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Aforismos para a Sabedoria de Vida Arthur Schopenhauer Aforismos para a Sabedoria de Vida Arthur Schopenhauer Le bonheur n’est pas chose aisée: il est très difficile de le trouver en nous, et impossible de le trouver ailleurs. [a felicidade não é uma questão fácil; é muito difícil encontrá-la em nós mesmos, e impossível encontrá-la alhures. (Chamfort)] Introdução Nestas páginas falo da sabedoria de vida no sentido imanente, como a arte de percorrer a vida do modo mais agradável e feliz possível; as instruções para isso também podem ser denominadas eudemonologia, pois ensinam como ter uma existência feliz. Tal existência talvez possa ser definida como uma que, vista de uma perspectiva puramente objetiva, ou após uma reflexão fria e madura — pois a questão necessariamente envolve considerações subjetivas —, seria sem dúvida preferível à não-existência; implicando que devemos nos apegar a esta por si mesma, e não apenas pelo medo da morte; assim, que gostaríamos de vê-la durar para sempre. Se a vida humana corresponde, ou poderia corresponder, a tal concepção de existência, é uma questão que, como sabemos, é respondida negativamente pela minha filosofia; entretanto, na eudemonologia, deve ser respondida afirmativamente. Demonstrei, no segundo volume de minha obra capital, capítulo 49, que isso se baseia num erro fundamental. Assim, para poder tratar de uma questão dessa natureza, tive de abandonar completamente o ponto de vista ético e metafísico mais elevado, ao qual minha filosofia conduz. Logo, tudo que será discutido tem por base um certo comprometimento, na medida em que parte da perspectiva do dia-a-dia, conservando seus equívocos. Seu valor será apenas condicional, pois mesmo a palavra eudemonologia não passa de um eufemismo. Ademais, não reclamo completude, em parte porque o tema é inesgotável, e em parte porque teria de repetir o que já foi dito por outros. Recordo-me somente de um livro escrito com o mesmo propósito que anima esta coleção de aforismos, De utilitate ex adversis capienda [Da Utilidade da Adversidade] de Cardanus, que merece leitura e pode ser empregado como suplemento à presente obra. É verdade que Aristóteles também apresentou uma breve eudemonologia no quinto capítulo de sua Retórica; mas aquilo que disse não chega a muito. Como compilação não é minha área, não me vali desses predecessores; especialmente porque, no processo de compilar, perde-se a coerência e a unidade de vista, os quais constituem o âmago das obras desse gênero. Em geral, os sábios de todos os tempos sempre disseram o mesmo, e os tolos — isto é, a grande maioria de todos os tempos — sempre fizeram o mesmo, ou seja, o oposto; e sempre será assim. Pois, como diz Voltaire, Nous laisserons ce monde-ci 1

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  • Aforismos para a Sabedoria de Vida Arthur Schopenhauer

    Aforismos para a Sabedoria de VidaArthur Schopenhauer

    Le bonheur n’est pas chose aisée: il est très difficile de le trouver en nous, et impossible de le trouverailleurs.

    [a felicidade não é uma questão fácil; é muito difícil encontrá-la em nós mesmos, e impossívelencontrá-la alhures. (Chamfort)]

    IntroduçãoNestas páginas falo da sabedoria de vida no sentido imanente, como a arte de percorrer a vida do modo maisagradável e feliz possível; as instruções para isso também podem ser denominadas eudemonologia, poisensinam como ter uma existência feliz. Tal existência talvez possa ser definida como uma que, vista de umaperspectiva puramente objetiva, ou após uma reflexão fria e madura — pois a questão necessariamente envolveconsiderações subjetivas —, seria sem dúvida preferível à não-existência; implicando que devemos nos apegar aesta por si mesma, e não apenas pelo medo da morte; assim, que gostaríamos de vê-la durar para sempre. Se avida humana corresponde, ou poderia corresponder, a tal concepção de existência, é uma questão que, comosabemos, é respondida negativamente pela minha filosofia; entretanto, na eudemonologia, deve ser respondidaafirmativamente. Demonstrei, no segundo volume de minha obra capital, capítulo 49, que isso se baseia numerro fundamental. Assim, para poder tratar de uma questão dessa natureza, tive de abandonar completamente oponto de vista ético e metafísico mais elevado, ao qual minha filosofia conduz. Logo, tudo que será discutidotem por base um certo comprometimento, na medida em que parte da perspectiva do dia-a-dia, conservandoseus equívocos. Seu valor será apenas condicional, pois mesmo a palavra eudemonologia não passa de umeufemismo. Ademais, não reclamo completude, em parte porque o tema é inesgotável, e em parte porque teriade repetir o que já foi dito por outros.

