessoa.

8. Que outros heterônimos são descritos na carta a Adolfo Casais Monteiro e como são qualificados?

II – CAEIRO é UM “MESTRE” PASTOR

TEXTO 4O GUARDADOR DE REBANHOS

IX

Sou um guardador de rebanhos. O rebanho é os meus pensamentos E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calorMe sinto triste de gozá-lo tanto,E me deito ao comprido na erva,E fecho os olhos quentes, Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,Sei a verdade e sou feliz.

CAEIRO, Alberto. “O guardador de rebanhos”. In: PESSOA, Fernando. Alberto

Caeiro–Poemascompletos. São Paulo: Saraiva, 2007 (Clássicos Saraiva).

9. No IX poema de “O guardador de rebanhos” o eu-lírico reafirma sua concepção de vida.

a) O eu-lírico é, de fato, um “guardador de rebanhos”?

b) Do que é constituído o “rebanho” anunciado pelo eu-lírico?

10. Ao longo do poema, o eu-lírico desenvolve uma teoria ligada aos sentidos humanos.

a) Destaque os momentos em que os sentidos são apre-sentados.

b) Comente livremente o modo de apresentar os sentidos do eu-lírico, nesse poema.

11. Como o verso “Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la” explica a concepção de mundo de Caeiro?

12. De qual “verdade” trata o eu-lírico ao final do poema, quando afirma “Sei a verdade e sou feliz.”?

TEXTO 5MESTRE, MEU MESTRE QUERIDO!

Mestre, meu mestre querido! Coração do meu corpo intelectual e inteiro! Vida da origem da minha inspiração!Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?

Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada.Alma abstrata e visual até aos ossos,

A semântica do verbo saber, em Portugal, inclui aidéiadepaladar.Assim,saberbeméterumgostoagra-dável.

4

Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,Espírito humano da terra materna,Flor acima do dilúvio da inteligência subjetiva...

Mestre, meu mestre! Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos, Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser, Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos, Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!

Meu mestre e meu guia! A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou, Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente, Natural como um dia mostrando tudo, Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade. Meu coração não aprendeu nada. Meu coração não é nada, Meu coração está perdido.

Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi! Depois tudo é cansaço neste mundo subjetivado,Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas, Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas, Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente. Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento Pela indiferença de toda a vila.Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido. Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça, E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém Depois, mas porque é que ensinaste a clareza da vista,Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara? Porque é que me chamaste para o alto dos montes

Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar? Porque é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela Como quem está carregado de ouro num deserto,

Ou canta com voz divina entre ruínas?Porque é que me acordaste para a sensação e a nova alma, Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?

Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele Poeta decadente, estupidamente pretensioso, Que poderia ao menos vir a agradar, E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver. Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!

Feliz o homem marçano, Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada. Que tem a sua vida usual, Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio. Que dorme sono, Que come comida, Que bebe bebida, e por isso tem alegria.

A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação. Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo. Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.

PESSOA, Fernando. PoesiasdeÁlvarodeCampos. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).

13. Que inquietude de Álvaro de Campos, em relação ao seu mestre, Caeiro, o eu-lírico do texto 5 revela? Justifique sua resposta a partir de elementos do próprio poema.

14. Destaque do poema expressões que evidenciam impossi-bilidades ou limitações humanas.

15. Do que trata a “ciência de ver” mencionada no poema?

16. Por que, em sua opinião, o eu-lírico atribui o adjetivo “pa-vorosa” para “a ciência de ver”?

5

TEXTO 6MESTRE, SÃO PLÁCIDAS

Mestre, são plácidasTodas as horasQue nós perdemos.Se no perdê-las,Qual numa jarra,Nós pomos flores.Não há tristezasNem alegriasNa nossa vida.Assim saibamos,Sábios incautos,Não a viver,

Mas decorrê-la,Tranqüilos, plácidos,Tendo as criançasPor nossas mestras,E os olhos cheiosDe Natureza...

A beira-rio,A beira-estrada,Conforme calha,Sempre no mesmoLeve descansoDe estar vivendo.

O tempo passa,Não nos diz nada.Envelhecemos.Saibamos, quaseMaliciosos,Sentir-nos ir.

Não vale a penaFazer um gesto.

Não se resisteAo deus atrozQue os próprios filhosDevora sempre.

Colhamos flores.Molhemos levesAs nossas mãosNos rios calmos,Para aprendermosCalma também.

Girassóis sempreFitando o Sol,Da vida iremosTranqüilos, tendoNem o remorsoDe ter vivido.

PESSOA, Fernando. OdesdeRicardoReis. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz

de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp. 1994).

17. Também Ricardo Reis, que chegou a prefaciar o livro de Caeiro, reverencia o “pastor amoroso”.

a) Destaque do texto 6 a palavra utilizada pelo eu-lírico para referir-se ao interlocutor.

b) Destaque trechos em que se possam ler ensinamentos do mestre para Ricardo Reis.

18. Ao confrontarmos o texto 5, assinado por Álvaro de Campos, com o texto 6, assinado por Ricardo Reis, é pos-sível notar certa distância de comportamento dos dois em relação aos ensinamentos do mestre Caeiro. Comente essa afirmação.

6

III – OS SENTIDOS E AS SENSAÇõES PARA O MESTRE CAEIRO E EM CADA UM

TEXTO 7A ESPANTOSA REALIDADE DAS COISAS

A espantosa realidade das coisas É a minha descoberta de todos os dias.Cada coisa é o que é,E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastantes poemas.Hei-de escrever muitos mais, naturalmente.Cada poema meu diz isto,E todos os meus poemas são diferentes,Porque cada coisa que há é uma maneira de dizer isto.

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.Não me ponho a pensar se ela sente.Não me perco a chamar-lhe minha irmã.Mas gosto dela por ela ser uma pedra,Gosto dela porque ela não sente nada.Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

Outras vezes ouço passar o vento,E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem esforço,Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar;Porque o penso sem pensamentos,Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

Uma vez chamaram-me poeta materialista, E eu admirei-me, porque não julgava Que se me pudesse chamar qualquer coisa.Eu nem sequer sou poeta: vejo.

Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho: O valor está ali, nos meus versos. Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.

CAEIRO, Alberto. “Poemas inconjuntos”. In: PESSOA, Fernando. Alberto

Caeiro–Poemascompletos. São Paulo: Saraiva, 2007 (Clássicos Saraiva).

19. Da série dos “Poemas inconjuntos”,talvez o verso isolado na estrofe “Basta existir para se ser completo.” seja o que de modo mais simples apresenta o complexo jeito de ser de Caeiro. Explique-o ao seu modo e depois exponha seu pen-samento para a classe.

20. Em “Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto”, o eu-lírico faz uma provocação aos leitores de todas as épocas. E você, o que pensa ao ler os versos de Fernando Pessoa/Al-berto Caeiro? Também acha possível pensarsempensamentos?

LEITURA 2

O FAZER POéTICO

Leia o poema a seguir e inicie suas reflexões sobre o “fazer poético”. Depois responda às questões propostas.

TEXTO 8O GUARDADOR DE REBANHOS

XIV

Não me importo com as rimas. Raras vezes Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra. Penso e escrevo como as flores têm cor Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-mePorque me falta a simplicidade divina De ser todo só o meu exterior.Olho e comovo-me,

7

Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinadoE a minha poesia é natural como o levantar-se vento...

CAEIRO, Alberto. “O guardador de rebanhos”. In: PESSOA, Fernando. Alberto

Caeiro–Poemascompletos. São Paulo: Saraiva, 2007 (Clássicos Saraiva).

1. Destaque do poema elementos que demonstrem preocu-pação do eu-lírico com a forma do poema.

2. O poeta, ao considerar o aspecto formal da poesia que pro-duz, usa como estratégia a comparação exemplificativa, ao modo dos filósofos.

a) Qual a premissa da qual parte o eu-lírico?

b) Destaque, do poema, duas comparações.

c) A que conclusão podemos chegar, ao analisarmos as esco-lhas comparativas do poeta?

Um dos temas mais freqüentes na literatura, a partir da virada do século XIX-XX até hoje, é a própria literatura. Uma série de situações motivadoras levavam e ainda levam o leitor a considerar o próprio meio como produto a transmitir as con-siderações do prosador ou do poeta. Falando de modo mais es-pecífico, foi a partir do Realismo e do Simbolismo, na segun-da metade do século XIX, que os aspectos formais passaram a fazer parte mais ativa das interpretações e das extrapolações, nos variados processos de leitura. O que era apenas o supor-te técnico – apenas eventualmente explorado de modo mais ousado – assumiu definitivamente o ambiente que era quase exclusividade dos temas, enredos e tramas. E nessa situação em que a metalinguagem passou a ser usada com mais cons-tância, o “fazer poético” talvez tenha se revelado um exercício comparável à “natureza-morta”, nas artes plásticas.

Muito convenientemente, escrever versos para apresentar uma espécie de receita de como fazer versos passou a revelar

não só a linguagem de época, mas também o objetivo estético de cada poeta. Assim, o “fazer poético” para um poeta parna-siano está formalmente muito distante do “fazer poético” de um poeta modernista, apesar de explorarem o mesmo tema.

Leia, a seguir, os versos do poeta parnasiano Olavo Bi-lac e procure desenvolver sua reflexão sobre o assunto.

TEXTO 9PROFISSÃO DE Fé

Não quero o Zeus CapitolinoHercúleo e belo,Talhar no mármore divino Com o camartelo.

Que outro – não eu! – a pedra corte Para, brutal,Erguer de Atene o altivo porte Descomunal.

Mais que esse vulto extraordinário, Que assombra a vista,Seduz-me um leve relicário De fino artista.

Invejo o ourives quando escrevo:Imito o amorCom que ele, em ouro, o alto relevo Faz de uma flor.

Imito-o. E, pois, nem de Carrara A pedra firo:O alvo cristal, a pedra rara, O ônix prefiro.

Por isso, corre, por servir-me, Sobre o papelA pena, como em prata firme Corre o cinzel.

8

Corre; desenha, enfeita a imagem, A idéia veste:Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem Azul-celeste.

Torce, aprimora, alteia, lima A frase; e, enfim, No verso de ouro engasta a rima, Como um rubim.

Quero que a estrofe cristalina, Dobrada ao jeitoDo ourives, saia da oficina Sem um defeito:

E que o lavor do verso, acaso, Por tão subtil,Possa o lavor lembrar de um vaso De Becerril.

E horas sem conto passo, mudo, O olhar atento,A trabalhar, longe de tudo O pensamento.

Porque o escrever – tanta perícia, Tanta requer,Que ofício tal... nem há notíciaDe outro qualquer.Assim procedo. Minha pena Segue esta norma,Por te servir, Deusa serena,Serena Forma!Deusa! A onda vil, que se avoluma De um torvo mar,Deixa-a crescer; e o lodo e a espumaDeixa-a rolar!

Blasfemo, em grita surda e horrendoÍmpeto, o bandoVenha dos bárbaros crescendo,Vociferando...

Deixa-o: que venha e uivando passe– Bando feroz!Não se te mude a cor da faceE o tom da voz!

Olha-os somente, armada e pronta,Radiante e bela:E, ao braço o escudo, a raiva afrontaDessa procela!

Este que à frente vem, e o todoPossui minazDe um vândalo ou de um visigodo,Cruel e audaz;

Este, que, de entre os mais, o vultoFerrenho alteia,E, em jato, expele o amargo insultoQue te enlameia:

É em vão que as forças cansa, e à lutaSe atira; é em vãoQue brande no ar a maça brutaA bruta mão.

Não morrerás, Deusa sublime!Do trono egrégioAssistirás intacta ao crimeDo sacrilégio.E, se morreres por ventura,Possa eu morrerContigo, e a mesma noite escuraNos envolver!

