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RESUMO: O trabalho discute os conflitos emtorno do uso da água na Baixada dos Goytaca-zes, no Norte do Estado do Rio de Janeiro, Bra-sil, oferecendo um esquema analítico alternati-vo ao da literatura técnica especializada, que atri-bui tais conflitos à escassez objetiva do recursohídrico. Buscou-se sustentar aqui que os confli-tos pelo uso da água não decorrem apenas daluta pelo recurso escasso, tendo em vista que estaescassez é ela mesma socialmente referida àscondições jurídico-políticas específicas de regu-lação e às formas culturais subjacentes aos dife-rentes modos de apropriação da água. Contrari-amente a esta perspectiva, o trabalho busca tra-zer para a discussão as relações de poder e do-minação subjacentes, assim como, a existênciade diferentes projetos sociais e culturais em dis-puta naquele território.

PALAVRAS-CHAVE: Conflitos pelo uso da água;gerenciamento dos recusros hídricos; conflitoambiental

ABSTRACT: This work deals with the conflictsrelated to the use of water in the lowlands of Goyta-cazes (Baixada dos Goytacazes), located in theNorthern region of Rio de Janeiro State, Brazil.It presents an analytic approach alternative to theone offered in existing specialized technical liter-ature on the subject that attributes such conflictsto objective scarcity of water resources. In thisanalysis the intention is to argue that conflicts overwater resources are not a mere consequence ofthe struggle for such a scarce resource, but thatthis scarcity is socially linked to legal-political cir-cumstances of a regulative nature, as well as tothe cultural forms underlying the different meansof water appropriation. Furthermore, it brings tothe debate the underlying power struggles andassociated domination, together with the exist-ence of different social and cultural projects un-der dispute in the area.

KEY-WORDS: Lowlands of Goytacazes; con-flicts; water

Água e conflito na Baixada dos Goytacazes

Paulo Roberto Ferreira Carneiro

INTRODUÇÃOEste artigo discute situações de conflito em

torno do uso da água, caracterizando suas di-mensões físico-materiais e explicitando as di-mensões simbólicas associadas aos modos derepresentar a água, ambos elementos indisso-ciáveis na explicação das estratégias dos dife-rentes atores envolvidos nos processos confli-tivos considerados. Busca-se demonstrar queos conflitos pelo uso da água não decorremapenas da disputa pelo recurso escasso, tendoem vista que esta escassez é ela mesma social-mente referida às condições jurídico-políticasespecíficas de regulação (ou des-regulação) eàs formas culturais subjacentes aos diferentesmodos de apropriação da água.

Na área em questão, construiu-se, desdetempos pretéritos, um arrazoado de justificati-vas sobre a vocação da planície campista paraa monocultura da cana. Nas categorias da ló-gica econômica dominante, essa suposta van-

tagem comparativa, em relação a outras for-mas de utilização do território, possibilitou queo segmento da agroindústria canavieira se ex-pandisse e praticamente eliminasse daqueleespaço outras formas de uso.

Em que medida o comportamento históri-co dos agentes sociais influiu na conformaçãodos conflitos e de que forma os diferentes gru-pos sociais sustentaram ou se opuseram à tra-jetória de intervenções (implantação de obrasde drenagem) que transformaram definitiva-mente as formas de acesso aos recursos hídri-cos na região da Baixada Campista? Respon-der estas perguntas é o objetivo central destetrabalho.

A área do estudo localiza-se na região con-formada pela planície deltaica do rio Paraíbado Sul, denominada de Baixada dos Goytaca-zes (ou Baixada Campista), situada no Nortedo Estado do Rio de Janeiro, na região Sudes-

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te do Brasil. A pesquisa foi desenvolvida noâmbito do Sub-projeto “Identificação dos Con-flitos pelo Uso da Água na Bacia do rio Paraí-ba do Sul”, com financiamento do Fundo Na-cional de Desenvolvimento Científico e Tec-nológico/FNDCT (Área de Recursos Hídricos- CT-HIDRO), sob a coordenação da Financia-dora de Estudos e Projetos (FINEP).

O trabalho de pesquisa consistiu em amplaconsulta às fontes históricas e na pesquisa em-pírica, desenvolvida entre os meses de abril eoutubro de 2002, com a aplicação de entrevis-tas qualificadas junto aos atores relacionadosdireta ou indiretamente aos conflitos em tor-no do uso da água na região em tela.

A PESQUISA HISTÓRICA –O DESSECAMENTO DA BAIXADAO período que vai do primeiro quartel da

década de 1930 até meados da década de 1970caracteriza-se pela implementação dos grandesprojetos de drenagem na região da BaixadaCampista, propiciando um salto qualitativo noprocesso de “controle” das águas, em funçãoda conjunção de fatores político-institucionais,econômicos e sócio-culturais.

Destaque-se aí a Revolução de 30, em cujocontexto sobressai o papel designado para aagricultura no período do entre-guerras, e oprotagonismo da classe profissional dos enge-nheiros na direção das políticas públicas noEstado do Rio de Janeiro. Os projetos de sane-amento e drenagem implantados a partir des-se período inserem-se nesse contexto de “mo-dernização do Estado”, à luz do projeto mo-dernizador dos engenheiros. Estes fatores con-correram para a consolidação da Comissão deSaneamento da Baixada Fluminense, que pos-teriormente ganhou amplitude nacional comoDepartamento Nacional de Obras de Sanea-mento (DNOS). O órgão logrou empreenderum conjunto de intervenções de ampla mag-nitude, obedecendo a um rigoroso planeja-mento até então inédito na região.

A despeito das motivações sanitaristas -como a erradicação da malária e a febre ama-rela - as fontes históricas indicam que a gênesedo DNOS esteve intimamente ligada à expan-são das atividades econômicas da Baixada Flu-minense. De todas as planícies do Rio de Ja-

neiro, era exatamente a Baixada de Goytaca-zes que se afigurava como a principal, no quetange ao aproveitamento agrícola. O efeitoprático da atuação do órgão foi o amplo “des-secamento” da baixada outrora pantanosa erepleta de lagoas e lagunas perenes e tempo-rárias, mediante a construção de uma comple-xa rede de canais de drenagem, de mais de1.300 km de extensão, favorecendo nitidamen-te a expansão das atividades agrícolas locais.

