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PROJETO LEITURA E DIDATIZAÇÃO O ALIENISTA MACHADO DE ASSIS Possíveis dialogismos trabalhados neste Projeto: 1. Os controversos filhos dos personagens machadianos (Leitura 1) I. Uma hipótese para o progresso científico II. O filho da dúvida nacional III. “Melhor não tê-los?” 2. Literatura e ciência: Stultifera Navis (Leitura 2) I. Os caminhos e os veículos II. “Para o pobre, os lugares são mais longe” 3. A loucura (Leitura 3) I. O louco II. O espaço do delírio III. Os loucos são os outros LEITURA 1 OS CONTROVERSOS FILHOS DOS PERSONAGENS MACHADIANOS Na obra machadiana, mais do que os filhos, o ter ou não ter filhos torna-se sempre um tema instigante e motivador. Em O alienista, logo no início, a hipótese levantada pelo narrador para o mergulho profundo do protagonista Simão Bacamarte na ciência deve-se a uma frustração também profunda, pois, apesar da busca, não conseguiu ter filhos. Por Davi Fazzolari 1

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PROJETO LEITURA E DIDATIZAÇÃO

O ALIENISTAMACHADO DE ASSIS

Possíveis dialogismos trabalhados neste Projeto:

1. Os controversos filhos dos personagens machadianos (Leitura 1)I. Uma hipótese para o progresso científicoII. O filho da dúvida nacionalIII. “Melhor não tê-los?”

2. Literatura e ciência: Stultifera Navis (Leitura 2)I. Os caminhos e os veículosII. “Para o pobre, os lugares são mais longe”

3. A loucura (Leitura 3)I. O loucoII. O espaço do delírio III. Os loucos são os outros

LEITURA 1

OS CONTROVERSOS FILHOS DOS PERSONAGENS MACHADIANOS

Na obra machadiana, mais do que os filhos, o ter ou não ter filhos torna-se sempre um tema instigante e motivador. Em O alienista, logo no início, a hipótese levantada pelo narrador para o mergulho profundo do protagonista Simão Bacamarte na ciência deve-se a uma frustração também profunda, pois, apesar da busca, não conseguiu ter filhos.

Por Davi Fazzolari

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I. UMA HIPóTESE PARA O PROGRESSO CIENTíFICO

Leia o trecho a seguir e responda às questões para ini-ciar suas reflexões sobre o tema.

TEXTO 1O ALIENISTA (EXCERTO)

Dito isto, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as lei-turas, e demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos quarenta anos casou com D. Evarista da Costa e Mascare-nhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte expli-cou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatô-micas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia re-gularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas – únicas dignas de preocupação de um sábio, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte.

D. Evarista mentiu às esperanças de Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos. A índole natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos, depois quatro, depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consul-tas às universidades italianas e alemãs, e acabou por acon-selhar à mulher um regime alimentício especial. A ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua re-sistência – explicável, mas inqualificável – devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes.

Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as má-goas; o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e

na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção – o recanto psíquico, o exame da patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explo-rada, ou quase inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de “louros imarcescíveis” – expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exte-riormente era modesto, segundo convém aos sabedores.

– A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna do médico.

ASSIS, Machado. O alienista. São Paulo: Saraiva, 2007 (Clássicos Saraiva).

1. O que levou Simão Bacamarte a casar-se com D. Evarista?

2. Quais são as “esperanças de Dr. Bacamarte” em “D. Eva-rista mentiu às esperanças de Dr. Bacamarte”?

3. Qual é a primeira reação de Simão Bacamarte ante sua frustração?

4. Como, afinal, é concluído o episódio e quais são suas con-seqüências?

5. Levante uma hipótese para a afirmação de Bacamarte que se lê no último trecho do texto 1: “A saúde da alma [...] é a ocupação mais digna do médico”.

6. Machado de Assis escreve numa época em que prevalece a concepção filosófica do Cientificismo. Como você acha que a “Ciência” é tratada pelo autor ao longo do conto O alienista?

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II. O FILHO DA DúVIDA NACIONAL

Uma outra obra de Machado de Assis, Dom Casmurro – já publicada nos Clássicos Saraiva –, protagonizará uma “charmosa” dúvida nacional. Afinal, o filho da famosa Capitu era ou não de seu marido e narrador do romance, Bentinho? A seqüência que reproduzimos a seguir talvez seja a mais dramática do romance. Repleta de sutilezas, exige cuidados especiais por parte do leitor. Leia com atenção e depois res-ponda às questões propostas.

TEXTO 2DOM CASMURRO (EXCERTOS)

CXXXVIA XíCARA DE CAFé

O meu plano foi esperar o café, dissolver nele a droga e ingeri-la. Até lá, não tendo esquecido de todo a minha histó-ria romana, lembrou-me que Catão, antes de se matar, leu e releu um livro de Platão. Não tinha Platão comigo; mas um tomo truncado de Plutarco, em que era narrada a vida do célebre romano, bastou-me a ocupar aquele pouco tempo, e para em tudo imitá-lo, estirei-me no canapé. Nem era só imi-tá-lo nisso; tinha necessidade de incutir em mim a coragem dele, assim como ele precisara dos sentimentos do filósofo, para intrepidamente morrer. Um dos males da ignorância é não ter este remédio à última hora. Há muita gente que se mata sem ele, e nobremente expira; mas estou que mui-to mais gente poria termos aos seus dias, se pudesse achar essa espécie de cocaína moral dos bons livros. Entretanto, querendo fugir a qualquer suspeita de imitação, lembra-me bem que, para não ser encontrado ao pé de mim o livro de Plutarco, nem ser dada a notícia nas gazetas com a da cor das calças que eu então vestia, assentei de pô-lo novamente no seu lugar, antes de beber o veneno.

O copeiro trouxe o café. Ergui-me, guardei o livro, e fui para a mesa onde ficara a xícara. Já a casa estava em rumo-res; era tempo de acabar comigo. A mão tremeu-me ao abrir o papel em que trazia a droga embrulhada. Ainda assim tive

ânimo de despejar a substância na xícara, e comecei a mexer o café, os olhos vagos, a memória em Desdêmona inocente; o espetáculo da véspera vinha intrometer-se na realidade da manhã. Mas a fotografia de Escobar deu-me o ânimo que me ia faltando; lá estava ele, com a mão nas costas da cadeira, a olhar ao longe...

– Acabemos com isto, pensei.Quando ia a beber, cogitei se não seria melhor esperar

que Capitu e o filho saíssem para a missa; beberia depois; era melhor. Assim disposto, entrei a passear no gabinete. Ouvi a voz de Ezequiel no corredor, vi-o entrar e correr a mim bradando:

– Papai! papai!Leitor, houve aqui um gesto que eu não descrevo por

havê-lo inteiramente esquecido, mas crê que foi belo e trági-co. Efetivamente a figura do pequeno fez-me recuar até dar de costas na estante. Ezequiel abraçou-me os joelhos, esti-cou-se na ponta dos pés, como querendo subir e dar-me o beijo do costume; e repetia, puxando-me:

– Papai! papai!

CXXXVIISEGUNDO IMPULSO

Se eu não olhasse para Ezequiel, é provável que não estivesse aqui escrevendo este livro, porque o meu primeiro ímpeto foi correr ao café e bebê-lo. Cheguei a pegar na xíca-ra, mas o pequeno beijava-me a mão, como de costume, e a vista dele, como o gesto, deu-me outro impulso que me cus-ta dizer aqui; mas vá lá, diga-se tudo. Chamem-me embora assassino; não serei eu que os desdiga ou contradiga; o meu segundo impulso foi criminoso. Inclinei-me e perguntei a Ezequiel se já tomara café.

– Já, papai; vou à missa com mamãe.– Toma outra xícara, meia xícara só.– E papai?– Eu mando vir mais; anda, bebe!Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a xícara, tão trêmulo

que quase a entornei, mas disposto a fazê-la cair pela goela abaixo, caso o sabor lhe repugnasse, ou a temperatura, por-

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que o café estava frio... Mas não sei que senti que me fez recuar. Pus a xícara em cima da mesa, e dei por mim a beijar doidamente a cabeça do menino.

– Papai! papai! exclamava Ezequiel.– Não, não, eu não sou teu pai!