9

Ah! ver por terra, profanada,A ara partidaE a Arte imortal aos pés calcada,Prostituída!...

Ver derribar do eterno sólioO Belo, e o somOuvir da queda do Acropólio,Do Partenon!...

Sem sacerdote, a Crença mortaSentir, e o sustoVer, e o extermínio, entrando a portaDo templo augusto!...

Ver esta língua, que cultivo,Sem ouropéis,Mirrada ao hálito nocivoDos infiéis!...

Não! Morra tudo que me é caro,Fique eu sozinho!Que não encontre um só amparoEm meu caminho!

Que a minha dor nem a um amigoInspire dó...Mas, ah! que eu fique só contigo,Contigo só!

Vive! que eu viverei servindoTeu culto, e, obscuro,Tuas custódias esculpindoNo ouro mais puro.Celebrarei o teu ofícioNo altar: porém,Se inda é pequeno o sacrifício,Morra eu também!

Caia eu também, sem esperança,Porém tranqüilo,Inda, ao cair, vibrando a lança,Em prol do Estilo!

BILAC, Olavo (1865-1918)

ObrareunidadeOlavoBilac. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996.

3. Destaque do poema ao menos duas comparações estabele-cidas pelo eu-lírico para o “fazer poético”.

4. Há em “Profissão de fé” uma comparação para o próprio eu-lírico. Comente tal afirmação e justifique seu comentário com elementos do poema de Bilac.

5. O eu-lírico demonstra um “fazer poético” como em uma receita para produzir versos. Para tanto estabelece um diálo-go com elementos da arte poética:

a) Quais são esses elementos? Destaque do poema dois mo-mentos em que nitidamente o poeta os reverencia.

b) Reescreva, com suas palavras, a receita de Olavo Bilac para fazer poesia.

6. Tanto a poesia de Caeiro, no texto 8, como a de Bilac, no texto 9, apresentam um modo de fazer poético.

a) Destaque dos dois poemas um momento em que o mes-mo “ingrediente” é considerado.

b) Demonstre as diferentes concepções do “fazer poético” a partir dos próprios poemas.

Leia, agora, outro poema de “O guardador de rebanhos” e dê continuidade às reflexões sobre o assunto.

10

TEXTO 10O GUARDADOR DE REBANHOS

XXXVI

E há poetas que são artistas E trabalham nos seus versos Como um carpinteiro nas tábuas!...

Que triste não saber florir! Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro E ver se está bem, e tirar se não está!...

Quando a única casa artística é a Terra toda Que varia e está sempre boa e é sempre a mesma.

Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem não pensa, E olho para as flores e sorrio... Não sei se elas me compreendem Nem se eu as compreendo a elas, Mas sei que a verdade está nelas e em mim E na nossa comum divindade De nos deixarmos ir e viver pela Terra E levar ao colo pelas Estações contentes E deixar que o vento cante para adormecermos,E não termos sonhos no nosso sono.

CAEIRO, Alberto. “O guardador de rebanhos”. In: PESSOA, Fernando.

AlbertoCaeiro–Poemascompletos. São Paulo: Saraiva, 2007 (Clássicos Saraiva).

7. Tanto o poema de Olavo Bilac, “Profissão de fé”, como o poema XXXVI de “O guardador de rebanhos”, de Pessoa/Caeiro, estabe-lecem comparação de um poeta com um outro profissional.

a) Destaque do poema de Bilac o momento em que isso se dá.

b) Faça o mesmo com o poema de Caeiro.

8. Como já pudemos perceber, nas reflexões anteriores, Al-berto Caeiro, heterônimo criado por Pessoa no início do sé-culo XX, vê a poesia de uma forma bem diferente de Olavo Bilac. O poeta parnasiano escreveu “Profissão de fé” quase um quarto de século antes de Caeiro escrever seu “O guarda-dor de rebanhos”. E entre eles estão as chamadas vanguardas artísticas, que tanto influenciaram os modernismos portu-guês e brasileiro.

a) Que considerações críticas Caeiro explicita no texto 10 so-bre o “fazer poético” que não seja o seu próprio?

b) Qual é o melhor modo, para o poeta, de se fazer poesia?

9. As conclusões a que podemos chegar na comparação en-tre Fernando Pessoa/Alberto Caeiro e Olavo Bilac poderiam ser estendidas à própria virada do século XIX-XX. Desenvol-va uma breve síntese em que as diferentes visões do “fazer poético” estejam nítidas.

TEXTO 11CONSIDERAÇÃO DO POEMA

Não rimarei a palavra sonocom a incorrespondente palavra outono.Rimarei com a palavra carneou qualquer outra, que todas me convêm.As palavras não nascem amarradas,elas saltam, se beijam, se dissolvem,no céu livre por vezes um desenho,são puras, largas, autênticas, indevassáveis.

Uma pedra no meio do caminhoou apenas um rastro, não importa.Estes poetas são meus. De todo o orgulho,

11

de toda a precisão se incorporamao fatal meu lado esquerdo. Furto a Viniciussua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.Que Neruda me dê sua gravatachamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski.São todos meus irmãos, não são jornaisnem deslizar de lancha entre camélias:é toda a minha vida que joguei.

Estes poemas são meus. É minha terrae é ainda mais do que ela. É qualquer homemao meio-dia em qualquer praça. É a lanternaem qualquer estalagem, se ainda as há.– Há mortos? há mercados? há doenças?É tudo meu. Ser explosivo, sem fronteiras,por que falsa mesquinhez me rasgaria?Que se depositem os beijos na face branca, nas principiantes rugasO beijo ainda é um sinal, perdido embora,da ausência de comércio,boiando em tempos sujos.

