Água e conflito na baixada dos goytacazes · são das atividades econômicas da baixada flu- ......

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RESUMO: O trabalho discute os conflitos em torno do uso da água na Baixada dos Goytaca- zes, no Norte do Estado do Rio de Janeiro, Bra- sil, oferecendo um esquema analítico alternati- vo ao da literatura técnica especializada, que atri- bui tais conflitos à escassez objetiva do recurso hídrico. Buscou-se sustentar aqui que os confli- tos pelo uso da água não decorrem apenas da luta pelo recurso escasso, tendo em vista que esta escassez é ela mesma socialmente referida às condições jurídico-políticas específicas de regu- lação e às formas culturais subjacentes aos dife- rentes modos de apropriação da água. Contrari- amente a esta perspectiva, o trabalho busca tra- zer para a discussão as relações de poder e do- minação subjacentes, assim como, a existência de diferentes projetos sociais e culturais em dis- puta naquele território. PALAVRAS-CHAVE: Conflitos pelo uso da água; gerenciamento dos recusros hídricos; conflito ambiental ABSTRACT: This work deals with the conflicts related to the use of water in the lowlands of Goyta- cazes (Baixada dos Goytacazes), located in the Northern region of Rio de Janeiro State, Brazil. It presents an analytic approach alternative to the one offered in existing specialized technical liter- ature on the subject that attributes such conflicts to objective scarcity of water resources. In this analysis the intention is to argue that conflicts over water resources are not a mere consequence of the struggle for such a scarce resource, but that this scarcity is socially linked to legal-political cir- cumstances of a regulative nature, as well as to the cultural forms underlying the different means of water appropriation. Furthermore, it brings to the debate the underlying power struggles and associated domination, together with the exist- ence of different social and cultural projects un- der dispute in the area. KEY-WORDS: Lowlands of Goytacazes; con- flicts; water Água e conflito na Baixada dos Goytacazes Paulo Roberto Ferreira Carneiro INTRODUÇÃO Este artigo discute situações de conflito em torno do uso da água, caracterizando suas di- mensões físico-materiais e explicitando as di- mensões simbólicas associadas aos modos de representar a água, ambos elementos indisso- ciáveis na explicação das estratégias dos dife- rentes atores envolvidos nos processos confli- tivos considerados. Busca-se demonstrar que os conflitos pelo uso da água não decorrem apenas da disputa pelo recurso escasso, tendo em vista que esta escassez é ela mesma social- mente referida às condições jurídico-políticas específicas de regulação (ou des-regulação) e às formas culturais subjacentes aos diferentes modos de apropriação da água. Na área em questão, construiu-se, desde tempos pretéritos, um arrazoado de justificati- vas sobre a vocação da planície campista para a monocultura da cana. Nas categorias da ló- gica econômica dominante, essa suposta van- tagem comparativa, em relação a outras for- mas de utilização do território, possibilitou que o segmento da agroindústria canavieira se ex- pandisse e praticamente eliminasse daquele espaço outras formas de uso. Em que medida o comportamento históri- co dos agentes sociais influiu na conformação dos conflitos e de que forma os diferentes gru- pos sociais sustentaram ou se opuseram à tra- jetória de intervenções (implantação de obras de drenagem) que transformaram definitiva- mente as formas de acesso aos recursos hídri- cos na região da Baixada Campista? Respon- der estas perguntas é o objetivo central deste trabalho. A área do estudo localiza-se na região con- formada pela planície deltaica do rio Paraíba do Sul, denominada de Baixada dos Goytaca- zes (ou Baixada Campista), situada no Norte do Estado do Rio de Janeiro, na região Sudes-

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RESUMO: O trabalho discute os conflitos emtorno do uso da água na Baixada dos Goytaca-zes, no Norte do Estado do Rio de Janeiro, Bra-sil, oferecendo um esquema analítico alternati-vo ao da literatura técnica especializada, que atri-bui tais conflitos à escassez objetiva do recursohídrico. Buscou-se sustentar aqui que os confli-tos pelo uso da água não decorrem apenas daluta pelo recurso escasso, tendo em vista que estaescassez é ela mesma socialmente referida àscondições jurídico-políticas específicas de regu-lação e às formas culturais subjacentes aos dife-rentes modos de apropriação da água. Contrari-amente a esta perspectiva, o trabalho busca tra-zer para a discussão as relações de poder e do-minação subjacentes, assim como, a existênciade diferentes projetos sociais e culturais em dis-puta naquele território.

PALAVRAS-CHAVE: Conflitos pelo uso da água;gerenciamento dos recusros hídricos; conflitoambiental

ABSTRACT: This work deals with the conflictsrelated to the use of water in the lowlands of Goyta-cazes (Baixada dos Goytacazes), located in theNorthern region of Rio de Janeiro State, Brazil.It presents an analytic approach alternative to theone offered in existing specialized technical liter-ature on the subject that attributes such conflictsto objective scarcity of water resources. In thisanalysis the intention is to argue that conflicts overwater resources are not a mere consequence ofthe struggle for such a scarce resource, but thatthis scarcity is socially linked to legal-political cir-cumstances of a regulative nature, as well as tothe cultural forms underlying the different meansof water appropriation. Furthermore, it brings tothe debate the underlying power struggles andassociated domination, together with the exist-ence of different social and cultural projects un-der dispute in the area.

KEY-WORDS: Lowlands of Goytacazes; con-flicts; water

Água e conflito na Baixada dos Goytacazes

Paulo Roberto Ferreira Carneiro

INTRODUÇÃOEste artigo discute situações de conflito em

torno do uso da água, caracterizando suas di-mensões físico-materiais e explicitando as di-mensões simbólicas associadas aos modos derepresentar a água, ambos elementos indisso-ciáveis na explicação das estratégias dos dife-rentes atores envolvidos nos processos confli-tivos considerados. Busca-se demonstrar queos conflitos pelo uso da água não decorremapenas da disputa pelo recurso escasso, tendoem vista que esta escassez é ela mesma social-mente referida às condições jurídico-políticasespecíficas de regulação (ou des-regulação) eàs formas culturais subjacentes aos diferentesmodos de apropriação da água.

Na área em questão, construiu-se, desdetempos pretéritos, um arrazoado de justificati-vas sobre a vocação da planície campista paraa monocultura da cana. Nas categorias da ló-gica econômica dominante, essa suposta van-

tagem comparativa, em relação a outras for-mas de utilização do território, possibilitou queo segmento da agroindústria canavieira se ex-pandisse e praticamente eliminasse daqueleespaço outras formas de uso.