CXXXVIIICAPITU qUE ENTRA

Quando levantei a cabeça, dei com a figura de Capitu diante de mim. Eis aí outro lance, que parecerá de teatro, e é tão natural como o primeiro, uma vez que a mãe e o filho iam à missa, e Capitu não saía sem falar-me. Era já um falar seco e breve; a maior parte das vezes, eu nem olhava para ela. Ela olhava sempre, esperando.

Desta vez, ao dar com ela, não sei se era dos meus olhos, mas Capitu pareceu-me lívida. Seguiu-se um daque-les silêncios, a que, sem mentir, se pode chamar de um sé-culo, tal é a extensão do tempo nas grandes crises. Capitu recompôs-se; disse ao filho que se fosse embora, e pediu-me que lhe explicasse...

– Não há que explicar, disse eu.– Há tudo, não entendo as tuas lágrimas nem as de

Ezequiel. Que houve entre vocês?– Não ouviu o que lhe disse?Capitu respondeu que ouvira choro e rumor de pala-

vras. Eu creio que ouvira tudo claramente, mas confessá-lo seria perder a esperança do silêncio e da reconciliação; por isso negou a audiência e confirmou unicamente a vista. Sem lhe contar o episódio do café, repeti-lhe as palavras do final do capítulo.

– O quê? perguntou ela como se ouvira mal.– Que não é meu filho. Grande foi a estupefação de Capitu, e não menor a in-

dignação que lhe sucedeu, tão naturais ambas que fariam du-vidar as primeiras testemunhas de vista do nosso foro. Já ouvi que as há para vários casos, questão de preço; eu não creio, tanto mais que a pessoa que me contou isto acabava de perder uma demanda. Mas, haja ou não testemunhas alugadas, a mi-nha era verdadeira; a própria natureza jurava por si, e eu não

queria duvidar dela. Assim que, sem atender à linguagem de Capitu, aos seus gestos, à dor que a retorcia, a coisa nenhu-ma, repeti as palavras ditas duas vezes com tal resolução que a fizeram afrouxar. Após alguns instantes, disse-me ela:

– Só se pode explicar tal injúria pela convicção since-ra; entretanto, você que era tão cioso dos menores gestos, nunca revelou a menor sombra de desconfiança. Que é que lhe deu tal idéia? Diga – continuou vendo que eu não res-pondia nada –, diga tudo; depois do que ouvi, posso ouvir o resto, não pode ser muito. Que é que lhe deu agora tal convicção? Ande, Bentinho, fale! fale! Despeça-me daqui, mas diga tudo primeiro.

– Há coisas que se não dizem.– Que se não dizem só metade; mas já que disse meta-

de, diga tudo.Tinha-se sentado numa cadeira ao pé da mesa. Podia

estar um tanto confusa, o porte não era de acusada. Pedi-lhe ainda uma vez que não teimasse.

– Não, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me de-fenda, se você acha que tenho defesa, ou peço-lhe desde já a nossa separação: não posso mais!

– A separação é coisa decidida, redargüi pegando-lhe na proposta. Era melhor que a fizéssemos por meias palavras ou em silêncio; cada um iria com a sua ferida. Uma vez, porém, que a senhora insiste, aqui vai o que lhe posso dizer, e é tudo.

Não disse tudo; mas pude aludir aos amores de Escobar sem proferir-lhe o nome. Capitu não pôde deixar de rir, de um riso que eu sinto não poder transcrever aqui; depois, em um tom juntamente irônico e melancólico:

– Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus ciúmes!

Concertou a capinha e ergueu-se. Suspirou, creio que suspirou, enquanto eu, que não pedia outra coisa mais que a plena justificação dela, disse-lhe não sei que palavras ade-quadas a este fim. Capitu olhou para mim com desdém, e murmurou:

– Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança... A vontade de Deus explicará tudo... Ri-se? É natural; apesar do

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seminário, não acredita em Deus; eu creio... Mas não fale-mos nisto; não nos fica bem dizer mais nada.

ASSIS, Machado. Dom Casmurro. São Paulo: Saraiva, 2007 (Clássicos Saraiva).

7. “Sem lhe contar o episódio do café, repeti-lhe as palavras do final do capítulo.” A que palavras refere-se o narrador, nesse trecho?

8. O triângulo amoroso sugerido pelo narrador-persona-gem está estabelecido entre Capitu, Bentinho (o próprio narrador) e Escobar, um amigo do casal. Contudo, um ou-tro personagem é citado pelo narrador: Desdêmona. Elabo-re uma breve pesquisa e explique por que esse personagem foi citada no texto 2.

9. O conflito, no texto 1, é gerado pela ausência do filho, en-quanto no texto 2 é gerado pela presença de um filho. Apro-xime os textos pelas conseqüências dos conflitos.

10. Quem, em sua opinião, no texto 2, seria um “belo caso” para o Dr. Simão Bacamarte? Justifique sua escolha.

III. “MELHOR NÃO Tê-LOS?”

De uma maneira muito diferente da que lemos nas deduções do Dom Casmurro, a literatura brasileira, já no século XX, pela voz de um de seus mais populares poetas – Vinicius de Moraes – vai insistir no tema: Filhos: ter ou não ter, eis a questão.

TEXTO 3POEMA ENJOADINHO

Filhos... Filhos? Melhor não tê-los!Mas se não os temosComo sabê-lo?Se não os temosQue de consultaQuanto silêncioComo os queremos!Banho de marDiz que é um porrete...Cônjuge voaTranspõe o espaçoEngole águaFica salgadaSe iodificaDepois, que boaQue morenaçoQue a esposa fica!Resultado: filho.E então começaA aporrinhação:Cocô está brancoCocô está pretoBebe amoníacoComeu botão. Filhos? FilhosMelhor não tê-losNoites de insôniaCãs prematurasPrantos convulsosMeu Deus, salvai-o!Filhos são o demoMelhor não tê-los...Mas se não os temosComo sabê-los?Como saber

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Que maciezaNos seus cabelosQue cheiro mornoNa sua carneQue gosto doceNa sua boca!Chupam gileteBebem shampooAteiam fogoNo quarteirãoPorém, que coisaQue coisa loucaQue coisa lindaQue os filhos são!

MORAES, Vinicius. Antologia poética. Rio de Janeiro:

Editora do Autor, 1960. p. 195.

11. Extraia do poema o conflito apresentado pelo eu-lírico.

12. Há uma estratégia que reforça o conflito exposto. Trata-se do uso contínuo da antítese que é a figura que contrapõe palavras de sentidos opostos. Destaque-as do poema de Vi-nicius de Moraes.

13. A que tipo de loucura o verso “Que coisa louca”, no final do poema, refere-se? Filhos desse tipo seriam “belos casos” para o Dr. Bacamarte?

Em Memórias póstumas de Brás Cubas, outro importante romance de Machado de Assis, o protagonista parece res-ponder antecipadamente ao modo como Vinicius de Moraes veria o tema.

TEXTO 4MEMóRIAS PóSTUMAS DE BRÁS CUBAS (TRECHO FINAL)

CLXDAS NEGATIVAS

Entre a morte do Quincas Borba e a minha, mediaram os sucessos narrados na primeira parte do livro. O principal deles foi a invenção do emplasto Brás Cubas, que morreu co-migo, por causa da moléstia que apanhei. Divino emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da riqueza, porque eras a genuína e direta inspi-ração do céu. O acaso determinou o contrário; e aí vos ficais eternamente hipocondríacos.

Este último capítulo é todo de negativas. Não alcan-cei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imagina-rá que não houve míngua nem sobra, e conseguintemen-te que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: – Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.

ASSIS, Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas.

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, v. I.

14. Por que é possível afirmar que Brás Cubas responde ao conflito exposto pelo eu-lírico do texto 3?

15. Como o narrador do texto 4 vê o fato de não ter tido filhos?

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LEITURA 2

LITERATURA E CIêNCIA: STULTIFERA NAVIS

Se é preciso separar os insanos dos sanos, um meio se faz necessário. A literatura, em seus olhares oblíquos, nem sem-pre trata do tema central de modo direto. Para pôr o leitor em cena, muitas vezes, em vez de explorar a pena de morte, prefere contar a história do carrasco. Assim, para falar da loucura, prefere abordar, vez ou outra, os caminhos do deva-neio e que levam ao hospício.