Poeta do finito e da matéria,cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,boca tão seca, mas ardor tão casto.Dar tudo pela presença dos longínquos,sentir que há ecos, poucos, mas cristal,não rocha apenas, peixes circulandosob o navio que leva esta mensagem,e aves de bico longo conferindosua derrota, e dois ou três faróis,últimos! esperança do mar negro.Essa viagem é mortal, e começá-la.Saber que há tudo. E mover-se em meioa milhões e milhões de formas raras,secretas, duras. Eis aí meu canto.

Ele é tão baixo que sequer o escutaouvido rente ao chão. Mas é tão alto

que as pedras o absorvem. Está na mesaaberta em livros, cartas e remédios.Na parede infiltrou-se. O bonde, a rua,o uniforme de colégio se transformam,são ondas de carinho te envolvendo.

Como fugir ao mínimo objetoou recusar-se ao grande? Os temas passam,eu sei que passarão, mas tu resistes,e cresces como fogo, como casa,como orvalho entre dedos,na grama, que repousam.

Já agora te sigo a toda parte,e te desejo e te perco, estou completo,me destino, me faço tão sublime,tão natural e cheio de segredos,tão firme, tão fiel... Tal uma lâmina,o povo, meu poema, te atravessa.

ANDRADE, Carlos Drummond de. “A rosa do povo”. In: Poesiaeprosa.

Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1992. p. 94.

Carlos Drummond de Andrade, poeta brasileiro que passou por todas as fases do modernismo nacional, chegou a ser contemporâneo de Fernando Pessoa (1888-1935), mas pu-blicou “Consideração do poema” na década de 1940, quando Pessoa já havia falecido. Não será difícil, contudo, encontrar certas proximidades do “olhar para o mundo e para a vida”, entre um e outro poeta. Vejamos:

10. Extraia da primeira estrofe de “Consideração do poema”um elemento poético analisado pelo eu-lírico e que também foi tratado pelos textos 8 e 9.

11.“Consideração do poema”revela uma das buscas do poeta, no que diz respeito ao modo de se viver naqueles anos 1940.

12

Áurea mediocritas oumediocridadedourada éaexpressãoque sintetizaumconceitobastante caroaoArcadismo(XVII-XVIII).Trata-sedavaloriza-çãodavidasimplesemdetrimentodasostentaçõesdasriquezasmateriais.ParaospoetasdasArcádias,apenasasimplicidadedocotidianopoderialiberarohomemparaasexperiênciasessenciaisdavida.

a) Destaque da terceira estrofe expressões em que se possa ler uma descrição da vida.

b) Destaque da quinta estrofe trechos que apresentam situa-ções essenciais da vida do homem comum.

12. Em que as expressões que você destacou acima podem estar próximas da visão de mundo segundo os textos 8 e 10?

13. No verso “Poeta do finito e da matéria”, Drummond apro-xima-se ou distancia-se do poeta português? Justifique sua resposta com elementos dos poemas estudados.

14. Ao confrontarmos o texto 11 com os textos 8 e 10 é possível encontrar muitas semelhanças. Faça um levantamento:

a) quanto aos versos

b) quanto ao possível esquema de rimas

LEITURA 3

ÁUREA MEDIOCRITAS, NO SéCULO XX

I – O PASTOREIO: ESTRATéGIA E TEMA

A literatura, em todos os tempos, costuma valer-se de símbolos temáticos. A lira, por exemplo, está a serviço do

sentimento e mais intensa será sua presença, quanto mais emotivo for o texto. O “lirismo” passou a ser o gênero pelo qual é conhecida a produção da literatura responsável pela expressão subjetiva das emoções. Assim acontece também com a figura do pastor. A recorrência mais comum está nos textos sagrados, encontrados nos livros religiosos referen-ciais como a Bíblia, o Alcorão, a Torá. O pastor é sempre o responsável pela condução do povo a um lugar seguro e divino, por caminhos assistidos por Deus ou por outras entidades religiosas.

Na literatura, em função da força expressiva do sím-bolo, desenvolveu-se o gênero do “pastoralismo”. Apesar de mais freqüente em determinados períodos, a imagem meta-fórica do pastor pode ser lida em variadas épocas literárias. É, nesse caso temático, o ambiente quem dá o tom da poesia. Em paisagem bucólica e límpida, geralmente o pastoreio é exemplo de vida simples e virtuosa.

Quando Fernando Pessoa/Alberto Caeiro escreve “O guardador de rebanhos” e “O pastor amoroso”, retoma o pastoralismo muito presente no Arcadismo do século XVIII, por uma das forças máximas da expressão portu-guesa, o poeta Bocage.

TEXTO 12OLHA, MARÍLIA, AS FLAUTAS DOS PASTORES

Olha, Marília, as flautas dos pastoresQue bem que soam, como estão cadentes!Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentesOs Zéfiros brincar por entre flores?

Vê como ali, beijando-se, os AmoresIncitam nossos ósculos ardentes!Ei-las de planta em planta as inocentes,As vagas borboletas de mil cores.

Naquele arbusto o rouxinol suspira,Ora nas folhas a abelhinha pára,Ora nos ares, sussurrando, gira:

13

Que alegre campo! Que manhã tão clara!Mas ah! Tudo o que vês, se eu te não vira,Mais tristeza que a morte me causara.

BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. Poemas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.

1. A quem fala o eu-lírico? Quem é o interlocutor?

2. Bocage descreve uma natureza viva, moldura idealizada para viver um momento amoroso.

a) Destaque as expressões descritivas ligadas ao movimento da natureza.

b) Destaque expressões que servem à descrição do pastor.

c) Destaque os elementos que evidenciam o encontro amoroso.

3. A que o eu-lírico atribui tanta alegria e vivacidade?

TEXTO 13O GUARDADOR DE REBANHOS

I

Eu nunca guardei rebanhos,Mas é como se os guardasse.Minha alma é como um pastor,Conhece o vento e o solE anda pela mão das EstaçõesA seguir e a olhar.Toda a paz da Natureza sem gente

Vem sentar-se a meu lado.Mas eu fico triste como um pôr de solPara a nossa imaginação,Quando esfria no fundo da planícieE se sente a noite entradaComo uma borboleta pela janela.