    Recordo-me somente de um livro escrito com o mesmo propósito que anima esta coleção de aforismos, Deutilitate ex adversis capienda [Da Utilidade da Adversidade] de Cardanus, que merece leitura e pode serempregado como suplemento à presente obra. É verdade que Aristóteles também apresentou uma breveeudemonologia no quinto capítulo de sua Retórica; mas aquilo que disse não chega a muito. Como compilaçãonão é minha área, não me vali desses predecessores; especialmente porque, no processo de compilar, perde-sea coerência e a unidade de vista, os quais constituem o âmago das obras desse gênero. Em geral, os sábios detodos os tempos sempre disseram o mesmo, e os tolos — isto é, a grande maioria de todos os tempos — semprefizeram o mesmo, ou seja, o oposto; e sempre será assim. Pois, como diz Voltaire, Nous laisserons ce monde-ci

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    http://ateus.net/artigos/filosofia/aforismos-para-a-sabedoria-de-vida/http://ateus.net/autor/arthur-schopenhauer/

  • Aforismos para a Sabedoria de Vida Arthur Schopenhauer

    aussi sot et aussi méchant que nous l’avons trouvé en y arrivant [partiremos deste mundo tão tolos e mausquanto o encontramos na nossa chegada].

    Capítulo I

    Divisão fundamentalAristóteles (Ética a Nicômaco, I. 8) dividiu os bens da vida humana em três classes: aqueles que vêm de fora,aqueles da alma e aqueles do corpo. Preservando dessa divisão somente o número três, observo que asdiferenças fundamentais na sina dos homens podem ser reduzidas a três classes distintas:

    (1) O que um homem é, ou seja, sua personalidade no sentido mais amplo. Isso inclui saúde, força, beleza,temperamento, caráter moral, inteligência e educação.

    (2) O que um homem tem, ou seja, propriedades e posses em todos os sentidos.

    (3) O que um homem representa; sabemos que por meio dessa expressão entende-se o que um homem é aosolhos dos demais e, portanto, como é representado por esses. Consiste, assim, na opinião desses ao seu respeito,e pode ser dividida em honra, posição e glória.

    As diferenças a serem consideradas em relação à primeira classe são aquelas que a própria naturezaestabeleceu entre os homens. Disso pode-se inferir que sua influência sobre a felicidade ou infelicidade dahumanidade será muito mais fundamental e radical que aquela abarcada pelas outras duas classes, que sãoapenas o efeito de decisões e resoluções humanas. Comparados com vantagens pessoais genuínas, como umagrande mente ou um grande coração, todos os privilégios de posição, nascimento, mesmo um nascimento nobre,riqueza e assim por diante, não passam de reis de teatro em comparação com reis na vida real. O mesmo foidito há muito por Metrodoro, o primeiro discípulo de Epicuro, que deu o seguinte título a um capítulo: majoremesse causam ad felicitatem eam, quae est ex nobis, eâ, quae ex rebus oritur [a causa da felicidade que provémde nós mesmos é maior que aquela proveniente das coisas]. (cf. Clemente de Alexandria, Stromata, II, 21, 362da edição Würzburg de obras polêmicas). E é óbvio que o elemento principal no bem-estar de um indivíduo —de fato, de todo o seu modo de existir — é aquilo que o constitui, que ocorre dentro dele próprio. Pois issoconstitui a fonte imediata de sua satisfação ou insatisfação íntima, que resulta de todo o seu sentir, desejar epensar. Por outro lado, tudo que o cerca exerce somente uma influência indireta; por esse motivo, os mesmoseventos ou circunstâncias afetam diferentemente cada um de nós; e até com ambientes exatamente iguais, cadaqual vive em seu próprio mundo. Pois um homem apenas preocupa-se diretamente com suas próprias ideias,sentimentos e volições; o mundo exterior somente pode influenciá-lo na medida em que traz vida a esses. Omundo em que cada qual vive depende principalmente de sua própria interpretação desse e, assim, mostra-sediferentemente a homens diferentes; para um é pobre, insípido e monótono, para outro é rico, interessante e

