conceito de tomada de leitura dos aforismos

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Controvérsia - Vol. 8, nº 3: 12-32 (set-dez 2012) ISSN 1808-5253 Texto aprovado em 15/08/2012. 12 Controvérsia – vol. 8, nº 3 (set-dez 2012) ISSN 1808-5253 O confronto radical entre Nietzsche e Heidegger em relação à superação da metafísica The radical confrontation between Nietzsche and Heidegger on the overcoming of metaphysics Olyver Tavares Universidade de Brasília- UnB [email protected] Resumo Abstract Nietzsche e Heidegger, os dois mais influentes filósofos da atualidade, sustentaram uma postura claramente contrária à metafísica tradicional como aparece na história da filosofia europeia. Entretanto, Heidegger manteve a tese de que a filosofia da vontade de poder de Nietzsche foi, apesar de tudo, ainda uma filosofia metafísica. Por outro lado, poder-se-ia inferir, através de uma conjectura bastante natural, que Nietzsche rejeitaria também como metafísica a ontologia fundamental de Heidegger. Fica, pois, um enfrentamento entre dois antimetafísicos que se acusam mutuamente de metafísicos. Uma saída para este curioso impasse é dar-se conta de que ambos os pensadores concebem a metafísica de maneira diferente e que, seguindo à risca uma dessas concepções, deve-se forçosamente considerar como metafísica a postura do outro. Disto decorre que a interpretação heideggeriana de Nietzsche não é injusta ou sem cabimento, como às vezes se sustentou, mas rigorosamente correta se aceitas as bases antimetafísicas baseadas na analítica ek-sistencial. De forma semelhante, tampouco seria injusta ou absurda uma interpretação nietzschiana de Heidegger como metafísico, se as bases antimetafísicas baseadas na genealogia naturalista de Nietzsche forem aceitas. Palavras-chave: Metafísica. Nietzsche. Vontade de poder. Genealogia. Heidegger. Dasein. Analítica existencial. Nietzsche and Heidegger, the two most influential philosophers of our time, maintained a clear position against traditional metaphysics as it appears in the history of European philosophy. However, Heidegger maintained the thesis that Nietzsche‟s philosophy of will to power was, after all, a metaphysics. On the other hand, one might infer, through a rather natural conjecture, that Nietzsche would also reject Heidegger‟s fundamental ontology as being pure metaphysics. So we have a confrontation between two anti- metaphysical philosophers accusing each other of being metaphysicians. One way out from this curious impasse is to accept that both thinkers have different conceptions of metaphysics and that, if strictly assumed, each one of these conceptions must consider the other as metaphysical. It follows that the Heidegger‟s interpretation of Nietzsche is not unfair or pointless, as it is frequently claimed, but strictly correct if one accepts existential ontology‟s anti-metaphysical grounds. Similarly, Nietzsche‟s interpretation of Heidegger as a metaphysician would also not be unfair or senseless if one accepts the anti-metaphysical basis of Nietzsche‟s naturalistic genealogy. Key words: Metaphysics. Nietzsche. Will to power. Genealogy. Heidegger. Dasein. Existential analysis. Introdução

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  • Controvrsia - Vol. 8, n 3: 12-32 (set-dez 2012) ISSN 1808-5253

    Texto aprovado em 15/08/2012. 12

    Controvrsia vol. 8, n 3 (set-dez 2012) ISSN 1808-5253

    O confronto radical entre Nietzsche e Heidegger em

    relao superao da metafsica

    The radical confrontation between Nietzsche and Heidegger on the overcoming of metaphysics

    Olyver Tavares

    Universidade de Braslia- UnB

    [email protected]

    Resumo Abstract Nietzsche e Heidegger, os dois mais influentes

    filsofos da atualidade, sustentaram uma

    postura claramente contrria metafsica

    tradicional como aparece na histria da filosofia

    europeia. Entretanto, Heidegger manteve a tese

    de que a filosofia da vontade de poder de

    Nietzsche foi, apesar de tudo, ainda uma

    filosofia metafsica. Por outro lado, poder-se-ia

    inferir, atravs de uma conjectura bastante

    natural, que Nietzsche rejeitaria tambm como

    metafsica a ontologia fundamental de

    Heidegger. Fica, pois, um enfrentamento entre

    dois antimetafsicos que se acusam mutuamente

    de metafsicos. Uma sada para este curioso

    impasse dar-se conta de que ambos os

    pensadores concebem a metafsica de maneira

    diferente e que, seguindo risca uma dessas

    concepes, deve-se forosamente considerar

    como metafsica a postura do outro. Disto

    decorre que a interpretao heideggeriana de

    Nietzsche no injusta ou sem cabimento,

    como s vezes se sustentou, mas rigorosamente

    correta se aceitas as bases antimetafsicas

    baseadas na analtica ek-sistencial. De forma

    semelhante, tampouco seria injusta ou absurda

    uma interpretao nietzschiana de Heidegger

    como metafsico, se as bases antimetafsicas

    baseadas na genealogia naturalista de Nietzsche

    forem aceitas. Palavras-chave: Metafsica. Nietzsche. Vontade de poder. Genealogia. Heidegger. Dasein. Analtica

    existencial.

    Nietzsche and Heidegger, the two most influential

    philosophers of our time, maintained a clear

    position against traditional metaphysics as it

    appears in the history of European philosophy.

    However, Heidegger maintained the thesis that

    Nietzsches philosophy of will to power was, after all, a metaphysics. On the other hand, one might

    infer, through a rather natural conjecture, that

    Nietzsche would also reject Heideggers fundamental ontology as being pure metaphysics.

    So we have a confrontation between two anti-

    metaphysical philosophers accusing each other of

    being metaphysicians. One way out from this

    curious impasse is to accept that both thinkers

    have different conceptions of metaphysics and that,

    if strictly assumed, each one of these conceptions

    must consider the other as metaphysical. It follows

    that the Heideggers interpretation of Nietzsche is not unfair or pointless, as it is frequently claimed,

    but strictly correct if one accepts existential

    ontologys anti-metaphysical grounds. Similarly, Nietzsches interpretation of Heidegger as a metaphysician would also not be unfair or senseless

    if one accepts the anti-metaphysical basis of

    Nietzsches naturalistic genealogy.

    Key words: Metaphysics. Nietzsche. Will to power. Genealogy. Heidegger. Dasein. Existential analysis.

    Introduo

  • Olyver Tavares

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    Controvrsia Vol. 8, n3: 12-32 (set-dez 2012) ISSN 1808-5253

    Nietzsche e Heidegger so dois pensadores europeus que desenvolveram crticas

    metafsica. Ambos possuem concepes de homem que rompem com as compreenses

    metafsicas da tradio, herdadas da cultura greco-romana posterior a Scrates. Noes basilares

    da metafsica como Deus, sujeito, causalidade e racionalidade so rejeitadas por ambos.

    Entretanto, os dois no concebem a metafsica da mesma maneira. Para Nietzsche, metafsica

    aponta para um alm-mundo que se ope ao homem natural, desvalorizando seus impulsos

    vitais, seu corpo, as mltiplas foras que o compem, e gerando valores antivitais. A vida

    assumida como valor principal e tambm como critrio para estabelecer o que valioso ou no.

    Para Heidegger, a metafsica fundamentalmente a histria do esquecimento do ser, na qual

    algum ente (a natureza, Deus, a razo, etc.) foi considerado como sendo o ser em sua totalidade,

    enquanto o ser mesmo ignorado.

    Pode-se negar a metafsica tanto por meio de pressupostos naturais como por meio de

    pressupostos existenciais; todavia, apesar de possurem um objeto aparentemente comum de

    crtica, um convvio harmonioso entre as duas formas de negao parece improvvel. Estas duas

    formas de negar a metafsica se atacam uma outra. Sob o ponto de vista da analtica existencial,

    o pensamento de Nietzsche assume os traos da metafsica, assim como possivelmente a

    pensamento heideggeriano tambm seria considerado por Nietzsche como uma forma de

    metafsica. O presente artigo visa expor como essas duas crticas metafsica acabam por se

    excluir mutuamente, por serem duas formas radicais de pensamento.