(...)

Como um ruído de chocalhosPara além da curva da estrada,Os meus pensamentos são contentes.Só tenho pena de saber que eles são contentes,Porque, se o não soubesse,Em vez de serem contentes e tristes,Seriam alegres e contentes.

(...)

E se desejo às vezes,Por imaginar, ser cordeirinho(Ou ser o rebanho todoPara andar espalhado por toda a encostaA ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luzE corre um silêncio pela erva fora.

Quando me sento a escrever versosOu, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,Sinto um cajado nas mãosE vejo um recorte de mimNo cimo dum outeiro,Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéiasOu olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se dizE quer fingir que compreende.

(...)

Zéfiros:entidadesmitológicasque,napoesiaárcade,funcionamcomobrisaouvento.Ósculos:beijos.

14

CAEIRO, Alberto. “O guardador de rebanhos”. In: PESSOA, Fernando. Alberto

Caeiro–Poemascompletos. São Paulo: Saraiva, 2007 (Clássicos Saraiva).

4. Se o eu-poético do poema de Caeiro é um pastor, de que é constituído seu rebanho?

5. Quais características do pastor o eu-lírico, por compara-ção, toma para si?

6. Quais características do rebanho comum o eu-lírico em-presta para seu rebanho tão especial?

7. Em “Minha alma é como um pastor”, Fernando Pessoa/Alberto Caeiro estabelece a base comparativa que perdurará por todo o poema. Ao que o poeta compara:

a) o “pôr de sol”?

b) a noite?

c) escrever versos?

Assim como em Bocage, Fernando Pessoa/Alberto Caeiro também produzirá versos sobre o encontro amoroso. Trata-se justamente dos oito poemas que compõem “O pas-tor amoroso”.

Leia com atenção a breve seqüência desse poema, e re-flita sobre o tema a partir das questões propostas.

TEXTO 14O PASTOR AMOROSO

II

Está alta no céu a lua e é primavera.

Penso em ti e dentro de mim estou completo.

Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira.Penso em ti, murmuro o teu nome; não sou eu: sou feliz.

Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelos campos,E eu andarei contigo pelos campos a ver-te colher flores.

Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos,Mas quando vieres amanhã e andares comigo realmente a colher flores,Isso será uma alegria e uma novidade para mim.

CAEIRO, Alberto. “O pastor amoroso”. In: PESSOA, Fernando. AlbertoCaeiro–

Poemascompletos. São Paulo: Saraiva, 2007 (Clássicos Saraiva).

TEXTO 15O PASTOR AMOROSO

III

Agora que sinto amorTenho interesse nos perfumes.Nunca antes me interessou que uma flor tivesse cheiro.Agora sinto o perfume das flores como se visse uma coisa nova.Sei bem que elas cheiravam, como sei que existia.São coisas que se sabem por fora.Mas agora sei com a respiração da parte de trás da cabeça.Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira.Hoje às vezes acordo e cheiro antes de ver.

CAEIRO, Alberto. “O pastor amoroso”. In: PESSOA, Fernando. AlbertoCaeiro–

Poemascompletos. São Paulo: Saraiva, 2007 (Clássicos Saraiva).

8. Que elementos descritivos encontramos nos poemas II e III que também estão registrados no texto 12?

15

9. A quem o eu-lírico dirige a palavra? Quem é seu inter-locutor?

10. O texto 14 confronta duas situações temporais. Quais são elas? Justifique sua resposta com exemplos extraídos do poema.

11. O texto 15 também apresenta duas situações temporais. Localize-as no próprio poema.

12. O poeta anuncia, no texto 15, um certo interesse pelos perfumes.

a) Ao que está condicionado esse interesse?

b) Esse interesse pode ser comparado ao modo de ver o mun-do do eu-lírico criado por Bocage, no texto 12? Quais seriam as semelhanças?

O pastoralismo também foi exercitado no Brasil, e um nome importante do Arcadismo nacional, Tomás Antônio Gonzaga, nos deu, em 1792, as famosas “Liras”, popular-mente conhecidas por “Marília de Dirceu”.

TEXTO 16MARÍLIA DE DIRCEU

PARTE ILira I Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,Que viva de guardar alheio gado;De tosco trato, d’expressões grosseiro, Dos frios gelos, e dos sóis queimado.Tenho próprio casal, e nele assisto;Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;Das brancas ovelhinhas tiro o leite,E mais as finas lãs, de que me visto.

Graças, Marília bela,Graças à minha Estrela! Eu vi o meu semblante numa fonte,Dos anos inda não está cortado:Os pastores, que habitam este monte,Com tal destreza toco a sanfoninha,Que inveja até me tem o próprio Alceste:Ao som dela concerto a voz celeste;Nem canto letra, que não seja minha,Graças, Marília bela,Graças à minha Estrela! Mas tendo tantos dotes da ventura,Só apreço lhes dou, gentil Pastora,Depois que teu afeto me segura,Que queres do que tenho ser senhora.É bom, minha Marília, é bom ser donoDe um rebanho, que cubra monte, e prado;Porém, gentil Pastora, o teu agradoVale mais q’um rebanho, e mais q’um trono.Graças, Marília bela,Graças à minha Estrela! Os teus olhos espalham luz divina,A quem a luz do Sol em vão se atreve:Papoula, ou rosa delicada, e fina,Te cobre as faces, que são cor de neve.Os teus cabelos são uns fios d’ouro;Teu lindo corpo bálsamos vapora.Ah! Não, não fez o Céu, gentil Pastora,Para glória de Amor igual tesouro.Graças, Marília bela,Graças à minha Estrela! Leve-me a sementeira muito emboraO rio sobre os campos levantado:Acabe, acabe a peste matadora,Sem deixar uma rês, o nédio gado.Já destes bens, Marília, não preciso:Nem me cega a paixão, que o mundo arrasta;Para viver feliz, Marília, bastaQue os olhos movas, e me dês um riso.