Em que medida o comportamento históri-co dos agentes sociais influiu na conformaçãodos conflitos e de que forma os diferentes gru-pos sociais sustentaram ou se opuseram à tra-jetória de intervenções (implantação de obrasde drenagem) que transformaram definitiva-mente as formas de acesso aos recursos hídri-cos na região da Baixada Campista? Respon-der estas perguntas é o objetivo central destetrabalho.

A área do estudo localiza-se na região con-formada pela planície deltaica do rio Paraíbado Sul, denominada de Baixada dos Goytaca-zes (ou Baixada Campista), situada no Nortedo Estado do Rio de Janeiro, na região Sudes-

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te do Brasil. A pesquisa foi desenvolvida noâmbito do Sub-projeto “Identificação dos Con-flitos pelo Uso da Água na Bacia do rio Paraí-ba do Sul”, com financiamento do Fundo Na-cional de Desenvolvimento Científico e Tec-nológico/FNDCT (Área de Recursos Hídricos- CT-HIDRO), sob a coordenação da Financia-dora de Estudos e Projetos (FINEP).

O trabalho de pesquisa consistiu em amplaconsulta às fontes históricas e na pesquisa em-pírica, desenvolvida entre os meses de abril eoutubro de 2002, com a aplicação de entrevis-tas qualificadas junto aos atores relacionadosdireta ou indiretamente aos conflitos em tor-no do uso da água na região em tela.

A PESQUISA HISTÓRICA –O DESSECAMENTO DA BAIXADAO período que vai do primeiro quartel da

década de 1930 até meados da década de 1970caracteriza-se pela implementação dos grandesprojetos de drenagem na região da BaixadaCampista, propiciando um salto qualitativo noprocesso de “controle” das águas, em funçãoda conjunção de fatores político-institucionais,econômicos e sócio-culturais.

Destaque-se aí a Revolução de 30, em cujocontexto sobressai o papel designado para aagricultura no período do entre-guerras, e oprotagonismo da classe profissional dos enge-nheiros na direção das políticas públicas noEstado do Rio de Janeiro. Os projetos de sane-amento e drenagem implantados a partir des-se período inserem-se nesse contexto de “mo-dernização do Estado”, à luz do projeto mo-dernizador dos engenheiros. Estes fatores con-correram para a consolidação da Comissão deSaneamento da Baixada Fluminense, que pos-teriormente ganhou amplitude nacional comoDepartamento Nacional de Obras de Sanea-mento (DNOS). O órgão logrou empreenderum conjunto de intervenções de ampla mag-nitude, obedecendo a um rigoroso planeja-mento até então inédito na região.

A despeito das motivações sanitaristas -como a erradicação da malária e a febre ama-rela - as fontes históricas indicam que a gênesedo DNOS esteve intimamente ligada à expan-são das atividades econômicas da Baixada Flu-minense. De todas as planícies do Rio de Ja-

neiro, era exatamente a Baixada de Goytaca-zes que se afigurava como a principal, no quetange ao aproveitamento agrícola. O efeitoprático da atuação do órgão foi o amplo “des-secamento” da baixada outrora pantanosa erepleta de lagoas e lagunas perenes e tempo-rárias, mediante a construção de uma comple-xa rede de canais de drenagem, de mais de1.300 km de extensão, favorecendo nitidamen-te a expansão das atividades agrícolas locais.

A Transformação da BaixadaDesde 1933, a “recuperação de terras” ganha-

ra o estatuto de política prioritária, como resul-tado do fortalecimento das demandas por dre-nagem, conservação dos cursos d’água e cons-trução de canais e diques nas regiões mais bai-xas. Um dos principais objetivos era transfor-mar brejos, pântanos e mesmo lagoas e lagunasem terrenos agricultáveis. Assim, grandes exten-sões de áreas foram agregando-se ao sistemaprodutivo das propriedades particulares.

Nas áreas rurais da Baixada dos Goytacazesos projetos de drenagem sempre estiveram(inexoravelmente) relacionados à valorizaçãofundiária. No centro da questão está a notávelexpansão e concentração de terras agricultá-veis, sobretudo no município de Campos. Aabordagem do tema se justifica pela necessi-dade de evidenciar a emergência de um sujei-to estruturante de todo o processo históricovivido pela região a partir deste momento, asaber, as usinas.

O processo de aumento da área produtivaatravés do dessecamento de lagoas, brejos e deáreas periodicamente inundadas prolongou-se até o final das principais obras de drena-gem realizadas na baixada campista, concluí-das na década de 60. A partir daí, as transfor-mações na economia da região caracterizou-se predominantemente por um reordenamen-to da sua estrutura agrária.

Esse reordenamento evidenciou-se pelo pre-domínio da pequena propriedade familiar, emtermos numéricos, e a concentração maciça daposse da terra em poucas propriedades de gran-de extensão. A fase da hegemonia espacial dominifúndio na região açucareira do Norte Flu-minense, que intrigou a historiografia nacionalda primeira metade do século, durou até os

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primeiros anos do século XX. Com o adventodas grandes usinas, que substituíram os enge-nhos a vapor, tem início o processo de concen-tração fundiária no município de Campos.

A expansão da área produtiva, por seu tur-no, teria reforçado a tendência histórica daregião, que se caracteriza pela concentraçãode terra e capital, concomitantemente à proli-feração das pequenas propriedades. A coexis-tência da minifundização com a concentraçãofundiária se daria mediante a crescente subor-dinação econômica dos pequenos proprietá-rios ao capital usineiro (Santa’Ana, 1984). Oprocesso de pulverização fundiária das peque-nas propriedades incidia, sobretudo, na agri-cultura familiar, induzindo a especialização daprodução de cana, aprofundando sua depen-dência às usinas. Essa relação de subordinaçãoàs usinas irá explicar, em parte, as estratégiasutilizadas pelos produtores em situação de con-flito pelo uso da água.

A Figura 1, a seguir, foi elaborada com baseno mapa confeccionado por Alberto Lamego,que integra o trabalho “Geologia das Quadrí-culas de Campos, São Tomé, Lagoa Feia eXexé”, publicado em 1955 pelo Departamen-to Nacional de Produção Mineral. Esse mapaé de grande importância por ser um registrocartográfico da grande quantidade de lagoas,lagunas e brejos existentes na região da Baixa-da dos Goytacazes até o início do século XX. AFigura 2, por seu turno, mostra os principaiscanais de drenagem construídos pelo DNOSaté o final da década de 1960.