I. OS CAMINHOS E OS VEíCULOS

Tema comum à literatura e demais artes, na Idade Mé-dia, a Stultifera Navis encontrou, talvez, já no Humanismo, seu principal escritor em língua portuguesa. Gil Vicente escreveu uma seqüência de autos em que faz embarcar tipos sociais condenados ou absolvidos pelas leis cristãs. Um personagem que se destaca pelo evidente transtorno é Joane, o Parvo. A cena que destacamos a seguir descreve o momento em que, tendo morrido, Joane, o Parvo, chega a um lugar em que toda alma é recolhida por um dos dois barqueiros ali postados. Um levará os “pecadores” para o inferno, o outro, para o paraíso.

TEXTO 5AUTO DA BARCA DO INFERNO (EXCERTO)

Vem Joane, o Parvo, e diz ao Arrais do Inferno:

PARVO – Hou daquesta!DIABO – Quem é?PARVO – Eu soo.É esta a naviarra nossa?

DIABO – De quem?PARVO – Dos tolos.DIABO – Vossa.Entra!PARVO – De pulo ou de voo?Hou! Pesar de meu avô!Soma, vim adoecere fui má-hora morrer,e nela, pera mi só.DIABO – De que morreste?PARVO – De quê?Samicas de caganeira.DIABO – De quê?PARVO – De caga merdeira!Má rabugem que te dê!DIABO – Entra! Põe aqui o pé!PARVO – Houlá! Nom tombe o zambuco!DIABO – Entra, tolaço eunuco,que se nos vai a maré!

PARVO – Aguardai, aguardai, houlá!E onde havemos nós d’ir ter?DIABO – Ao porto de Lucifer.PARVO – Ha-á-a...DIABO – Ó Inferno! Entra cá!PARVO – Ò Inferno?... Eramá...Hiu! Hiu! Barca do cornudo.Pêro Vinagre, beiçudo,rachador d’Alverca, huhá!Sapateiro da Candosa!Antrecosto de carrapato!Hiu! Hiu! Caga no sapato,filho da grande aleivosa!Tua mulher é tinhosae há-de parir um sapochantado no guardanapo!Neto de cagarrinhosa!Furta cebolas! Hiu! Hiu!Excomungado nas erguejas!

Stultifera Navis é uma expressão em latim utilizada pela filosofia e pela literatura de todos os tempos e que pode ser traduzida por nave dos insanos ou por barco dos loucos.

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Burrela, cornudo sejas!Toma o pão que te caiu!A mulher que te fugiuper’a Ilha da Madeira!Cornudo atá mangueira,toma o pão que te caiu!Hiu! Hiu! Lanço-te üa pulha!Dê-dê! Pica nàquela!Hump! Hump! Caga na vela!Hio, cabeça de grulha!Perna de cigarra velha,caganita de coelha,pelourinho da Pampulha!Mija n’agulha, mija n’agulha!

Chega o Parvo ao batel do Anjo e diz:

PARVO – Hou da barca!ANJO – Que me queres?PARVO – Queres-me passar além?ANJO – Quem és tu?PARVO – Samica alguém.ANJO – Tu passarás, se quiseres;porque em todos teus fazeresper malícia nom erraste.Tua simpreza t’abastepera gozar dos prazeres.

Espera entanto per i:veremos se vem alguém,merecedor de tal bem,que deva de entrar aqui.

VICENTE, Gil. Auto da barca do inferno.

São Paulo: Ateliê Editorial, 1996.

O auto de Gil Vicente, escrito por volta de 1517, eviden-temente não apresenta a língua portuguesa como a conce-bemos hoje. Ainda assim, não é tão difícil identificar as três etapas da cena que selecionamos.

1. Selecione o primeiro e o último verso do trecho em que Joane procura identificar o barco do Diabo.

2. Selecione o primeiro e o último verso do trecho em que Joane ofende o Diabo, depois de identificá-lo.

3. Selecione o primeiro e o último verso do trecho em que Joane conversa com o Anjo.

4. O que o título da peça de Gil Vicente, Auto da barca do inferno, sugere para descrição da barca?

5. Qual é o destino do Parvo? Quais argumentos determi-nam seu embarque?

6. Como você descreveria Joane, o Parvo?

qUESTõES PARA DEBATE

7. Você também absolveria o Parvo? Os argumentos do Anjo também podem servir para o mundo dos vivos?

8. Em nossos tempos, que tipos sociais estariam, nas con-cepções de Gil Vicente, aptos à barca do inferno?

Parvo é uma palavra usada em Portugal, até mesmo em nossos dias, como sinônimo de bobo ou de louco.

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nava. O borco bojudo do telhadilho dele alumiava em preto. Parecia coisa de invento de muita distância, sem piedade ne-nhuma, e que a gente não pudesse imaginar direito nem se acostumar de ver, e não sendo de ninguém. Para onde ia, no levar as mulheres, era para um lugar chamado Barbacena, longe. Para o pobre, os lugares são mais longe.

O Agente da estação apareceu, fardado de amarelo, com o livro de capa preta e as bandeirinhas verde e vermelha debaixo do braço. – “Vai ver se botaram água fresca no carro...” – ele mandou. Depois, o guarda-freios andou mexendo nas mangueiras de engate. Alguém deu aviso: – “Eles vêm!...” Apontavam, da Rua de Baixo, onde morava Sorôco. Ele era um homenzão, brutalhudo de corpo, com a cara grande, uma barba, fiosa, encardida em amarelo, e uns pés, com al-percatas: as crianças tomavam medo dele; mais, da voz, que era quase pouca, grossa, que em seguida se afinava. Vinham vindo, com o trazer de comitiva.

Aí, paravam. A filha – a moça – tinha pegado a can-tar, levantando os braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer das palavras – o nenhum. A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os es-pantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de admiração. Assim com panos e papéis, de diversas cores, uma carapuça em cima dos espalhados cabelos, e enfuna-da em tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas, dependuradas – virundangas: matéria de maluco. A velha só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a cabeça, nos docementes. Sem tanto que diferentes, elas se assemelhavam.

Sorôco estava dando o braço a elas, uma de cada lado. Em mentira, parecia entrada em igreja, num casório. Era uma tristeza. Parecia enterro. Todos ficavam de parte, a chusma de gente não querendo afirmar as vistas, por cau-sa daqueles transmodos e despropósitos, de fazer risos, e por conta de Sorôco – para não parecer pouco caso. Ele hoje estava calçado de botinas, e de paletó, com chapéu grande, botara sua roupa melhor, os maltrapos. E estava reportado e atalhado, humildoso. Todos diziam a ele seus respeitos, de dó. Ele respondia: – “Deus vos pague essa despesa...”

II. “PARA O POBRE, OS LUGARES SÃO MAIS LONGE”

A literatura contemporânea brasileira registra uma vas-ta quantidade de contos, romances, crônicas e poemas que abordam a “nave dos insanos” como tema. Um dos casos mais aclamados está em um livro de Guimarães Rosa, inti-tulado Primeiras estórias, no qual, de uma forma ou de outra, todos os contos abordam comportamentos humanos fora do convencional e que contrariam as expectativas sociais.

TEXTO 6SORÔCO, SUA MÃE, SUA FILHA

Aquele carro parara na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo com o expresso do Rio, e estava lá, no desvio de dentro, na esplanada da estação. Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, só que mais vistoso, todo novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos. A gente sabia que, com pouco, ele ia rodar de volta, atrelado ao expresso daí de baixo, fazendo parte da composição. Ia servir para levar duas mulheres, para longe, para sempre. O trem do sertão passava às 12h45m.

As muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em bei-ra do carro, para esperar. As pessoas não queriam poder ficar se entristecendo, conversavam, cada um porfiando no falar com sensatez, como sabendo mais do que os outros a prá-tica do acontecer das coisas. Sempre chegava mais povo – o movimento. Aquilo quase no fim da esplanada, do lado do curral de embarque de bois, antes da guarita do guarda-cha-ves, perto dos empilhados de lenha. Sorôco ia trazer as duas, conforme. A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns setenta. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo. Afora essas, não se conhecia dele o parente nenhum.

A hora era de muito sol – o povo caçava jeito de ficarem debaixo da sombra das árvores de cedro. O carro lembrava um canoão no seco, navio. A gente olhava: nas reluzências do ar, parecia que ele estava torto, que nas pontas se empi-

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O que os outros se diziam: que Sorôco tinha tido muita paciência. Sendo que não ia sentir falta dessas transtornadas pobrezinhas, era até um alívio. Isso não tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais. De antes, Sorôco agüentara de repas-sar tantas desgraças, de morar com as duas, pelejava. Daí, com os anos, elas pioraram, ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda, que foi preciso. Tiveram que olhar em socor-ro dele, determinar de dar as providências de mercê. Quem pagava tudo era o Governo, que tinha mandado o carro. Por forma que, por força disso, agora iam remir com as duas, em hospícios. O se seguir.