    1 A genealogia da vontade de poder e a analtica ontolgica-existencial

    como formas distintas de negao da metafsica

    So distintas as concepes de metafsica de Nietzsche e de Heidegger, porque tambm

    so diferentes os pressupostos basilares de seus pensamentos. Nietzsche critica a metafsica a

    partir da natureza e Heidegger a partir da ek-sistncia. Para ambos, a histria da filosofia

    ocidental est marcada pela metafsica de forma determinante.

    No caso de Nietzsche, a metafsica identificada como o fio condutor da histria ocidental,

    da qual a modernidade tributria. As verdades metafsicas se tornaram to reais desde

    Scrates que se passou a desconfiar do valor da natureza, a necessidade da alma se ops

    contingncia do corpo, tanto se almejou a glria prometida para o outro mundo que no se

    acreditou mais neste mundo. As promessas da modernidade so as mesmas promessas

    negadoras da vida de tempos passados, mas revestidas de novas vestes, pois trazem consigo a

    mesma caracterstica depreciativa da vida desde a antiguidade tendncia dominante na poca

    do niilismo europeu. O corpo encontra-se destinado ao mbito daquilo que deve ser desprezado,

    negado e superado. Plato e os devedores de seu pensamento j fundaram sobre o desprezo do

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    sensvel, do corpo, do terreno, uma forma dual de compreenso da realidade, que plantou razes

    profundas na histria do pensamento humano e na cosmoviso ocidental. Assim, a filosofia

    ocidental traz a marca da desvalorizao do corpo e supervalorizao da alma, da desvalorizao

    do mundo material e supervalorizao do mundo imaterial. A verdade s pode ser encontrada,

    em sua plenitude, nas formas perfeitas, incorpreas, imutveis e unas que povoam o mbito

    suprassensvel. Posto que tudo aquilo que possui matria cpia imperfeita das realidades

    perfeitas, temos que aquilo que corpreo no lograria acessar as realidades incorpreas,

    devendo-se, portanto, abandonar aquilo que corpreo e abraar aquela outra parte que

    compe o homem, a alma.

    Se, em Nietzsche, a histria da filosofia ocidental possui o carter de negao da vida,

    para Heidegger a tradio filosfica ocidental produziu o esquecimento do ser. Para este ltimo, a

    metafsica se caracteriza, numa concepo tradicional, pela investigao acerca do Ser como

    Suprafsico, daquilo que est para alm da physis, que subjaz a ela, a possibilita e sustm,

    portanto, de um fundamento de tipo substantivo, onde o ser aparece sempre de forma

    determinada. Todavia, este modo de estudo do ser promove o esquecimento do ser, pois comete

    o erro de buscar a compreenso do ser a partir dos entes, nivelando o ser aos entes

    simplesmente dados e, dessa forma, objetivando o ser. A ontologia tradicional se ocupa do estudo

    dos entes enquanto tais, busca a natureza das coisas, suas determinaes nticas, mas no logra

    alcanar a verdade do ser.

    1.1 A vontade de poder como crtica metafsica

    A vontade de poder ocupa lugar central no pensamento vitalista; Nietzsche se vale dela

    para derrubar a metafsica. Quando a vontade de poder aparece, em sua primeira formulao,

    nos escritos de Nietzsche, no captulo Do domnio de si de Assim Falava Zaratustra, sua

    identificao com a vida mesma est manifesta. Onde encontrei a vida, encontrei a vontade de

    potncia, e no h vontade seno na vida; mas essa vontade no querer viver; na verdade

    ela vontade de potncia (Nietzsche, 2010, p. 157-158)1. Esta vinculao entre vida e vontade

    de poder est inserida num contexto claramente denunciatrio. No captulo referido, Zaratustra

    reduz a vontade de verdade vontade de poder. E tu tambm, buscador do verdadeiro, tu no

    s mais que um dos caminhos, uma das pistas do meu querer; na verdade, minha vontade de

    potncia segue tambm as pegadas do teu querer de alcanar o verdadeiro (Nietzsche, 2010, p.

    158). A denncia de Zaratustra consiste em mostrar que tambm a busca da verdade est

    subordinada vontade de poder; no h mudana de mbito, pois no existe outro mbito onde

    1 No presente texto, dar-se- preferncia ao uso do termo vontade de poder, porm quando as citaes

    trouxerem o termo como vontade de potncia, no se far qualquer alterao, preservando a citao como se encontra no texto de origem.

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    Controvrsia Vol. 8, n3: 12-32 (set-dez 2012) ISSN 1808-5253

    a vontade possa se efetivar que no seja na esfera natural. Toda vontade de verdade, todo

    desejo de se apoderar dela, vontade de poder.

    Estando a vontade de poder fundada sobre as bases da fisiologia, identificam-se trs

    elementos dos quais a vida, impreterivelmente, no pode se subtrair; so eles: pluralidade, devir,

    sade. Podemos afirmar que: a) o corpo constitudo de uma multiplicidade de seres vivos; b) o

    corpo no atemporal, no h corpo fora do devir; c) o corpo deseja por excelncia a sade, a

    manuteno e expanso de seu poder efetivar-se. Se Nietzsche busca na fisiologia os elementos

    para fundamentar a vontade de poder, na fsica newtoniana ele encontra subsdios para elaborar

    uma mecnica da vontade, traando uma espcie de teoria das foras vitais, onde tudo que h

    se constitui de foras vitais conflitantes, que disputam entre si. H uma inter-relao entre todas

    as foras; o corpo e o mundo s existem como pluralidade de foras, que, impondo-se umas s

    outras, harmonizam-se hierarquicamente conforme se arranjam entre foras dominadoras e

    dominadas. Os organismos se estruturam sob o princpio da resistncia vital, onde os que

    exercem maior fora dominam. A essncia da vontade de poder consiste no processo da

    combinao de fora, defendendo-se contra o mais forte, abatendo-se sobre o mais fraco

    (Nietzsche, 2008a, p. 331).

    A alma humana, sempre superestimada pela metafsica, tida como a unidade essencial,

    perde importncia no pensamento nietzschiano medida que d lugar ao corpo e pluralidade.

    No pensamento vital de Nietzsche, o homem no uma alma luminosa em um corpo corruptvel,

    como foi concebido pela tradio; ele somente clulas, tecidos, rgos que disputam entre si,

    todos almas beligerantes, guiadas pelo mesmo impulso vontade de domnio, de subjugar, de

    sobrepor-se. O corpo humano [...] constitudo por numerosos seres vivos microscpicos que

    lutam entre si, uns vencendo e outros definhando e assim se mantm temporariamente

    (Marton, 2010b, p. 51). Esse processo orgnico que rege a relao entre os seres marca a

    reflexo naturalista nietzschiana.

    A luta um importante quesito da doutrina da vontade de poder. A luta tem carter geral:

    ocorre em todos os domnios da vida e que, sobretudo, envolve os vrios elementos que

    constituem cada um deles (Marton, 2010b, p. 69). A luta no uma luta por subsistncia diante

    da escassez de alimentos, no uma mera luta por autoconservao, mas uma luta por potncia.

    Enquanto Darwin trata da luta entre as espcies, Nietzsche trata da luta que perpassa desde o

    micro-organismo ao macro-organismo. Mesmo na abundncia a vontade de potncia se instala.

    Grande foi o equvoco de Darwin: tomou por causa o que no passa de consequncia. A

    autoconservao no impele luta, mas dela decorre (Marton, 2010b, p. 63). Segundo Marton,

    no se pode tomar a escassez como movente da luta; se assim o fosse, a vontade de poder

    estaria condicionada s condies de sobrevivncia, coisa que no se sustenta em Nietzsche.

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    A vontade de poder se configura como a disputa entre as vrias foras e em vrios nveis.

    Os quanta de fora se digladiam, estendem seus limites e reagem tentativa de expanso de

    outras foras, produzindo um contnuo movimento de ao e contrarreao em busca do domnio,

    isso independentemente das circunstncias propiciadas pelo meio (abundncia ou escassez de

    alimento), que, por sinal, mesmo sendo prdigas em satisfazer as necessidades dos organismos,

    no impedem a luta.