A Transformação da BaixadaDesde 1933, a “recuperação de terras” ganha-

ra o estatuto de política prioritária, como resul-tado do fortalecimento das demandas por dre-nagem, conservação dos cursos d’água e cons-trução de canais e diques nas regiões mais bai-xas. Um dos principais objetivos era transfor-mar brejos, pântanos e mesmo lagoas e lagunasem terrenos agricultáveis. Assim, grandes exten-sões de áreas foram agregando-se ao sistemaprodutivo das propriedades particulares.

Nas áreas rurais da Baixada dos Goytacazesos projetos de drenagem sempre estiveram(inexoravelmente) relacionados à valorizaçãofundiária. No centro da questão está a notávelexpansão e concentração de terras agricultá-veis, sobretudo no município de Campos. Aabordagem do tema se justifica pela necessi-dade de evidenciar a emergência de um sujei-to estruturante de todo o processo históricovivido pela região a partir deste momento, asaber, as usinas.

O processo de aumento da área produtivaatravés do dessecamento de lagoas, brejos e deáreas periodicamente inundadas prolongou-se até o final das principais obras de drena-gem realizadas na baixada campista, concluí-das na década de 60. A partir daí, as transfor-mações na economia da região caracterizou-se predominantemente por um reordenamen-to da sua estrutura agrária.

Esse reordenamento evidenciou-se pelo pre-domínio da pequena propriedade familiar, emtermos numéricos, e a concentração maciça daposse da terra em poucas propriedades de gran-de extensão. A fase da hegemonia espacial dominifúndio na região açucareira do Norte Flu-minense, que intrigou a historiografia nacionalda primeira metade do século, durou até os

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primeiros anos do século XX. Com o adventodas grandes usinas, que substituíram os enge-nhos a vapor, tem início o processo de concen-tração fundiária no município de Campos.

A expansão da área produtiva, por seu tur-no, teria reforçado a tendência histórica daregião, que se caracteriza pela concentraçãode terra e capital, concomitantemente à proli-feração das pequenas propriedades. A coexis-tência da minifundização com a concentraçãofundiária se daria mediante a crescente subor-dinação econômica dos pequenos proprietá-rios ao capital usineiro (Santa’Ana, 1984). Oprocesso de pulverização fundiária das peque-nas propriedades incidia, sobretudo, na agri-cultura familiar, induzindo a especialização daprodução de cana, aprofundando sua depen-dência às usinas. Essa relação de subordinaçãoàs usinas irá explicar, em parte, as estratégiasutilizadas pelos produtores em situação de con-flito pelo uso da água.

A Figura 1, a seguir, foi elaborada com baseno mapa confeccionado por Alberto Lamego,que integra o trabalho “Geologia das Quadrí-culas de Campos, São Tomé, Lagoa Feia eXexé”, publicado em 1955 pelo Departamen-to Nacional de Produção Mineral. Esse mapaé de grande importância por ser um registrocartográfico da grande quantidade de lagoas,lagunas e brejos existentes na região da Baixa-da dos Goytacazes até o início do século XX. AFigura 2, por seu turno, mostra os principaiscanais de drenagem construídos pelo DNOSaté o final da década de 1960.

A Emergência dos ConflitosEm meados da década de 70 a agroindús-

tria canavieira iniciou um período de profun-da modernização, financiada com recursospúblicos, o que implicou significativos acrésci-mos à capacidade instalada das usinas da re-gião sem, no entanto, o correspondente au-mento da produção do insumo básico: a cana-de-açúcar. Os usineiros passam a alegar queestariam funcionando com uma capacidadeociosa insustentável, em função da estagnaçãoda produtividade agrícola (Santa’Ana, 1984).

Os usineiros e produtores de cana começama atribuir responsabilidade pela “crise agríco-la” ao recrudescimento dos períodos secos.

Crescem, a partir de então, as pressões para adifusão de uma nova prática de utilização dosrecursos hídricos dispostos na região: a irriga-ção. O influente segmento consegue, de fato,induzir um conjunto de políticas públicas vol-tadas para a difusão da irrigação, fundamen-talmente para as usinas e grandes fornecedo-res de cana capazes de mobilizar capital sufici-ente para os investimentos em infra-estruturahidráulica e equipamentos.

Por outro lado, o redirecionamento paraesta nova função da complexa rede de canaismontada pelo DNOS, até então utilizada basi-camente para a promoção da drenagem nasterras agrícolas, vai concorrer para o surgimen-to de conflitos por água, até então inexisten-tes, entre os produtores de cana e desses comusinas de açúcar e álcool.

Eclode, também, a partir desse momento,um conflito de pouca visibilidade social: a con-tradição histórica entre as intervenções doDNOS, a serviço dos interesses dos atores liga-dos à agroindústria açucareira, e as necessida-des do segmento dos pescadores. Ao contrá-rio da perspectiva dominante, que identifica-va a água como entrave ao desenvolvimento,os pescadores tinham na manutenção das la-goas uma condição fundamental para a repro-dução de seus modos de vida, organização dotrabalho e subsistência. Vários levantes contraobras do DNOS entre 1979 e o começo dosanos 80 viriam a evidenciar este quadro.

Na segunda metade da década de 70 surgi-ram vozes contrárias à histórica atuação doDNOS na Baixada Campista. A primeira mani-festação formal neste sentido foi apresentadano ano de 1976, pelo então diretor do Departa-mento de Recursos Naturais Renováveis da Se-cretaria Estadual de Agricultura e Abastecimen-to, questionando o órgão federal sobre os im-pactos de suas obras aos ecossistemas locais.

