aforismos: volume ii - amauri ferreira

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Aforismos - 2014

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AFORISMOS

VOLUME II

AMAURI FERREIRA

www.amauriferreira.com

2014

SUMÁRIO

Obrar 4Escravidão 5Liberdade 6Paciência 7Generosidade 8Apropriação 9Filosofia 10Esgotamento 12Excesso 13Certeza 14Autogestão 15Medo 17Desabrochar 18Ódio 19

Protestos 20Democracia 22Multidão 24Entristecimento 25Corpo 26Saudade 27Seguidores 28Ocupação 29Micromundos 30Estado 31Singularidades 32

Notas 33

OBRAR

Realizar uma obra não é algo que nasce espontaneamente daconsciência, tampouco obedece algum projeto finalista. Dedicar umaparte do dia, ou uma parte da semana, para se afetar por diversos tiposde sons e imagens, leituras de textos, inclusive observações demiudezas, fazem parte da grande tarefa de obrar. Por isso éfundamental saber o quê se escuta, o quê se lê, por onde se caminha,pois quando as manifestações artísticas servem para o entorpecimento,certamente não atendem à sublime tarefa de obrar. Não podemos nossentir obrigados a conhecer os grandes filmes ou as grandes obrasliterárias de todos os tempos como condição para engendrar as nossaspróprias obras. O excesso de filmes, músicas ou livros pode, aocontrário, obstruir essa tarefa. E ao dizermos isso não queremos, demodo algum, negar que a erudição possa estar a serviço da tarefa deobrar, mas queremos apenas observar a importância da distinção, quemuitas vezes não é nítida, entre a distração de si pela erudição e o seuuso produtivo. Um rígido, frio e estéril profissionalismo acadêmico, porexemplo, está muito distante da irresponsabilidade inerente aoamadorismo que expulsa certas obrigações entediantes. E oamadorismo, aqui, não indica indolência, mas uma entrega àquilo quese faz por amor, através de uma indispensável mistura deautodisciplina, rigor, agressividade, estética, versatilidade, além dapaciência necessária para organizar as ideias que surgem inesperadas eque, muitas delas, nos escapam sem a ínfima possibilidade deretornarem do mesmo modo que surgiram em nossa consciência. Porisso, exige-se um cuidado peculiar com a organização dos signos: oserros que surgem nos indicam, sempre afetivamente, que talorganização não é a melhor para tentar exprimir as nossas ideias.Então, apaga-se parte do que foi feito ou joga-se tudo fora mesmo, semse apegar a nada, e coloca-se novamente no árduo e paciente processode permitir que as ideias que nascem em nós sejam organizadas pormeio dos signos, como trabalho indispensável para inventar um ritmoque permita que ele mesmo, o autor, sinta a confiança necessária paraexpor a sua obra ao mundo. Afinal de contas, não sentimos nenhumavergonha por expressar nossas ideias quando nos conhecemos por meioda introspecção... E, com isso, nos alegramos por sermos generosos...Algo feito, materializado, nos dá ainda mais confiança na vida, na suaabsoluta potência de obrar também através de nós.

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ESCRAVIDÃO

Não existe exercício da liberdade sem alguma autodisciplina,esforço, treino, paciência. Portanto, para viver livremente é necessárioadquirir um certo costume (o costume dos criadores), que é distinto docostume da moral dominante. A escravidão é sinônimo de indolência, depassividade, de ausência de si – e que não está necessariamenterelacionada a um trabalho que apenas é exercido em razão da necessidadede obter-se um salário para sobreviver. O fato de ser funcionário de umainstituição não é suficiente para determinar a escravidão de alguém. Se éescravo quando se deseja a escravidão como único meio para ocupar oseu tempo, porque não se sabe o que fazer com a capacidade de exercer asua própria liberdade. Dito de outro modo: escravo é aquele que desejater a sua existência organizada do exterior, não somente comoorganização que está diretamente relacionada à extração de um trabalhoútil à perpetuação capitalista, mas também como organização do seutempo, dos seus afetos, do seu pensamento, das suas distrações, das suasrelações com o corpo. E como as novas tecnologias, pelo seu uso vulgar,reforçam isso tudo, é notório que o seu consumo compulsivo tenha afunção de entorpecer. Desejar ser disciplinado pelo exterior, vampirizado,com a finalidade de obter pequenos prazeres e alívios momentâneos –pela lógica do escravo, isto é muito melhor do que a angustiante sensaçãode não ter o que fazer com o seu dia ou, até, com a sua própria existência.É por isso que os estímulos sociais que demandam respostas rápidas,eficientes, sem espessura de tempo (“o tempo passa rápido”), sãodesejados por eles. Evidentemente, são raros os que conseguem exercer asua liberdade, sendo assalariados ou não, pois é escravo também aqueleque, mesmo sem receber um salário, continua a viver de modo exterior asi mesmo. Sem dúvida, exercer uma atividade doentia torna mais difícil –mas não impossível – o exercício da liberdade. Porém, não é menosescravo quem está, supostamente, mais próximo de exercer a sualiberdade por estar livre da atividade assalariada, do trabalho maquinal. Oque mais acontece é que muitos indivíduos assim desejam voltar a servampirizados para sentirem-se úteis... A escravidão, portanto, não estárelacionada ao aspecto social e econômico, mas à contínua negação dacapacidade de exercer a nossa liberdade de obrar.

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LIBERDADE Se existe um anseio comum entre os homens que salta aosnossos olhos é o de viverem livres. Alguns autores já deram ênfase aesse anseio quando perceberam que, para muitos, a liberdade aparecevinculada a um estranho desejo de escravidão, quando ela é concedidade fora, não como criação que vem de dentro. Livrar-se simplesmentedaquilo que causa opressão não corresponde ao sentido que damos paraa palavra liberdade. Enunciamos, então, o que entendemos,basicamente, por liberdade: uma rara paciência para ver, ler e ouvir oque é muitas vezes incompreensível; uma sensibilidade ampliada; umanecessidade de criar condições para falar pouco e, em contrapartida,para permitir que o pensamento apareça, dando boas vindas a ele; serconduzido por uma absoluta certeza de que a nossa existência é ummeio para algo que nos transborda, pouco importando o nome que sequeira dar para isso (“vozes”, “forças” ou “divindades” imanentes, porexemplo): eis que, finalmente, a “senhora da foice”, isto é, a imagem damorte que causa tanto temor, é prazerosamente assassinada (o“assassinato da morte” como símbolo da liberdade experimentada);enfim, uma generosidade incomum, porque aquilo que é feito, a obra,serve para presentear os homens com sensações... Esta afirmação podeser paradoxal: a liberdade é uma posse daquilo que já somos. Por issoque este sentido de liberdade não parece ser o que melhor agrada aopaladar dos homens em geral da nossa época, porque estes preferem umoutro sentido, mesmo sem se livrarem completamente de um quê dedesconfiança: o da “liberdade concedida”.

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PACIÊNCIA

Como podemos ter paciência para deixar vir aquilo que é incerto?Pelo fato do resultado ser imprevisível, já seria motivo suficiente para nãoesperarmos surgir o que não temos a menor ideia. Habitualmenteesperamos por algo minimamente conhecido, constituído por umaimagem, e o limite da nossa paciência pode se estender, grosso modo, atéo ponto onde não temos mais dúvida do resultado, sendo ele favorável ounão: afinal, temos a imagem da causa, logo, surgirá um efeito... Masquando não temos a imagem da causa, que efeito podemos esperar? Nessecaso, até onde pode ir a nossa paciência? Consultemos um escritor: vemosalgumas linhas escritas, os rascunhos se acumulam, as palavras estãoinsuficientemente articuladas. O seu trabalho é, muitas vezes, lento eincerto. Ter a paciência para o que não tem imagem, para o que não seassemelha a nada existente, apenas é possível por meio de uma rigorosaautodisciplina, através de um combate cotidiano para impedir, sempreque possível, que o excesso de estímulos gregários não adie, por mais umavez, aquilo que sentimos ser primordial. Sem a autodisciplina, o efeitopode ser desastroso: sentimos uma impaciência crescente na experiênciacom ritmos que, pela perspectiva gregária, são demasiado lentos. Mas sãoesses ritmos lentos que nos salvam da banalidade, que engendram osnossos pensamentos e, desse modo, percebemos que há um quê deliberdade dentro de nós. Tais pensamentos são os frutos da nossapaciência, porque nos recusamos a pular o ritmo do tempo que énecessário para parir algo novo. Num certo sentido, a liberdade é comuma todos os homens, pois cada um carrega consigo o anseio de viver o maislivre que puder, mas, em outro sentido, a liberdade é realidade parapoucos – são os que arduamente souberam dar valor à espera pacientedos frutos imprevisíveis que vieram à tona por aquilo que não temimagem.