De repente, a velha se desapareceu do braço de Sorôco, foi se sentar no degrau da escadinha do carro. – “Ela não faz nada, seo Agente...” – a voz de Sorôco estava muito branda: – “Ela não acode, quando a gente chama...” A moça, aí, tor-nou a cantar, virada para o povo, o ao ar, a cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas representava de outroras grandezas, impossíveis. Mas a gen-te viu a velha olhar para ela, com um encanto de pressenti-mento muito antigo – um amor extremoso. E, principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia. Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar.

Aí que já estava chegando a horinha do trem, tinham de dar fim aos aprestes, fazer as duas entrar para o carro de janelas enxequetadas de grades. Assim, num consumiço, sem despedida nenhuma, que elas nem haviam de poder entender. Nessa diligência, os que iam com elas, por bem-fazer, na viagem comprida, eram o Nenêgo, despachado e animoso, e o José Abençoado, pessoa de muita cautela, es-tes serviam para ter mão nelas, em toda juntura. E subiam também no carro uns rapazinhos, carregando as trouxas e malas, e as coisas de comer, muitas, que não iam fazer mín-gua, os embrulhos de pão. Por derradeiro, o Nenêgo ainda se apareceu na plataforma, para os gestos de que tudo ia em ordem. Elas não haviam de dar trabalhos.

Agora, mesmo, a gente só escutava era o acorcôo do canto, das duas, aquela chirimia, que avocava: que era um

constado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, ne-nhum, mas pelo antes, pelo depois.

Sorôco. Tomara aquilo se acabasse. O trem chegando, a máqui-

na manobrando sozinha para vir pegar o carro. O trem api-tou, e passou, se foi, o de sempre.

Sorôco nâo esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só fi-cou de chapéu na mão, mais de barba quadrada, surdo – o que nele mais espantava. O triste do homem, lá, decretado, embargando-se de poder falar algumas suas palavras. Ao sofrer o assim das coisas, ele, no oco sem beiras, debaixo do peso, sem queixa, exemploso. E lhe falaram: – “O mundo está dessa forma...” Todos, no arregalado respeito, tinham as vistas neblinadas. De repente, todos gostavam demais de Sorôco.

Ele se sacudiu, de um jeito arrebentado, desacontecido, e virou, pra ir-s’embora. Estava voltando para casa, como se estivesse indo para longe, fora de conta.

Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser. Assim num excesso de es-pírito, fora de sentido. E foi o que não se podia prevenir: quem ia fazer siso naquilo? Num rompido – ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si – e era a canti-ga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando.

A gente se esfriou, se afundou – um instantâneo. A gente... E foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó do Sorôco, princi-piaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas! Todos caminhando, com ele, Sorôco, e canta que cantando, atrás dele, os mais de detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o de não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação.

A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.

ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

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9. Extraia do primeiro e do terceiro parágrafos do conto So-rôco, sua mãe, sua filha expressões que descrevem o vagão de trem que receberá os passageiros com destino à Barbacena.

10. Qual das expressões utilizadas por Guimarães Rosa para descrever o vagão de trem mais aproxima esse meio de transporte ao que se lê no texto 5, O auto da barca do inferno? Justifique sua resposta.

11. Quais personagens do título viajarão à Barbacena?

12. Qual é o objetivo da viagem?

13. Extraia o trecho do conto que descreve fisicamente a mãe e a filha de Sorôco.

14. Destaque, agora, uma expressão que determina o estado mental de mãe e filha.

15. Que ação das duas “transtornadas” o narrador destaca?

16. O que há nessa ação que denuncia o distúrbio mental?

17. Que outro elemento, além do nítido distúrbio mental das protagonistas, determina o tipo de viagem a que são subme-tidas? Extraia exemplos do próprio texto.

18. Na parte final, especificamente nos três últimos parágra-fos, a narração ganha um novo conflito. Do que se trata?

19. Como se desenvolve o relacionamento das pessoas com Sorôco durante o enredo?

20. Por que, em sua opinião, Sorôco retoma a cantiga e é acompanhado pelos demais?

TEXTO 7O ALIENISTA (TRECHO FINAL)

A aflição do egrégio Simão Bacamarte é definida pelos cronistas itaguaienses como uma das mais medo-nhas tempestades morais que têm desabado sobre o ho-mem. Mas as tempestades só aterram os fracos; os fortes enrijam-se contra elas e fitam o trovão. Vinte minutos depois alumiou-se a fisionomia do alienista de uma su-ave claridade.

– Sim, há de ser isso, pensou ele.Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os caracte-

rísticos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tole-rância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qua-lidades enfim que podem formar um acabado mentecapto. Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era ilusão; mas, sendo homem prudente, resolveu convocar um conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi afirmativa.

– Nenhum defeito?– Nenhum, disse em coro a assembléia.– Nenhum vício?– Nada.– Tudo perfeito?– Tudo.– Não, impossível, bradou o alienista. Digo que não

sinto em mim esta superioridade que acabo de ver definir com tanta magnificência. A simpatia é que vos faz falar. Estudo-me e nada acho que justifique os excessos da vossa bondade.

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A assembléia insistiu; o alienista resistiu; finalmente o padre Lopes explicou tudo com este conceito digno de um observador:

– Sabe a razão por que não vê as suas elevadas quali-dades, que aliás todos nós admiramos? É porque tem ainda uma qualidade que realça as outras: – a modéstia.

Era decisivo, Simão Bacamarte curvou a cabeça junta-mente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato contínuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas o detiveram um só instante.

– A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma dou-trina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.

– Simão! Simão! meu amor! dizia-lhe a esposa com o rosto lavado em lágrimas.

Mas o ilustre médico, com os olhos acesos da convicção científica, trancou os ouvidos à saudade da mulher, e branda-mente a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses, no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegaram ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco, além dele, em Itaguaí; mas esta opinião, fundada em um boato que correu desde que o alienista expirou, não tem outra prova, senão o boato; e boato duvidoso, pois é atribuído ao padre Lopes, que com tanto fogo realçara as qualidades do gran-de homem. Seja como for, efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade.

ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: Saraiva, 2007 (Clássicos Saraiva).

21. De certa forma, o desfecho do conto de Guimarães Rosa está próximo do final do conto O alienista, de Machado de Assis. Estabeleça uma comparação entre os contos a partir das semelhanças e das diferenças. As reflexões a seguir po-dem ajudá-lo na formulação da resposta completa.

a) Quem realiza o diagnóstico da “loucura” dos protagonis-tas, nos dois contos?

b) Quem decide pelas internações, nos dois contos?

c) De que modo os desfechos revertem os lados da fronteira entre a loucura e a sanidade?

d) Até que ponto a condição socioeconômica dos persona-gens determina o grau de alienação de cada um?

LEITURA 3

A LOUCURA

Os poetas místicos são filósofos doentes,E os filósofos são homens doidos.

(Fernando Pessoa/Alberto Caeiro)

Tema caro à literatura de todos os tempos e lugares, a lou-cura explorada pelo Dr. Simão Bacamarte parece ser ape-nas um modo de ver. O que pode ser enquadrado e rotula-do por uns, pode ter diferente leitura de outros. Machado de Assis versou sobre esse tema várias vezes e há, além de O alienista, evidentemente, um caso exemplar. Trata-se do personagem Quincas Borba, que surge no romance Me-mórias póstumas de Brás Cubas e reaparece em um outro romance no qual empresta seu próprio nome ao título.

I. O LOUCO

TEXTO 8O ALIENISTA (EXCERTO)

O padre Lopes confessou que não imaginara a existên-cia de tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicá-vel de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço, fazia regular-

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mente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antí-teses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano. O vigário não queria acabar de crer. Quê! um rapaz que ele vira, três me-ses antes, jogando peteca na rua!

– Não digo que não, respondia-lhe o alienista; mas a verdade é o que Vossa Reverendíssima está vendo. Isto é to-dos os dias.

– Quanto a mim, tornou o vigário, só se pode explicar pela confusão das línguas na torre de Babel, segundo nos conta a Escritura; provavelmente, confundidas antigamen-te as línguas, é fácil trocá-las agora, desde que a razão não trabalhe...