Posteriormente, em 1978, a Fundação Esta-dual de Engenharia do Meio Ambiente (FEE-MA), em parecer conjunto emitido pelas asses-sorias da presidência, referiu-se aos riscos deimpacto que as obras do DNOS no Norte Flumi-nense representavam para o meio ambiente.

Em outubro de 1979, Norma Crud Maciele Dorothy Sue Dunn de Araújo, biólogas daFEEMA, apresentaram um parecer técnico so-

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Figura 1. Lagoas e Lagunas na Baixada dos Goytacazes no início do século XXFonte: Elaborado a partir de: Alberto Lamego. Geologia das Quadrículas de Campos, São Tomé, LagoaFeia e Xexê. Boletim DNPM nº 154, 1955

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Figura 2. Canais de drenagem da Baixada dos GoytacazesFonte: Elaborado a partir de base cartográfica do IBGE e imagem LANDSAT.

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bre o impacto causado aos ecossistemas lacus-tres com as obras realizadas pelo DNOS naBaixada Campista.

Coincidentemente, um mês antes do pare-cer estar concluído, ocorreu a primeira mani-festação de pescadores contra obras do DNOS.Ignorados pela elite açucareira e pelo DNOS,esse grupo social, tradicionalmente vivendo dapesca e instalado em Ponta Grossa dos Fidal-gos, às margens da lagoa Feia, em Mundéus,junto à lagoa do Campelo, em São Benedito,na margem setentrional da lagoa de Cima, eno Farol de São Tomé e adjacências, manteve-se praticamente à margem da sociedade localaté o final da década de 70, quando resolveuprotestar de forma organizada contra as inter-venções contrárias aos seus interesses.

O primeiro conflito ocorreu no dia 25 desetembro de 1979, na lagoa Feia, quando 600pescadores paralisaram uma draga flutuantedo DNOS, que pretendia remover um con-trole hidráulico natural, conhecido como “du-rinho da valeta”, que, segundo acreditavam,não permitia que o nível d’água da lagoa fos-se reduzido abaixo de uma determinada cota.A intenção do DNOS era concluir um canalsubmerso no leito da lagoa Feia que iria ligaro rio Ururaí e o rio Macabú - os dois maioresafluentes da lagoa - mais o canal de Tocos,que desemboca numa enseada dentro da la-goa Feia, com um canal central que iria até ocanal da Flecha, por onde a lagoa Feia escoapara o mar. Com essa obra o DNOS poderia,através da operação das comportas no canaldas Flechas, controlar de forma mais eficien-te os níveis d’água da lagoa. Na visão dos pes-cadores, seria o fim da atividade de pesca.Quando a draga flutuante começou a se apro-ximar do “durinho da valeta” os pescadoresparalisaram-na.

Os mesmos pescadores de Ponta Grossa dosFidalgos, em outubro de 1979, interditaramuma draga a serviço do DNOS, agora desfral-dando a bandeira nacional para simbolizar ocaráter legal e ordeiro do movimento. Temen-do a continuidade dos levantes, o DNOS en-trou com uma queixa-crime na Justiça Federalarrolando 11 participantes. Na época o Gover-no Militar não costumava tolerar protestosdesse tipo. A Polícia Federal passa, então, ainvestigar o ocorrido, indicando para condu-

zir o caso um delegado com larga experiênciana Polícia. Surpreendentemente, concluída ainvestigação, o delegado declara à imprensaque o caso não era de subversão, mas de fome,de sobrevivência.

No dia 26 de outubro foi a vez do protestodos pescadores do Farol de São Tomé. Con-centrando-se junto ao canal Quitinguta e, em-punhando a bandeira brasileira, deram aoDNOS o prazo de quarenta e oito horas paraque restabelecesse sua comunicação com omar, permitindo a penetração de peixes e ca-marões em direção às lagoas costeiras utiliza-das para a pesca. Esse caso ficou conhecidocomo “o buraco do Ministro”, em função davinda do Ministro do Interior, Maurício Ran-gel Reis, a Campos, especificamente para tra-tar da questão.

No dia 13 de agosto de 1980 ocorreu outramanifestação: os pescadores da lagoa do Cam-pelo arrancaram as comportas instaladas nocanal do Cataia, que ligava esta lagoa ao rioParaíba do Sul. O DNOS realizou na épocaobras de drenagens em torno da lagoa do Cam-pelo acabando com os rios Ponte e Pires, res-tando o canal Cataia, que era um canal natu-ral. Simultaneamente, foi construído um di-que na margem esquerda do rio Paraíba doSul, a fim de impedir seu transbordamento e,por cima desse dique, construíram uma estra-da, que, ao cruzar o canal Cataia, recebeu acolocação de três manilhas com três tamposcom dobradiças voltados para o rio, como sefossem comportas automáticas. As comportasse abriam ou fechavam de acordo com o níveld’água do rio Paraíba do Sul em relação aonível da lagoa. A entrada de água do rio Para-íba do Sul para a lagoa, controlada até entãopelos ciclos de cheia do rio Paraíba do Sul,passou a ser regulada por comportas.

Para os pescadores interessava a manuten-ção do canal aberto, pois junto com a água dorio vinham os peixes, melhorando significati-vamente o rendimento da pesca na lagoa doCampelo. Assim, no dia mencionado anterior-mente, arrancaram as comportas instaladaspelo DNOS, permitindo a passagem da água.Por sua vez, aos proprietários rurais interessa-va o controle das comportas de forma a nãoinundar suas plantações. Daí o conflito. Valeressaltar que a expansão da atividade agrícola

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na área do entorno da lagoa do Campelo sedeu após as obras do DNOS, enquanto a pes-ca, por sua vez, é uma atividade tradicional nalocalidade de Mundéus.

Ao final dos anos oitenta o DNOS já nãopossui o incontestável poder que manteve porcinco décadas. A utilização da rede de drena-gem para a irrigação da cana-de-açúcar tornouainda mais complexa a sua operação. É nessemomento de fragilidade institucional que ocontrole sobre o órgão, por parte dos proprie-tários rurais e usinas, se amplia.