    A lgica metafsica da negao da multiplicidade a mesma tanto em Plato quanto em

    Descartes. Para a metafsica imperativo contrapor multiplicidade uma unidade, uma essncia,

    uma verdade. E o que temos com a noo de sujeito? No o triunfo dessa reduo aplicada ao

    homem? H em Descartes uma reduo da realidade unidade do sujeito. Mas no apenas isso;

    essa noo substncia pensante tambm a priori, portanto, independente do corpo. Toda a

    evidncia e clareza do cogito ergo sum, toda verdade que ele arroga para si se dissolvem no fluxo

    mltiplo do devir. Se abandonarmos essa noo a priori de sujeito (alma), decorre o declnio da

    noo de substncia, j que a relao de dependncia se estabelece do primeiro para o segundo e

    no o contrrio. O mesmo ocorre em relao ao mundo: a multiplicidade do mundo no pode ser

    reunida sob um nico aspecto, no h nada que rena a pluralidade numa totalidade.

    O todo do mundo o mundo orgnico, interligado por uma rede de mltiplos mundos,

    onde as verdades so forjadas em mbito particular e externalizadas. Cada mundo particular cria

    para si um conjunto de valores que agem e reagem uns com os outros, gerando um confronto de

    perspectivas. Esses mundos particulares no so mundos irreais, que carecem de algum

    fundamento que os rena, a fim de superar o relativismo de suas mltiplas perspectivas. Os

    mundos particulares no so aparncia, onde possamos buscar essncias para alm deles, mas

    so vidas diferentes, perspectivas diferentes que combatem entre si, impulsionadas pela vontade

    de poder. As perspectivas no so suprimveis.

    Wolfgang Mller-Lauter afirma que Nietzsche compreende mundo como uma pluralidade

    de perspectivas. O mundo s pode ser entendido como o conjunto de vrios mundos. Nietzsche,

    entretanto, emprega a expresso o mundo sempre de novo, no sentido de efetividade em seu

    conjunto (1997, p. 100). Se subtrairmos as perspectivas, no resta o mundo. Podemos falar de

    mundo apenas no contexto das variveis foras que cada perspectividade exerce sobre a outra;

    ou seja, a vontade de poder o nico vnculo entre os mundos particulares. Cada fora projeta

    sobre si, com efeito, um mundo prprio. Mas esse respectivamente prprio no conduz ao

    encapsulamento em face dos mundos das outras foras. Toda fora (isto , toda vontade de

    poder) est relacionada s outras foras em oposio ou acomodao (Mller-Lauter, 1997, p.

    101). Essa prpria perspectiva no pode ser visto de maneira isolada, como se o mundo fosse a

    simples soma de todos os mundos. As perspectivas so foras e no mnadas; desejam se

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    expandir, invadir, derrotar. A conexo da rede de perspectivas no se d pelo mundo, mas pela

    vontade.

    Quando falamos que um corpo representa um quantum de fora, no se pode ignorar a

    multiplicidade de quanta que esto reunidos nesse quantum corporal e com quantos outros

    corpos (quanta) externos a ele ter de reagir.

    Aquilo que Nietzsche denomina uma vontade de poder , de fato, jogo de oposio

    (Gegenspiel) e concerto (Zusammenspiel) de muitas vontades de poder, de todo modo organizadas em unidade. E aquela vontade est, por seu lado, inserida na contraposio e concerto de uma vontade de poder mais abrangente. Desse modo, um homem, por exemplo, forma um quantum de poder que organiza em si inmeros quanta de poder (Mller-Lauter, 1997, p. 96).

    O desejo de reduzir o mltiplo ao uno no passa de mais um sonho metafsico, que

    representa uma vontade entre tantas outras. A unidade d lugar ao mltiplo, a esttica d lugar

    ao devir, e a alma d lugar ao corpo.

    Por ltimo, verifica-se uma ruptura entre a viso natural de mundo e a relao sujeito-

    objeto, causa e efeito presente na tradio metafsica. As foras que lutam no se assentam

    sobre algo do qual se impulsionam, mas apenas se efetivam. No se podem observar as causas,

    mas apenas os efeitos. O mecanicismo e, consequentemente, o atomismo tambm descreditado

    por Nietzsche. Segundo Marton, esta concepo traduz a opo que o filsofo faz pela energtica.

    Posicionando-se contra o mecanicismo, ele substitui a hiptese da matria pela fora (Marton,

    2010b, p. 76). Em Fragmentos do Esplio primavera de 1884 a outono de 1885, l-se o

    seguinte:

    A crena em causa e efeito, e o rigor nisso o que distintivo para as naturezas cientficas, que esto a fim de formular o mundo dos humanos, fixar o clculo. Mas

    a viso de mundo mecanicista-atomstica quer nmeros. Ela ainda no deu o seu ltimo passo: o espao como mquina, o espao finito. Mas com isso movimento no possvel: Boscovich a viso dinmica de mundo (Nietzsche, 2008b, p. 218-219).

    No se pode confundir um quantum de fora com uma causa de fora, e nem mesmo

    chegar a um quantum possvel. intrincada a relao de foras da vontade de poder; o nmero

    de variveis incalculvel, medida que o vir-a-ser se encarrega de no permitir que as foras

    que pulsam na natureza se estagnem. As foras interferem umas nas outras de modo to

    dinmico e sinrgico que no se podem entend-las a partir da causalidade. A cincia busca as

    causas, para oferecer uma explicao do mundo, para calcul-lo, distingue o sujeito do objeto,

    como se fosse possvel isol-los. Causalidade mais uma pretenso metafsica de se encontrar a

    verdade, de subjugar a natureza, ainda mais quando se fala em causa primeira.

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    Nietzsche vai desmontando a metafsica, questionando seus fundamentos mediante a

    vontade de poder, mostrando que verdades pretensamente absolutas so apenas crenas e que o

    conhecimento sempre perspectivo. A radicalidade de seu naturalismo vai dissolvendo noes

    basilares da metafsica; tudo aquilo que no fundado na vida e na condio corporal

    descartado como elemento antivital.

    2 A analtica ontolgico-existencial como superao da metafsica

    A analtica ontolgico-existencial desenvolvida por Heidegger com a finalidade de expor a

    relao fundamental entre o ente e o ser, sem que o ser seja compreendido do mesmo modo que

    os entes, como ocorreu na tradio filosfica, considerando seu carter paradoxal e

    indeterminado, engendrando o que o filsofo denomina de ontologia fundamental.

    Heidegger procurou mostrar como, no modo de ser do ente humano, as determinaes

    advindas da metafsica se desfazem. Se para ele a tradio filosfica promoveu o esquecimento

    do ser ao compreend-lo exclusivamente ao nvel dos entes, era preciso, por meio da analtica

    existencial, resgatar o sentido originrio da questo do ser, produzindo uma reflexo existencial

    que conduza a passagem do ente para o ser, o horizonte transcendental para a determinao do

    ser como o ser (Pggeler, 2001, p. 50), indicando sempre a diferena entre ser e ente, passando

    pelo registro da diferena ontolgica.

    No horizonte do tempo, o ente humano est desde sempre projetado no ser e para o ser,

    tal como mostrado na anlise da constituio ontolgico-existencial de Dasein2. Existncia,

    dentro da ontologia de Heidegger, refere-se relao entre o homem e o ser. Para que um ente

    possa estar presente e mesmo para que possa haver um ser, a manifestao do ser, necessrio

    o estar do homem j no a, na clareira, na claridade do ser, modo este como o homem existe.

    No pode haver, pois, ser do ente sem homem (Heidegger, 2009, p. 214). Heidegger concebe o

    homem como ek-istncia. Ek-sistir3, para Heidegger, significa projetar-se sempre para fora, ou

    seja, Dasein no seno como movimento de lanamento de si mesmo em direo ao seu ser

    como projeto, onde seu prprio ser est sempre em jogo. Dasein possui uma estrutura radicada

    na relao originria com o ser.