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GENEROSIDADE

Não há escolha para alguém ser generoso, porque trata-se deobedecer uma exigência que não é moral, mas sentida como a exigênciamesma da vida. Certamente, quem é generoso se alegra com isso, massua alegria seria ainda maior se os homens percebessem imediatamenteo que ele percebeu – mas, evidentemente, isso é impossível. Para quealguém perceba algo da imensidão, da exuberância que é fonte do quefoi doado, quanto tempo, paciência, “receptividade ativa” são exigidos –para perceber a realidade de outro modo, isto é, na sua fonte, quantoesforço é preciso ter! Ora, se a gestação da obra demanda tempo,esforço, sentimentos e visões únicas, se ela aparece, finalmente, nomundo dos homens através de signos, como exigir que alguém acompreenda rápido demais? Não seria esse o destino comum dosgrandes artistas, por exemplo? Eles vão deixando, ao longo do caminho,alimentos que poderão ser, um dia, recolhidos por alguns homens.Destes, há os que ainda têm dúvida quanto ao valor daquilo querecolheram, não sabem o que fazer com ele. Olham ao redor e se dãoconta de que a maioria despreza aquilo que foi recolhido. Mas ogeneroso segue adiante, não pode ser detido por querer “esclarecer” oque doou, pois ele tem muito mais o que fazer – a vida segue adiante.Quem pode segui-lo, quem continua a sentir algo diferente diante daobra, continuará a segui-lo – eis a força da arte que, assim como afilosofia, impulsiona os desejos de alguns humanos, geração apósgeração. Já os outros, que foram sutilmente movidos da sua inércia, nãoconseguirão ir mais além por algum tempo, talvez, até, por toda a suaexistência. A vida cotidiana, os interesses mesquinhos, em suma, odomínio das prioridades pragmáticas adia as tarefas consideradas “semurgência”... São, impiedosamente, engolidos pela banalidade. De algummodo, a generosidade de alguém os tocou, sem dúvida, caso contrárionão teriam recolhido o alimento, nem sequer o teriam visto. Mas issoainda é insuficiente, porque é somente o início de um longo trabalhopara renascer – e para ser também, algum dia, generoso.

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APROPRIAÇÃO

As invenções tecnológicas que são utilizadas para distrair, parareforçar a vaidade – o que produz uma pequena alegria vinculada aoefeito causado pelos olhares invejosos – pode nos levar a repudiá-las,como se não fosse possível dar-lhes um outro sentido. Segundo esteraciocínio, não haveria motivo, a princípio, de utilizarmos certasinvenções – mas é por isso que os homens são persuadidos aconsumirem aquilo que, sem os efeitos que lhes são prometidos pelapublicidade (e que, apenas em parte, são cumpridos), não veriammotivos para se sacrificarem para obter algo. Se a publicidade prometeo prazer ao consumirmos um produto, esse efeito é geralmentecumprido; por outro lado, quando há promessa de “maior tempo livre”,dificilmente isso ocorre. Eis então o seguinte cenário: o uso dasinvenções tecnológicas oferece algum prazer, alguma alegria, mastambém um sentimento cada vez mais incômodo de ausência de tempo.Por isso que nos parece leviano – e até cínico – mandamentos como“consumo consciente”, “tire o planeta do sufoco”, “sustentabilidade” emuitos outros clichês que estão em voga numa época onde está evidenteque a gravidade crescente dos problemas ambientais estão vinculadosao modus operandi do capitalismo. É até infantil afirmar que nãodevemos consumir bobagens para “salvar o planeta”. Para quem temuma existência insossa, pueril, quase esgotada, as bobagens sãoconsumidas compulsivamente porque, como já dissemos, seus efeitosnão são fictícios. Mas o que estamos expondo é o problema do uso dascoisas: a invenção é chamada de bobagem porque se faz um usoirresponsável dela. Se não agirmos sobre o modo enraizado de viver damaior parte dos homens, os moralistas de plantão continuarão aimperar com seus clichês. Portanto, chamamos, aqui, de apropriação ouso das invenções tecnológicas a serviço, não mais da pura distração,mas sim para provocar o pensamento na maior parte possível doshomens. Afinal, não acreditamos que o pensamento seja exclusividadede alguns seres “privilegiados”... A apropriação a serviço de um desejocriador, generoso, conduzido pelo amor e que, por isso mesmo, éraramente persuadido pela publicidade, opera necessariamenterevoluções inaudíveis.

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FILOSOFIA

Há os que dizem que a filosofia é para a velhice, quandodeterminadas necessidades se encontram “resolvidas”, quando sepossui, finalmente, ócio suficiente para se aventurar no mundo dasideias. Isso significa que, segundo esse raciocínio, é cedo para filosofarquando somos jovens, porque devemos nos preocupar primeiro emganhar dinheiro com o nosso trabalho para conseguirmos pagar ascontas, e nos esforçarmos em preencher o currículo, não poucas vezes,com cursos que atendem às atuais exigências econômicas. Imaginemosa seguinte situação: o tempo passa e, mais tarde, o sujeito pode tercontato com pensamentos filosóficos, mas desta vez com uma atençãoum pouco maior, já que ele finalmente possui tempo para a filosofia.Sua condição financeira, agora sim, permite isso. Ao começar aaventurar-se pelo pensamento, não é incomum ele dizer para si mesmo:“se eu soubesse disso antes, minha vida seria outra... mas agora éimpossível mudar, tudo está feito”. Depois desta leviana constatação, ele

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abandona a filosofia, porque imagina que é tarde para aprender a pensar.Mas quando jovem, deixou a filosofia de lado porque tinha coisas maisúteis para aprender, que lhe ajudaram a ter uma boa condição financeira.Se esse sujeito não aprendeu a pensar quando era jovem, isso não mudoumuito na velhice. Este raciocínio, que não faz mais do que reproduzir osque ignoram a potência de pensar, é uma ofensa às célebres palavras deEpicuro, que dizia, na sua carta a Meneceu: “Que ninguém hesite em sededicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois develho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velhopara alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesseque ainda não chegou ou já passou a hora de ser feliz”. A filosofiafornecida em pílulas, como autoajuda, algo tão em voga ultimamente, é,ao que nos parece, mais um dispositivo contra a liberdade de pensar. Nãose compreende o pensamento de um filósofo em pouco tempo, nemadaptado a circunstâncias que exigem, na verdade, uma experiência detempo e de pensamentos próprios - ao contrário, portanto, do “ler-e-aplicar”, sem ruminação, que é tão estimulado. E os que estudam filosofianas universidades, não seria exatamente aí uma ponta de esperança paraque as pessoas fujam desses dispositivos? É raro que o ensinouniversitário de filosofia forme os que aprendem a pensar por si mesmos.Há um desfile universitário de professores agarrados a títulos ereconhecimento; muitos dos que se tornam especialistas numdeterminado pensador ficam encostados nas suas ideias e vivem doprestígio que decorre disso durante décadas. Mas não refutamos osespecialistas na filosofia. Mesmo que seja raro que o conhecimentotransmitido por algum deles toque profundamente um espíritopotencialmente criador e ousado, não deixa de ser louvável quando issoacontece, pois a humanidade só tem a ganhar. Os especialistas, bemutilizados, são importantes para o surgimento dos criadores. Masdevemos nos proteger de alguns dos seus vícios, entre eles o pedantismo,o modo mecânico de viver, a ausência de solidão e a quase incurávelvaidade – eles enterrariam esses vícios se, justamente, fossem criadores...Mas deixemos esses detalhes de lado, porque o que nos interessa aqui é ovínculo, com a prudência necessária, entre os especialistas e os criadores,o que, para nós, deve ser intensificado. Obviamente, não queremos limitaros criadores no âmbito da filosofia, isto é, aqueles que criaram a suaprópria obra filosófica, mas nos referimos a todos os que se alimentam da

filosofia sem deixar de operar alguma ruptura no seu modo de existir, epassam a viver como criadores de si mesmos, sejam como músicos,poetas, alfaiates, cozinheiros, pois o melhor modo de agradecermosalguém que nos ensinou algo valioso é sermos criadores. A filosofiaensinada assim, oferecida assim, não tem nada de entediante, não seassemelha a um “monstro” que é amansado somente por “seresprivilegiados”, exageradamente sisudos, confinados entre os murosacadêmicos, que cultivam o seu círculo de bajuladores. A filosofia não ésomente para a velhice, não é para os “que não tem o que fazer davida”, não é distração, não é autoajuda, não serve para a instrução. Elaé para qualquer um que desconfia que as coisas não são do jeito quedizem, que alguma coisa nova tem que vir ao mundo, que não acreditaque o mundo tenha que se reduzir aos clichês. “Se não houvessefilosofia”, já dizia Deleuze, “não questionaríamos o nível da besteira. Afilosofia impede que a besteira seja tão grande”. São palavras de quemnão foi assassinado pelo ensino acadêmico da história da filosofia, dequem não se tornou um operário do pensamento. “A história dafilosofia exerce em filosofia uma função repressora evidente” – eis alúcida constatação de Deleuze. É comum os homens imaginarem queapenas é possível pensar por si próprio quando se obtém, com muitocusto, títulos que os autorizam a “pensar”. Mas a filosofia se liberta darepressão contra a liberdade de pensar (que é a repressão para que cadaum não crie os seus próprios métodos para pensar) quando ela está navida, quando ela serve à vida, quando ela não sai da vida, quando ofilósofo vive o que ensina, pois desse modo ele é amigo da vida – afilosofia aparece, finalmente, com alegria, com cores, com vibração emaravilhosamente subversiva.