Ressalta-se o quanto eram socialmente di-ferenciadas as relações estabelecidas peloDNOS. Se por um lado, os produtores de canae usineiros conseguiam contornar os conflitospor água, orientando e até mesmo interferin-do nos procedimentos do órgão; os pescado-res, por outro lado, dada sua condição de to-tal invisibilidade social, tiveram como únicorecurso a investida direta contra o órgão, che-gando a paralisação física de suas atividades. Aextinção do DNOS no início do Governo Co-llor põe fim a este período de mediação insti-tucional dos conflitos decorrentes dos diver-sos usos da água.

A PESQUISA EMPÍRICA –A SOCIOLOGIA DO CONFLITONo final da década de 80, com a falência

do modelo autoritário, era grande no Brasila impressão de que seria preciso redimensio-nar o papel do Estado e de sua máquina ad-ministrativa. Assim, o primeiro presidenteeleito em 30 anos, Fernando Collor de Melo,assumiu o poder em 1990 com uma platafor-ma que interpretava a reforma administrati-va, fundamentalmente, como a necessidadede se promover o enxugamento da máquinagovernamental.

Inspirado, de um lado, por um novo para-digma de eficiência que concebia as estrutu-ras menores como mais capazes de executaras mesmas tarefas empregando menos recur-sos e, de outro, por uma nova concepção deEstado, que deveria manter sua intervençãoapenas nas esferas onde ele seria estritamentenecessário (ou seja, a estratégia da desestatiza-ção considerada como um fim em si), o gover-no promoveu uma ampla e acelerada reforma

administrativa, idealizada estritamente pelosquadros do poder executivo e implementadaexclusivamente por medidas provisórias. Nobojo dessa reforma, o governo extinguiu cin-co autarquias, entre elas o DNOS e o IAA, duasinstituições-chave para o setor agroindustrialcampista há muitos anos.

Na área de saneamento, a extinção pura esimples do DNOS, sem a criação de institui-ção alternativa, deixou o Governo Federal semum órgão gestor de obras de infra-estruturavoltada ao saneamento básico.

Ao longo da década de 1980, o DNOS jáenfrentava uma profunda crise institucional.Sua extinção, no entanto, é menos um desdo-bramento desta crise do que uma decisão in-serida no contexto das reformas neoliberaisque se seguiram. Na região em tela, sua extin-ção resultou no abandono da extensa estrutu-ra hidráulica construída ao longo de décadase o fim da principal instância mediadora deconflitos em torno do uso da água, provocan-do um vazio institucional grave e duradouro.

De acordo com o exposto, a mediação con-duzida pelo DNOS sempre esteve orientadapelos interesses da agroindústria canavieira.Outros atores sociais, em particular os pesca-dores, nunca foram reconhecidos pelo órgãocomo um grupo social com legitimidade parareivindicar seus interesses.

Se por um lado era necessário manter oscanais desobstruídos, para permitir o rápidoesgotamento das águas acumuladas com aschuvas, por outro lado, a necessidade de pre-servação de níveis de água suficientes para aten-der os sistemas de irrigação induzia os propri-etários rurais e usinas a obstruir o curso d’águacom pequenas barragens, dificultando o esco-amento das águas.

De terras úmidas, pantanosas, com inúme-ras lagoas permanentes e temporárias, a Bai-xada Campista passou a ter terras ressecadas eem alguns locais salinizadas, sobretudo nosperíodos de baixa pluviosidade, sem água sufi-ciente para suprir as necessidades do novomodelo agrícola baseado na irrigação.

Com o abandono das estruturas hidráulicase da manutenção dos canais, as condições, jáprecárias, do sistema hidráulico se agravaramrapidamente. Nos períodos de seca, o baixo

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nível d’água do rio Paraíba do Sul impossibilitaa adução de água para os canais, comprome-tendo o abastecimento das propriedades rurais.A forte redução da oferta de água para os ca-nais tem também como conseqüência imediatao aumento do nível da poluição hídrica, já queos canais são receptores do lixo e do esgoto lan-çados na área urbana de Campos.

Os proprietários rurais e as usinas, carentesde água para a irrigação e para a operação dasunidades fabris, buscam elevar o nível d’águados canais, construindo pequenas barragens.Essas barreiras interceptam o já pequeno fluxode água, prejudicando todos os outros usuárioslocalizados a jusante. Tais soluções individuaisdisseminam os conflitos por água por pratica-mente toda a região drenada pelos canais.

Os períodos secos dos últimos anos agrava-ram a situação, forçando mudanças de postu-ra dos usineiros e proprietários rurais. Se nopassado a lógica que prevalecia era a “recupe-ração das terras”, ou seja, a ampliação da áreaprodutiva com a incorporação de terras dre-nadas onde antes eram lagoas e brejos, agoraadmite-se a elevação do nível d’água de algu-mas lagoas, através da operação de comportasnos canais, mesmo perdendo-se áreas produti-vas. O importante é ter água abundante paraaumentar a produtividade da lavoura.

Nesse sentido, a acumulação de capital pelaampliação das áreas exploradas passou a sermenos importante do que a sua acumulaçãovia aumento de rendimentos obtidos por uni-dade de área. O que antes era visto como bre-jo, criadouro de mosquitos e causador de en-demias, responsável pela pobreza econômicada Baixada Campista, passou a ser identifica-do como reservatórios de águas, fundamentaispara a estocagem de água a ser utilizada nairrigação. As lagoas assumem, pois, novo signi-ficado no discurso hegemônico das classes pro-dutoras campistas.