16

Graças, Marília bela,Graças à minha Estrela!

Irás a divertir-te na floresta,Sustentada, Marília, no meu braço;Ali descansarei a quente sesta,Dormindo um leve sono em teu regaço:Enquanto a luta jogam os Pastores,E emparelhados correm nas campinas,Toucarei teus cabelos de boninas,Nos troncos gravarei os teus louvores.Graças, Marília bela,Graças à minha Estrela! Depois de nos ferir a mão da morte,Ou seja neste monte, ou noutra serra,Nossos corpos terão, terão a sorteDe consumir os dois a mesma terra.Na campa, rodeada de ciprestes,Lerão estas palavras os Pastores:“Quem quiser ser feliz nos seus amores,Siga os exemplos, que nos deram estes.”Graças, Marília bela,Graças à minha Estrela!

LAPA, Manuel Rodrigues (ed.). ObrascompletasdeTomásAntônioGonzaga.

Rio de Janeiro: MEC/INL, 1957.

13. Localize nas “Liras” de Gonzaga elementos descritivos da natureza que possam ser aproximados das experiências de Bocage e de Caeiro nos textos 12, 13, 14 e 15.

14. A quem fala o eu-lírico?

15. Elabore um breve comentário sobre as três experiên-cias autorais, a partir de uma comparação entre os inter-locutores.

II – A.C/D.C – ANTES E DEPOIS DE CAEIRO

Muito antes de Caeiro, Bocage ou Tomás Antônio Gon-zaga, a natureza já se relacionava com pastores e pastoras que, em cantigas medievais, expressavam sua amargura ou felicidade amorosa a partir dos elementos da paisagem mais pura. No texto a seguir (em duas versões – português arcaico e atualizado), D. Dinis, rei e trovador, apresenta seu olhar feminino para o mundo.

TEXTO 17AI FLORES, AI FLORES DO VERDE PINO

– Ai flores, ai flores do verde pino,Se sabedes novas do meu amigo?Ai, Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,Se sabedes novas do meu amado?Ai, Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,Aquel que mentiu do que pôs comigo?Ai, Deus, e u é?Se sabedes novas do meu amado,Aquel que mentiu do que mi á jurado?Ai, Deus, e u é?

– Vós me preguntades pelo voss’amigo?E eu ben vos digo que é san’e vivo:Ai, Deus, e u é?

Vós me preguntades pelo voss’amado?E eu ben vos digo que é viv’e sano.Ai, Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é san’e vivoE seerá vosc’ant’o prazo saído:Ai, Deus, e u é?

17

E eu ben vos digo que é viv’e sanoE seerá vosc’ant’o prazo passado:Ai, Deus, e u é?

– Ai flores, ai flores do verde pinheiro,Sabeis notícias do meu namorado?Ai, Deus, onde está?

Ai flores, ai flores do verde ramo,Sabeis notícias do meu amado?Ai, Deus, onde está?

Sabeis notícias do meu namorado,Aquele que mentiu sobre o que combinou comigo?Ai, Deus, onde está?

Sabeis notícias do meu amado,aquele que mentiu sobre o que jurou?Ai, Deus, onde está?

– Vós perguntais pelo vosso namorado?E eu bem vos digo que está são e vivo:Ai, Deus, onde está?Vós perguntais pelo vosso amado?E eu bem vos digo que está vivo e são.Ai, Deus, onde está?

E eu bem vos digo que está são e vivoE estará convosco antes do prazo combinado:Ai, Deus, onde está?

E eu bem vos digo que está vivo e sãoE estará convosco antes de terminar o prazo:Ai, Deus, onde está?

D. Dinis (1261-1325).

In: CAMPEDELLI, Samira Yousseff.Literatura–História&texto.

SãoPaulo:Saraiva,1999.p.155.

16. Mesmo que a língua portuguesa utilizada por D. Dinis não seja a falada em nossos dias, não é difícil compreender qual é a busca do eu-lírico.

a) Descreva, ao seu modo, o eu-lírico da cantiga.

b) Qual é a preocupação do eu-lírico?

17. A quem se dirige o eu-lírico? Qual é o seu interlocutor?

18. O eu-lírico da cantiga de D. Dinis estabelece um diálogo direto com os elementos da natureza. Exercite sua imagina-ção e formule uma possível opinião de Alberto Caeiro sobre essa situação.

Bem mais recentemente, a música popular brasileira também insistiria com essa visão de uma vida mais simples, junto à natureza. A letra de “Casa no campo”popularizou-se na voz de Elis Regina.

TEXTO 18CASA NO CAMPO

Eu quero uma casa no campoOnde eu possa compor muitos rocks ruraisE tenha somente a certeza Dos amigos do peito e nada maisEu quero uma casa no campoOnde eu possa ficar no tamanho da pazE tenha somente a certeza Dos limites do corpo e nada maisEu quero carneiros e cabras pastando solenesNo meu jardimEu quero o silêncio das línguas cansadasEu quero a esperança de óculos

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E um filho de cuca legalEu quero plantar e colher com a mãoA pimenta e o salEu quero uma casa no campoDo tamanho ideal, pau-a-pique e sapéOnde eu possa plantar meus amigosMeus discos e livros E nada mais

Zé Rodrix e Tavito (1971). In: Elis, Phonogram, 1972.

19. Destaque do texto elementos que apresentam a concep-ção de mundo do eu-lírico.

20. O que, na concepção de mundo anunciada em “Casa no campo”,pode ser aproximado por semelhança aos poemas de Fernando Pessoa/Alberto Caeiro?