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ESGOTAMENTO

Quando nos aparece o esgotamento, devemos investigar o corpo,ou melhor, as relações do nosso corpo com o ambiente. É inevitável queo corpo reduzido ao hábito reproduza a sensação de esgotamento, deenfado. Por isso é necessário quebrarmos os hábitos e estabelecermosoutros hábitos. Fazer morrer no tempo certo para renascer com outroshábitos – extraímos essa sabedoria da crise. Sem a crise seria intolerávelexistir, porque não sentiríamos a necessidade de mudar – e a vida, todaela, é mudança... Não acreditamos que exista “vocação”, mas simapropriação para fazer a vida passar: ninguém nasce isso ou aquilo,com etiquetas de fábrica, mas torna-se isso ou aquilo por poderapropriar-se daquilo que encontra durante seu percurso existencial. Ahistória da filosofia sob sua vontade para gerar o novo: assimentendemos quem se torna filósofo. Mas podemos dizer do mesmomodo a respeito da história da ciência, do cinema, da pintura, dafotografia, da literatura, da dança... tudo sob a vontade de quem écomandado pelo amor. O critério é: tal combinação de imagens ésuficiente para passar algo diferente na humanidade? Vai conseguirtocar alguém? Ou melhor: o próprio autor já é tocado por ela? Elequebra seus hábitos com ela? Ou melhor: ela já é resultado da quebrados seus hábitos? E ainda: tal combinação de imagens exprime asuperação de um esgotamento e o retorno à saúde? O pensamento énecessariamente criador e subversivo, mas para que isso se efetue énecessário que os sentidos do corpo sejam tocados, não pelos estímulosque o tornaram embotados, mas por outros que nem sabemos queexistem – alguns deles, inclusive, temos conhecimento através daamizade, pois, como já dissemos em outro lugar, amigos são “aquelesque nos abrem portas surpreendentes”.

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EXCESSO

Apontamos o que seria a crise relacionada ao corpo reduzido aohábito: o esgotamento e o embotamento dos sentidos são sintomas dessacrise. Não é novidade que o capitalismo nunca se opôs à crise ao fazer delaum problema para ser administrado, e não solucionado. Se os corposconfinados da sociedade disciplinar foram, num certo sentido,flexibilizados nas suas relações pela sociedade de controle, é evidente queessa composição entre disciplina-controle jamais resolveu a crise queassola os indivíduos. Percebemos que vivemos, de modo acentuado nosgrandes centros urbanos, numa sociedade de excesso – excesso deestímulos que nos atingem (principalmente pelo uso estúpido das novastecnologias), cuja quantidade e velocidade não acelera a produção deintensidades, mas, ao contrário, acelera a quase ausência de intensidadese seu correspondente imediato, que é a demanda cada vez maior porpequenas doses de prazer. Um pequeno prazer associado a um estímulovisual, por exemplo: a obtenção é cada vez mais facilitada,“democratizada”, todos têm direito ao prazer (afinal, diante da oferta porprazeres, por que ficar triste?). Como tudo acaba, surge uma angústia queé suspensa temporariamente de modo fácil, simples: basta estarconectado e “clicar”. “Conectados vivemos melhor”: este slogan, vindo deuma grande empresa de telecomunicações, nos leva a suspeitar daquiloque dizem ser “melhor” para nós... Na sociedade de excesso, o déficit deprazer não é o seu oposto. Mas, ao que nos parece, o excesso, ao invés deser a carta na manga que o capitalismo lançou mão para administrar acrise que surge pela redução dos corpos ao hábito (mesmo quando oshábitos são substituídos por outros que são impostos de fora), podeconduzir os corpos esgotados ao extremo da crise – um esgotamento quetalvez não seja mais possível de ser administrado. Portanto, a relaçãoentre excesso-déficit pode, enfim, tornar-se fecunda porque essa crise nãoé mais disfarçada pela indústria do prazer efêmero e aí, neste ponto, ascoisas começam a ficar realmente sérias do ponto de vista dos defensoresde uma suposta “saúde”, “bem-estar”, “tranquilidade” e “equilíbrio” paraos indivíduos esgotados – uma crise assim pode ameaçar seriamente areprodução da matéria humana que é necessária para a manutenção dosistema econômico vigente. 13

CERTEZA

Quando se está trilhando um caminho que não foi percorrido porninguém, é comum surgirem dúvidas e angústias concernentes ao que seestá fazendo com a própria existência. Algumas pessoas nos alertam equerem nos persuadir sobre o que é melhor para nós, até se esforçam paraapresentar um esboço imaginário do plano que é melhor para ser seguido,embora muitas delas se encontrem em uma situação completamentecontraditória com o que pregam. Se, apesar de obstáculos desse tipo,aceitamos o risco de viver como ninguém até hoje viveu, e que certamenteninguém irá viver algum dia, acertamos as nossas contas, pagamos asnossas dívidas com o próprio passado – ele, o passado, não tem culpa denada por sermos o que somos, pelos homens serem como são, pelomundo, enfim, ser o que é. Mas ocorre, com o passar do tempo, umsentimento de uma estranha certeza, uma certeza incomum, que não seconfunde com a certeza objetiva que obtemos pelo raciocínio. Éimpossível que ela seja deduzida inteligentemente, pois, por se tratar deuma “persuasão íntima”, nos impele a ir adiante, afirmando novos riscos,a não ressentirmos os nossos erros, a nos mantermos confiantes ecorajosos no modo de viver que, com muito custo, conseguimos inventar.É uma certeza alegre que nos acompanha quando fazemos aquilo quequeremos, do modo que queremos. Que falem, que critiquem, nãoimporta o que até “os mais próximos” nos dizem sobre o “melhor” destinoque podemos ter, pois a certeza nos faz desviar das “melhores sugestões”:ela, a certeza, nos faz abandonar certos hábitos ditos indispensáveis paraa maioria das pessoas, e abraçamos com orgulho aquilo que é sentidocomo urgente, inadiável.

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AUTOGESTÃO

Ao que nos parece, na época em que vivemos é possível, cada vezmais, fazer o nosso próprio trabalho, ou seja, aquilo que mais amamos,sem precisar das “ajudas” legítimas e oficiais oriundas do Estado, deOngs ou de empresas privadas. Há pouco tempo, quem se atrevia a teruma relação tão honesta e profunda com o próprio trabalho,dificilmente conseguia se manter financeiramente sem permitir que oseu trabalho fosse anexado às exigências econômicas vigentes. Dessemodo, corria-se o risco do resultado do próprio trabalho serpraticamente desconhecido, pelo fato do autor se recusar a fazerconcessões aos meios oficiais de divulgação. Muitos morderam econtinuam a morder a isca da lógica do mercado para a divulgação daprópria obra – não raro, o trabalho que, inicialmente, tinha um quê dehonestidade, e até uma certa inocência, passa a se tornar terrivelmenteburocrático, associado com prazos, metas e lucros. O trabalho passa aser engolido pela lógica do mercado porque se desejava, ao menos noinício, divulgar o seu resultado, tocar as pessoas, fazê-las pensar e agir