A Emergência dos ConflitosEm meados da década de 70 a agroindús-

tria canavieira iniciou um período de profun-da modernização, financiada com recursospúblicos, o que implicou significativos acrésci-mos à capacidade instalada das usinas da re-gião sem, no entanto, o correspondente au-mento da produção do insumo básico: a cana-de-açúcar. Os usineiros passam a alegar queestariam funcionando com uma capacidadeociosa insustentável, em função da estagnaçãoda produtividade agrícola (Santa’Ana, 1984).

Os usineiros e produtores de cana começama atribuir responsabilidade pela “crise agríco-la” ao recrudescimento dos períodos secos.

Crescem, a partir de então, as pressões para adifusão de uma nova prática de utilização dosrecursos hídricos dispostos na região: a irriga-ção. O influente segmento consegue, de fato,induzir um conjunto de políticas públicas vol-tadas para a difusão da irrigação, fundamen-talmente para as usinas e grandes fornecedo-res de cana capazes de mobilizar capital sufici-ente para os investimentos em infra-estruturahidráulica e equipamentos.

Por outro lado, o redirecionamento paraesta nova função da complexa rede de canaismontada pelo DNOS, até então utilizada basi-camente para a promoção da drenagem nasterras agrícolas, vai concorrer para o surgimen-to de conflitos por água, até então inexisten-tes, entre os produtores de cana e desses comusinas de açúcar e álcool.

Eclode, também, a partir desse momento,um conflito de pouca visibilidade social: a con-tradição histórica entre as intervenções doDNOS, a serviço dos interesses dos atores liga-dos à agroindústria açucareira, e as necessida-des do segmento dos pescadores. Ao contrá-rio da perspectiva dominante, que identifica-va a água como entrave ao desenvolvimento,os pescadores tinham na manutenção das la-goas uma condição fundamental para a repro-dução de seus modos de vida, organização dotrabalho e subsistência. Vários levantes contraobras do DNOS entre 1979 e o começo dosanos 80 viriam a evidenciar este quadro.

Na segunda metade da década de 70 surgi-ram vozes contrárias à histórica atuação doDNOS na Baixada Campista. A primeira mani-festação formal neste sentido foi apresentadano ano de 1976, pelo então diretor do Departa-mento de Recursos Naturais Renováveis da Se-cretaria Estadual de Agricultura e Abastecimen-to, questionando o órgão federal sobre os im-pactos de suas obras aos ecossistemas locais.

Posteriormente, em 1978, a Fundação Esta-dual de Engenharia do Meio Ambiente (FEE-MA), em parecer conjunto emitido pelas asses-sorias da presidência, referiu-se aos riscos deimpacto que as obras do DNOS no Norte Flumi-nense representavam para o meio ambiente.

Em outubro de 1979, Norma Crud Maciele Dorothy Sue Dunn de Araújo, biólogas daFEEMA, apresentaram um parecer técnico so-

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Figura 1. Lagoas e Lagunas na Baixada dos Goytacazes no início do século XXFonte: Elaborado a partir de: Alberto Lamego. Geologia das Quadrículas de Campos, São Tomé, LagoaFeia e Xexê. Boletim DNPM nº 154, 1955

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Figura 2. Canais de drenagem da Baixada dos GoytacazesFonte: Elaborado a partir de base cartográfica do IBGE e imagem LANDSAT.

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bre o impacto causado aos ecossistemas lacus-tres com as obras realizadas pelo DNOS naBaixada Campista.

Coincidentemente, um mês antes do pare-cer estar concluído, ocorreu a primeira mani-festação de pescadores contra obras do DNOS.Ignorados pela elite açucareira e pelo DNOS,esse grupo social, tradicionalmente vivendo dapesca e instalado em Ponta Grossa dos Fidal-gos, às margens da lagoa Feia, em Mundéus,junto à lagoa do Campelo, em São Benedito,na margem setentrional da lagoa de Cima, eno Farol de São Tomé e adjacências, manteve-se praticamente à margem da sociedade localaté o final da década de 70, quando resolveuprotestar de forma organizada contra as inter-venções contrárias aos seus interesses.

O primeiro conflito ocorreu no dia 25 desetembro de 1979, na lagoa Feia, quando 600pescadores paralisaram uma draga flutuantedo DNOS, que pretendia remover um con-trole hidráulico natural, conhecido como “du-rinho da valeta”, que, segundo acreditavam,não permitia que o nível d’água da lagoa fos-se reduzido abaixo de uma determinada cota.A intenção do DNOS era concluir um canalsubmerso no leito da lagoa Feia que iria ligaro rio Ururaí e o rio Macabú - os dois maioresafluentes da lagoa - mais o canal de Tocos,que desemboca numa enseada dentro da la-goa Feia, com um canal central que iria até ocanal da Flecha, por onde a lagoa Feia escoapara o mar. Com essa obra o DNOS poderia,através da operação das comportas no canaldas Flechas, controlar de forma mais eficien-te os níveis d’água da lagoa. Na visão dos pes-cadores, seria o fim da atividade de pesca.Quando a draga flutuante começou a se apro-ximar do “durinho da valeta” os pescadoresparalisaram-na.

Os mesmos pescadores de Ponta Grossa dosFidalgos, em outubro de 1979, interditaramuma draga a serviço do DNOS, agora desfral-dando a bandeira nacional para simbolizar ocaráter legal e ordeiro do movimento. Temen-do a continuidade dos levantes, o DNOS en-trou com uma queixa-crime na Justiça Federalarrolando 11 participantes. Na época o Gover-no Militar não costumava tolerar protestosdesse tipo. A Polícia Federal passa, então, ainvestigar o ocorrido, indicando para condu-

zir o caso um delegado com larga experiênciana Polícia. Surpreendentemente, concluída ainvestigação, o delegado declara à imprensaque o caso não era de subversão, mas de fome,de sobrevivência.