Novos e Velhos Conflitos pelo uso da ÁguaEm função da complexidade das questões

envolvendo as disputas em torno da utilizaçãoda água na Baixada Campista, tornou-se ne-cessário realizar um recorte analítico do quese entende por conflito em torno do uso daágua. Nesse sentido, o foco de atenção da pes-

quisa privilegiou os conflitos concernentes aossegmentos que usam a água como insumo deatividades econômicas ligadas à agroindústriacanavieira, entre si e em relação ao segmentodos pescadores, que necessitam da água comobase de sustentação da atividade de pesca.

Assim, neste item discutir-se-ão os principaisconflitos pertinentes ao recorte analítico men-cionado anteriormente:

1. Conflitos internos ao segmento agroin-dustrial: envolvendo, especificamente,usinas e produtores rurais;

2. Conflitos entre os segmentos dos pesca-dores e produtores rurais;

O primeiro tipo de conflito envolve dispu-tas pela apropriação dos recursos hídricos den-tro de um mesmo campo de interesses, no casoa utilização da água como insumo produtivopara a agroindústria canavieira. O segundoenvolve conflitos que põem em disputa modosdistintos de apropriação material e simbólicade uma determinada base de recursos territo-rializados, no caso a água, e que, em últimainstância, podem levar a inviabilização da per-manência de uma determinada prática social.

Seguindo essa classificação, os atores soci-ais são definidos dentro de cada um dessescampos de poder, tanto por sua participaçãodireta como sujeito, individual ou coletivo,como pelas posições estratégicas que assumemno espaço de relações: campo de disputas emtorno da água.

Convém reconhecer que os grupos compo-nentes dos segmentos sociais nas situações deconflito aqui analisadas não são monolíticos.Diferenças de posicionamento no interior deum mesmo grupo ocorrem, no entanto, emseus aspectos fundamentais, as posições assu-midas pelos atores sociais estão relacionadasàs posições que ocupam no espaço social: é apartir da proximidade dos indivíduos nesseespaço relacional que se afirmam, com maiorprobabilidade, identidades em torno de obje-tivos comuns.

Portanto, no recorte analítico adotado, osatores sociais em conflito pela apropriação daágua são considerados como dotados de quan-tidades distintas de elementos de poder sobreos recursos: organizações empresariais (usinassucro-alcooleiras), produtores rurais e pescado-

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res. Os atores referidos anteriormente são aque-les envolvidos diretamente nos conflitos. Osdemais atores, por não estarem diretamenteenvolvidos nas situações de conflito, aparecemna análise de acordo com seu posicionamentofrente aos conflitos. É o caso, por exemplo, dasprefeituras, órgãos do estado do Rio de Janei-ro, ambientalistas, Ministério Público, etc.

Conflitos internosao segmento agroindustrial

Conforme já mencionado, a partir da segun-da metade da década de 70, as usinas e os gran-des e médios produtores de cana, principal-mente, passaram a requerer água para irrigarsuas culturas. Tal demanda adicional por águaacabou originando disputas internas neste seg-mento de usuários de recursos hídricos.

No entanto, muitos afirmam que tais con-flitos não assumiam grandes dimensões duran-te as décadas de 70 e 80. Ademais, argumenta-se que o DNOS, mesmo no período em queenfrentou as suas maiores dificuldades opera-cionais (década de 80), costumava funcionarcomo uma instância mediadora de disputas porágua entre os irrigantes, bem como entre es-ses e as usinas.

Nos últimos 13 anos, em função da menordisponibilidade hídrica – fato constatado porestudo realizado recentemente pelo Sistemade Meteorologia do Estado do Rio de Janeiro- SIMERJ (Marques, V. S., et al., 2001) - e au-sência de um órgão público mediador, mui-tos produtores e usinas passaram a recorrer aatitudes individuais para conseguir água, jus-tificando tal postura, em geral, pela necessi-dade de proteger seus investimentos, compro-metidos pela pequena quantidade de águanos canais.

Duas são as modalidades básicas de inter-venção empreendidas como forma de “auto-defesa” para a garantia do acesso à água: obarramento dos cursos d’água e o manejo pri-vado de comportas instaladas pelo DNOS. Es-tas práticas acabam por prejudicar outros irri-gantes instalados mais a jusante, pois ficamimpossibilitados de aduzir água em quantida-de suficiente e qualidade razoável. Inúmerossão os relatos de casos desse tipo, que ocasio-nalmente culminam em inquéritos instalados

pela Fundação Superintendência de Rios eLagoas (SERLA) ou pelo Ministério Público.

Entretanto, a institucionalização do confli-to é o que os produtores, majoritariamente,buscam evitar. De um modo geral, os irrigan-tes procuram esquivar-se de interferências ti-das como “externas”. Leia-se aí interferênciasdo poder público, seja da SERLA, dos órgãosambientais, poder judiciário ou prefeituras.Preferencialmente optam por tentar resolveras disputas informalmente, como “bons vizi-nhos”. A vantagem dessa solução informal ouextra-institucional das controvérsias é a possi-bilidade de deixar em aberto que cada usuá-rio possa eventualmente fazer também umbarramento conforme a sua conveniência.Busca-se manter, portanto, as intervenções in-dividuais em sigilo, mesmo quando causamprejuízos a si próprios. Afinal, muitas vezes avítima é vilã em outra oportunidade. Com ofim do DNOS, os proprietários rurais e usinasassumiram boa parte do controle das estrutu-ras hidráulicas, operando comportas e barran-do os cursos d’água de acordo com seus inte-resses. A fragilidade institucional das institui-ções públicas abriu caminho para a conduçãoprivada do sistema de canais e, também, paraa mediação privada desses conflitos.

Cabe assinalar que um componente funda-mental do discurso dos atores envolvidos nosconflitos, de modo a garantir a manutençãoda autonomia do grupo na mediação das dis-putas, é o de minimizar o quanto possível aexistência dos conflitos. Esta estratégia é parti-cularmente perceptível na adjetivação empre-gada para qualificá-las. Por exemplo, recusamsistematicamente o epíteto de “conflitos” paraa enunciação das disputas. Nas próprias entre-vistas, quando os membros destes grupos eramargüidos sobre a existência de conflitos, pron-tamente corrigiam com eufemismos conside-rados mais adequados: desentendimentos, pe-quenas desavenças, desacordos, etc.