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de outro modo. Mas, seduzidos pelo dinheiro a mais na conta bancária, asconcessões se multiplicam. Porém, vivemos numa época em que aapropriação da novas tecnologias possibilita a difusão de uma obraimaculada, pois o próprio trabalho é feito com paixão, dedicação,compromisso com o futuro. Quem souber se servir disso estarárealizando, sem dúvida, uma revolução silenciosa, que não se assemelhaem nada com a “revolução pela guilhotina” ou com a posse do poder.Quem for capaz de inventar o seu próprio bem terá o seu público, desdeque faça a apropriação adequada para disseminar a sua obra. Se alguémtem uma relação honesta com o que faz (diríamos, até, uma relaçãoimpessoal, por introspecção), certamente não terá preocupações emtornar-se rico. Ora, a promessa de riqueza é justamente a grande seduçãoque captura um trabalho inicialmente vivo. Se havia gente que não podiadesenvolver o trabalho do seu jeito, agora poderá fazê-lo, sem precisar“vender a alma ao diabo”. Quem faz isso se alegra consigo mesmo –alegria que, por ser autêntica, pode despertar outros desejos distintos dosque são reproduzidos pela publicidade. É um contágio pela alegria. Quemse liga afetivamente com o resultado de um trabalho assim são os que sefortalecem com a obra, que são movidos para outros lugares, convidados apensarem por si mesmos e, como contrapartida (e não por altruísmo),ajudam a financiar o trabalho de quem lhes doou algo. Já dissemos, emoutro lugar, que não há revolução que ignore as relações afetivas entre aspessoas... Mas para a sagrada autogestão do seu próprio trabalho énecessário, antes, conquistar a autonomia, isto é, inventar o seu própriobem que irá conduzir o seu trabalho. E isso envolve um milhão de coisas...Daí a necessidade, então, de um ensino direcionado para a autonomia,pois, caso contrário, será mais difícil abandonar o uso estúpido das novastecnologias e a postura, ainda passiva, de pedir esmola ao Estado, às Ongsou às empresas privadas. O argumento de que o problema é o uso dodinheiro, mesmo quando este é oriundo do Estado ou de empresas, aindatem, em certos casos, uma justificativa nobre: nos casos em que a obraapenas é possível por meio de patrocínios, por exemplo. O cinema é umcaso emblemático disso. Usar o dinheiro de uma instituição bancária parapermitir o nascimento de uma obra que faz passar um fluxorevolucionário, que põe em questão inclusive os valores vigentes quepermitem a existência de instituições nocivas (como os bancos), não deixade ser, até certo ponto, louvável. Mas isso ainda nos afasta do que já

dissemos: a urgência da invenção de um outro ensino, que não estádirecionado para a falta, mas sim para a autonomia. Quem sente quetem algo de urgente para ensinar, que ensine, ou seja, que invente osmeios para isso – por isso, autonomia. Quem quer fazer umaintervenção urbana, que faça, sem precisar esperar e rezar pelacontemplação oriunda das “leis de incentivo à cultura” – por isso,autonomia. Ocupar os espaços, apropriar-se das novas tecnologias,estabelecer alianças, fazer as pessoas pensarem, isso não tem nada deerrado – por isso, autonomia. Um coletivo de anônimos, mas tambémum coletivo autônomo, de quem não quer ser celebridade. Um escritorpode publicar o seu livro, que foi feito com o seu coração, financiadopelos seus próprios leitores que, de bom grado, fazem isso. Tudo passapela organização e pelo afeto. As relações afetivas na ordem da aliançafazem as coisas acontecerem, materializam as obras que podem levar oshomens a irem mais adiante, ao contrário do que geralmente ocorre noatual mercado mundial de livros, por exemplo, onde a disseminação dolixo dos autores banais é a norma. E o mesmo poderíamos dizer sobremuitas outras atividades, onde a disseminação do lixo parece não terfim. O que queremos destacar é o momento em que vivemos, onde asrelações com o trabalho estão no início, ao que nos parece, de umaprofunda mudança, e que a postura de pedir esmola, em muitos casos,já teve o seu tempo. Quem for capaz de conquistar a autonomia (algomuito difícil, pois demanda tempo, paciência, autodisciplina, estudos),fará da autogestão do seu trabalho, e das relações afetivas de aliança,um combate para acelerar uma mudança radical no atual sentido com otrabalho, mas também com as relações humanas, com o sistemaeconômico e, enfim, com a sociedade. Por isso que esses indivíduosautônomos, que podem constituir um coletivo de anônimos, estarãoadiante no movimento das mais urgentes e inevitáveis mudanças sociaisque a maioria dos homens ainda continua a ignorar (incluindo,certamente, as celebridades que também estão submetidas a umaobsoleta e perversa lógica de mercado que aprisiona a invenção de umoutro sentido para o trabalho).

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MEDO

Falávamos sobre como a autogestão chama a autonomia, em comoelas caminham juntas. Queremos acrescentar que elas mantêm afastadoum grande perigo que não é exterior a nós, mas, ao contrário, é interior anós: o nome dele é medo... Por medo, muitos fazem as piores coisas domundo, as mais nocivas, as mais vergonhosas. Medo da diminuição do“padrão de vida”: alguém pode dizer que é normal fazer peçaspublicitárias que estimulam as pessoas a ingerirem alimentos e bebidasrealmente nocivos, com a justificativa de que necessita “garantir o seupão”, pois ele é como todo mundo, tem contas para pagar, precisasobreviver. Quanto maior é o seu “padrão de vida”, maior é o seu medo de“ficar mais pobre”. Portanto, cada vez mais, ele depende da conservaçãode uma lógica de mercado perversa. Medo da mudança: a esposa olhapara o seu marido e se dá conta de que a relação conjugal estánaufragando há tempos; apesar disso, ela ainda se agarra ao casamentopor medo de sentir-se abandonada: “Se está ruim assim, estará pior setudo acabar!”, é o seu raciocínio... Medo de perder o emprego numainstituição de ensino, bancária, pública ou outra qualquer. Medo de nãoter acesso fácil aos anestésicos; medo do julgamento moral dos outros;medo da ruptura com certos hábitos que dão uma aparente sensação desegurança e tranquilidade; medo do seu futuro... Medo, medo, medo...Em suma, não nos parece ser suficiente a justificativa de que se alguémfaz as piores coisas é porque precisa sobreviver e sustentar os seus filhos.Então, a existência segue, e as consequências nocivas das ações que sãolegimitadas pelo poder continuam a embotar as relações humanas. Se otrabalho do homem estivesse limitado a isso, ou seja, a fazer aquilo emque não é colocado o seu coração, não teríamos sentido algum emescrever estas palavras – poderíamos fazer como muitos, lavar nossasmãos para, mais uma vez, entregá-las à escrita de textos sensacionalistas,pois assim continuaríamos a olhar para o próprio umbigo “bem sucedido”.Mas nós não temos e não queremos um umbigo “bem sucedido”, nãodamos importância a ele.

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DESABROCHAR

São raros os momentos em que somos atingidos subitamente porum pensamento novo, uma espécie de visão no interior da vida. Muitospassam por toda a existência sem ter essa visão e se, afortunadamente,chegam a ter um vestígio dela, não conseguem materializá-la numaobra. É como se alguém tivesse sucumbido diante do árduo trabalho deproduzir aquilo que não vai “garantir o seu pão”. É necessário alcançaruma sagrada modéstia para poder dizer que a nossa existência é umatentativa da vida para desabrochar e se alegrar consigo mesma. Ela, avida, sempre tenta desabrochar através de nós, assim como tenta emqualquer outro lugar no universo. Sua tentativa não tem fim, pois suaessência mesma é essa, tentar desabrochar. A vida tenta e erra, tenta eerra, tenta e erra... até que, finalmente, acerta, desabrocha. É tão difícildesabrochar em alguém que, quando isso acontece, é como se um acertovalesse por um milhão de erros. O que queremos dizer é que osproblemas que atormentam a existência do homem tagarela eperturbado estão relacionados apenas à conservação da sua existênciaorgânica, por isso tais problemas não chegam nem perto dos quesurgem em quem é tomado por uma visão original no interior da vida:se a vida tenta acertar através de nós, é em quem é tomado por essavisão que ela está mais próxima disso. Portanto, levar adiante essatentativa até o fim é, sem dúvida, a grande tarefa. Concluída a tarefa,pode-se cair no chão e nunca mais abrir os olhos, nunca mais respirar, oorganismo ser desfeito por completo – mas a soberania da vida segueimaculada, como sempre foi e será, pois ela desabrochou. É por isso quedizemos que toda existência está completamente justificada quando,com muito árduo, alguém consegue fazer a vida desabrochar – faz issopor amor, faz porque não teme os obstáculos, faz porque não conheceoutro sentido para respirar, comer e beber a não ser este. Basta sermostocados pela obra de um grande músico ou um grande escritor parapercebermos que ali, naquela simples existência que é um ponto nouniverso, a vida acertou e, por isso, a obra nos toca tão profundamente– e se nos toca, é porque temos esse anseio inconsciente de permitir quea vida também desabroche em nós... Entendemos que um único acertojustifica o nosso nascimento, mas, evidendemente, queremos mais...queremos criar, criar, criar, até o nosso último respiro. É a certezaalegre que sentimos por fazermos parte ativa desse processocosmológico que nos leva a abraçar com orgulho a grande tarefa.