No dia 26 de outubro foi a vez do protestodos pescadores do Farol de São Tomé. Con-centrando-se junto ao canal Quitinguta e, em-punhando a bandeira brasileira, deram aoDNOS o prazo de quarenta e oito horas paraque restabelecesse sua comunicação com omar, permitindo a penetração de peixes e ca-marões em direção às lagoas costeiras utiliza-das para a pesca. Esse caso ficou conhecidocomo “o buraco do Ministro”, em função davinda do Ministro do Interior, Maurício Ran-gel Reis, a Campos, especificamente para tra-tar da questão.

No dia 13 de agosto de 1980 ocorreu outramanifestação: os pescadores da lagoa do Cam-pelo arrancaram as comportas instaladas nocanal do Cataia, que ligava esta lagoa ao rioParaíba do Sul. O DNOS realizou na épocaobras de drenagens em torno da lagoa do Cam-pelo acabando com os rios Ponte e Pires, res-tando o canal Cataia, que era um canal natu-ral. Simultaneamente, foi construído um di-que na margem esquerda do rio Paraíba doSul, a fim de impedir seu transbordamento e,por cima desse dique, construíram uma estra-da, que, ao cruzar o canal Cataia, recebeu acolocação de três manilhas com três tamposcom dobradiças voltados para o rio, como sefossem comportas automáticas. As comportasse abriam ou fechavam de acordo com o níveld’água do rio Paraíba do Sul em relação aonível da lagoa. A entrada de água do rio Para-íba do Sul para a lagoa, controlada até entãopelos ciclos de cheia do rio Paraíba do Sul,passou a ser regulada por comportas.

Para os pescadores interessava a manuten-ção do canal aberto, pois junto com a água dorio vinham os peixes, melhorando significati-vamente o rendimento da pesca na lagoa doCampelo. Assim, no dia mencionado anterior-mente, arrancaram as comportas instaladaspelo DNOS, permitindo a passagem da água.Por sua vez, aos proprietários rurais interessa-va o controle das comportas de forma a nãoinundar suas plantações. Daí o conflito. Valeressaltar que a expansão da atividade agrícola

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na área do entorno da lagoa do Campelo sedeu após as obras do DNOS, enquanto a pes-ca, por sua vez, é uma atividade tradicional nalocalidade de Mundéus.

Ao final dos anos oitenta o DNOS já nãopossui o incontestável poder que manteve porcinco décadas. A utilização da rede de drena-gem para a irrigação da cana-de-açúcar tornouainda mais complexa a sua operação. É nessemomento de fragilidade institucional que ocontrole sobre o órgão, por parte dos proprie-tários rurais e usinas, se amplia.

Ressalta-se o quanto eram socialmente di-ferenciadas as relações estabelecidas peloDNOS. Se por um lado, os produtores de canae usineiros conseguiam contornar os conflitospor água, orientando e até mesmo interferin-do nos procedimentos do órgão; os pescado-res, por outro lado, dada sua condição de to-tal invisibilidade social, tiveram como únicorecurso a investida direta contra o órgão, che-gando a paralisação física de suas atividades. Aextinção do DNOS no início do Governo Co-llor põe fim a este período de mediação insti-tucional dos conflitos decorrentes dos diver-sos usos da água.

A PESQUISA EMPÍRICA –A SOCIOLOGIA DO CONFLITONo final da década de 80, com a falência

do modelo autoritário, era grande no Brasila impressão de que seria preciso redimensio-nar o papel do Estado e de sua máquina ad-ministrativa. Assim, o primeiro presidenteeleito em 30 anos, Fernando Collor de Melo,assumiu o poder em 1990 com uma platafor-ma que interpretava a reforma administrati-va, fundamentalmente, como a necessidadede se promover o enxugamento da máquinagovernamental.

Inspirado, de um lado, por um novo para-digma de eficiência que concebia as estrutu-ras menores como mais capazes de executaras mesmas tarefas empregando menos recur-sos e, de outro, por uma nova concepção deEstado, que deveria manter sua intervençãoapenas nas esferas onde ele seria estritamentenecessário (ou seja, a estratégia da desestatiza-ção considerada como um fim em si), o gover-no promoveu uma ampla e acelerada reforma

administrativa, idealizada estritamente pelosquadros do poder executivo e implementadaexclusivamente por medidas provisórias. Nobojo dessa reforma, o governo extinguiu cin-co autarquias, entre elas o DNOS e o IAA, duasinstituições-chave para o setor agroindustrialcampista há muitos anos.

Na área de saneamento, a extinção pura esimples do DNOS, sem a criação de institui-ção alternativa, deixou o Governo Federal semum órgão gestor de obras de infra-estruturavoltada ao saneamento básico.

Ao longo da década de 1980, o DNOS jáenfrentava uma profunda crise institucional.Sua extinção, no entanto, é menos um desdo-bramento desta crise do que uma decisão in-serida no contexto das reformas neoliberaisque se seguiram. Na região em tela, sua extin-ção resultou no abandono da extensa estrutu-ra hidráulica construída ao longo de décadase o fim da principal instância mediadora deconflitos em torno do uso da água, provocan-do um vazio institucional grave e duradouro.

De acordo com o exposto, a mediação con-duzida pelo DNOS sempre esteve orientadapelos interesses da agroindústria canavieira.Outros atores sociais, em particular os pesca-dores, nunca foram reconhecidos pelo órgãocomo um grupo social com legitimidade parareivindicar seus interesses.

Se por um lado era necessário manter oscanais desobstruídos, para permitir o rápidoesgotamento das águas acumuladas com aschuvas, por outro lado, a necessidade de pre-servação de níveis de água suficientes para aten-der os sistemas de irrigação induzia os propri-etários rurais e usinas a obstruir o curso d’águacom pequenas barragens, dificultando o esco-amento das águas.

De terras úmidas, pantanosas, com inúme-ras lagoas permanentes e temporárias, a Bai-xada Campista passou a ter terras ressecadas eem alguns locais salinizadas, sobretudo nosperíodos de baixa pluviosidade, sem água sufi-ciente para suprir as necessidades do novomodelo agrícola baseado na irrigação.

Com o abandono das estruturas hidráulicase da manutenção dos canais, as condições, jáprecárias, do sistema hidráulico se agravaramrapidamente. Nos períodos de seca, o baixo

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nível d’água do rio Paraíba do Sul impossibilitaa adução de água para os canais, comprome-tendo o abastecimento das propriedades rurais.A forte redução da oferta de água para os ca-nais tem também como conseqüência imediatao aumento do nível da poluição hídrica, já queos canais são receptores do lixo e do esgoto lan-çados na área urbana de Campos.