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    importante. Por exemplo, apesar de muitos invejarem os acontecimentos interessantes que ocorreram ao longoda vida de um homem, deveriam, em vez disso, invejar seu dom de interpretação que imbuiu tais eventos com asignificância que exibem enquanto os descreve. O mesmo evento que parece interessante ao homem de gênioseria somente uma cena monótona e fugidia do mundo corriqueiro quando concebida pela mente superficial deum homem comum. Isso se evidencia no mais elevado grau nos poemas de Goethe e Byron, que obviamente sebaseiam em fatos reais. É possível que o leitor tolo inveje o poeta por tantas coisas encantadoras lhe teremsucedido em vez de invejar o grandioso poder imaginativo que foi capaz de transformar uma experiênciacorriqueira em algo tão notável e belo. Do mesmo modo, um homem de disposição melancólica vê uma cenatrágica onde outro, de temperamento sanguíneo, vê apenas um conflito interessante, e uma alma fleumática vêalgo trivial e insípido. Isso tudo se deve ao fato de que toda realidade, isto é, todo momento de experiênciafactual, consiste de duas metades, o sujeito e o objeto, apesar dessas estarem conectadas de modo tão íntimo enecessário como oxigênio e hidrogênio na água. Assim, quando a metade objetiva é exatamente a mesma, mas asubjetiva é diferente, a realidade presente é tão distinta aos olhos de cada indivíduo como se os fatoresobjetivos fossem diferentes; a melhor e mais encantadora metade objetiva, com uma metade subjetiva embotadae inferior, resulta numa realidade inferior, como uma paisagem magnífica com um clima carregado ou umareflexão de uma camera obscura ruim. Em palavras claras, todos estão confinados à sua própria consciênciaassim como estão confinados à sua própria pele; logo, a ajuda externa não é de grande valia. No teatro, umhomem é um príncipe, outro é um ministro, um terceiro é um servo, um soldado ou um general, e assim pordiante. Tais diferenças, todavia, existem apenas superficialmente; no interior, como o âmago de tal fenômeno,encontramos o mesmo em todos, ou seja, um pobre ator com seus desejos e preocupações. Sucede exatamenteo mesmo na vida. Diferenças de posição e riqueza determinam o papel de cada homem, mas certamente nãoexiste uma diferença interna de felicidade e satisfação correspondente a esse papel. Pelo contrário, tambémaqui há em todos o mesmo pobre-diabo, com suas preocupações e suas misérias. Materialmente, esses podemser diferentes em cada indivíduo, mas em sua forma — e, portanto, em sua natureza essencial — sãobasicamente os mesmos, com graus de intensidade que, sem dúvida, variam, mas que de forma algumacorrespondem à posição e à riqueza, isto é, ao papel que cabe do indivíduo. Como tudo que existe ou acontecepara um homem existe somente em sua consciência e só acontece para esta, a coisa mais essencial para umhomem é a constituição de sua consciência, a qual na maior parte dos casos é muito mais importante que asformas que se apresentam nesta. Toda a pompa e prazer do mundo, espelhados na consciência embotada de umtolo, são muito pobres quando comparados com a imaginação de Cervantes escrevendo Don Quixote numaprisão miserável. A metade objetiva da realidade presente está nas mãos do destino, que toma formas diversasem cada caso; a metade subjetiva somos nós próprios, que essencialmente permanece sempre a mesma.Portanto, a vida de todo homem, do princípio ao fim, carrega o mesmo caráter, independentemente de todamudança exterior, e é comparável a uma série de variações sobre um mesmo tema. Ninguém é capaz de ir alémde sua própria individualidade. Um animal, quaisquer sejam as circunstâncias às quais esteja submetido,permanece confinado a um pequeno círculo irrevogavelmente determinado pela natureza, de tal forma que, porexemplo, nossos esforços para agradar um animal de estimação devem sempre se manter dentro dessasfronteiras exatamente devido aos limites de sua verdadeira natureza, restritos ao que esse pode sentir.Acontece o mesmo com o homem; a medida de sua felicidade possível é determinada de antemão por suaindividualidade. Particularmente, os limites de seus poderes mentais fixaram em definitivo sua capacidade paraprazeres de natureza mais elevada. (cf. O Mundo como Vontade e Representação, vol. II, cap. 7) Se tais poderesforem pequenos, nenhum esforço exterior, nada que seus companheiros ou que seu destino fizer será suficiente