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ÓDIO

O poder precisa que os homens estejam tristes para ser desejado:esta é uma afirmação que sempre fez sentido e que continuará a fazersentido na história humana. Há uma produção social da tristeza queconcerne aos modos de habitar, de trabalhar, de estudar, de se deslocar,de se divertir. “Entendemos que a doença do homem no mundo atual nãoestá separada do seu meio social, das suas maneiras de desejar, deproduzir corpo ou, numa tentativa de expressarmos isso mais claramente,da sua ignorância sobre a importância do corpo – das relações do corpo –para o pensamento... o homem contemporâneo sequer quer pensarporque vive cansado, seu corpo está esgotado pelas instituições. Corpo emente estafados – eis um retrato do homem contemporâneo”. Quandodissemos isto em outro texto queríamos destacar que a organizaçãoutilitária dos corpos produz necessariamente uma maneira de viverentristecida. Desse modo, os homens estão muito mais vulneráveis aoódio, desde que seja apontado para eles a causa dos seus males. Pode ser ovizinho, o chefe, o capitalista, o miserável, o governante do seu país –desde que lhes mostre uma causa para sua tristeza, observamos o ódio dos“homens de bem” tomar proporções que servem para afundar ainda maisa sua própria existência na lama do ressentimento. Mas é muito fácilmostrar, ou melhor, inventar uma causa para a tristeza de alguém: nesteponto, temos que reconhecer que os homens de poder são realmentemestres. A famigerada composição imagem e palavra serve paradirecionar o ódio da massa que, reduzida à opinião, imagina lutar pela sualiberdade quando, de fato, presta um grande serviço à sua própriaservidão. Basta associar a imagem de uma parede pichada ou de umamesa quebrada com a palavra “vandalismo” para que o ódio sejadirecionado. Basta associar a imagem da bandeira nacional com frases dotipo “O gigante acordou!” ou “Um só grito, uma só força!” para que a lutapela liberdade tenha algum sentido. Basta associar a imagem de umpartido político, cujo símbolo é de cor vermelha, com a frase “Esta não é acor da nossa bandeira!”, para que o inimigo seja identificado e odiado.Basta associar a imagem de soldados armados com a frase “Paz e proteçãopara todos!” para que essa “proteção” seja digna de ser desejada... Paraquem sofre há necessidade de um inimigo para odiar, portanto, éfundamental que os homens de poder inventem inimigos, sempre através

da composição imagem e palavra. Mas se eles são mestres na arte dedirecionar o ódio (e também o amor) das massas de acordo com seusinteresses perversos, são também facilmente desnudados por outra arteque eles estão longe de dominar: a arte do pensamento. A melhor armacontra a opinião é, sem dúvida, o pensamento, pois pensar “exigecoragem para dizer as coisas que não se ousa dizer, para dizer de umjeito que habitualmente a sociedade não deseja saber”. Por meio dopensamento, percebemos que o discurso do poder é muito pobre,repetitivo, infantil. Tem sempre alguém para odiar, tem sempre alguémque irá nos salvar. Em suma: sem a arte do pensamento é muito maisfácil morder a terrível isca do poder.

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PROTESTOS

Manifestações genuínas de desejo, que escapam e fluem, têmsempre o risco de serem absorvidas pela lógica capitalista. Isso ocorretodos os dias. Se aquilo que escapa consegue se reinventar, vivendo demodo revolucionário, sacode e, até, põe abaixo alguns dos grandesconjuntos sociais estabelecidos. Mas quando as manifestações sãoabsorvidas, tornam-se inevitavelmente inofensivas. A princípio,protestos que emergem em uma sociedade não são, em si mesmos, bonsou ruins, porque dependem daquilo que os movem. Gritos do tipo“Mudança!”, “O gigante acordou!”, “Vem pra rua!”, “Democracia!”,entre tantos outros, podem ter conotações revolucionárias ou, pelocontrário, reacionárias. Mas quando um movimento reacionário seserve de manifestações genuínas de desejo para reforçar suasinsatisfações como “cidadão de bem”, os protestos passam a ter umadireção, no mínimo, preocupante. “Protestamos pelo fim da corrupção,pelo fim da violência, por melhores hospitais, por melhores escolas”.Este tipo de protesto, além de não ter sustentação, expressa um ódiomuito bem dirigido. No Brasil atual, quem é que não está descontentecom a saúde, com a educação, com a política? Quando essedescontentamento passa a servir interesses fascistas, surge umnacionalismo que pode tomar proporções seríssimas. Uma “vontade de

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ditadura” que contagia os sofredores e insatisfeitos de todo tipo passa acrescer, abastecida pela grande mídia que, no Brasil, é denominada dePIG (Partido da Imprensa Golpista). Segundo Julian Assange, seisfamílias controlam 70% da imprensa no Brasil. Mas seria ingenuidadeimaginar que o movimento reacionário se limitasse a essa influência dagrande mídia na opinião da massa: ele está presente nas conversas docotidiano e também nas redes sociais da internet, sendo que os efeitos deseu contágio pelo ódio e pela sede por mudança (que, de início, sãoimperceptíveis), tornam-se, enfim, visíveis nos protestos das ruas, com oapoio da grande mídia. Hoje em dia, para tirar do poder o presidente deum país é indispensável a proliferação do ódio pela internet, de modo quea própria massa irá levar adiante a “revolução” tão desejada pelomovimento reacionário. Para nós, nas manifestações recentes do país,houve uma apropriação de um protesto genuíno (que concernia àcobrança de tarifa de um transporte que se diz “público”) por parte de ummovimento reacionário que encontrou, finalmente, a ocasião para sepropagar ao direcionar o ódio de quem já vive de modo entristecido. Porisso não podemos esquecer a importante observação de Reich, quandodizia que os alemães não foram enganados, pois desejaram o nazismo.Pouco importa se o que ele disse refere-se a algo singular, que ocorreu emum momento específico da Alemanha, sob certas condições. Assimtambém pouco importa se o que dissemos refere-se aos protestos quetomaram conta das ruas do Brasil em Junho de 2013 (cujo acontecimentotambém foi revigorante sob alguns outros aspectos). O que queremosdestacar é que o movimento reacionário que protesta nas ruas não estáapenas presente na grande mídia, nas conversas do cotidiano ou nas redessociais da internet – ele está em nós, mesmo virtualmente, e passa a nosconduzir quando estamos mais enfraquecidos, entristecidos, ávidos pormudanças que venham de fora. Chega-se ao ponto de acusar decomodismo quem não vai às ruas, de não lutar pelos direitos dotrabalhador ou do cidadão, de não participar da “revolução”. É aí quemordemos a isca do poder e nos limitamos à opinião... E, segundo a lógicacapitalista, mudanças são sempre bem-vindas, pois elas servem paramanter a mesma ordem: o sujeito continua a registrar o ponto de entradano seu local de trabalho na segunda-feira, mas agora com a esperançarenovada de que dias melhores finalmente virão...

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DEMOCRACIA

Quando escrevemos, há alguns anos atrás, sobre a destruição dademocracia representativa, queríamos afirmar que o poder que passoupara as mãos do povo foi um ato de prestidigitação do grande golpeburguês. Além disso, também escrevemos que a democracia era “puradistração, circo, passatempo, ferramenta de poder”, e apontamos para oseu inevitável esgotamento (“o próprio ressentido percebe cada vez maisque ela não pode ser levada a sério”). A inclusão democrática, como jádissemos, realiza a homogeneização de modo sutil e eficiente,caracterizando o que chamamos de fascismo (“a sociedade capitalista éum fascismo disfarçado de democracia”). “Liberdade, igualdade efraternidade”: anseio totalitário, inclusão das “diferenças”, cheiro defascismo no ar... Mas como queremos avançar a partir dessas ideias,pensamos na importância da invenção de uma democracia de fato, isto é,uma democracia ativa através de uma subversão política, onde ospolíticos estariam realmente a serviço das exigências mais urgentes dapopulação. Para nós, já passou o tempo onde um governante dizia quenão poderia atender às exigências da população porque, ao agir dessemodo, perderia sua “autoridade”. Na democracia ativa, ao contrário, ospolíticos estão subordinados à vontade das pessoas para fazer o que acidade ou o país quer que eles façam. Ora, sabemos que na democraciarepresentativa os políticos são, como no teatro de fantoches, manipuladospara atender aos interesses da burguesia, e não aos interesses dapopulação. Se ocorre a subversão disso, o Estado deixa de ter a funçãoprimordial de favorecer ao máximo a acumulação de capital. Se o poderde decisão passa, de fato, para as mãos do povo, a burguesia tem muito,mas muito mesmo o que temer. Então, qual é a sua reação? É a desempre: tentar absorver tudo aquilo que ameaça a perpetuação do atualsistema econômico. A vontade de mudança do povo passa, então, a serabsorvida e dirigida sem oferecer nenhum risco ao modus operandi docapital. Não podemos estranhar se, um dia, criarem o “dia nacional da