Os proprietários rurais e as usinas, carentesde água para a irrigação e para a operação dasunidades fabris, buscam elevar o nível d’águados canais, construindo pequenas barragens.Essas barreiras interceptam o já pequeno fluxode água, prejudicando todos os outros usuárioslocalizados a jusante. Tais soluções individuaisdisseminam os conflitos por água por pratica-mente toda a região drenada pelos canais.

Os períodos secos dos últimos anos agrava-ram a situação, forçando mudanças de postu-ra dos usineiros e proprietários rurais. Se nopassado a lógica que prevalecia era a “recupe-ração das terras”, ou seja, a ampliação da áreaprodutiva com a incorporação de terras dre-nadas onde antes eram lagoas e brejos, agoraadmite-se a elevação do nível d’água de algu-mas lagoas, através da operação de comportasnos canais, mesmo perdendo-se áreas produti-vas. O importante é ter água abundante paraaumentar a produtividade da lavoura.

Nesse sentido, a acumulação de capital pelaampliação das áreas exploradas passou a sermenos importante do que a sua acumulaçãovia aumento de rendimentos obtidos por uni-dade de área. O que antes era visto como bre-jo, criadouro de mosquitos e causador de en-demias, responsável pela pobreza econômicada Baixada Campista, passou a ser identifica-do como reservatórios de águas, fundamentaispara a estocagem de água a ser utilizada nairrigação. As lagoas assumem, pois, novo signi-ficado no discurso hegemônico das classes pro-dutoras campistas.

Novos e Velhos Conflitos pelo uso da ÁguaEm função da complexidade das questões

envolvendo as disputas em torno da utilizaçãoda água na Baixada Campista, tornou-se ne-cessário realizar um recorte analítico do quese entende por conflito em torno do uso daágua. Nesse sentido, o foco de atenção da pes-

quisa privilegiou os conflitos concernentes aossegmentos que usam a água como insumo deatividades econômicas ligadas à agroindústriacanavieira, entre si e em relação ao segmentodos pescadores, que necessitam da água comobase de sustentação da atividade de pesca.

Assim, neste item discutir-se-ão os principaisconflitos pertinentes ao recorte analítico men-cionado anteriormente:

1. Conflitos internos ao segmento agroin-dustrial: envolvendo, especificamente,usinas e produtores rurais;

2. Conflitos entre os segmentos dos pesca-dores e produtores rurais;

O primeiro tipo de conflito envolve dispu-tas pela apropriação dos recursos hídricos den-tro de um mesmo campo de interesses, no casoa utilização da água como insumo produtivopara a agroindústria canavieira. O segundoenvolve conflitos que põem em disputa modosdistintos de apropriação material e simbólicade uma determinada base de recursos territo-rializados, no caso a água, e que, em últimainstância, podem levar a inviabilização da per-manência de uma determinada prática social.

Seguindo essa classificação, os atores soci-ais são definidos dentro de cada um dessescampos de poder, tanto por sua participaçãodireta como sujeito, individual ou coletivo,como pelas posições estratégicas que assumemno espaço de relações: campo de disputas emtorno da água.

Convém reconhecer que os grupos compo-nentes dos segmentos sociais nas situações deconflito aqui analisadas não são monolíticos.Diferenças de posicionamento no interior deum mesmo grupo ocorrem, no entanto, emseus aspectos fundamentais, as posições assu-midas pelos atores sociais estão relacionadasàs posições que ocupam no espaço social: é apartir da proximidade dos indivíduos nesseespaço relacional que se afirmam, com maiorprobabilidade, identidades em torno de obje-tivos comuns.

Portanto, no recorte analítico adotado, osatores sociais em conflito pela apropriação daágua são considerados como dotados de quan-tidades distintas de elementos de poder sobreos recursos: organizações empresariais (usinassucro-alcooleiras), produtores rurais e pescado-

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res. Os atores referidos anteriormente são aque-les envolvidos diretamente nos conflitos. Osdemais atores, por não estarem diretamenteenvolvidos nas situações de conflito, aparecemna análise de acordo com seu posicionamentofrente aos conflitos. É o caso, por exemplo, dasprefeituras, órgãos do estado do Rio de Janei-ro, ambientalistas, Ministério Público, etc.

Conflitos internosao segmento agroindustrial

Conforme já mencionado, a partir da segun-da metade da década de 70, as usinas e os gran-des e médios produtores de cana, principal-mente, passaram a requerer água para irrigarsuas culturas. Tal demanda adicional por águaacabou originando disputas internas neste seg-mento de usuários de recursos hídricos.

No entanto, muitos afirmam que tais con-flitos não assumiam grandes dimensões duran-te as décadas de 70 e 80. Ademais, argumenta-se que o DNOS, mesmo no período em queenfrentou as suas maiores dificuldades opera-cionais (década de 80), costumava funcionarcomo uma instância mediadora de disputas porágua entre os irrigantes, bem como entre es-ses e as usinas.

Nos últimos 13 anos, em função da menordisponibilidade hídrica – fato constatado porestudo realizado recentemente pelo Sistemade Meteorologia do Estado do Rio de Janeiro- SIMERJ (Marques, V. S., et al., 2001) - e au-sência de um órgão público mediador, mui-tos produtores e usinas passaram a recorrer aatitudes individuais para conseguir água, jus-tificando tal postura, em geral, pela necessi-dade de proteger seus investimentos, compro-metidos pela pequena quantidade de águanos canais.

Duas são as modalidades básicas de inter-venção empreendidas como forma de “auto-defesa” para a garantia do acesso à água: obarramento dos cursos d’água e o manejo pri-vado de comportas instaladas pelo DNOS. Es-tas práticas acabam por prejudicar outros irri-gantes instalados mais a jusante, pois ficamimpossibilitados de aduzir água em quantida-de suficiente e qualidade razoável. Inúmerossão os relatos de casos desse tipo, que ocasio-nalmente culminam em inquéritos instalados

pela Fundação Superintendência de Rios eLagoas (SERLA) ou pelo Ministério Público.