    2 Nesse trabalho optou-se por no traduzir o termo Dasein por termos correlatos, como o encontrado na

    traduo brasileira de Ser e Tempo (pre-sena), assim como no utilizar artigos que o precedam, isso para tentar preservar a indeterminao fundamental que o conceito possui dentro da filosofia heideggeriana. No entanto, nas citaes, sero mantidos os termos (presena, ser-a) assim como so encontrados nas respectivas tradues para a lngua portuguesa, sejam elas das obras de Heidegger ou de outros autores. 3 Algumas vezes se dar preferncia a grafar existncia e seus derivados com ek, isso para dar nfase existncia como concebida por Heidegger, indicando um movimento, um passo de si para fora de si em direo ao seu ser.

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    Controvrsia Vol. 8, n3: 12-32 (set-dez 2012) ISSN 1808-5253

    Chamamos existncia ao prprio ser com o qual a presena pode relacionar-se dessa ou daquela maneira e com o qual ela sempre se relaciona de alguma maneira.

    Como a determinao essencial desse ente no pode ser efetuada mediante a indicao de um contedo quididativo, j que sua essncia reside, ao contrrio, em

    sempre ter de possuir o prprio ser como seu, escolheu-se o termo presena para design-lo enquanto pura expresso do ser (Heidegger, 2006b, p. 48).

    Isso implica afirmar que Dasein tem que fazer-se, ou melhor, assumir seu ser no ek-sistir,

    na facticidade4 de seu lanamento. Portanto, Dasein no possui qualquer tipo de determinao

    anterior ao seu lanamento. Na existncia, Dasein constitui seu mundo, s na ek-sistncia os

    entes podem se presentificar. Mundo aquilo que se abre compreenso a partir da ek-sistncia.

    Conceber a existncia como fundamento ontolgico significa dissolver o carter necessrio e

    objetivo das essncias na indeterminidade originria do ser de Dasein.

    Com exceo do homem, todos os outros seres possuem sua essncia definida, so seres

    objetos, ou seja, eles so, mas no ek-sistem. Relacionar-se com o ser, ek-sistir, privilgio

    exclusivo do homem. Desse modo, Dasein o ente, que se constitui como a abertura onde o ser

    se manifesta. A manifestao do ser no ente privilegiado que o homem o diferencia, portanto,

    de todo no ek-sistente, j que somente Dasein constri seu ser medida que ek-siste.

    A partir do lanamento ek-sistencial de Dasein, a anlise ontolgica, pouco a pouco,

    apresenta os desdobramentos estruturais decorrentes da facticidade, denominando o todo

    constitutivo de Dasein de existencialidade e cada elemento que a compe de existencial,

    existenciais porque eles se determinam a partir da existencialidade (Heidegger, 2006b, p. 88).

    Dentre os vrios existenciais expostos por Heidegger em Ser e Tempo, ser-no-mundo

    apresentado logo no incio da analtica existencial, sendo seguido pelo ser-em e ser-com, que so

    desdobramentos do modo de ser mundano de Dasein.

    O mundo, no qual a existncia , no entendido por Heidegger enquanto o todo do ente, mas enquanto o Como, no qual sempre o ente no todo se consegue demonstrar. No sentido dessa noo do mundo, a existncia em o mundo; compete-lhe a mundaneidade. O mundo, no qual a existncia efetiva, , porm, um mundo determinado (Pggeler, 2001, p. 56).

    Ser-lanado e ter um mundo se identificam, pois s na situao de lanamento a

    existncia se constitui como mundo. Estar-lanado (Geworfenheit) se fazer histria, ser-no-

    mundo. Dasein sempre se posiciona no mundo a partir de uma compreenso de seu mundo. Os

    diversos modos de ser que Dasein assume na tarefa de se fazer a si mesmo, de dar significado

    sua existncia, ocorrem por meio da compreenso, que, para Heidegger, ocorre a partir de uma

    4 A facticidade refere-se ao modo prprio de ser da existncia, ao fato de seu lanamento, que acontece sem participao de sua vontade, onde Dasein tem que fazer-se. A facticidade difere Dasein da ocorrncia factual de um ente simplesmente dado. O conceito de facticidade abriga em si o ser-no-mundo de um ente intramundano, de maneira que esse ente possa ser compreendido como algo que, em seu destino, est ligado ao dos entes que lhe vm ao encontro dentro de seu prprio mundo (Heidegger, 2006b, p. 102).

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    pr-compreenso originria, na qual Dasein se predispe ao mundo. Essa compreenso

    constituinte da existncia se funda sobre as vrias significaes nascidas das diversas relaes

    que Dasein pode estabelecer com a totalidade dos entes no mundo. Estar-no-mundo sempre j

    ter uma compreenso de mundo.

    A presena no apenas um ente que ocorre entre outros entes. Ao contrrio ela

    se distingue onticamente pelo privilgio de, em seu ser, isto , sendo, estar em jogo seu prprio ser. Mas tambm pertence a essa constituio de ser da presena a caracterstica de, em seu ser, isto , sendo, estabelecer uma relao de ser com seu prprio ser. Isso significa, explicitamente e de alguma maneira, que a presena se compreende em seu ser, isto , sendo. prprio desse ente que seu ser lhe abra e manifeste com e por meio de seu prprio ser, isto , sendo. A compreenso de

    ser em si mesma uma determinao de ser da presena. O privilgio ntico que distingue a presena est em ela ser ontolgica (Heidegger, 2006b, p. 48).

    Independentemente de qualquer compreenso ou interpretao do que Dasein venha a

    assumir na existncia, ele sempre se encontrar incondicionalmente embevecido no mundo de

    seu lanamento e, portanto, numa pr-compreenso de seu prprio ser em relao ao mundo.

    Esse mundo existencial que a situao de lanamento de Dasein lhe confere revela a dimenso do

    ser-em. Dasein ser-no-mundo, nele est lanado, como ser-em; fora do mundo no h Dasein.

    Portanto, adequado compreender que Dasein mundo, mas no est no mundo como os

    outros entes; na verdade, os entes subsistentes no tm mundo. Quando Heidegger nos aponta o

    ser-em como um dos existenciais implicados no ser-no-mundo, ele no coloca o homem num

    local, como se fosse mais um objeto dentro de uma caixa, mas indica a conexo existencial entre

    Dasein e mundo, o ser que eu sou em-um-mundo. O ser-em , pois, a expresso formal e

    existencial do ser da presena que possui a constituio essencial de ser-no-mundo (Heidegger,

    2006b, p. 100).

    A compreenso do existencial ser-em leva reflexo do ser ser-junto ao mundo. O ser-

    junto-a esclarecer-nos- o ser-em e sua espacialidade. O ser-junto-a aponta a familiaridade de

    Dasein com o mundo, onde Dasein se integra naturalmente ao mundo, assumindo-o como seu

    prprio modo de ser; assim lida familiarmente na ocupao com os entes intramundanos, na

    manualidade. Os entes subsistentes so simplesmente dados, por mais prximos que se

    coloquem uns dos outros nunca se tocam, pois, por no existirem, no supem o mundo. A

    extenso de Dasein se constitui como espacialidade.

    Dasein tambm -com (mit-Sein), co-existe com os outros entes, relaciona-se com eles,

    compartilha o mesmo existencial mundo. O mundo da presena mundo compartilhado. O ser-

    em ser-com os outros. O ser-em-si intramundano desses outros co-presena (Heidegger,

    2006b, p. 175). Dasein no isoladamente, como um eu solipsista, hermeticamente isolado

    dentro de si mesmo, mas o ser de Dasein se engendra como abertura para o outro, na

    cumplicidade do co-estar, que impulsiona relao com o mundo circundante. Dasein, enquanto

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    ser-com, iguala-se existncia de tantos outros, que compartilham do mesmo mundo,

    convivendo e co-existindo na mesma condio de existencialidade e de co-habitao do mundo.