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manifestação”, onde todo o Brasil poderá se manifestar sobre o quequiser, em locais específicos, em horário específico, com trajetosespecíficos – e isso já ocorre em tantas outras manifestações que foramcompletamente absorvidas. As petições online, como o Avaaz (cujoslogan já diz tudo: “O mundo em ação”), são alguns exemplos datentativa de canalizar insatisfações das massas, com o que quer queseja, ao levar a “voz da sociedade civil para a política global”, o que dáuma aparência de participação política ativa. Aliás, não podemosestranhar se denominarem ações desse tipo de democracia ativa... Paranós, é evidente que o discurso “Por um mundo melhor!” é,essencialmente, um esforço para manter as coisas do jeito que estão.Segundo esse raciocínio humanista, a ordem é esta: “se existe miséria,destruição ambiental, guerras, políticos corruptos, então, temos que nosmexer, não podemos ficar de braços cruzados, temos que fazer algo paramudar isso”. Este tipo de discurso não questiona, em nenhummomento, a perversidade do atual sistema econômico; ao contrário,muitos “que se mexem” dizem que ele deve ser preservado. Porém, algoque é muito curioso no capitalismo, é que ele somente se preserva com...mudanças. “Mãos à obra! Não fique parado! Petições online!...” Nãotemos dúvida que para a sobrevivência do capitalismo é indispensávelque seja absorvido tudo o que ele mesmo ajuda a criar. O queaparentemente lhe opõe, seja a destruição ambiental, a miséria, aviolência nas metrópoles, as manifestações nas ruas, passa a ser assuntode seu interesse para que possa perpetuar-se. Inclusive muitosintelectuais e movimentos de esquerda trabalham, tendo consciência ounão, a favor do movimento reacionário que, aparentemente, elescombatem (tem intelectual, cheio de ódio, que tenta persuadir aspessoas de que políticos corruptos devem ser enforcados, não colocandoem questão, em nenhum momento, as causas reais que reproduzempolíticos que agem assim). Ao que nos parece, diante desse cenário, asdificuldades para uma democracia ativa giram, portanto, em torno desteimportante problema: qual é o sentido da mudança que pode ser feita?É uma mudança direcionada pelos interesses do poder do capital ou, aocontrário, é movida por um desejo genuíno que não quer o poder, quenão quer ser representado, mas que deseja que aquele que esteja nopoder se curve às exigências da população?

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MULTIDÃO

Falávamos sobre a democracia ativa e como ela põe abaixo aordem vigente da representação política. Agora, queremos destacar aimportância da emergência e o fortalecimento de movimentos demultidão apartidários, autônomos, horizontais, sem centro. Algunsintelectuais de esquerda lançaram mão do conceito de “multidão”, nosentido que Negri e Hardt o cunharam, como tentativa para compreendero que ocorreu recentemente nas ruas do Brasil. Não é o caso dedesenvolvermos aqui, de modo rigoroso, este importante conceito, masapenas de nos servirmos dele para sustentarmos algo que sentimos ser, nomomento, primordial: a luta diária para que os movimentos sociais nãosejam manipulados e influenciados pelas organizações parasitárias e

reacionárias que estão em todo lugar. É uma luta, como já dissemos,sobre nós mesmos. Atualmente, o Movimento Passe Livre é demultidão, assim como muitos outros movimentos sociais no país e, porisso, expressam um autêntico desejo por mudança. Para nós, somente apartir desta perspectiva, as manifestações recentes no Brasil foramrevigorantes e inspiradoras para o crescimento e o fortalecimento demobilizações políticas que são feitas no cotidiano. Não queremos negarque, a partir deste acontecimento, surgiram pessoas que, de fato,acordaram, despertaram forças que lhe deram uma nova coragem delutar. Gente que deixou a história pessoal um pouco de lado e dirigiu-separa questões que vão além do próprio umbigo... Se existe um ódio quese destaca nos movimentos sociais de multidão, certamente não éaquele tipo de ódio que é direcionado pela grande mídia, como o ódioaos “vândalos”, a este ou àquele político, a este ou àquele partido. Ainvasão de edifícios abandonados por aqueles que não têm onde morarnão é, de modo algum, “vandalismo”, ou seja, não é vingança contra osproprietários dos edifícios – é ódio contra a humilhação por viver emcondições de grande violência diária. Então, nesse sentido, entendemosque esse sentimento não pode ser desprezado, assim também como oódio a um transporte público que violenta os corpos. É algo como diziaEstamira: ser ruim na cobrança e não na vingança... É ódio de quemnão quer o poder, mas quer incomodar, cutucar e, mais profundamente,subverter a ordem das coisas. Daí a necessidade de mobilizaçõespontuais, mas também de conexões entre as próprias mobilizações. Amultidão “põe a mão na massa”, faz acontecer, luta, não quer serengessada, não quer ser representada. Desse modo, ela não se tornauma massa de fracos cujo ódio é facilmente dirigido pelas promessas dopoder. Por isso que o fortalecimento e o crescimento dos movimentossociais de multidão vão perturbar e pressionar ainda mais os políticos.O combate entre movimentos de potência que tendem a operar umamudança profunda e as instituições de poder que não querem sofreruma influência tão grande vai, ao que nos parece, se acentuar. E contraas manifestações puras de desejo, o Estado vai continuar a usar suasarmas de sempre: a violência policial explícita para conter osmovimentos (vimos recentemente que esta opção é, atualmente,impopular), ou enfraquecê-los ao absorvê-los (algo que os homens dopoder sabem fazer muito bem).

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Ninguém está destinado à tristeza, assim como também ninguémestá destinado à alegria, pois não existe algo de misterioso que seria acausa desses afetos, como se a existência de alguém já estivessedeterminada a ser de um jeito ou de outro. Impedidos de existir de acordocom aquilo que é vital (que é o desejo de amar e de ser generoso), osindivíduos entristecidos certamente têm consciência daquilo que osatormenta – isso eles sentem, ninguém precisa convencê-los do seucansaço. Diante dos valores estabelecidos, fazer parte do jogo imundo quereproduz a tristeza de outras pessoas parece ser, para a maioria, a melhoropção para administrar a crise que dominou a própria existência.Procura-se, apenas, tolerar a crise que é existir. Por isso que, para nós,trata-se de um entristecimento tolerado. Os conluios entre políticos,empresários, juízes e intelectuais ocorrem simplesmente porque elesestão tristes – por serem facilmente corrompidos, não podemos nosespantar que eles queiram cada vez mais o poder, seja na mídia ou noEstado, onde sentem-se à vontade para vomitar suas mazelas com omicrofone e uma coluna de jornal nas mãos, abastecidos financeiramentepor quem tem o interesse em disseminar o ódio através deles. Criticamporque estão amargos e tristes, e estão tristes porque não criam (Godardjá dizia que uma crítica será sempre inferior à criação artística), e nãopodem criar enquanto são ignorantes das causas do seu entristecimento,pois, afinal, imaginam que é impossível viver sem a organização exteriorde horários, deveres e títulos que multiplicam a sua tristeza... Muitosjovens incautos são contaminados por quem quer demonstrar erudição egrande capacidade de articular ideias. São os que falam sobre tudo, umaverborragia sem limites, um pedantismo que parece ser incurável. Ainteligência seduz e captura, e isso é demonstrado todos os dias... Ossujeitos tristes precisam mentir e mentir para continuar a enganar a simesmos; precisam roubar e roubar para continuar com a sua própriaexistência roubada; precisam acusar e acusar para continuar a esconderaquilo que fariam os outros sentirem nojo deles. Eles precisam de polícia,precisam também de narcóticos, precisam também de bajuladores,precisam também disso e mais isso... Sempre falta algo para eles não seentristecerem demais. Não há mistério: indivíduos tristes precisam decapitalismo, de Estado, de “juízo final” e “salvação da alma”. Ninguém éconservador e fascista por opção, mas por existir de modoentristecido...Porém, para reforçar o que dissemos no início: ninguémestá destinado à tristeza...