Entretanto, a institucionalização do confli-to é o que os produtores, majoritariamente,buscam evitar. De um modo geral, os irrigan-tes procuram esquivar-se de interferências ti-das como “externas”. Leia-se aí interferênciasdo poder público, seja da SERLA, dos órgãosambientais, poder judiciário ou prefeituras.Preferencialmente optam por tentar resolveras disputas informalmente, como “bons vizi-nhos”. A vantagem dessa solução informal ouextra-institucional das controvérsias é a possi-bilidade de deixar em aberto que cada usuá-rio possa eventualmente fazer também umbarramento conforme a sua conveniência.Busca-se manter, portanto, as intervenções in-dividuais em sigilo, mesmo quando causamprejuízos a si próprios. Afinal, muitas vezes avítima é vilã em outra oportunidade. Com ofim do DNOS, os proprietários rurais e usinasassumiram boa parte do controle das estrutu-ras hidráulicas, operando comportas e barran-do os cursos d’água de acordo com seus inte-resses. A fragilidade institucional das institui-ções públicas abriu caminho para a conduçãoprivada do sistema de canais e, também, paraa mediação privada desses conflitos.

Cabe assinalar que um componente funda-mental do discurso dos atores envolvidos nosconflitos, de modo a garantir a manutençãoda autonomia do grupo na mediação das dis-putas, é o de minimizar o quanto possível aexistência dos conflitos. Esta estratégia é parti-cularmente perceptível na adjetivação empre-gada para qualificá-las. Por exemplo, recusamsistematicamente o epíteto de “conflitos” paraa enunciação das disputas. Nas próprias entre-vistas, quando os membros destes grupos eramargüidos sobre a existência de conflitos, pron-tamente corrigiam com eufemismos conside-rados mais adequados: desentendimentos, pe-quenas desavenças, desacordos, etc.

Conflitos entre pescadorese produtores rurais

Os pescadores vêm logrando, desde a déca-da de 70, aprimorar a sua capacidade de orga-nização e representação, com o estabelecimen-to de associações, a utilização de instrumentos

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jurídicos e administrativos na defesa de seusinteresses, e a construção de relações commandatos parlamentares, tendo elegido, inclu-sive, um vereador oriundo de sua base social.Com isso, vêm adquirindo uma visibilidade atéentão inédita na sociedade local.

Atualmente, os pescadores vivenciam duassituações bastante distintas, a saber: 1) Em re-lação àqueles que dependem da pesca realiza-da nas grandes lagoas de água doce (Feia eCampelo), já não há razão para os históricosconflitos com produtores rurais. A situaçãoteria se modificado depois que a prefeitura deCampos passou a operar as comportas do ca-nal da Flecha, garantindo um nível d’água nalagoa Feia mais favorável à atividade de pesca.No caso da lagoa do Campelo, a recuperaçãodo espelho d’água foi atribuída à construçãode uma barragem pelos trabalhadores ruraisde um assentamento do INCRA; 2) Por outrolado, no que concerne aos pescadores que re-alizam a pesca no litoral e nas lagunas costei-ras, as questões permanecem praticamenteinalteradas, motivando situações freqüentes deconflito.

As diversas representações dos segmentoslitigantes articulam diferentes formulações dis-cursivas, acionando lógicas diversas sobre asformas de apropriação da água. Para umamelhor compreensão dessas disputas em tor-no da água e suas especificidades, serão discu-tidas com base no recorte espacial: a) questõesrelativas às lagoas Feia e Campelo; b) conflitosrelacionados às lagunas costeiras.

a) Questões relativas às lagoas Feia e CampeloOs conflitos que emergiram ao final dos 70

com a implantação do projeto modernizadordo DNOS, colocaram em planos opostos o seg-mento agroindustrial, seu principal beneficiá-rio, e os pescadores, cuja atividade econômicaviu-se progressivamente desestabilizada.

A construção do canal da Flecha, concluídaem 1948, implicou em uma redução da super-fície líquida da lagoa Feia em aproximadamen-te 100 km2, com notório prejuízo para a ativida-de de pesca, o que teria justificado os levantesdos pescadores contra as ações do DNOS.

Após a construção desse canal, o nível dalagoa Feia passou a ser regulado pelas 14 com-

portas instaladas próximo à barra do Furado.Com a extinção do DNOS essas comportaspassaram a ser operadas pela prefeitura deQuissamã e, mais recentemente, pela prefei-tura de Campos, sem qualquer orientação ouprogramação técnica.

Na visão de alguns atores, com o recrudes-cimento dos períodos secos, estaria ocorren-do uma nova atribuição de significado para alagoa Feia, levando a um consenso em tornoda necessidade do aumento do seu espelhod’água. Esse consenso estaria integrando ospescadores, ambientalistas e o setor agroindus-trial, exatamente os três principais grupos quehistoricamente divergiram quanto à apropria-ção simbólica e material das águas. Se, por umlado, a manutenção do nível d’água das lago-as já constitui uma demanda histórica de pes-cadores e ambientalistas, por outro lado, osproprietários rurais estariam aderindo a estacausa, em função do aumento da prática daagricultura irrigada.

De todo modo, alguns fatores têm contri-buído para a diminuição dos conflitos com ospescadores da lagoa Feia. Constata-se que aprefeitura de Campos estaria investindo maisnos pescadores, em função da emergênciadeste segmento social “com voz” e possibilida-de crescente de atende-los face à elevação dasreceitas públicas com o recebimento dos royal-tys do Petróleo1. Desde o ano de 2000, os pes-cadores vêm sendo remunerados pelo muni-cípio durante o período do defeso da pesca,que dura três meses.

Outro fator de abrandamento dos conflitosfoi a mudança na operação das comportas docanal da Flecha, que passou a ser realizada apartir de 2001 pela prefeitura de Campos. Se-gundo vários depoimentos colhidos no âmbi-to da pesquisa, a prefeitura de Quissamã, queassumiu o funcionamento das comportas apósa extinção do DNOS, operava tão somente deacordo com os interesses dos produtores ru-rais, mantendo o nível d’água da lagoa desfa-vorável à atividade pesqueira. Segundo a pre-sidente da Associação de Pescadores de PontaGrossa dos Fidalgos, quando a prefeitura de

1 Os municípios da região recebem royaltys pela exploraçãode Petróleo na plataforma continental.

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Campos assumiu a operação das comportas,os pescadores passaram a ser mais atendidosem seus pleitos.