    Heidegger esclarece que Dasein no um sujeito. No h mais pergunta pela

    subjetividade. A transcendncia5 no a estrutura da subjetividade, mas sim sua eliminao

    (Heidegger, 2009, p. 230). Dasein no se define como interioridade em contraposio a uma

    exterioridade, ao modo da relao sujeito-objeto, no possui uma conscincia, um eu adquirido

    exclusivamente por meio da razo, mas constitui-se como um ser-para, numa dinmica de co-

    pertena entre Dasein e mundo, onde as possibilidades existenciais acontecem nessa relao.

    No seu cotidiano, Dasein pode assumir seu ser de forma prpria ou imprpria, pode se

    afastar de sua possibilidade mais prpria, atirando-se numa compreenso, onde seu ser se

    encontra nivelado aos entes. Quando isso acontece em relao aos outros existentes, Dasein

    encontra-se sob a ditadura do a gente, na publicidade, de modo impessoal. Todo mundo

    outro e ningum si mesmo. O impessoal, que responde pergunta quem da presena cotidiana,

    ningum, a quem a presena j se entregou na convivncia de um com o outro (Heidegger,

    2006b, p. 185). Assim, no cuidado cotidiano, Dasein pode afastar-se de si mesmo, numa relao

    superficial com seu prprio ser, onde o encontro com a verdade do ser sempre postergada.

    As estruturas existenciais intrnsecas a Dasein diferenciam-se tambm das categorias

    aristotlicas substncia, qualidade, quantidade...: estas se aplicam a todos os entes, mas no a

    Dasein, pois no possvel predicar Dasein como algo determinado. A relao sujeito-predicado,

    onde o predicado reduz o homem a uma de suas facetas no se adequa ao pensamento

    heideggeriano, j que seu foco se volta em direo relao de co-pertena entre Dasein e seu

    ser. Nesse sentido, ser no indica um simples copulativo, que liga sujeito e predicado.

    Todos os modos de ser de Dasein, os existenciais, so reunidos na cura, que indica a lida

    cotidiana de Dasein com seu ser de forma mais ampla; ou seja, cura indica um ente sempre

    lanado em direo ao seu ser. Na cura, Dasein escolhe ser deste ou daquele modo, de forma que

    cura indica tambm o mbito mais fundamental aberto pelo ser ao ente humano.

    No entanto, na metafsica, o ser perde seu carter de fundamento ontolgico. A questo

    sobre o ser no alcana a verdade do ser, mas a encobre. Pelo fato de a metafsica interrogar o

    ente enquanto ente, ela permanece junto ao ente e no se volta para o ser enquanto ser

    (Heidegger, 2008, p. 378). Desta maneira, a metafsica no pensa o ser, seno de forma a

    objetiv-lo.

    As estruturas existenciais de Dasein, por sua vez, apontam sempre para um mbito

    originrio, onde a relao do ser com o homem abre-lhe um espao de infinitas possibilidades de

    5 Transcendncia nome para o ser enquanto transcendens; como vista dos entes em direo a ser [erschaut auf es zu] pre-sena do pre-sente. A transcendncia como ser em si diferena dos entes! Transcendncia no propriedade do sujeito em relao com o objeto como mundo, mas sim ser como relao com o ser, isto , do Dasein em sua relao com o ser (Heidegger, 2009, p. 230-231).

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    modos de ser. O ser para Heidegger no se deixa acessar objetivamente, fora de sua articulao

    com a existncia. Tentar determina o ser j no obt-lo. O ser, para ele, uma estrutura

    bivalente, ambgua, escorregadia, que se oculta mesmo quando se revela, que se desvela

    velando-se. A estrutura prvia, que fundamento, no se deixa objetivar como acontece com os

    entes em geral.

    [...] o ser desvelamento e velamento porque ele acontece como verdade indisponvel, como histria, ns nunca podemos objetiv-lo sem dividi-lo, sem nos voltarmos para um de seus lados. O ser sempre se apresenta na ambivalncia de velamento e desvelamento (Stein, 2002, p. 150-151).

    Heidegger, diante da objetivao do ser que a metafsica tradicional promoveu, prope

    com seu pensamento o reconhecimento de que a metafsica tem a caracterstica de um

    esquecimento do ser. Este esquecimento do ser manifesta-se no fato de que, para a metafsica, o

    ser uma noo bvia que no tem necessidade de ulteriores explicaes (Vattimo, 1996, p. 86).

    Essa obviedade que envolve o ser presente na metafsica o que Heidegger questiona, o

    equvoco que denuncia. A constatao do esquecimento do ser leva Heidegger a reformular a

    questo do ser, radicalizando a busca de seu sentido.

    A metafsica, enquanto modo de fazer filosofia, determina o mundo, tornando-o um

    conjunto de objetos postos, onde aquilo que so aparece clara e objetivamente. Assim, ao

    mesmo tempo em que se buscava pensar os fundamentos que possibilitavam que o mundo

    emergisse, a tradio acabou por ignorar o plano ontolgico fundamental, onde Heidegger

    desenvolve seu pensamento. Da-sein a tentativa heideggeriana de superar esse esfacelamento,

    que a metafsica criou no pensamento ocidental, quando interpreta o mundo fora da relao entre

    o ser e o homem, j que s nessa relao o mundo se engendra como mundo e no como espao

    onde se encontram mltiplos objetos.

    Heidegger no pretende produzir apenas uma filosofia que se oponha metafsica, como

    se seu pensamento fosse o contrrio da metafsica, ainda compartilhando com ela o mesmo

    espao. Pensar a verdade do ser superao da metafsica medida que se pensa o ser em um

    novo solo, mais fundamental e originrio. No pensamento da verdade do ser, a metafsica

    superada. Torna-se caduca a pretenso da metafsica de controlar a referncia decisiva ao ser e

    de determinar adequadamente toda a relao com o ente enquanto tal (Heidegger, 2008, p.

    379). A superao da metafsica no se d, ento, pela simples contraposio ao modo de pensar

    da metafsica, o que poderia manter Heidegger preso s estruturas do pensamento metafsico, no

    esquecimento do ser. Por sua vez, a filosofia de Heidegger pretende pensar a partir de outra

    provenincia, de onde a metafsica no possa pensar o ser apenas como objeto.

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    3 Nietzsche e Heidegger: filsofos antimetafsicos que se consideram

    mutuamente metafsicos

    Apesar de ambos os filsofos aqui em pauta se posicionarem contra a metafsica, cada um

    deles no considera o pensamento do outro suficientemente radical a ponto de superar a

    metafsica. Cada um pode produzir crticas ao outro desde sua perspectiva terica. A partir da

    ontologia naturalista da vontade de poder, Nietzsche consideraria a anlise existencial no

    radical, assim como, a partir da ontologia existencial, Heidegger acusa Nietzsche de se manter,

    ainda, em mbito metafsico. Primeiramente, nessa seo, tratar-se- de apresentar a crtica de

    Heidegger contra Nietzsche, onde Nietzsche figura como ltimo filsofo metafsico, e,

    posteriormente, uma possvel crtica de Nietzsche contra Heidegger, na qual se tentar expor a

    recusa nietzschiana ao pensamento de Heidegger.

    Para Heidegger, Nietzsche o ltimo fruto da metafsica, o filsofo que, apesar de todos

    os esforos para escapar do pensamento da tradio metafsica ocidental, ainda dele faz parte,

    o filsofo que produziu a metafsica mais apurada ao tentar ultrapass-la, dando-lhe um

    acabamento. a partir da ontologia fundamental que a vontade de poder interpretada como

    metafsica. Heidegger interpretou Nietzsche ao seu modo prprio de pensar (Nunes, 2000, p.

    17). A questo do ser , ento, o crivo imposto por Heidegger a Nietzsche.

    Segundo Heidegger, a vontade de poder da maneira como foi pensada por Nietzsche se

    constitui como o predicado fundamental do ser, mas ainda se furta questo sobre o que o ser.

    A vontade de poder indica o modo de ser enquanto totalidade, ou seja, a filosofia da vida diz o

    ser do ente, sem acessar o ser enquanto ser.