LEITURA 4

RELIGIOSAMENTE, AO MEU MODO

A religiosidade não ficaria de fora do rol temático do he-terônimo de Pessoa que mais questionou o modo irracio-nal como os homens cultivam o mistério. Alberto Caeiro aborda-a constantemente, seja de forma direta ou indireta. Apesar de ter afirmado – em conversa com os demais he-terônimos e com o próprio Fernando Pessoa (!) – não ter filosofia, insistia tanto em negar a filosofia e a religião mais institucional que, paradoxalmente, aos poucos, construiu uma visão filosófico-religiosa muito particular, sem filoso-fia e sem religião. Vejamos.

TEXTO 19O GUARDADOR DE REBANHOS

VIII

Num meio-dia de fim de primaveraTive um sonho como uma fotografia.Vi Jesus Cristo descer à terra. Veio pela encosta de um monte Tornado outra vez menino, A correr e a rolar-se pela erva E a arrancar flores para as deitar fora E a rir de modo a ouvir-se de longe.

(...)Nem sequer o deixavam ter pai e mãe Como as outras crianças. O seu pai era duas pessoas –Um velho chamado José, que era carpinteiro, E que não era pai dele; E o outro pai era uma pomba estúpida, A única pomba feia do mundo Porque não era do mundo nem era pomba. E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.(...)

Hoje vive na minha aldeia comigo. É uma criança bonita de riso e natural.Limpa o nariz ao braço direito,Chapinha nas poças de água, Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.Atira pedras aos burros, Rouba a fruta dos pomares E foge a chorar e a gritar dos cães. E, porque sabe que elas não gostam E que toda a gente acha graça, Corre atrás das raparigasQue vão em ranchos pelas estradas Com as bilhas às cabeças E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.

19

Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadasQuando a gente as tem na mão E olha devagar para elas. (...)

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro. Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava. Ele é o humano que é natural, Ele é o divino que sorri e que brinca. E por isso é que eu sei com toda a certeza Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina É esta minha quotidiana vida de poeta, E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre, E que o meu mínimo olhar Me enche de sensação, E o mais pequeno som, seja do que for, Parece falar comigo.

(...)

Damo-nos tão bem um com o outro Na companhia de tudo Que nunca pensamos um no outro, Mas vivemos juntos e dois Com um acordo íntimo Como a mão direita e a esquerda.

(...)

Esta é a história do meu Menino Jesus. Porque razão que se perceba Não há-de ser ela mais verdadeira Que tudo quanto os filósofos pensam E tudo quanto as religiões ensinam?

CAEIRO, Alberto. “O guardador de rebanhos”. In: PESSOA, Fernando. Alberto

Caeiro–Poemascompletos. São Paulo: Saraiva, 2007 (Clássicos Saraiva).

1. De que modo o eu-lírico vê Jesus, pela primeira vez?

2. Que características físicas e psicológicas o Jesus do poema revela?

3. Qual a grande diferença entre as crianças comuns, na vi-são do poeta, e o Jesus anunciado no poema?

4. Que relação o eu-lírico estabelece com o Jesus anunciado no poema? Confirme sua resposta com elementos extraídos do poema.

5. Apesar de ser considerado pelos demais heterônimos como o mestre, em dado momento do poema VIII, o eu-lírico atribui a Jesus essa característica. Quando isso acontece?

6. É possível detectar, nesses versos, o modo como o eu-líri-co vê o cristianismo? Justifique sua resposta com elementos do próprio poema.

7. Destaque ao menos um verso que poderia ser usado para sintetizar a religiosidade de Caeiro.

Gregório de Matos (1633-1696) foi, talvez, o poeta bra-sileiro que mais chamou nossa atenção para o conflituoso tema da religiosidade, nas letras nacionais, quando o ques-tionamento da fé perpassava todos os veículos artísticos. O claro-escuro do período Barroco levava o homem a sentir-se

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dividido entre o viver plenamente a partir dos sentidos ou guardar-se em louvor para a possível vida após a morte.

TEXTO 20BUSCANDO A CRISTO

A vós correndo vou, braços sagrados,Nessa cruz sacrossanta descobertosQue, para receber-me, estais abertos,E, por não castigar-me, estais cravados.

A vós, divinos olhos, eclipsadosDe tanto sangue e lágrimas abertos,Pois, para perdoar-me, estais despertos,E, por não condenar-me, estais fechados.

A vós, pregados pés, por não deixar-me,A vós, sangue vertido, para ungir-me,A vós, cabeça baixa, p’ra chamar-me

A vós, lado patente, quero unir-me,A vós, cravos preciosos, quero atar-me,Para ficar unido, atado e firme.

AMADO, James (ed.). GregóriodeMatos:Obrapoética. Rio de Janeiro: Record, 1990.

8. Destaque do poema de Gregório de Matos os elementos utilizados para descrever Jesus Cristo.

9. Destaque as palavras que servem ao poema para demons-trar um conflito anunciado pelo eu-lírico.

10. Que relacionamento o eu-lírico estabelece com Jesus?

11. Em algum momento o poema de Gregório de Matos pode ser comparado por semelhança ao poema VIII, de Fernando Pessoa/Alberto Caeiro?

Ao destacar a natureza como ambiente propício a uma vida regular e adequada ao ser humano, mais uma vez o heterônimo Alberto Caeiro é provocado pela religiosidade cristã, na figura de São Francisco de Assis, que, de modo bastante parecido – mas muito diferente! – ao seu, vislum-brava uma vida plena em Cristo quando reconhecia todos os seres da terra como seus irmãos. Caeiro é provocado e dá respostas. Vejamos.

TEXTO 21NOTAS PARA A RECORDAÇÃO DO MEU MESTRE CAEIRO

É muito curiosa a complexidade da simplicidade de Caeiro. É também muito curiosa a evolução do seu conceito do universo, ou, melhor, da falta de universo. Sendo abso-lutamente um sensacionista, as suas sensações são inteli-gências, com um raciocínio próprio, com um poder crítico próprio. Começando como uma espécie de S. Francisco de Assis sem fé, foi-se arrastando lentamente, aos rasgões nos obstáculos, através da brenha do que tinha aprendido (feliz-mente muito pouco). Finalmente, apareceu nu. Foi a cul-minância de “O Guardador de Rebanhos”, dos poemas (tão novos na superfície da função mais antiga no mundo!) de “O Pastor Amoroso” e dos poemas não-anômalos dos “Incon-juntos”. Esses poemas anômalos são já a invasão da verdade pela morte. Há alguns em que a visão como se perturba. O homem nu está experimentando a mortalha. Mas, por fim, e vendo a obra em conjunto, ela é o nu substantivo, porque o fato o cobria mal e o que a mortalha cobre é nada.