Em relação à lagoa do Campelo, no anode 2001 os trabalhadores rurais de um dosnúcleos do assentamento Zumbi dos Palma-res construíram uma barragem no canal An-tônio Resende, responsável pela drenagem dalagoa, com o objetivo de aumentar o volumee a qualidade da água do lençol freático, ex-cessivamente ácida à época. Mesmo com asreclamações dos proprietários rurais situadosa jusante da barragem, a SERLA e a prefeitu-ra de Campos resolveram manter a barragem,por entender que a situação da lagoa do Cam-pelo tinha chegado em um nível crítico. Adi-cionalmente, a prefeitura de Campos realizoua limpeza do canal do Vigário, adutor de águado rio Paraíba do Sul para a lagoa do Campe-lo. Essas duas intervenções recuperaram par-te do volume original da lagoa, melhorandosignificativamente a qualidade da água do len-çol freático e permitindo a retomada da ativi-dade de pesca. Com a recuperação do volu-me de água da lagoa, a barragem passou averter água, dissuadindo os protestos dos pro-prietários situados a jusante.

Percebe-se, portanto, que projetos sociaishistoricamente antagônicos passaram a apre-sentar uma convergência de interesses dossegmentos envolvidos até então inédita na re-gião. Não obstante, dificilmente poder-se-áconcluir que os conflitos em torno do uso daágua não mais ocorrerão. Em primeiro lugar,mesmo com o aumento do poder reivindica-tório dos pescadores, as elites agrárias locaisnão reconhecem a pesca como uma ativida-de social e historicamente integrada à regiãoda Baixada Campista, conforme foi constata-do nas entrevistas. Em segundo lugar, o con-senso temporário em torno da manutençãodas lagoas esconde concepções distintas acer-ca do seu significado. Essa diversidade de con-ceitos subentende propostas diversas quantoà forma de gestão dos canais com base empercepções divergentes relativamente às in-tervenções para a correção dos problemas.Defrontam-se aí duas racionalidades bastan-te distintas e o que converge não são os pro-pósitos e sim os resultados objetivos dessasracionalidades.

b) Conflitos relacionados às lagunas costeirasOs atuais conflitos entre pescadores e agri-

cultores muito embora não comparáveis aoperíodo 70/80, são motivados principalmen-te pelo risco de salinização das terras e, em al-gumas situações, decorrentes de disputas en-volvendo a manutenção de áreas agrícolas,pastagens e loteamentos de veraneio versusrecuperação das lagunas costeiras.

A construção dos canais São Bento e Qui-tinguta, entre as décadas de 40 e 60, modifi-cou totalmente a dinâmica das lagunas costei-ras da Baixada Campista, desestabilizando todaa base econômica das comunidades de pesca-dores ali existentes. O rio Iguaçu, um dos prin-cipais pontos nodais da baixada, para ondeconvergia boa parte das águas, hoje é uma pe-quena lagoa chamada lagoa do Açu. No passa-do, o rio Iguaçu era um dos principais escoa-douros das águas da lagoa Feia. Recebia tam-bém águas provenientes do rio Paraíba do Sul,através de uma seqüência de lagoas, envolven-do a lagoa do Taí, lagoa Quitinguta e a lagoaSalgada. Com as obras do DNOS todo o siste-ma se inverteu: as águas da lagoa Feia, quecorriam para o norte e desembocavam no mar,passaram a correr para o sul, através dos ca-nais artificiais, construídos perpendicularmen-te aos canais naturais.

No período de chuva, as lagoas e lagunasrecebiam parte das águas que escoavam dabaixada, provocando seus extravasamentos e,conseqüentemente, a abertura da Barra doAçu. Com o rompimento da barra, havia a re-novação das águas das lagunas com água domar que penetrava pela barra, possibilitandotambém a entrada de peixes e camarões. Quan-do a barra voltava a fechar, ficava um criadou-ro natural que garantia a pesca até o próximociclo das águas.

Uma outra ligação das lagunas costeiras como mar era feita no local conhecido como “bu-raco do Ministro”. Nesse ponto havia uma li-gação natural do oceano com a lagoa do Laga-mar, que foi fechado pelo DNOS para a cons-trução de um dique-estrada, que liga o farol àBarra do Furado.

As águas que antes convergiam para essespontos de comunicação com o mar, passaram aser recolhidas por esses canais artificiais (São

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Bento e Quitinguta), e conduzidas para o canalda Flecha, que desemboca na barra do Furado,receptora de toda a drenagem da baixada.

Dessa forma, a renovação dos estoques pes-queiros passou a depender do único ponto decomunicação com o mar que é a barra do Fu-rado. Esse foi e continua sendo um dos princi-pais focos de conflito entre pescadores, pro-dutores rurais, sitiantes e prefeituras.

O argumento dos proprietários rurais é quea penetração da cunha salina é altamente pre-judicial aos solos. Em contraste, para os pesca-dores, a comunicação das lagoas costeiras como mar é fundamental para a manutenção dapesca, sobretudo do camarão. Assim, o impe-rativo de impedir a entrada da língua salinatornou o manejo das comportas dos canaisobjeto de disputas entre pescadores e proprie-tários rurais, que buscam operá-las diretamen-te, ou pressionando os órgãos públicos a fazê-lo de acordo com seus interesses.

Entretanto, um estudo recente realizadopela prefeitura de Campos constatou que asalinização das terras não se deve à penetra-ção da cunha salina pela barra do Furado. Aocontrário, o aumento da salinidade provém depólo oposto, em decorrência da pequena quan-tidade de água doce que chega às lagunas, as-sociado às altas taxas de evaporação. De todomodo, agricultores agem para impedir a pe-netração das águas salgadas, enquanto os pes-cadores agem para permitir sua passagem emdeterminados momentos, pois manter as com-portas permanentemente abertas acarretariao ressecamento das lagunas.

CONCLUSÃOComo o estudo pôde demonstrar, existem

indicações de que vem ocorrendo um proces-so de reordenamento de forças nas disputasem torno dos recursos hídricos. Destacam-seaqui alguns aspectos identificados que apon-tam nesta direção.

Em primeiro lugar, a participação políticados grupos sociais ligados aos movimentosambientalistas, ampliou o caráter das lutas lo-cais em torno da água. Esse movimento, a par-tir da década de 70, trouxe a público o questi-onamento em torno da lógica estritamente

econômica que norteava a atuação do DNOS,voltada para a valorização da agroindústriacanavieira.