ENTRISTECIMENTO

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CORPO

É um grave equívoco imaginar que ideias bem articuladasinteligentemente são suficientes para dar conta da “explicação” daprodução de realidade. O excesso de comunicação e de interpretaçõessobre a origem e a finalidade disso ou daquilo encobrem os gritos de umcorpo violentado. Quando afirmamos que ninguém está destinado àtristeza é porque ela, ao contrário do senso comum, não possui umaorigem psicológica – nos parece que a tristeza manifesta um grito docorpo, ou seja, uma indicação de que algo sobre o corpo age de modocontrário à sua tendência essencial. Violentado, o corpo grita e grita, nãocessa de gritar. Mas esses gritos não costumam ser ouvidos com atenção.Os gritos do corpo de um bebê ou de uma criança manifestam-se atravésdo choro, porém, é mais frequente explicá-los a partir de uma suposta“criança frágil e doente” que não conseguiu se adaptar a um ambiente queé, pelo que dizem, benéfico para todos. De maneira semelhante tambémsão interpretados os gritos de um corpo adulto – gritos que, de fato, semanifestam psicologicamente como um entristecimento que deve,moralmente falando, ser cada vez mais tolerado. Por outro lado, umacriança que chora e que, ao gritar, apenas permite vazar “gritoscorpóreos” (ou então, surta, numa linguagem mais comum), certamenteincomoda muito mais do que um adulto carrancudo, dócil, que já estáadaptado à organização exterior que violenta o seu corpo. É evidente queele adapta-se, com muito custo, através da meritocracia e dos veneradosmedicamentos. Como os gritos do corpo não são escutados, é maiscômodo imaginar que o melhor “remédio” para a crise existencial ésimplesmente administrá-la, sem, de fato, solucioná-la. Mas se o corpo fordevidamente escutado, nos alertará da ignorância das nossas palavras, dainsensatez das nossas medicações – ele também nos alertará do terrívelequívoco dos que afirmam que o corpo é apenas a ferramenta de um “eu”que está consciente da sua superioridade diante do corpo. Em palavrasplatônicas, os gritos do corpo, por serem ouvidos erroneamente, sãointerpretados como prova da sua “imperfeição”; em palavras cristãs, sãointerpretados como “pecado”... Porém, é com o corpo que pensamos, quemudamos, que existimos com tristeza ou com alegria, que adoecemos ouque nos curamos. O corpo quer – e pode – muito mais do que apenas se

conservar: ele quer ser atraído para outros mundos, que são realmentemicromundos, mundos imperceptíveis, mundos que permitem criar onosso micromundo com novos microamigos, experimentar novosmicroeus e novos micromodos de amar. Trata-se de um micromundoque, ao contrário do que pode parecer, não se fecha em si, porque amicroliberdade experimentada nele é muito melhor do que amacroliberdade de um macromundo fechado em si mesmo, que estáentupido de “verdades evidentes”, e que por isso está distante da vida.

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SAUDADE

Quem já passou por uma experiência semelhante irá compreender,sem maiores dificuldades, o que queremos chamar de saudade de estarconsigo mesmo. Em razão de certas necessidades inegáveis deconservação da existência, nos damos conta, como se um clarão nosatingisse, que estamos abandonados de nós mesmos, da nossa própriacompanhia, porque fomos tragados por tarefas que, numa perspectivavitalista, são realmente desnecessárias. Mas isso não significa queestamos impossibilitados de retornar à nossa própria companhia que, defato, é sinônimo de retorno ao nosso querer mais profundo. Por isso éimportante nos atentarmos a fatos que a experiência não para dedemonstrar para nós: ora, não é incomum um jovem que se sentia bem aoestar consigo mesmo, cheio de pensamentos subversivos, cuja existênciatransbordava vitalidade, se tornar, anos depois, um sujeito insosso ecovarde, completamente distante de si mesmo por estar entupido detarefas. Ouçamos sua fala: ele reprova os tempos em que outrora erasonhador, embora tenha feito alguma coisa, movia obstáculos para quetudo não passasse apenas de sonho, mas que efetivamente fizesse passaralgo novo no mundo. “Era apenas coisa da idade”, assim diz ele,completamente resignado. A chama que é a invocação à vida, para ele, seapagou... Por ter como matéria um “álbum de retratos”, seu saudosismo édoentio porque está associado a um tempo onde ele “tinha energia”, “quesonhar era possível”, e que, agora, é impossível de retornar. Esta saudadede gente triste não é nem próxima do que aqui chamamos de saudade,porque a nossa saudade não é de um tempo que se foi, mas de um tempoque, a qualquer momento, pode-se retornar. Não se trata de umasaudade de quem olha para trás com melancolia, pelo contrário, ela é umaconvocação interior para retornar às tarefas realmente elevadas e que nãodevem jamais ser esquecidas. Não temos dúvida de que há alguma coisade grandioso, que palavra alguma pode dar conta, ao sentirmosprofundamente essa convocação... Em suma: a saudade de estar consigomesmo nos coloca na perspectiva de curar, finalmente, a nossaimpotência criativa. Ora, exatamente por isso ela deveria ser realmenteestimulada e não impedida pelos impulsos de conservação que reforçamtemores desnecessários.

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SEGUIDORES

Não querer mais tolerar o entristecimento pode ser umaindicação de que, finalmente, os gritos do corpo serão escutados, ou, aocontrário, pode também ser a oportunidade para que organizações“alternativas”, que pretendem salvar os “neuróticos insatisfeitos”,exerçam um poder ainda mais violento. Os indolentes são presas fáceisde alguém que é inteligente e sedutor, que promete outra vida melhorpara quem o seguir. Ao menos isso demonstra que o entristecimentotolerado pelos “neuróticos insatisfeitos” tem, certamente, seus limites,pois eles sentem na carne o peso diário das obrigações moraisentediantes e, por isso mesmo, estão mais inclinados para idolatrarquem quer que seja, desde que seja um líder que possa curá-los e guiá-los sabe-se lá para onde (já vimos as implicações políticas – e agravidade disso – quando o ódio dirigido sai às ruas para protestar). Osfundadores de comunidades alternativas e seus seguidores não seescondem para experimentarem momentos de respiro, mas parafugirem do combate exercido na sociedade que eles tanto criticam. Ditode outro modo: em vez de democracia ativa, preferem depositar suasalvação em uma seita... É notório que os líderes das seitas falam aquiloque os insatisfeitos querem ouvir – esta é a habilidade deles. Porexemplo: os efeitos dos alucinógenos são interpretados como um“chamado divino” para a tão desejada salvação, o que faz os seguidoresjogarem para o alto os seus empregos, casamentos, filhos, tudo para sesubmeterem aos desejos do aclamado guru. Ora a salvação é prometidaem outro mundo, numa definitiva fusão com o “infinito” (como noscasos de suicídio), ora é prometida neste mundo, por meio de justiça,honras, igualdade e felicidade dentro da comunidade. Existem aquelesque tentam convencer os insatisfeitos de que é muito melhor viver semdinheiro, que é melhor ter vários parceiros sexuais (o “amor livre”), queé melhor doar suas energias para o pleno desenvolvimento dacomunidade. Isso tudo faz parte da estratégia do líder de seita parademonstrar que ele é contra o sistema que oprime e reproduz ainfelicidade de seus futuros seguidores, oferecendo a melhor opção(que, obviamente, é a dele) de viver em uma sociedade alternativa... Eesse é o perigo: erigir um modelo de sociedade para que os insatisfeitosse tornem seguidores de um lunático.

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OCUPAÇÃO

Certas mudanças são essenciais pela lógica capitalista: protestoscomo “contra a corrupção” e “um só grito, uma só força!”, em conjunto,agradam tanto a simples insatisfeitos quanto a neonazistas; até umdeterminado uso do conceito de multidão colabora para levar adiante asmudanças essenciais que, ao contrário do que pode parecer, não são, demodo algum, contraditórias à dinâmica do capitalismo. Com efeito,surgem novos mercados, novas possibilidades de acumulação se abrem e,desse modo, o capitalismo mantém a sua própria morte afastada. Mas, atéquando?... Portanto, a noção de “revolução” de certos movimentos deesquerda podem colaborar, tendo consciência ou não, para a conservaçãodo capitalismo, porque simplesmente ignoram que o desejo da “multidão”pode ser facilmente direcionado para atender os interesses depouquíssimas nações que são, evidentemente, as de maiordesenvolvimento econômico. Liberar o desejo por “mudança” e insuflar,através de um bombardeio diário de significações, que o povo de um paísnão pode perder a chance de, finalmente, se vingar contra os políticoscorruptos (de modo que, mais uma vez, os empresários deixam de ser alvodos protestos), para, finalmente, “mudar o país para melhor”, é umaferramenta, hoje em dia, cada vez mais indispensável em razão dacapacidade de penetração de narrativas reacionárias por meio das novastecnologias (que reforçam, de acordo com o uso, aquilo que a grandemídia torna patente todos os dias). Como a crise da democraciarepresentativa não pode ser mais disfarçada, ela, a democracia, passar ater, então, um outro sentido que é muito, muito perigoso. Este raciocíniopode ser expresso assim: “Por que esperar as próximas eleições para,finalmente, tirar do poder um governo corrupto? Queremos que fale a vozdas ruas, que expressa a vontade do povo!”. Impulsionado pelosformadores de opinião, o caos nas ruas se instala, o que legitima a saídado governante, pois ele demonstrou ser incapaz de restaurar a ordem.Outro político assume imediatamente o seu lugar, para atender à “vontadedo povo”. Então, dizem, a mudança ocorreu “democraticamente”. Porém,o novo governante terá que atender, com absoluta prioridade, osinteresses econômicos daqueles que foram, de fato, determinantes paraque ele assumisse o poder... Contra este atual cenário político global,entendemos a democracia ativa como subversão política, “onde os