Conflitos entre pescadorese produtores rurais

Os pescadores vêm logrando, desde a déca-da de 70, aprimorar a sua capacidade de orga-nização e representação, com o estabelecimen-to de associações, a utilização de instrumentos

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jurídicos e administrativos na defesa de seusinteresses, e a construção de relações commandatos parlamentares, tendo elegido, inclu-sive, um vereador oriundo de sua base social.Com isso, vêm adquirindo uma visibilidade atéentão inédita na sociedade local.

Atualmente, os pescadores vivenciam duassituações bastante distintas, a saber: 1) Em re-lação àqueles que dependem da pesca realiza-da nas grandes lagoas de água doce (Feia eCampelo), já não há razão para os históricosconflitos com produtores rurais. A situaçãoteria se modificado depois que a prefeitura deCampos passou a operar as comportas do ca-nal da Flecha, garantindo um nível d’água nalagoa Feia mais favorável à atividade de pesca.No caso da lagoa do Campelo, a recuperaçãodo espelho d’água foi atribuída à construçãode uma barragem pelos trabalhadores ruraisde um assentamento do INCRA; 2) Por outrolado, no que concerne aos pescadores que re-alizam a pesca no litoral e nas lagunas costei-ras, as questões permanecem praticamenteinalteradas, motivando situações freqüentes deconflito.

As diversas representações dos segmentoslitigantes articulam diferentes formulações dis-cursivas, acionando lógicas diversas sobre asformas de apropriação da água. Para umamelhor compreensão dessas disputas em tor-no da água e suas especificidades, serão discu-tidas com base no recorte espacial: a) questõesrelativas às lagoas Feia e Campelo; b) conflitosrelacionados às lagunas costeiras.

a) Questões relativas às lagoas Feia e CampeloOs conflitos que emergiram ao final dos 70

com a implantação do projeto modernizadordo DNOS, colocaram em planos opostos o seg-mento agroindustrial, seu principal beneficiá-rio, e os pescadores, cuja atividade econômicaviu-se progressivamente desestabilizada.

A construção do canal da Flecha, concluídaem 1948, implicou em uma redução da super-fície líquida da lagoa Feia em aproximadamen-te 100 km2, com notório prejuízo para a ativida-de de pesca, o que teria justificado os levantesdos pescadores contra as ações do DNOS.

Após a construção desse canal, o nível dalagoa Feia passou a ser regulado pelas 14 com-

portas instaladas próximo à barra do Furado.Com a extinção do DNOS essas comportaspassaram a ser operadas pela prefeitura deQuissamã e, mais recentemente, pela prefei-tura de Campos, sem qualquer orientação ouprogramação técnica.

Na visão de alguns atores, com o recrudes-cimento dos períodos secos, estaria ocorren-do uma nova atribuição de significado para alagoa Feia, levando a um consenso em tornoda necessidade do aumento do seu espelhod’água. Esse consenso estaria integrando ospescadores, ambientalistas e o setor agroindus-trial, exatamente os três principais grupos quehistoricamente divergiram quanto à apropria-ção simbólica e material das águas. Se, por umlado, a manutenção do nível d’água das lago-as já constitui uma demanda histórica de pes-cadores e ambientalistas, por outro lado, osproprietários rurais estariam aderindo a estacausa, em função do aumento da prática daagricultura irrigada.

De todo modo, alguns fatores têm contri-buído para a diminuição dos conflitos com ospescadores da lagoa Feia. Constata-se que aprefeitura de Campos estaria investindo maisnos pescadores, em função da emergênciadeste segmento social “com voz” e possibilida-de crescente de atende-los face à elevação dasreceitas públicas com o recebimento dos royal-tys do Petróleo1. Desde o ano de 2000, os pes-cadores vêm sendo remunerados pelo muni-cípio durante o período do defeso da pesca,que dura três meses.

Outro fator de abrandamento dos conflitosfoi a mudança na operação das comportas docanal da Flecha, que passou a ser realizada apartir de 2001 pela prefeitura de Campos. Se-gundo vários depoimentos colhidos no âmbi-to da pesquisa, a prefeitura de Quissamã, queassumiu o funcionamento das comportas apósa extinção do DNOS, operava tão somente deacordo com os interesses dos produtores ru-rais, mantendo o nível d’água da lagoa desfa-vorável à atividade pesqueira. Segundo a pre-sidente da Associação de Pescadores de PontaGrossa dos Fidalgos, quando a prefeitura de

1 Os municípios da região recebem royaltys pela exploraçãode Petróleo na plataforma continental.

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Campos assumiu a operação das comportas,os pescadores passaram a ser mais atendidosem seus pleitos.

Em relação à lagoa do Campelo, no anode 2001 os trabalhadores rurais de um dosnúcleos do assentamento Zumbi dos Palma-res construíram uma barragem no canal An-tônio Resende, responsável pela drenagem dalagoa, com o objetivo de aumentar o volumee a qualidade da água do lençol freático, ex-cessivamente ácida à época. Mesmo com asreclamações dos proprietários rurais situadosa jusante da barragem, a SERLA e a prefeitu-ra de Campos resolveram manter a barragem,por entender que a situação da lagoa do Cam-pelo tinha chegado em um nível crítico. Adi-cionalmente, a prefeitura de Campos realizoua limpeza do canal do Vigário, adutor de águado rio Paraíba do Sul para a lagoa do Campe-lo. Essas duas intervenções recuperaram par-te do volume original da lagoa, melhorandosignificativamente a qualidade da água do len-çol freático e permitindo a retomada da ativi-dade de pesca. Com a recuperação do volu-me de água da lagoa, a barragem passou averter água, dissuadindo os protestos dos pro-prietários situados a jusante.