– Essa pode ser, com efeito, a explicação divina do fenômeno, concordou o alienista, depois de refletir um instante, mas não é impossível que haja também alguma razão humana, e puramente científica, e disso trato...

– Vá que seja, e fico ansioso. Realmente!Os loucos por amor eram três ou quatro, mas só dois

espantavam pelo curioso do delírio. O primeiro, um Falcão, rapaz de vinte e cinco anos, supunha-se estrela-d’alva, abria os braços e alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de raios, e ficava assim horas esquecidas a perguntar se o sol já tinha saído para ele recolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre, à roda das salas ou do pátio, ao longo dos corredores à procura do fim do mundo. Era um desgraçado, a quem a mulher deixou por seguir um peral-vilho. Mal descobrira a fuga, armou-se de uma garrucha, e saiu-lhes no encalço, achou-os duas horas depois, ao pé de uma lagoa, matou-os a ambos com os maiores requintes de crueldade. O ciúme satisfez-se, mas o vingado estava louco. E então começou aquela ânsia de ir ao fim do mundo à cata dos fugitivos.

A mania das grandezas tinha exemplares notáveis. O mais notável era um pobre-diabo, filho de um algibebe, que narrava às paredes (porque não olhava nunca para nenhuma pessoa) toda a sua genealogia, que era esta:

– Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espa-da, a espada engendrou Davi, Davi engendrou a púrpura,

a púrpura engendrou o duque, o duque engendrou o mar-quês, o marquês engendrou o conde, que sou eu.

Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia cinco, seis vezes seguidas:

– Deus engendrou um ovo, o ovo, etc.

ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: Saraiva, 2007 (Clássicos Saraiva).

1. Leia o trecho com atenção e escolha um dos “loucos” ali re-lacionados para apresentar sua história. Elabore uma narrativa que apresente os motivos e descreva as ações e o comporta-mento desse protagonista nascido no conto O alienista como alguém que contraria a conduta social esperada e, por isso, está confinado na “casa de orates”, aos cuidados do Dr. Bacamarte.

TEXTO 9MEMóRIAS PóSTUMAS DE BRÁS CUBAS (EXCERTO)

LIXUM ENCONTRO

Deve ser um vinho enérgico a política, dizia eu comigo, ao sair da casa de Lobo Neves; e fui andando, fui andando, até que na rua dos Barbonos vi uma sege, e dentro um dos ministros, meu antigo companheiro de colégio. Cortejamo-nos afetuosa-mente, a sege seguiu, e eu fui andando... andando... andando...

– Por que não serei eu ministro?Esta idéia, rútila e grande – trajada ao bizarro, como

diria o padre Bernardes – esta idéia começou uma vertigem de cabriolas e eu deixei-me estar com os olhos nela, a achar-lhe graça. Não pensei mais na tristeza de Lobo Neves; senti a atração do abismo. Recordei aquele companheiro de colégio, as correrias nos morros, as alegrias e travessuras, e comparei o menino com o homem, e perguntei a mim mesmo por que não seria eu como ele. Entrava então no Passeio Público, e tudo me parecia dizer a mesma coisa. – Por que não serás ministro, Cubas? – Cubas, por que não serás ministro de Es-tado? Ao ouvi-lo, uma deliciosa sensação me refrescava todo o organismo. Entrei, fui sentar-me num banco, a remoer

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aquela idéia. E Virgília que havia de gostar! Alguns minutos depois vejo encaminhar-se para mim uma cara, que me não pareceu desconhecida. Conhecia-a, fosse donde fosse.

Imaginem um homem de trinta e oito a quarenta anos, alto, magro e pálido. As roupas, salvo o feitio, pareciam ter es-capado ao cativeiro de Babilônia; o chapéu era contemporâneo do de Gessler. Imaginem agora uma sobrecasaca mais larga do que pediam as carnes – ou, literalmente, os ossos da pessoa; a cor preta ia cedendo o passo a um amarelo sem brilho; o pêlo desaparecia aos poucos; dos oito primitivos botões restavam três. As calças, de brim pardo, tinham duas fortes joelheiras, enquanto as bainhas eram roídas pelo tacão de um botim sem misericórdia nem graxa. Ao pescoço flutuavam as pontas de uma gravata de duas cores, ambas desmaiadas, apertando um colarinho de oito dias. Creio que trazia também colete, um colete de seda escura, roto a espaços, e desabotoado.

– Aposto que me não conhece, Sr. Dr. Cubas? disse ele.– Não me lembra...– Sou o Borba, o Quincas Borba.Recuei espantado... Quem me dera agora o verbo so-

lene de um Bossuet ou de Vieira, para contar tamanha de-solação! Era o Quincas Borba, o gracioso menino de outro tempo, o meu companheiro de colégio, tão inteligente e abastado. Quincas Borba! Não; impossível; não pode ser. Não podia acabar de crer que essa figura esquálida, essa barba pintada de branco, esse maltrapilho avelhentado, que toda essa ruína fosse o Quincas Borba. Mas era. Os olhos tinham um resto da expressão de outro tempo, e o sorri-so não perdera certo ar escarninho, que lhe era peculiar. Entretanto, ele suportava com firmeza o meu espanto. No fim de algum tempo arredei os olhos; se a figura repelia, a comparação acabrunhava.

– Não é preciso contar-lhe nada, disse ele enfim; o se-nhor adivinha tudo. Uma vida de misérias, de atribulações e de lutas. Lembra-se das nossas festas, em que eu figurava de rei? Que trambolhão! Acabo mendigo...

E alçando a mão direita e os ombros, com um ar de indiferença, parecia resignado aos golpes da fortuna, e não sei até se contente. Talvez contente. Com certeza, impassí-

vel. Não havia nele a resignação cristã, nem a conformidade filosófica. Parece que a miséria lhe calejara a alma, a ponto de lhe tirar a sensação de lama. Arrastava os andrajos, como outrora a púrpura, com certa graça indolente.

– Procure-me, disse eu, poderei arranjar-lhe alguma coisa.Um sorriso magnífico lhe abriu os lábios. – Não é o pri-

meiro que me promete alguma coisa, replicou, e não sei se será o último que não me fará nada. E para quê? Eu nada peço, a não ser dinheiro; dinheiro sim, porque é necessário comer, e as casas de pasto não fiam. Nem as quitandeiras. Uma coisa de nada, uns dois vinténs de angu, nem isso fiam as malditas qui-tandeiras... Um inferno, meu... ia dizer meu amigo... Um in-ferno! o diabo! todos os diabos! Olhe, ainda hoje não almocei.

– Não?– Não; saí muito cedo de casa. Sabe onde moro? No

terceiro degrau das escadas de São Francisco, à esquerda de quem sobe; não precisa bater na porta. Casa fresca, extrema-mente fresca. Pois saí cedo, e ainda não comi...

Tirei a carteira, escolhi uma nota de cinco mil-réis – a me-nos limpa – e dei-lha. Ele recebeu-ma com os olhos cintilantes de cobiça. Levantou a nota ao ar, e agitou-a entusiasmado.

– In hoc signo vinces! bradou.E depois beijou-a, com muitos ademanes de ternura, e

tão ruidosa expansão, que me produziu um sentimento mis-to de nojo e lástima. Ele, que era arguto, entendeu-me; ficou sério, grotescamente sério, e pediu-me desculpa da alegria, dizendo que era alegria de pobre que não via, desde muitos anos, uma nota de cinco mil-réis.

– Pois está em suas mãos ver outras muitas, disse eu.– Sim? acudiu ele, dando um bote para mim.– Trabalhando, concluí eu.Fez um gesto de desdém; calou-se alguns instantes; depois

disse-me positivamente que não queria trabalhar. Eu estava enjoa- do dessa abjeção tão cômica e tão triste, e preparei-me para sair.

– Não vá sem eu lhe ensinar a minha filosofia da misé-ria, disse ele, escarranchando-se diante de mim.

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas.

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, v. I.

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2. Extraia do texto todos os trechos que descrevem Quincas Borba.

3. De posse da descrição, produza a imagem de Quincas Bor-ba em outra forma de expressão que não seja a escrita.

Contemporâneo a Machado de Assis o poeta sim-bolista brasileiro Alphonsus de Guimaraens ofereceu às letras nacionais versos bastante singelos sobre o enlou-quecimento de Ismália e que permanecem no universo popular até hoje.

TEXTO 10ISMÁLIA

Quando Ismália enlouqueceu,Pôs-se na torre a sonhar...Viu uma lua no céu,Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,Banhou-se toda em luar...Queria subir ao céu,Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,Na torre pôs-se a cantar...Estava perto do céu,Estava longe do mar...