    Heidegger busca mostrar, em sua interpretao, como a vontade de poder ainda se

    encontra dentro do mbito metafsico. A vontade de poder torna-se, ento, alvo de Heidegger no

    texto de 1961 intitulado Nietzsche. Nele o filsofo da Floresta Negra trata dessa interpretao,

    onde a vontade de poder incorre no equvoco de, mais uma vez, obnubilar o ser sob o vu do

    ente. Nesse sentido, Heidegger vai denominar a vontade de poder como metafsica da vontade,

    tornando-a a determinao sob a qual o ser se oculta. Para Heidegger, a vontade de poder

    impede, mais uma vez, que o ser seja pensado enquanto ser, dando uma nova face velha

    postura de tomar como fundamento o ente e no o ser.

    A determinao metafsica do ser como vontade de poder permanece impensada em seu contedo decisivo e se torna uma presa da incompreenso, enquanto o ser s posto como poder ou como vontade e a vontade de poder explicada no sentido de uma vontade enquanto poder ou poder enquanto vontade. Pensar o ser, a entidade do ente, enquanto vontade de poder significa: conceber o ser como liberdade do poder em sua essncia, de tal modo que o poder, vigorando

    incondicionalmente, estabelece o ente como objetivamente efetivo no primado

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    exclusivo contra o ser e faz com que o ser caia em esquecimento (Heidegger, 2007, p. 3).

    Se o modo de ser que rege a vida assumido como vontade de poder, ento a ontologia

    vitalista recebe da vontade de poder sua determinao, sem que seja pensado o mbito mais

    radical onde a prpria vontade de poder se torna possvel. Neste sentido, a vontade de poder

    entendida como o modo de ser do ente em sua totalidade, como predicado fundamental do ente

    enquanto tal. Afirmar que a vontade de poder se configura como o carter do ente enquanto tal ,

    de antemo, fechar as possibilidades de interpretao do ser em um nico sentido, de modo que

    o ente no se apresenta mais, a cada vez, como singular, mas como vontade de poder. Este o

    modo como opera a metafsica.

    Heidegger destaca que a vontade de poder um princpio metafsico de instaurao de

    valores, que, desvirtuada como vontade de verdade, produziu um tipo especfico de valores,

    aqueles supra-humanos e, com eles, um tipo de moral. Segundo Heidegger, a moral para

    Nietzsche a produo de valores que se estabelece incondicionadamente, acima do homem, do

    mesmo modo que a metafsica. O homem bom aquele que se tornou submisso aos valores

    metafsicos, que, resignado, transformou a vontade de poder numa verdade que est alm da

    natureza. Assim, a histria da moral est atrelada histria da metafsica ocidental, que a

    histria da desvalorizao dos valores superiores, que Nietzsche entende como niilismo. Sendo

    instauradora de valores, a vontade de poder deve provocar a transvalorao dos valores,

    tornando novamente valiosa a terra, o corpo, a vida. Heidegger v todo esse processo de

    passagem da desvalorizao dos valores transvalorao dos mesmos como fundada numa

    metafsica nietzschiana que oculta o ser.

    A luta pelo domnio da Terra e o desdobramento da metafsica que a suporta

    trazem consumao uma era da Terra e da humanidade histrica; pois realizam-se aqui possibilidades extremas de dominao do mundo e da tentativa empreendida pelo homem de decidir puramente a partir de si mesmo sobre a sua essncia (Heidegger, 2007, p. 198).

    A lgica que determina o modo como o ente compreendido em sua totalidade a partir da

    vontade de poder a lgica da mantena e expanso das foras vitais, apregoada por Nietzsche.

    A mesma lgica a que impulsiona a criao de novos valores. Na verdade, a vontade de poder

    em si mesma o valor que fundamenta a criao de valores. A substituio de um modo de

    produo de valores por outro no garante a sada do mbito de operao da metafsica. Se o

    pensamento de Nietzsche ainda valorativo, ele ainda metafsico e moral. A produo de novos

    valores atende a uma determinao imperativa, a de conservao e elevao da vontade de

    poder.

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    Alm da determinao que o ente, no em particular, mas em sua totalidade, recebe da

    vontade de poder, o pensamento de Nietzsche permanece metafsico pelo prprio modo como se

    contrape metafsica. Nietzsche espera inverter os valores da tradio, com o intuito de que

    essa inverso crie por si mesma novos valores, a valorizao da Terra em vez do Cu, a

    valorizao do corpo em vez da alma e assim sucessivamente, sempre cumprindo a exigncia de

    alimentao e desenvolvimento da vontade de poder.

    Nietzsche parece, pois, posicionar seu pensamento no extremo oposto ao da metafsica e

    da moral. como antimetafsico que o pensar de Nietzsche se configura. No entanto, o

    pensamento que se estabelece em contraposio a outro, que o afronta, ainda pressupe que h

    algo melhor a ser alcanado, ainda valora ser antimetafsico como melhor que ser metafsico.

    Para Heidegger, esse modo de pensar se encontra preso a uma lgica metafsica.

    Nietzsche entende sua prpria filosofia como contraposio metafsica [...]. Como uma mera contraposio, contudo, permanece necessariamente preso, como todo anti-, na essncia do que est desafiando. Uma vez que tudo que faz virar a metafsica de cabea para baixo, o movimento de Nietzsche contra a metafsica

    permanece nela envolvida e no tem sada; na verdade, est envolvido nisto de tal modo que sua essncia nela est encerrada e, como metafsica, sempre incapaz de pensar sua prpria essncia (Heidegger, 2002, p. 162; traduo nossa do ingls).

    Para Heidegger, Nietzsche permanece to arrolado na metafsica, tentando combat-la,

    como todos os outros filsofos da tradio que nela transitavam de forma confortvel; cada

    marretada de Nietzsche contra a metafsica exerce uma fora contrria proporcionalmente igual,

    que, de algum modo, a fortalece, como algum que no pode se esquecer que deve se esquecer.

    Em suma, a vontade de poder assume o carter de uma determinao insupervel do homem, no

    sentido da criao de novos valores.

    Se Heidegger, a partir da analtica existencial, concebe Nietzsche como um filsofo

    metafsico, da mesma forma, Heidegger no escaparia a uma possvel crtica que tomasse como

    pressuposto o pensamento de Nietzsche. Assim, desde o ponto de vista da vontade de poder, por

    causa do valor central e irrefutvel da natureza, a filosofia existencial de Heidegger supostamente

    no se manteria inclume crtica de cunho vitalista. A vontade de poder se estabelece como

    uma espcie de imperativo vital, que inviabiliza a estruturao da existncia como concebida

    pela analtica existencial.

    De incio, preciso compreender que, no pensamento heideggeriano, a vida concebida

    como um ente que s ganha sentido na existncia. Para ele a vida um modo de ser, isto , na

    abertura que o ser abre a Dasein que a vida se torna uma possibilidade. Dasein transcende a

    vida como transcende os demais entes; na compreenso do ser que a vida se manifesta. De

    modo diferente dos demais animais, o homem, por causa da prerrogativa do ser, tem sua vida

    transcendida na compreenso de seu lanamento e, por isso, pode questionar seu ser e o prprio

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    fato de estar vivo. A transcendncia em Heidegger deve ser entendida como uma transcendncia

    imanente, pois o ser est intimamente ligado ao ente; todavia, esse ente sempre j

    transcendido na ontologia fundamental, transcendido em direo ao ser.

    A vida um modo prprio de ser mas que, em sua essncia, s se torna acessvel dentro da presena. A ontologia da vida se exerce seguindo o caminho de uma interpretao privativa; ela determina o que deve ser, de modo que uma coisa possa ser apenas vida. A vida no nem coisa simplesmente dada nem presena. A presena, por sua vez, no poder ser determinada ontologicamente, tomando-a como vida (indeterminada do ponto de vista ontolgico) qual ainda se acrescenta uma outra coisa (Heidegger, 2006b, p. 94).

    No como vida que Dasein se determina, mas como ek-sistncia; a filosofia da vida

    entendida por Heidegger como uma espcie de estreitamento das possibilidades de compreenso

    de Dasein, como uma determinao limitadora de sua liberdade originria. Assim, o homem

    parece posto em um patamar ontolgico, no qual a natureza no pode ser assumida como

    determinao primordial de seu ser, pois a existncia lhe abre um espao especfico, onde s h

    possibilidades e escolhas totalmente livres e indeterminadas.