Percebe-se, portanto, que projetos sociaishistoricamente antagônicos passaram a apre-sentar uma convergência de interesses dossegmentos envolvidos até então inédita na re-gião. Não obstante, dificilmente poder-se-áconcluir que os conflitos em torno do uso daágua não mais ocorrerão. Em primeiro lugar,mesmo com o aumento do poder reivindica-tório dos pescadores, as elites agrárias locaisnão reconhecem a pesca como uma ativida-de social e historicamente integrada à regiãoda Baixada Campista, conforme foi constata-do nas entrevistas. Em segundo lugar, o con-senso temporário em torno da manutençãodas lagoas esconde concepções distintas acer-ca do seu significado. Essa diversidade de con-ceitos subentende propostas diversas quantoà forma de gestão dos canais com base empercepções divergentes relativamente às in-tervenções para a correção dos problemas.Defrontam-se aí duas racionalidades bastan-te distintas e o que converge não são os pro-pósitos e sim os resultados objetivos dessasracionalidades.

b) Conflitos relacionados às lagunas costeirasOs atuais conflitos entre pescadores e agri-

cultores muito embora não comparáveis aoperíodo 70/80, são motivados principalmen-te pelo risco de salinização das terras e, em al-gumas situações, decorrentes de disputas en-volvendo a manutenção de áreas agrícolas,pastagens e loteamentos de veraneio versusrecuperação das lagunas costeiras.

A construção dos canais São Bento e Qui-tinguta, entre as décadas de 40 e 60, modifi-cou totalmente a dinâmica das lagunas costei-ras da Baixada Campista, desestabilizando todaa base econômica das comunidades de pesca-dores ali existentes. O rio Iguaçu, um dos prin-cipais pontos nodais da baixada, para ondeconvergia boa parte das águas, hoje é uma pe-quena lagoa chamada lagoa do Açu. No passa-do, o rio Iguaçu era um dos principais escoa-douros das águas da lagoa Feia. Recebia tam-bém águas provenientes do rio Paraíba do Sul,através de uma seqüência de lagoas, envolven-do a lagoa do Taí, lagoa Quitinguta e a lagoaSalgada. Com as obras do DNOS todo o siste-ma se inverteu: as águas da lagoa Feia, quecorriam para o norte e desembocavam no mar,passaram a correr para o sul, através dos ca-nais artificiais, construídos perpendicularmen-te aos canais naturais.

No período de chuva, as lagoas e lagunasrecebiam parte das águas que escoavam dabaixada, provocando seus extravasamentos e,conseqüentemente, a abertura da Barra doAçu. Com o rompimento da barra, havia a re-novação das águas das lagunas com água domar que penetrava pela barra, possibilitandotambém a entrada de peixes e camarões. Quan-do a barra voltava a fechar, ficava um criadou-ro natural que garantia a pesca até o próximociclo das águas.

Uma outra ligação das lagunas costeiras como mar era feita no local conhecido como “bu-raco do Ministro”. Nesse ponto havia uma li-gação natural do oceano com a lagoa do Laga-mar, que foi fechado pelo DNOS para a cons-trução de um dique-estrada, que liga o farol àBarra do Furado.

As águas que antes convergiam para essespontos de comunicação com o mar, passaram aser recolhidas por esses canais artificiais (São

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Bento e Quitinguta), e conduzidas para o canalda Flecha, que desemboca na barra do Furado,receptora de toda a drenagem da baixada.

Dessa forma, a renovação dos estoques pes-queiros passou a depender do único ponto decomunicação com o mar que é a barra do Fu-rado. Esse foi e continua sendo um dos princi-pais focos de conflito entre pescadores, pro-dutores rurais, sitiantes e prefeituras.

O argumento dos proprietários rurais é quea penetração da cunha salina é altamente pre-judicial aos solos. Em contraste, para os pesca-dores, a comunicação das lagoas costeiras como mar é fundamental para a manutenção dapesca, sobretudo do camarão. Assim, o impe-rativo de impedir a entrada da língua salinatornou o manejo das comportas dos canaisobjeto de disputas entre pescadores e proprie-tários rurais, que buscam operá-las diretamen-te, ou pressionando os órgãos públicos a fazê-lo de acordo com seus interesses.

Entretanto, um estudo recente realizadopela prefeitura de Campos constatou que asalinização das terras não se deve à penetra-ção da cunha salina pela barra do Furado. Aocontrário, o aumento da salinidade provém depólo oposto, em decorrência da pequena quan-tidade de água doce que chega às lagunas, as-sociado às altas taxas de evaporação. De todomodo, agricultores agem para impedir a pe-netração das águas salgadas, enquanto os pes-cadores agem para permitir sua passagem emdeterminados momentos, pois manter as com-portas permanentemente abertas acarretariao ressecamento das lagunas.

CONCLUSÃOComo o estudo pôde demonstrar, existem

indicações de que vem ocorrendo um proces-so de reordenamento de forças nas disputasem torno dos recursos hídricos. Destacam-seaqui alguns aspectos identificados que apon-tam nesta direção.

Em primeiro lugar, a participação políticados grupos sociais ligados aos movimentosambientalistas, ampliou o caráter das lutas lo-cais em torno da água. Esse movimento, a par-tir da década de 70, trouxe a público o questi-onamento em torno da lógica estritamente

econômica que norteava a atuação do DNOS,voltada para a valorização da agroindústriacanavieira.

Com o fim do DNOS, os proprietários ru-rais e usinas assumiram boa parte do controledas estruturas hidráulicas, operando compor-tas e barrando os cursos d’água de acordo comseus interesses. A fragilidade institucional dasinstituições públicas abriu caminho para a con-dução privada do sistema de canais. Por outrolado, a extinção do órgão federal possibilitoutambém a emergência de novos atores sociais,ligados às instituições municipais e estaduais,mais sensíveis à ampliação de processos demo-cráticos de decisão sobre a operação da infra-estrutura hídrica deixada pelo DNOS.