E como um anjo pendeuAs asas para voar...Queria a lua do céu,Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deuRuflaram de par em par...

Sua alma subiu ao céu,Seu corpo desceu ao mar...

GUIMARAENS, Alphonsus de.

Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001.

4. Qual atitude, logo no início do poema, determina a condi-ção de loucura de Ismália.

5. Qual é o conflito vivenciado por Ismália e que permite ao eu-lírico apresentá-la, logo no primeiro verso, como enlouquecida?

6. Quais são as conseqüências do delírio de Ismália?

7. No poema de Alphonsus de Guimaraens, o que pode ser extraído como elemento popular ligado à idéia de loucura?

TEXTO 11O FALA-Só

Hoje, apesar do céu descoberto e do sol quente, não me sinto para festas. Há dias assim. E um homem não tem obri-gação nenhuma de mostrar aqui um sorriso de boas-vindas quando sabe que ninguém está para chegar. Mais vale aceitar (ou assumir, como é mais inteligente dizer-se agora) as boas e as más horas do espírito, porque atrás de uma vêm outras, e nada está seguro, etc., etc. desta fatalidade poderia até ti-rar matéria para a crônica, se mesmo agora me não tivesse passado na lembrança um homem mal enroupado que eu conheci, tonto de seu juízo, o qual homem levava o triste dia a andar para baixo e para cima na rua principal lá da aldeia. Chamavam-lhe evidentemente o Tonho Maluco, uma espécie de bobo fácil dos adultos e de besta sofredora das crianças. Estas coisas são assim e no fundo não é por mal, se o Tonho morresse toda a gente tinha um grande desgosto, pois claro.

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Das malícias do tonto não falo: eram muitas, e nem todas para pôr por escrito. Mas honestíssimas donas de sua casa rompiam aos gritos e empurravam o Tonho para fora dos quintais onde ele se introduzia, silencioso e ágil como um gineto. Adiante. O que me impressionava então e hoje recordo era aquela cisma que o Tonho tinha de falar durante todo o santo dia, ora em altas vozes contra as portas e os prudentes habitantes que atrás se escondiam, ora em es-tranhos murmúrios com o rosto apoiado numa árvore, ora quase suspirando enquanto a água das bicas lhe ia correndo para a concha das mãos. Além dos seus outros nomes, ape-lidos e alcunhas, o Tonho era o Fala-Só.

Passaram prodigamente os anos, eu cresci, o Tonho en-velheceu e morreu, e eu não morri, mas envelheci. Estas coi-sas também são assim, e no fundo ninguém nos quer mal, a culpa é do tempo que passa, e quando eu morrer as pessoas também vão ter muita pena. A ver.

Depois de eu ter crescido, soube que também aos poetas davam o nome de fala-só, porque se achava que a poesia era uma forma de loucura nem sempre mansa, e porque alguns abusavam do privilégio de falar alto à lua ou de se lançarem em solilóquios mesmo quando em companhia. Bem sei que tudo isto vinha de uma noção incuravelmente romântica do que seja poeta e poesia. Mas as pessoas, vendo bem, gostam dos loucos, e, quando os não têm, inventam-nos.

Num mundo assim organizado todos tinham o seu lugar: loucos, poetas e sãos de espírito, e todos estavam cientes dos seus direitos e obrigações. Ninguém se mis-turava. Mas decerto não era assim, porque havia sãos de espírito que passavam a loucos e poetas, e começavam a falar sozinhos, perdidos para a sociedade da gente normal. Um delgado fio é a fronteira, e parte-se, e gasta-se, e é logo outro mundo.

Quero eu dizer na minha que estas crônicas são também os dizeres de um fala-só. Que esta continuada comunicação tem qualquer coisa de insensato, porque é uma voz cega lançada para um espaço imenso onde ou-tras vozes monologam, e tudo é abafado por um silêncio espesso e mole que nos rodeia e faz de cada um de nós

uma ilha de angústia. E isto é tão verdade, que o leitor vai interromper aqui mesmo a leitura, baixa o livro, levan-ta os olhos vagos e profere as palavras da sua dor ou da sua alegria, di-las em voz alta, a ver se o mundo o ouve e se, pela magia do esconjuro involuntário, começa enfim a compreendê-lo, a si, leitor, a quem ninguém compreende e a quem ninguém ajuda.

De modo que fala-sós somos todos: os loucos, que co-meçaram, os poetas, por gosto e imitação, e os outros, todos os outros, por causa desta comum solidão que nenhuma pa-lavra é capaz de remediar e que tantas vezes agrava.

SARAMAGO, José. A bagagem do viajante. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

8. A crônica de José Saramago, O Fala-Só, é declaradamente inspirada por um sujeito de outros tempos conhecido por Tonho Maluco ou Fala-Só. Destaque, do texto, as principais características desse personagem.

9. Além de Tonho Maluco, a quais outros tipos sociais, se-gundo a crônica, era atribuído o mesmo apelido de Fala-Só? Por quê?

10. Em “Um delgado fio é a fronteira, e parte-se, e gasta-se, e é logo outro mundo”, o que separa essa fronteira?

11. Em “Mas as pessoas, vendo bem, gostam dos loucos, e, quando os não têm, inventam-nos” é possível abarcar as ati-tudes e a ciência de Simão Bacamarte? Ilustre sua resposta com passagens do conto O alienista.

12. Você concorda com a afirmação do último parágrafo de O Fala-Só? Elabore um breve comentário considerando o des-fecho do conto de Machado de Assis, O alienista.

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II. O ESPAÇO DO DELíRIO

A loucura tem abrigo certo dentro da sociedade, mas, paradoxalmente, separada dela, ao mesmo tempo. O confi-namento questionado em nossos tempos ainda é uma prá-tica comum no tratamento de indivíduos que demonstram qualquer tipo de perturbação comportamental. A literatura registra a loucura fora e dentro de seu ambiente de trata-mento. Mas, ao mesmo tempo em que “separa” a loucura da sociedade, inclui o hospício como elemento social. Os textos 12, 13 e 14 descrevem, a seguir, ambientes constru-ídos para tal situação. Leia-os com atenção e responda às questões propostas, tendo como principal objetivo estabe-lecer uma reflexão sobre o tema.

TEXTO 12O ALIENISTA (EXCERTO)

– A caridade, Sr. Soares, entra decerto no meu proce-dimento, mas entra como tempero, como o sal das coisas, que é assim que interpreto o dito de São Paulo aos corín-tios: “Se eu conhecer quanto se pode saber, e não tiver ca-ridade, não sou nada”. O principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal. Este é o mis-tério do meu coração. Creio que com isto presto um bom serviço à humanidade.

– Um excelente serviço, corrigiu o boticário.– Sem este asilo, continuou o alienista, pouco poderia fa-

zer; ele dá-me, porém, muito maior campo aos meus estudos.– Muito maior, acrescentou o outro.E tinha razão. De todas as vilas e arraiais vizinhos afluí-

am loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espíri-to. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete.

(...)

Que, na verdade, a paciência do alienista era ainda mais extraordinária do que todas as manias hospedadas na Casa Verde; nada menos que assombrosa. Simão Bacamar-te começou por organizar um pessoal de administração; e, aceitando esta idéia ao boticário Crispim Soares, aceitou-lhe também dois sobrinhos, a quem incumbiu da execu-ção de um regimento que lhes deu, aprovado pela câmara, da distribuição da comida e da roupa, e assim também da escrita, etc. Era o melhor que podia fazer, para somente cuidar do seu ofício. – A Casa Verde, disse ele ao vigário, é agora uma espécie de mundo, em que há o governo tempo-ral e o governo espiritual. E o padre Lopes ria deste pio tro-cado – e acrescentava – com o único fim de dizer também uma chalaça: – Deixe estar, deixe estar, que hei de mandá-lo denunciar ao papa.

Uma vez desonerado da administração, o alienista pro-cedeu uma vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas.

ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: Saraiva, 2007 (Clássicos Saraiva).

13. O que, em sua opinião, Simão Bacamarte quis dizer com a expressão “A Casa Verde (...) é agora uma espécie de mundo”?

TEXTO 13UM, NENHUM E CEM MIL

LIVRO VIII, CAPíTULO 4. SEM CONCLUSÃOAnna Rosa acabou sendo absolvida, mas acho que a sua

absolvição foi em parte devida ao riso que se alastrou na sala do tribunal quando, chamado a prestar meu depoimento, compareci vestido com o gorro, os tamancos e o camisolão azul do hospício.