    Isto acontece porque o fundamento postulado na filosofia vital de Nietzsche se encontra

    sempre transcendido dentro da analtica existencial. Para Heidegger, a existncia se constitui

    como um mbito mais fundamental que aquele natural, indicado por Nietzsche. A existncia

    concebida ontologicamente, sendo mais radical que o mbito das sensaes, da materialidade,

    das energias e da fisiologia. Essa caracterstica da analtica heideggeriana de postular a natureza

    transcendida pela existncia s pode ser entendida por Nietzsche como um tipo de metafsica,

    pois essa transcendncia, mesmo que imanente, negadora da vida. Se transcende a vida, se

    busca se estabelecer para alm do mbito natural, ento assume as caractersticas do

    pensamento tradicional, que perdurou no Ocidente desde Plato. Pode-se afirmar que, para

    Nietzsche, o pensamento de Heidegger assumiria a caracterstica daquele mesmo pensamento

    que sem xito buscou superar com a analtica existencial, j que, ao postular a existncia como

    transcendncia, ele acaba por retirar a primazia da natureza sobre qualquer fenmeno, tornando-

    se, portanto, um pensador metafsico.

    Segundo Nietzsche, existncia no coisa diversa de vida. Se a existncia for posta em

    um patamar distinto da vida, tem-se a criao de uma metafsica existencial que retira da vida

    sua primazia. De qualquer forma, fenmenos naturais muitas vezes foram explicados como

    fenmenos espirituais (e agora como existenciais) durante a histria da filosofia, mas nunca

    foram mais que interpretaes equivocadas, fices que a psicologia genealgica tratou de trazer

    luz, revelando-os como fenmenos puramente naturais. O pensamento de Heidegger seria mais

    uma modalidade de metafsica que precisaria ser dissipada luz da reflexo genealgica.

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    Na analtica existencial, o homem, como ente privilegiado com o qual o ser se relaciona,

    tornado de algum modo especial, porque s ele est posto de fora do mbito daquilo que

    simplesmente dado, s ele tem um mundo, que no o mundo simplesmente natural. O

    privilgio que torna o homem especial em Heidegger no encontra respaldo dentro da filosofia

    vitalista de Nietzsche.

    A leitura heideggeriana do homem como abertura para o ser e a diferena ontolgica entre

    o ntico e o ontolgico s so possveis para Nietzsche dentro da metafsica. Heidegger produz

    uma distino na qual o ser se encontra subtrado da vida puramente natural; a vida , num

    certo sentido, depreciada pela existncia. Para Nietzsche, vida e ser so uma s coisa, ser viver;

    isto indissocivel em seu pensamento. Se se pode falar em uma ontologia, esta assume todas

    as caractersticas da vontade de poder. O ser no temos nenhuma outra representao disso,

    a no ser viver. Como pode, portanto, algo ser morto? (Nietzsche, 2008a, p. 301). No h

    uma pr-compreenso de mundo que se d num espao mais originrio que o da prpria

    natureza, no h nada mais fundamental que a vontade de poder, nada pode preced-la, no

    pode haver um Dasein sem haver antes um corpo. E se h corpo, h vontade de poder e somente

    ela.

    Levando essa reflexo ao extremo, o discurso existencialista de Heidegger, na perspectiva

    de Nietzsche, se estabeleceria como uma espcie de discurso religioso, asctico mesmo que

    imanente , diria Nietzsche, pois se funda na possibilidade de que o homem se constitua como

    uma coisa outra que no pura vontade de poder, operando uma espcie de redeno niilista,

    medida que concede ao homem uma fuga de sua situao natural, a fim de que ele tenha que se

    compreender em sua relao com o nada constitutivo da existncia. A existncia torna-se, ento,

    uma forma de desvalorizao da natureza. Ora, no h existncia fora das clulas, rgos,

    organismos e corpos; o nico tipo de existncia que se pode constatar aquela que perpassa do

    menor vivente ao maior, que pode ser observada em todos os seres a vontade de poder.

    O discurso de Heidegger se aproximaria ainda mais de um tipo de discurso metafsico se

    forem levadas em considerao as estruturas da existncia de Dasein, os existenciais, tais como

    ser-no-mundo, ser-com, cura, decadncia, dbito e ser-para-a-morte, pois, diante da vontade de

    poder, todos eles assumem o carter de estruturas metafsicas, todas se caracterizam por

    transcender a existncia de cunho natural, forjando outro modo de existncia, com uma outra

    temporalidade, com um outro modo de estar em meio quilo que o cerca, um modo diverso

    daquele que vontade de poder. A razo pela qual preciso traar um existencial do tipo ser-no-

    mundo est exatamente na necessidade de diferenciar o estado natural das coisas do modo de

    ser da existncia. Existncia se torna apenas uma forma antivitalista de mascarar o fato de que o

    homem no mais que organismos, que se alimentam, digerem e lutam, na busca da mantena

    de sua vida, fazendo pensar que se podem encobrir com escolhas feitas no nada as

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    determinaes fundamentais da vida. Segundo Heidegger, a existncia se abre em infinitas

    possibilidades, num espao de escolhas livres, onde Dasein pode ser no mundo, mas no do

    modo como so os entes intramundanos. Heidegger desconsidera que a situao de lanamento

    sempre naturalmente determinada. O homem no um ser de possibilidades infinitas, que

    sempre pode escolher, como se a natureza no se impusesse de forma imperativa. A condio

    humana uma condio determinada pela vontade de poder. Corpo, alimentao, expanso, luta

    so determinaes biolgicas que no podem ser vencidas pela existncia.

    Nessa tentativa de transcender o patamar da natureza, por outro existencial, Heidegger

    afirma que Dasein ser-com, o que significa que Dasein est junto s coisas, mas sem ser

    como elas so. Por conseguinte, ser-com, supostamente, no est sob a gide da vontade de

    poder. Mas se, como Nietzsche afirma, somente como vontade de poder o homem no mundo, o

    nico modo de ser-com sendo luta, no h ser-com sem o exercer a vontade sobre a vontade

    do outro. Para Heidegger, ser-com pode assumir o modo de ser da luta, mas somente como

    possibilidade de ser, ou seja, ser-com pode ser ou no ser luta, pode escolher ser combate ou

    no; pelo contrrio, a vontade de poder sempre luta e conflito. At mesmo a vontade, para

    Heidegger, s pode ser compreendida como modo de ser de Dasein, ela s pode se estabelecer

    como modo privativo do ser de Dasein na cura. Tanto o querer como o desejar esto enraizados,

    com necessidade ontolgica, na presena enquanto cura (Heidegger, 2006b, p. 261); somente

    como cura a vontade pode ser e apenas como modo privativo do ser. A existncia abrange a vida

    enquanto se constitui como fundamento dela. Mas para Nietzsche a vida, como quista por

    Heidegger, encontra-se diluda na cura como possibilidade de modo de ser, aparece serva de uma

    estrutura existencial que se antepe vida. A vida no pode se constituir como cura, para

    Nietzsche, no se pode ignorar que os impulsos vitais, que buscam manter-se e expandir-se ao

    mximo, so mais fundamentais que a existncia.