Com o fim do DNOS, os proprietários ru-rais e usinas assumiram boa parte do controledas estruturas hidráulicas, operando compor-tas e barrando os cursos d’água de acordo comseus interesses. A fragilidade institucional dasinstituições públicas abriu caminho para a con-dução privada do sistema de canais. Por outrolado, a extinção do órgão federal possibilitoutambém a emergência de novos atores sociais,ligados às instituições municipais e estaduais,mais sensíveis à ampliação de processos demo-cráticos de decisão sobre a operação da infra-estrutura hídrica deixada pelo DNOS.

Os períodos secos dos últimos anos agrava-ram os conflitos, forçando mudanças de pos-tura dos usineiros e proprietários rurais. Se nopassado a lógica que prevalecia era a da “recu-peração das terras”, ou seja, da ampliação daárea produtiva com a incorporação de terrasdrenadas onde antes havia lagoas e brejos, ago-ra, admite-se a elevação do nível d’água de al-gumas lagoas, mesmo perdendo-se áreas pro-dutivas. O importante é ter água abundantepara aumentar a produtividade da lavoura.Nesse sentido, a acumulação de capital pelaampliação das áreas exploradas passou a sermenos importante do que a acumulação pelaintensificação de rendimentos obtidos porunidade de área.

Os pescadores, por sua vez, vêm logrando,desde a década de 70, aprimorar a sua capaci-dade de organização e representação, com oestabelecimento de associações, a utilização deinstrumentos jurídicos e administrativos nadefesa de seus interesses, e a construção derelações parlamentares, tendo elegido, inclu-sive, um vereador oriundo de sua base social.Com isso, vêm adquirindo uma visibilidade atéentão inédita na sociedade local.

Ressalta-se, também, a intensificação dabusca por novos modelos de gestão para osistema de canais por parte de atores locaisque identificam limitações ou impossibilida-des de soluções estritamente técnicas paraos problemas. A proposta concreta maismencionada é uma iniciativa em torno de umgrupo de discussão denominado GT-FOZ. Os

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defensores deste modelo enxergam limitespráticos à proposta de gestão centrada noenfoque estritamente técnico e comandadapor um só órgão. Acreditam que a soluçãopara os problemas entre usuários não seriade natureza simplesmente hidráulica, indi-cando a necessidade de tomadas de decisãocolegiadas em caráter constante entre ospróprios usuários e os órgãos públicos liga-dos à questão.

Apesar das mudanças ocorridas nas duasúltimas décadas, os segmentos tradicionais li-gados à agroindústria canavieira permanecemhegemônicos na política local e continuam ainfluenciar políticas públicas voltadas aos seusinteresses. No que tange especificamente aosrecursos hídricos, ao longo de cinco décadaso DNOS manteve o controle do sistema decanais com estreita participação de segmen-tos da agroindústria campista. O controle so-bre essa rede de canais consolidou, na eliteagrária local, uma percepção de que são bensprivados.

São exatamente essas relações entre poderpúbico e elites locais, que a literatura socioló-gica brasileira qualificou como característicosdos padrões patrimonialistas estabelecidosentre Estado e sociedade, que se apresentamcomo um desafio a mais a ser superado pelossegmentos que lutam pela ampliação dos es-paços democráticos de decisão acerca dos usosdos recursos hídricos.

Portanto, nos diferentes campos de força(jurídico, econômico, político e das represen-tações) continuarão sendo travadas lutas clas-sificatórias cotidianas, visando atribuir um ca-ráter privado ou público à herança deixadapelo DNOS.

Cabe destacar que a fragilidade dos órgãospúblicos favorece exatamente este controleprivado da rede de canais, concorrendo paraque sua gestão assuma um caráter excludente,desconsiderando os interesses dos segmentoscom menor capacidade de vocalização de de-mandas e articulação política, como os peque-nos e médios agricultores e, principalmente,os pescadores.

A complexidade das situações de conflitoencontradas indica a necessidade de constitui-ção de fóruns permanentes de decisões cole-

giadas, que incorporem os próprios atores emconflito e os órgãos públicos competentes. Adinâmica de gestão deve superar a visão de queos conflitos serão solucionados automatica-mente por meio de intervenções meramentede natureza técnica, em detrimento de solu-ções negociadas envolvendo os diferentes in-teresses em disputa. A institucionalização dagestão possui uma série de vantagens em rela-ção aos atuais mecanismos extra-institucionaisem curso, dentre outras: 1) evitar que decisõessejam tomadas baseadas na “boa vontade” dosatores com maior poder de influência; 2) pro-piciar tomadas de decisão de maior alcancepolítico e legitimidade e; 3) possibilitar a in-clusão dos segmentos não-hegemônicos nosprocessos decisórios sobre o uso e manejo dosistema de canais.

Conforme demonstrado os pescadores fo-ram os mais atingidos pelas profundas inter-venções efetuadas no sistema hídrico da re-gião desde a década de 1930. Todavia, as pro-postas do segmento não devem ser adotadassimplesmente por serem um grupo social his-toricamente menos favorecido, o que se re-comenda é que as instâncias técnicas e políti-cas reconheçam que os pescadores são porta-dores de um conhecimento empírico impor-tante e, após anos de convivência com as in-tervenções de engenharia nas lagoas e canais,já possuem um acúmulo de “saber técnico”sobre o manejo desse sistema que não podeser ignorado.

Por fim, ressalta-se a necessidade de ummaior envolvimento do Comitê de Integraçãoda Bacia do Rio Paraíba (CEIVAP) e da Agên-cia Nacional de Águas (ANA) junto aos atoreslocais e às instituições estaduais de gestão am-biental e de recursos hídricos na formulaçãode alternativas de gestão dos recursos hídricoslocais, tendo em vista a dominialidade federaldas águas do rio Paraíba do Sul. Além disso, énecessária a definição formal sobre qual seráo órgão gestor da infra-estrutura hidráulicadeixada pelo DNOS, definido competências eresponsabilidades. De todo modo, seja qual fora solução, é imprescindível o fortalecimentoinstitucional dos órgãos gestores para que pos-sam exercer suas funções com competência esalvaguarda da necessária autonomia frente aosgrupos hegemônicos locais.

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Paulo Roberto Ferreira Carneiro Bíologo, Mestre em Planejamento Ur-bano e Regional, Doutorando em Gerenciamento de Recursos Hídricos.Pesquisador do Laboratório de Hidrologia e Estudos do Meio Ambien-te - COPPE/UFRJ. [email protected];[email protected]