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    para elevá-lo além do grau habitual de felicidade humana e prazer meio-animais. O que lhe resta são osprazeres dos sentidos, uma confortável e alegre vida familiar, má companhia e passatempos vulgares. Mesmo aeducação, no todo, não pode oferecer muito, se é que oferece algo, para ampliar seu horizonte. Pois os prazeresmais elevados, variados e duradouros são os do espírito, independentemente do quanto nos enganamos emrelação a isso na juventude; mas tais prazeres dependem principalmente de nossos poderes intelectuais inatos.É óbvio, portanto, o quanto nossa felicidade depende daquilo que somos, de nossa individualidade, emboranormalmente levemos em consideração apenas nossa sorte ou destino, apenas aquilo que possuímos ourepresentamos. Nossa sorte, nesse sentido, pode melhorar; mas, se formos interiormente ricos, não pediremosmuito dela. Por outro lado, um tolo permanece um tolo, um estúpido permanece um estúpido, até o fim de suavida, mesmo se rodeado por houris no paraíso. Por isso Goethe diz:

    Volk und Knecht und Überwinder,Sie gestehn zu jeder Zeit:Höchstes Glück der ErdenkinderSei nur die Persönlichkeit.

    [Povo, servo e mestre, Todos juntos reconhecem, Que o supremo bem dos mortais, É só suapersonalidade. (Westöstlicher Diwan)]

    Tudo confirma que o subjetivo é incomparavelmente mais essencial à nossa felicidade e prazer que o objetivo,desde dizeres como Fome é o melhor tempero, Juventude e Idade não podem viver juntas, até a vida do gênio eo santo. A saúde sobrepuja os demais bens externos de tal forma que se pode dizer que um mendigo saudável émais feliz que um rei enfermo. Um temperamento sereno e alegre, feliz em gozar de uma saúde perfeita, umacompreensão nítida, vivaz e penetrante, que vê as coisas corretamente, uma vontade moderada e suave, e,portanto, uma boa consciência — essas são vantagens que nenhuma posição ou riqueza podem compensar ousubstituir. Pois aquilo que um homem é por si mesmo, aquilo que o acompanha em sua solidão e aquilo queninguém pode proporcionar ou subtrair, obviamente, lhe é mais essencial que tudo o que possui, ou mesmo aoque pode ser aos olhos dos outros. Um homem de intelecto, em completa solidão, encontra um excelenteentretenimento em seus próprios pensamentos e imaginação, enquanto a contínua diversidade de festas, peças,excursões e diversões é incapaz de proteger um tolo das torturas do tédio. Um indivíduo bom, moderado,brando pode ser feliz em circunstâncias adversas, enquanto outro, ambicioso, invejoso e malicioso, mesmosendo o mais rico do mundo, sente-se miserável. De fato, para o homem que desfruta da constante satisfação deuma individualidade extraordinária e intelectualmente eminente, a maioria dos prazeres perseguidos pelahumanidade é simplesmente supérflua; são apenas um estorvo e um fardo. Assim, Horácio diz de si próprio:

    Gemmas, marmor, ebur, Tyrrhena sigilla, tabellas,Argentum, vestes Gaetulo murice tinctas,Sunt qui non habeant, est qui non curat habere;

    [Marfim, mármore, berloques, estátuas tirrenas, pinturas, prataria, roupas tingidas de púrpuragetuliana, Muitos passam sem tais coisas, outros sequer se importam. (Epistulae, II.2.180.)]

    e quando Sócrates viu vários artigos de luxo postos à venda, disse: Quantas coisas há no mundo das quais nãopreciso!