    Outro aspecto do pensamento de Heidegger que vai de encontro filosofia vital diz

    respeito pretensa neutralidade valorativa da analtica existencial; o pensamento de Heidegger

    se tornaria demasiado assptico para Nietzsche. Na analtica existencial, Dasein, apesar de estar

    intimamente vinculado aos entes (ele mesmo um ente), parece um conceito alheio valorao,

    como se fosse possvel no valorar. Pode se denotar isto pela maneira descritiva e no valorativa

    com a qual Heidegger pretende conduzir a exposio de seu pensamento. Todavia, sempre foi

    uma caracterstica da metafsica pairar sobre a vontade humana, colocando-se para alm da

    valorao. Na descrio da decadncia, Heidegger enfatiza que o ser prprio ou imprprio de

    Dasein no possui nenhuma relao com valores. De fato, Heidegger pretende que seu

    pensamento seja desenvolvido de forma a no valorar, deseja que ele seja a-valorativo. No

    poucas vezes Heidegger reitera tal posio; por exemplo, afirma ao final da seo 34 de Ser e

    Tempo que no ser suprfluo observar que a interpretao tem um propsito puramente

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    ontolgico e se mantm muito distante de qualquer crtica moralizante da presena cotidiana

    (Heidegger, 2006b, p. 231). Ou ainda, ao tratar do tema animal pobre de mundo em relao ao

    homem como produtor de mundo, na obra Conceitos Fundamentais da Metafsica, como se l a

    seguir:

    Em todo caso, esta comparao entre animal e homem em meio caracterizao

    da pobreza de mundo e da formao de mundo no admite depreciao e valorao em termos de plenitude e ausncia de plenitude abstraindo-se completamente do fato de uma tal depreciao ser tambm fatidicamente inadequada e precipitada (Heidegger, 2006a, p. 225).

    Nietzsche, pelo contrrio, aceita os valores dentro de uma ontologia da vontade de poder.

    De fato, o homem sempre foi gerador de valores. Por isso chama-se homem, o que avalia

    (Nietzsche, 2010, p. 87). Por ser vontade de poder, no possvel ao homem ser a-valorativo; o

    homem um animal que prefere, que experimenta o prazer e o desprazer, que subjuga e

    subjugado, que deprecia ou aprecia a vida; pode ele produzir moral ou transvalorizar valores,

    mas nunca no valorizar. Traar valores para alm do bem e do mal, sim; mas ser imparcial

    diante do mundo, no. Essa vontade da analtica existencial de superar o mbito valorativo da

    vontade de poder seria rejeitada por Nietzsche, devendo ser transvalorizada.

    4 Duas posturas sustentveis

    Na relao entre os pensamentos de Heidegger e Nietzsche, h uma tendncia de l-los

    como pensamentos, de algum modo, complementares ou interpret-los como se o pensamento

    de Heidegger fosse uma continuidade do pensamento de Nietzsche. Segundo Gianni Vattimo,

    essa a tendncia de pensadores como Foucault, Derrida e Rorty: [...] mas em todos, mais ou

    menos explcita, parece ser possvel encontrar uma viso de Nietzsche que o interpreta numa

    continuidade substancial com Heidegger, muito alm do que o prprio Heidegger estaria disposto

    a admitir (Vattimo, 2010, p. 327). O prprio Vattimo parece simptico a uma tentativa de

    compreender os dois filsofos em conjunto.

    Aps as nossas consideraes anteriores, j deve ser evidente que no concordamos com

    esta linha interpretativa. No se trata de apresentar uma luta entre grandes pensadores para ver

    quem triunfa sobre quem, mas de mostrar como, no espao aberto por cada um deles,

    manifestam-se duas posturas que podemos considerar radicais. Por radicais entendemos

    pensamentos que levam at seu extremo certos pressupostos irrenunciveis sobre o ser humano,

    o mundo e a filosofia, o que faz com que cada um deles, quando defrontados com o outro

    pensador, simplesmente tenda a inclu-lo no prprio pensamento, ignorando as categorias

    advindas da outra filosofia.

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    Controvrsia Vol. 8, n3: 12-32 (set-dez 2012) ISSN 1808-5253

    Por serem dois filsofos radicais, os pensamentos de Heidegger e Nietzsche no podem ser

    conciliveis a no ser de modo extremamente artificial, pois qualquer tentativa de conciliao

    implicaria a renncia a algum dos pontos de partida assumidos por um ou outro. Parece haver

    uma ruptura fundamental entre ambos os pensadores. As suas relaes, precisamente por serem

    pensamentos oriundos de bases muito fortes e levados at seu ltimo extremo reflexivo, devem

    ser relaes mutuamente destrutivas e assimiladoras, e no relaes de conciliao. Inserida no

    contexto do pensamento de Nietzsche, a filosofia existencial de Heidegger deve necessariamente

    ser dilacerada pela filosofia da vontade de poder, s podendo ser compreendida como

    pensamento metafsico no sentido rejeitado por esta filosofia. E vice-versa, a filosofia da vontade

    de poder deve ser forosamente arrasada pela analtica existencial se levada esta a seu ltimo

    extremo crtico. Isto ocorre porque o pensamento de Nietzsche to radical quanto o de

    Heidegger, quando analisados separadamente; mas cada um deles pode ser compreendido como

    ainda metafsico, quando visto na perspectiva do outro. Nesse sentido, assim como nenhum deles

    poderia ser conciliado com o outro, tampouco um deles poderia refutar o outro, ou suprimi-lo. A

    sua extrema oposio faz com que eles nem possam sequer se refutar. Assumir desde o incio

    uma das duas posturas significa, inevitavelmente, rejeitar a outra, no pela via da refutao, mas

    pela via da total apropriao da postura do outro por parte do prprio pensamento.

    A reflexo conjetural de uma crtica de Nietzsche contra a analtica existencial

    heideggeriana, instaurada na presente seo, pode soar ao leitor como uma injustia que se

    comete contra o pensamento de Heidegger. Todavia, no menor a injustia que Heidegger

    comete contra Nietzsche ao se apropriar de seu pensamento. A interpretao de Nietzsche como

    ltimo metafsico unilateral e dura, fechando a compreenso de Nietzsche num nico sentido.

    Jos Jara, em seu artigo includo na obra organizada por Marton intitulada Nietzsche abaixo do

    Equador, alerta sobre a unilateralidade da interpretao de Heidegger e o risco de se entender

    Nietzsche exclusivamente sob a tica da analtica existencial. Porm, neste momento, cabe dizer

    que este seria um extravio somente se a nica via para o encontro pensante dos dois filsofos

    ficasse determinada pelo caminho eleito por um deles, nesse caso, pela pergunta fundamental de

    Heidegger (Jara, in Marton, 2006, p. 112). Este autor segue em seu texto mostrando, ainda,

    como a interpretao de Heidegger foi injusta com Nietzsche.

    Todavia, o ponto de vista que se defende aqui diferente no seguinte: a interpretao de

    Heidegger seria injusta com Nietzsche se se entendesse Nietzsche dentro de sua prpria

    perspectiva; mas a interpretao heideggeriana est perfeitamente correta a partir dos

    pressupostos lanados pela analtica existencial. Para Jos Jara, Nietzsche talvez devesse ser

    defendido como filsofo no metafsico contra a interpretao de Heidegger; mas aqui tenta-se

    mostrar como Nietzsche deve ser realmente considerado um pensador metafsico se assumida a

    postura analtico-existencial. A interpretao de Heidegger no est, pois, errada; apenas se

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    poderiam rejeitar as bases das quais ele parte; mas, uma vez elas assumidas, o resto decorre

    forosamente. E o mesmo se poderia dizer vindo desde Nietzsche. Se Nietzsche, interpretado

    desde a analtica existencial, um metafsico, a partir da filosofia da vontade de poder o

    pensamento existencial de Heidegger s poderia ser lido como algum tipo de metafsica alm do

    natural. O cruzamento entre estes dois mbitos de pensamento sempre acarretar uma

    injustia para a outra parte. Mas esta injustia no mostra que as interpretaes esto

    erradas, e sim que so interpretaes radicais, e no apenas crticas de detalhe.

    Concluso

    As duas linhas crticas contra a metafsica abertas pela filosofia genealgica de Nietzsche e

    pela analtica ek-sistencial de Heidegger so igualmente transitveis, porque so sensivelmente

    diferentes e utilizam categorias diversas. A prpria noo do que seja metafsica diferente em

    ambos os pensadores. Mas no temos que escolher entre uma ou outra como se escolheria entre

    uma linha falsa e outra verdadeira, mas como a escolha entre dois conjuntos de pressupostos que

    deveriam ser aceitos ou rejeitados en bloc. A mtua acusao de metafsica no poderia ser

    atacada isoladamente dos respectivos princpios que permitem fundamentar essa acusao. So

    os prprios pressupostos que devero ser aceitos ou rejeitados, e no suas consequncias

    inevitveis.

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  • Olyver Tavares

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