Nunca mais me olhei num espelho e nem me passa pela cabeça querer saber o que aconteceu com o meu rosto

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e a minha aparência. Aquela que eu apresentava diante dos outros deve ter mudado muito, e de modo bastante cômico, a julgar pelo espanto e pelas risadas com que fui acolhido. Todos no entanto continuavam me chamando de Moscar-da, embora a palavra Moscarda agora tivesse para cada um deles um significado bem diferente daquele de antes, tanto que eles poderiam ter poupado aquele pobre coitado, bar-budo e sorridente, em tamancos e camisolão azul, do so-frimento de ter que se voltar todas as vezes que proferiam aquele nome, como se realmente ainda lhe pertencesse.

Nenhum nome resta, nenhuma lembrança, hoje, do nome de ontem – ou do nome de hoje, amanhã. Se o nome é a coisa, se um nome é, em nós, o conceito de cada coisa situada fora de nós, e se, sem nome, não há o conceito, ficando em nós a coisa como cega, indistinta e indefinida, então que cada um grave aquele nome que eu tive entre os homens, entalhando-o como um epitáfio sobre a fronte daquela imagem com que lhes apareci, deixando-a em paz e relegando-a ao esquecimento. Um nome não é mais do que isso: um epitáfio. Convém aos mortos, aos que concluí-ram. Eu estou vivo e sem conclusão. A vida não tem conclu-são – nem consta que saiba de nomes. Esta árvore, respiro trêmulo de folhas novas. Sou esta árvore. Árvore, nuvem. Amanhã, livro ou vento: o livro que leio, o vento que bebo. Tudo fora, errante.

O hospício fica no campo, num lugar ameníssimo. Saio todas as manhãs ao alvorecer, porque agora quero conservar o espírito assim, fresco como a aurora, com to-das as coisas recém-descobertas, ainda impregnadas do gosto cru da noite, antes de o sol as ofuscar e ressecar sua umidade orvalhada. Aquelas nuvens de água lá em cima, pesadas de chumbo, amassadas contra os montes lívidos, que fazem parecer mais largo e mais claro aquele verde trecho de céu, por entre as manchas de sombra ainda no-turna. E estes fiapos de grama, também tenros de água, impregnados do vivo frescor das margens do rio. E aquele burro lá, que passou a noite toda ao relento e agora tem os olhos apagados e relincha nesse silêncio que está tão próximo dele, mas que aos poucos parece que vai se afas-

tando, quando começa a clarear ao seu redor, sem causar espanto, com essa luz que se espalha de leve sobre as pla-nícies desertas e atônitas. E essa estradinha aqui, cortada entre colinas escuras e muros gretados, que parece parada na ruína de seus sulcos, sem levar a lugar nenhum. O ar é novo. E tudo é o que é, segundo a segundo, iluminado de vida. Desvio de repente os olhos para não ver cada coisa se fixar na sua aparência e morrer. Só assim consigo me manter vivo, renascendo a cada segundo e impedindo que o pensamento se ponha de novo a trabalhar, reabrindo por dentro o vazio de suas vãs construções.

A cidade está longe. Às vezes me chega na calma da tar-de o som dos sinos. Mas agora eu ouço esses sinos não mais por dentro, mas de fora, como se eles tocassem por si, talvez vibrando de alegria em sua cavidade sonora, suspensos do belo céu azul, cheios do calor do sol misturado ao som das andorinhas ou do vento de nuvens pesadas e altas, pairan-do sobre os campanários aéreos. Pensar na morte, rezar. Há ainda os que necessitam disso, e os sinos tocam também por eles. Eu não preciso mais disso, porque morro a cada segun-do e renasço novo e sem lembranças: vivo e inteiro, não mais em mim, mas em cada coisa externa.

PIRANDELLO, Luigi. Um, nenhum e cem mil. Tradução de Maurício Santana

Dias. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

14. Luigi Pirandello, autor italiano que viveu na virada dos séculos XIX-XX, em sua obra Um, nenhum e cem mil desen-volve o olhar de um cidadão da elite que, aos poucos, percebe sua condição social neutra e procura analisar os caminhos da natureza humana. Logo será considerado um louco. No trecho destacado lemos já o desfecho da obra e a descrição do hospício em que está recluso o narrador.

a) Que impressão tem o narrador do local em que se encontra?

b) Como o narrador descreve seu auto-tratamento?

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TEXTO 14O CEMITéRIO DOS VIVOS (1a PARTE)

O PAVILHÃO E A PINEL 4 DE JANEIRO DE 1920

Estou no Hospício ou, melhor, em várias dependências dele, desde o dia 25 do mês passado. Estive no pavilhão de observações, que é a pior etapa de quem, como eu, entra para aqui pelas mãos da polícia.

Tiram-nos a roupa que trazemos e dão-nos uma outra, só capaz de cobrir a nudez, e nem chinelos ou tamancos nos dão. Da outra vez que lá estive me deram essa peça do ves-tuário que me é hoje indispensável. Desta vez, não. O en-fermeiro antigo era humano e bom; o atual é um português (o outro o era) arrogante, com uma fisionomia bragantina e presumida. Deram-me uma caneca de mate e, logo em seguida, ainda dia claro, atiraram-me sobre um colchão de capim com uma manta pobre, muito conhecida de toda a nossa pobreza e miséria.

Não me incomodo muito com o hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da polícia na minha vida. De mim para mim, tenho certeza que não sou louco, mas devido ao álcool, misturado com toda a espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material há 6 anos me asso-berbam, de quando em quando dou sinais de loucura: deliro. Além dessa primeira vez que estive no hospício, fui atingido por crise idêntica, em Ouro Fino, e levado para a Santa Casa de lá, em 1916; em 1917, recolheram-me ao Hospital Central do Exército, pela mesma razão; agora, volto ao hospício. Es-tou seguro que não voltarei a ele pela terceira vez; senão, saio dele para o São João Batista, que é próximo. Estou incomo-dando muito os outros, inclusive os meus parentes. Não é justo que tal continue. Quanto aos meus amigos, nenhum apareceu, senão o senhor Carlos Ventura e o sobrinho.

Este senhor Carlos Ventura é um velho homem, tem uma venda na Rua Piauí, em Todos os Santos, fornece para a nossa casa, e foi com auxílio dele que me conseguiram laçar e trazer-me até ao hospício. Acompanharam-me o Alí-pio e o Jorge.

Passei a noite de 25 no pavilhão, dormindo muito bem, pois a de 24 tinha passado em claro, errando pelos subúr-bios, em pleno delírio.

Amanheci, tomei café e pão e fui à presença de um mé-dico, que me disseram chamar-se Adauto. Tratou-me ele com indiferença, fez-me perguntas e deu a entender que, por ele, me punha na rua. Voltei para o pátio. Que coisa, meu Deus! Estava ali que nem um peru, no meio de muitos outros, pas-toreado por um bom português, que tinha um ar rude, mas doce e compassivo, de camponês transmontano. Ele já me conhecia da outra vez. Chamava-me você e me deu cigarros. Da outra vez, fui para a casa-forte e ele me fez baldear a va-randa, lavar o banheiro, onde me deu um excelente banho de ducha de chicote. Todos nós estávamos nus, as portas aber-tas, e eu tive muito pudor. Eu me lembrei do banho de vapor de Dostoiévski, na Casa dos mortos. Quando baldeei, chorei; mas lembrei de Cervantes, do próprio Dostoiévski, que pior deviam ter sofrido em Argel e na Sibéria.

Ah! A Literatura ou me mata ou me dá o que eu peço dela.Desta vez, não me fizeram baldear a varanda, nem outro

serviço. Já tinha pago o tributo... Fui para o pátio, após o doutor Adauto; mas, bem depressa, fui chamado à varanda de novo.

Sentei-me ao lado de um preto moço, tipo comple-to do espécimen mais humilde da nossa sociedade. Vestia umas calças que me ficavam pelas canelas, uma camisa cujas mangas me ficavam por dois terços do antebraço e calçava uns chinelos muito sujos, que tinha descoberto no porão da varanda.