Os períodos secos dos últimos anos agrava-ram os conflitos, forçando mudanças de pos-tura dos usineiros e proprietários rurais. Se nopassado a lógica que prevalecia era a da “recu-peração das terras”, ou seja, da ampliação daárea produtiva com a incorporação de terrasdrenadas onde antes havia lagoas e brejos, ago-ra, admite-se a elevação do nível d’água de al-gumas lagoas, mesmo perdendo-se áreas pro-dutivas. O importante é ter água abundantepara aumentar a produtividade da lavoura.Nesse sentido, a acumulação de capital pelaampliação das áreas exploradas passou a sermenos importante do que a acumulação pelaintensificação de rendimentos obtidos porunidade de área.

Os pescadores, por sua vez, vêm logrando,desde a década de 70, aprimorar a sua capaci-dade de organização e representação, com oestabelecimento de associações, a utilização deinstrumentos jurídicos e administrativos nadefesa de seus interesses, e a construção derelações parlamentares, tendo elegido, inclu-sive, um vereador oriundo de sua base social.Com isso, vêm adquirindo uma visibilidade atéentão inédita na sociedade local.

Ressalta-se, também, a intensificação dabusca por novos modelos de gestão para osistema de canais por parte de atores locaisque identificam limitações ou impossibilida-des de soluções estritamente técnicas paraos problemas. A proposta concreta maismencionada é uma iniciativa em torno de umgrupo de discussão denominado GT-FOZ. Os

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defensores deste modelo enxergam limitespráticos à proposta de gestão centrada noenfoque estritamente técnico e comandadapor um só órgão. Acreditam que a soluçãopara os problemas entre usuários não seriade natureza simplesmente hidráulica, indi-cando a necessidade de tomadas de decisãocolegiadas em caráter constante entre ospróprios usuários e os órgãos públicos liga-dos à questão.

Apesar das mudanças ocorridas nas duasúltimas décadas, os segmentos tradicionais li-gados à agroindústria canavieira permanecemhegemônicos na política local e continuam ainfluenciar políticas públicas voltadas aos seusinteresses. No que tange especificamente aosrecursos hídricos, ao longo de cinco décadaso DNOS manteve o controle do sistema decanais com estreita participação de segmen-tos da agroindústria campista. O controle so-bre essa rede de canais consolidou, na eliteagrária local, uma percepção de que são bensprivados.

São exatamente essas relações entre poderpúbico e elites locais, que a literatura socioló-gica brasileira qualificou como característicosdos padrões patrimonialistas estabelecidosentre Estado e sociedade, que se apresentamcomo um desafio a mais a ser superado pelossegmentos que lutam pela ampliação dos es-paços democráticos de decisão acerca dos usosdos recursos hídricos.

Portanto, nos diferentes campos de força(jurídico, econômico, político e das represen-tações) continuarão sendo travadas lutas clas-sificatórias cotidianas, visando atribuir um ca-ráter privado ou público à herança deixadapelo DNOS.

Cabe destacar que a fragilidade dos órgãospúblicos favorece exatamente este controleprivado da rede de canais, concorrendo paraque sua gestão assuma um caráter excludente,desconsiderando os interesses dos segmentoscom menor capacidade de vocalização de de-mandas e articulação política, como os peque-nos e médios agricultores e, principalmente,os pescadores.

A complexidade das situações de conflitoencontradas indica a necessidade de constitui-ção de fóruns permanentes de decisões cole-

giadas, que incorporem os próprios atores emconflito e os órgãos públicos competentes. Adinâmica de gestão deve superar a visão de queos conflitos serão solucionados automatica-mente por meio de intervenções meramentede natureza técnica, em detrimento de solu-ções negociadas envolvendo os diferentes in-teresses em disputa. A institucionalização dagestão possui uma série de vantagens em rela-ção aos atuais mecanismos extra-institucionaisem curso, dentre outras: 1) evitar que decisõessejam tomadas baseadas na “boa vontade” dosatores com maior poder de influência; 2) pro-piciar tomadas de decisão de maior alcancepolítico e legitimidade e; 3) possibilitar a in-clusão dos segmentos não-hegemônicos nosprocessos decisórios sobre o uso e manejo dosistema de canais.

Conforme demonstrado os pescadores fo-ram os mais atingidos pelas profundas inter-venções efetuadas no sistema hídrico da re-gião desde a década de 1930. Todavia, as pro-postas do segmento não devem ser adotadassimplesmente por serem um grupo social his-toricamente menos favorecido, o que se re-comenda é que as instâncias técnicas e políti-cas reconheçam que os pescadores são porta-dores de um conhecimento empírico impor-tante e, após anos de convivência com as in-tervenções de engenharia nas lagoas e canais,já possuem um acúmulo de “saber técnico”sobre o manejo desse sistema que não podeser ignorado.

Por fim, ressalta-se a necessidade de ummaior envolvimento do Comitê de Integraçãoda Bacia do Rio Paraíba (CEIVAP) e da Agên-cia Nacional de Águas (ANA) junto aos atoreslocais e às instituições estaduais de gestão am-biental e de recursos hídricos na formulaçãode alternativas de gestão dos recursos hídricoslocais, tendo em vista a dominialidade federaldas águas do rio Paraíba do Sul. Além disso, énecessária a definição formal sobre qual seráo órgão gestor da infra-estrutura hidráulicadeixada pelo DNOS, definido competências eresponsabilidades. De todo modo, seja qual fora solução, é imprescindível o fortalecimentoinstitucional dos órgãos gestores para que pos-sam exercer suas funções com competência esalvaguarda da necessária autonomia frente aosgrupos hegemônicos locais.

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Paulo Roberto Ferreira Carneiro Bíologo, Mestre em Planejamento Ur-bano e Regional, Doutorando em Gerenciamento de Recursos Hídricos.Pesquisador do Laboratório de Hidrologia e Estudos do Meio Ambien-te - COPPE/UFRJ. [email protected];[email protected]


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