O seu comentário a S. Francisco de Assis dá tudo. Li-lhe uma vez, traduzindo rapidamente, parte das “Flo-rinhas”. Não li mais porque ele, indignado ou quase, me interrompeu com incômodo próprio. “É bom homem, mas

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está bêbado”, disse o meu mestre Caeiro. Pareceu-me isto, no repente, um impulso sem expressão apropriada; mas, logo a seguir, reparei na deliquescência de enternecimento do Santo, na candura da sua alma por trás desse e reconhe-ci a fotografia.

Álvaro de Campos.

LOPES, Teresa Rita.Pessoaporconhecer–Textosparaumnovomapa.

Lisboa: Estampa, 1990.

12. O heterônimo Álvaro de Campos inicia suas conjecturas sobre Caeiro a partir de duas oposições de sentidos. Quais são elas?

13. Para começar a descrever a mentalidade de Caeiro, Álvaro de Campos vale-se da figura de São Francisco.

a) Campos considera Caeiro semelhante a São Francisco de Assis?

b) O que significa “aparece nu”, na descrição comparativa que Campos realiza?

14. Como Caeiro, no texto de Campos, expressa sua opinião sobre o Santo?

TEXTO 22CÂNTICO DO SOL

Altíssimo, onipotente, bom Senhor, Teus são o louvor, a glória, a honra E toda a benção. Só a ti, Altíssimo, são devidos; E homem algum é digno De te mencionar. Louvado sejas, meu Senhor, Com todas as tuas criaturas,

Especialmente o Senhor Irmão Sol, Que clareia o dia E com sua luz nos alumia. E ele é belo e radiante Com grande esplendor: De ti, Altíssimo, é a imagem.Louvado sejas, meu Senhor, Pela irmã Lua e as Estrelas, Que no céu formaste claras E preciosas e belas.Louvado sejas, meu Senhor, Pelo irmão Vento, Pelo ar, ou nublado Ou sereno, e todo o tempo Pela qual às tuas criaturas dás sustento.Louvado sejas, meu Senhor, Pela irmã Água, Que é mui útil e humilde E preciosa e casta.Louvado sejas, meu Senhor, Pelo irmão Fogo Pelo qual iluminas a noite E ele é belo e jucundo E vigoroso e forte.Louvado sejas, meu Senhor, Por nossa irmã a mãe Terra Que nos sustenta e governa, E produz frutos diversos E coloridas flores e ervas.Louvado sejas, meu Senhor, Pelos que perdoam por teu amor, E suportam enfermidades e tribulações.Bem-aventurados os que sustentam a paz, Que por ti, Altíssimo, serão coroados.Louvado sejas, meu Senhor, Por nossa irmã a Morte corporal, Da qual homem algum pode escapar.Ai dos que morrerem em pecado mortal! Felizes os que ela achar

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Conformes à tua santíssima vontade, Porque a morte segunda não lhes fará mal!Louvai e bendizei a meu Senhor, E dai-lhe graças, E servi-o com grande humildade.

São Francisco de Assis (1181-1226).

Disponível em: franciscanos.org.br/.

15. Assim como lemos nos textos 19 e 20, também o eu-lírico de São Francisco de Assis, em seu CânticodoSol, estabelece um relacionamento com o divino.

a) Como o eu-lírico refere-se a Deus?

b) Qual a postura adotada pelo eu-lírico, ao dialogar com Deus?

16. Destaque dos versos de São Francisco de Assis elementos que descrevam a natureza divinizada.

17. Como o eu-lírico relaciona-se com os elementos da natureza?

TEXTO 23LERAM-ME HOJE S. FRANCISCO DE ASSIS

Leram-me hoje S. Francisco de Assis.Leram-me e pasmei.Como é que um homem que gostava tanto das cousasNunca olhava para elas, não sabia o que elas eram?Para que hei-de chamar minha irmã à água, se ela não é minha irmã?Para a sentir melhor?Sinto-a melhor bebendo-a do que chamando-lhe qualquer cousa –Irmã, ou mãe, ou filha.

A água é a água e é bela por isso.Se eu lhe chamar minha irmã,Ao chamar-lhe minha irmã, vejo que o não éE que se ela é água o melhor é chamar-lhe água;Ou, melhor ainda, não lhe chamar cousa nenhuma,Mas bebê-la, senti-la nos pulsos, olhar para elaE tudo isto sem nome nenhum.

CAEIRO, Alberto. “Poemas inconjuntos”. In: PESSOA, Fernando. Alberto

Caeiro–Poemascompletos. São Paulo: Saraiva, 2007 (Clássicos Saraiva).

18. Qual é o motivo do espanto do eu-lírico que se evidencia em “Leram-me e pasmei”?

19. Destaque do poema de Caeiro argumentos que tentam provar o equívoco dos versos de São Francisco.

20. Você é capaz de encontrar, na poesia completa de Alberto Caeiro, outros versos que tratam do tema?

21. Você seria capaz de produzir um breve texto filosófico no qual se demonstrasse a religiosidade de Alberto Caeiro?

“O que o mestre Caeiro me ensinou foi a ter clare-za; equilíbrio, organismo no delírio e no desvairamento, e também me ensinou a não procurar ter filosofia nenhuma, mas com alma.”

(Álvaro de Campos)

PESSOA, Fernando. Páginasíntimasedeauto-interpretação. (Textos

estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.)

Lisboa: Ática, 1996.

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