Tinha que ser examinado pelo Henrique Roxo. Há quatro anos, nós nos conhecemos. É bem curioso esse Roxo. Ele me parece inteligente, estudioso, honesto; mas não sei por que não simpatizo com ele. Ele me parece desses médicos brasileiros imbuídos de um ar de certeza de sua arte, desdenhando inteira-mente toda a outra atividade intelectual que não a sua e pouco capaz de examinar o fato por si. Acho-o muito livresco e pouco interessado em descobrir, em levantar um pouco o véu do mis-tério – que mistério! – que há na especialidade que professa. Lê os livros da Europa, dos Estados Unidos, talvez; mas não lê a natureza. Não tenho por ele antipatia; mas nada me atrai a ele.

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Perguntou-me por meu pai e eu lhe dei informações. Depois, disse-lhe que tinha sido posto ali por meu irmão, que tinha fé na onipotência da ciência e a crendice do hospí-cio. Creio que ele não gostou.

Acompanhava-o uma espécie de interno, que tinha uma cara bovina, apesar do pince-nez. Tanto lá, como aqui, no hospício, os internos evitam conversar com os doentes: morgue ou regulamento? No tempo de meu pai não era as-sim e, desde que eles descobrissem um doente em nossa casa, se aproximavam e conversavam. Decididamente, a mo-cidade acadêmica, de que fiz parte, cada vez mais fica mais presunçosa e oca. Julguei, apesar de tudo, que o Roxo me mandasse embora, tanto assim que, após o almoçojantar, quando o tal bragança enfermeiro me chamou, pensei que fosse para ir-me embora. Não foi.

Lembro-me agora de um fato; o guarda-civil, que me esperou na porta do hospício, pois não veio comigo nenhum polícia, dirigindo-se a ele, tratou-o mais de uma vez de dou-tor; ele, porém, nunca protestou.

Chamou-me o bragantino e levou-me pelos corredores e pátios até ao hospício propriamente. Aí é que percebi que ficava e onde, na seção, na de indigentes, aquela em que a imagem do que a Desgraça pode sobre a vida dos homens é mais formidável.

O mobiliário, o vestuário das camas, as camas, tudo é de uma pobreza sem par. Sem fazer monopólio, os loucos são da proveniência mais diversa, originando-se em geral das camadas mais pobres da nossa gente pobre. São de imi-grantes italianos, portugueses e outros mais exóticos, são os negros roceiros, que teimam em dormir pelos desvãos das janelas sobre uma esteira esmolambada e uma manta sórdi-da; são copeiros, cocheiros, moços de cavalariça, trabalhado-res braçais. No meio disto, muitos com educação, mas que a falta de recursos e proteção atira naquela geena social.

Vi lá o D... L..., um poeta alegre, companheiro do Ta-pajós, que conheci assim, assim e depois montou um co-légio em Vila Isabel. Parece-me que ele prosperou, mas, vindo a equiparação e não tendo ele recursos para equipa-rá-lo ao ginásio (depósito de cinqüenta contos e quota de

fiscalização), foi perdendo a freqüência, ele se desgostou, endividou-se e enlouqueceu. Cumprimentou-me, mas não quis falar comigo.

Esperei o médico. Era um doutor Airosa, creio eu ser esse o nome, interrogou-me, respondi-lhe com toda a ver-dade, e ele não me pareceu mau rapaz, mas sorriu enig-maticamente, ou, como dizendo: “você fica mesmo aí” ou querendo exprimir que os meus méritos literários nada va-liam, naturalmente à vista das burrices do Aluísio. Fosse uma coisa, fosse outra, fossem ambas conjuntamente, não me agastei. Ele era muito moço; na sua idade, no caso dele, eu talvez pensasse da mesma forma.

O enfermeiro-mor ou inspetor era o Santana. Um mu-lato forte, simpático, olhos firmes, um pouco desconfiados, rosto oval, que foi muito bom para mim. Ele fora empregado na ilha, quando meu pai lá era almoxarife ou administrador, e se lembrava dele com amizade. Deu-me uma cama, numa seção mais razoável, arranjou que eu comesse com os pen-sionistas de quarta classe e, no dia seguinte, fez-me dormir num quarto, com um estudante de medicina, Queirós, que um ataque tornara hemiplégico e meio aluado.

Tratou-me bem esse moço, conquanto não deixasse de ter, como eu já tive, essa presunção infantil do nosso estu-dante, que se julga, só por sê-lo, diferente dos outros. Dei-lhe a entender que já o havia sido; ele pareceu não acreditar.

Dormi a noite de 26 no dormitório geral e a de 27 no quarto do estudante. Vinte e oito foi domingo, recebi visitas do meu irmão e do senhor Ventura, ambos me trouxeram cigarros, e o senhor Ventura, passas e figos. Ainda desta vez, dormi no quarto, com o estudante.

Na Seção Pinel, que é a de que estou falando, reatei conhecimento com um rapaz português, que me conheceu quando era estudante e comia na pensão do Ferraz, isto deve ter sido há vinte anos ou mais. Durante os dias em que lá estive, ele, o José Pinto, me foi de um préstimo inesquecível. Relembrava ao porteiro a ordem que eu tinha do Santana de ir tomar refeições no refeitório especial, arranjava-me jornais (Santana também), cigarros (contarei essa tragédia manicomial em separado) e, na tarde de domingo, levou-me

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a passear pela chácara do hospício. É muito grande e, apesar de estiolada e maltratada, a sua arborização devia ter sido maravilhosa. Os ricos de hoje não gostam de árvores...

O hospício é bem construído e, pelo tempo em que o edificaram, com bem acentuados cuidados higiênicos. As salas são claras, os quartos amplos, de acordo com a sua capacidade e destino, tudo bem arejado, com o ar azul dessa linda enseada de Botafogo que nos consola na sua imarcescível beleza, quando a olhamos levemente enruga-da pelo terral, através das grades do manicômio, quando amanhecemos lembrando que não sabemos sonhar mais... Lá entra por ela adentro uma falua, com velas enfunadas e sem violentar; e na rua embaixo passam moças em traje de banho, com as suas bacias a desenharem-se nítidas no calção, até agora inúteis.

Na segunda-feira, antes que meu irmão viesse, fui à presença do doutor Juliano Moreira. Tratou-me com grande ternura, paternalmente, não me admoestou, fez-me sentar a seu lado e perguntou-me onde queria ficar. Disse-lhe que na Seção Calmeil. Deu ordens ao Santana e, em breve, lá estava eu.

Paro aqui, pois me canso; mas não posso deixar de con-signar a singular mania que têm os doidos, principalmente os de baixa extração, de andarem nus. Na Pinel, dez por cen-to assim viviam, num pátio que era uma bolgia do inferno. Por que será?

BARRETO, Lima. O cemitério dos vivos. São Paulo: Planeta, 2004.

15. Lima Barreto, importante escritor brasileiro do Pré-Moder-nismo, descreve, no texto 14 (trecho do romance O cemitério dos vivos), a própria experiência como interno do hospício.

a) Que impressão o narrador-autor apresenta sobre as de-pendências do hospício em que se encontra?

b) O autor rebela-se contra sua situação? Qual o motivo que ele atribui para sua internação?

c) Em sua opinião, o texto que lemos em O cemitério dos vivos é de quem necessita estar internado em um hospício?

III. OS LOUCOS SÃO OS OUTROS

E quanto à “história dos vencidos”? Após exercitarmos os principais temas tratados em O

alienista, apresentamos duas propostas de trabalho em gru-po. Leia-as com atenção e procure desenvolver um material original para estudar Machado de Assis.

16. Que tal agora exercitar a imaginação e produzir novos con-tos a partir do olhar dos internados por Bacamarte? A classe, dividida em duplas ou trios, poderá escrever a partir do ponto de vista dos “doentes” de Bacamarte, fazendo de cada um deles um narrador em 1a pessoa. Cada dupla assumirá um dos internos da “casa de orates” de Itaguaí e escreverá um con-to/capítulo, tendo o nome do personagem como título. Ao fi-nal, teremos um pequeno romance escrito por toda a classe. Uma nova leitura do texto 14, escrito por Lima Barreto, po-derá ser muito útil.

17. Quem não tem uma mania? Na primeira etapa cada colega da classe ficcionalizará a pró-pria história de vida ao se descrever em um texto narrativo. Cada autor apresentará um caso nada convencional, ou ao menos um pouco estranho, que tenha vivido. Ao fim, cada redação poderá ser um capítulo para o livro coletivo intitu-lado “Novos pacientes para o Dr. Bacamarte”.

Bolgia: palavra italiana que designa confusão, bagunça.

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