políticos estariam realmente a serviço das exigências mais urgentes dapopulação” (conforme já dissemos em outro lugar). Ocupar as ruas paraexigir um transporte público de qualidade, assim como ocupar umespaço para dançar, para ensinar, para morar, intervindo em diversospontos da cidade, para até, em certos casos, fazer-se ouvir pelosgovernantes, incomodando-os (sejam eles de esquerda ou de direita),para, finalmente, favorecer a vida humana: isto nos parece ser umavontade genuína por mudança, entendendo a mudança, aqui, como algoque ocorre pontualmente e gradualmente, fragmentária, mas sempreem ato, não como esperança, não como vingança, não como tutela, nãopara se chegar a um estado final de sociedade. “Está ocioso, mereceocupação!” – para isso, autogestão e autonomia... As ocupações comoapenas mais um signo de democracia ativa, como fragmentaçõessubversivas que são favoráveis à energia vital que, em nós, quer pensar ecriar. Isto é muito diferente do desejo fascista por unificação, com todosjuntos, de mãos dadas, pelo mesmo objetivo de que “o país mude!”,tentando expulsar movimentos fragmentados, singulares, autônomos,de multidão (ou de “vândalos”, na linguagem da grande mídia), quesempre ameaçaram o Estado: “Brasil, ame-o ou deixe-o!”. Isto querdizer: “Todos unidos para que a minha vida mude!”. Isto é egoístademais, indolente demais, passivo demais... Por isso, perguntamos: épara se acreditar nesta “revolução”?

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MICROMUNDOS

Falar em excesso nos permite sentir que estamos em casa, ondenos afastamos temporariamente do caos que nos habita. Omacromundo, constituído pela linguagem e a opinião, é o nossocativeiro onde comemos, dormimos, nos distraímos, reconhecemos esomos reconhecidos. A concordância no macromundo ocorre por meiodas crenças que conservam a existência do indivíduo e da sociedade.Não queremos negar a importância do macromundo, mas apenas fazeruma observação de que, submetidos a ele, ignoramos a existência demicromundos onde, ao contrário do macromundo, a concordância éimediata, sem intermediários, pois se trata de uma ressonância ouvibração entre micromundos heterogêneos... e para a experiência daressonância entre micromundos é indispensável o silêncio para ouvir,ver ou, para falar de modo mais preciso, para sentirmos a realidade domicromundo que é, por essência, o mundo do caos. Portanto, nosmicromundos não existe reconhecimento, mas ressonância entremicromundos que são demasiado estranhos para uma consciênciaentupida de significações e de utilitarismo. Para conhecê-los éfundamental esposar-se com o silêncio para operar um banho mental,“como problema social de higiene”, onde a tagarelice humana e oexcesso de estímulos das quinquilharias tecnológicas são, finalmente,suspensos. “Prefiro o canto dos pássaros, o som que vem do mar. E osilêncio interrompido por quem sabe falar”. Aqui, extrair riquezas é,desde sempre, permitido: ser capaz de sugar Nietzsche, Spinoza,Bethoveen, até uma folha ao vento, são provas de força e coragem; aocontrário, sem dúvida, daquilo que é característica do macromundo,onde todos supostamente se entendem pela via da opinião, o que não osimpulsiona à criação: tagarelar sobre Nietzsche, Spinoza, Bethoveen, atésobre uma folha ao vento, são provas de fraqueza e covardia...

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ESTADO

Existe algo que envenena o macromundo, que nos impede derecebermos, sem julgamentos, os micromundos que nos salvam dacrescente vulgarização humana. No macromundo nos deparamos com aterrível forma-Estado, com sua burocracia, com sua rigidez, com suafrieza, com seu julgamento, com sua violência sobre a vida – estes sãoapenas alguns signos da morte das relações afetivas operadas por tudoaquilo que reproduz a organização da existência humana paraenfraquecê-la. Por meio da reprodução da forma-Estado, isto é, do

Estado em nós mesmos (o homem-Estado), o ser humano se tornaapenas um pedaço de matéria, cuja força física e intelectual servem paraque seja extraído algum lucro – e para isso é necessário que ele sejacontinuamente enganado ou, para falar de outro modo, para que eledeseje ser enganado, pois é da essência do Estado a necessidade deenganar para parasitar a existência livre... Ao reproduzir a forma-Estado, as instituições de ensino consideram os alunos apenas comoconsumidores de diplomas, onde os professores costumam funcionarcomo ferramentas de disseminação de um conhecimento que serve paramanter a ordem social. Desse modo, é formado um sujeito que sedefende contra a realidade dos micromundos ao agarrar-se a umconhecimento utilitário que se pretende aplicá-lo de modo eficaz – eisuma luta que, desde o início, está perdida, porque, apesar de todos osesforços para contê-la, a vida segue adiante... Não nos enganemos: paraaquele que está enfraquecido e entristecido, existe a demanda peloexercício de um poder que é autorizado socialmente. Surge, então, maisum “pavão” instruído... O corpo humano é, para os que estãocapturados pela organização do Estado, sempre um problema que nãopode ser ignorado, pois ele deseja os micromundos – e os seus gritossão indicações da violência que esmaga este desejo. Porém, o corpodeixa de ser um problema quando sentimos e compreendemos que“vivemos sempre de maneira contínua, sempre de modo diferente”:rompemos, então, com a dissociação utilitária entre corpo humano ecorpo inumano e afirmamos a continuidade da vida em nós. Em suma: éimpossível sermos generosos e criarmos relações afetivas quando noslimitamos ao cativeiro do macromundo, onde a forma-Estado impera.Refém dele, experimenta-se um esfriamento das relações humanas,surge até um questionamento se a existência mesma, na sua totalidade,está destinada a esse esfriamento... Mesquinhez, inveja, buscairrefreável por dinheiro, necessidade de enganar outros seres humanos– diante deste cenário, é inevitável sentirmos a “vergonha de ser umhomem”, como já dizia Primo Levi.

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SINGULARIDADES

Os índios Kayapó, sabiamente, denominam “pe-o caprin” o papel-moeda utilizado pelo homem civilizado. “Pe-o caprin” significa “folhastristes”. Geralmente a felicidade do homem civilizado se confunde, dealgum modo, com o acúmulo das “folhas tristes”, ignorando qualqueroutro bem que esteja dissociado disso. Mas se o dinheiro é chamado de“folha triste” pelos Kayapó, é porque ele reproduz infelicidade, assassinaas relações afetivas, desencoraja os homens a serem fortes e guerreiros,tornando-os mesquinhos e inconfiáveis – com efeito, tudo isto chega acolocar em risco a existência das próximas gerações. É o espírito tristeque envenena o macromundo, que dissemina a forma-Estado, que sesubmete à Igreja e ao capital, que guerreia entre si por causa da “folhatriste”... Mas os micromundos são impossíveis de serem envenenados, sãodominadores desde sempre, e são eles que podem nos redimir doentristecimento e da “vergonha de ser um homem”: a felicidade queprovém da criação, que é fruto da nossa aliança com os micromundos, é anossa maior arma para resistirmos à captura da vida singular pelossujeitos entristecidos. Chamamos de singularidades criadoras asexistências que têm consciência de que jamais irão se repetir, e que porisso se tornam fortes, corajosas e autodeterminadas, cuja tarefa de obrarsentem com grande orgulho e felicidade. As singularidades criadorasrompem com o senso comum, lutam para não serem capturadas pelojulgamento dos que querem introduzir nas suas consciências a vergonhade serem... singulares. Viver de modo feliz com a sua própriasingularidade é uma conquista árdua, pois implica renascimentos epontapés nos reprodutores de infelicidade – estes, por nãocompreenderem o que é um espírito alegre, estão inevitavelmenteinclinados à inveja e ao ódio. Através da experiência da felicidade temos aliberdade de matar a vontade de acumular as “folhas tristes”, de matar acrença na imortalidade da alma e também os temores que são difundidostodos os dias pelos homens-tristes-que-interiorizaram-o-Estado...Sentimos, através de uma certeza alegre, que não somos um pedaço dematéria insignificante no universo, mas uma vida singular que se alegrapor, justamente, ser única. Portanto, o Universo, o Todo, o Absoluto, sejao nome que quisermos dar para isto que nunca deixaremos de ser, ontem,hoje e sempre, é, para nós, uma realidade eternamente constituída pelacontinuidade de singularidades criadoras. 32

NOTAS

Capa: Amauri Ferreira

Os aforismos deste volume foram escritos durante o período de Fevereiro de 2012 a Março de 2014

Todas as imagens são de Amauri Ferreira, exceto as imagens em Obrar e Paciência (de Manoela Lima Pascale Cracel)