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    Assim, para a felicidade de nossa vida, aquilo que somos, nossa personalidade, é absolutamente primária eessencial; no mínimo porque é um fator constante, influente em quaisquer circunstâncias. Ademais,diferentemente dos bens descritos nas outras duas classes, não está sujeita à sorte e não nos pode ser subtraída.Sendo, nesse sentido, dotada de um valor absoluto em contraste com o valor apenas relativo das outras duas.Segue-se disso que controlar um homem externamente é muito mais difícil do que se supõe normalmente. Masaqui o agente todo-poderoso, Tempo, exercita seu direito, e vantagens físicas e mentais sucumbem lentamenteante sua influência; apenas o caráter moral permanece inacessível. Tendo em vista o efeito destrutivo do tempo,naturalmente pareceria que os bens enumerados nas outras duas classes, os quais o tempo não pode nos roubardiretamente, têm uma vantagem sobre aqueles da primeira. Uma segunda vantagem poderia ser encontrada nofato de que tais bens existem de modo objetivo, de que são acessíveis por natureza, e que todos têm diante de siao menos a chance de possuí-los, enquanto que o subjetivo não é passível de aquisição, mas introduz-se juredivino [por direito divino] e é fixado permanentemente por toda a vida, de modo que as palavras de Goetheinexoravelmente se aplicam:

    Wie an dem Tag, der dich der Welt verliehen,Die Sonne stand zum Gruße der Planeten,Bist alsobald und fort und fort gediehen,Bach dem Gesetz, wonach du angetreten.So musst du sein, dir kannst du nicht entfliehen,So sagten schon Sibyllen, so Propheten;Und keine Zeit und keine Macht zerstückeltGeprägte Form, die lebend sich entwickelt.

    [Como no dia que te deu ao mundo, O sol estava ali para saudar os planetas, Tu também te hásengrandecido sem cessar, Em virtude da lei segundo a qual havias começado. Tal é teu destino; nãopodes fugir, Assim falaram as Sibilas e os Profetas; Nenhum tempo, nenhum poder quebranta A formaimpressa que se desenrola no curso da vida.]

    Nesse sentido, a única coisa que permanece ao nosso alcance é tirar o máximo proveito possível de nossapersonalidade e, portanto, seguir apenas aquelas tendências com as quais está de acordo, lutando pelo tipo dedesenvolvimento apropriado, evitando todo o mais; consequentemente, escolher a posição, ocupação e estilo devida que sejam adequados.

    Um homem de força hercúlea, dotado de poder muscular excepcional, que é levado a desempenhar umaatividade sedentária por circunstâncias externas, realizar tarefas diminutas e intrincadas manualmente oudedicar-se a estudos e trabalhos mentais que exigem poderes completamente distintos daqueles que possui,consequentemente, deixando em desuso os poderes nos quais se sobressai, nunca em sua vida será feliz. Aindamais infeliz será o homem dotado de poderes intelectuais de altíssima ordem que precisa deixá-los inexploradospara executar tarefas comuns, nas quais seu emprego é desnecessário, ou mesmo tarefas físicas para as quaissua força é inadequada. Ainda assim, especialmente na juventude, devemos nos policiar quanto a conclusõesprecipitadas que nos atribuam mais poderes do que possuímos.

    Tendo em vista a evidente superioridade dos bens da primeira classe em relação aos das outras duas, segue-seque é mais sábio ter como meta a manutenção de nossa saúde e o cultivo de nossas faculdades que a aquisição

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    de riqueza. Todavia, isso não deve ser entendido no sentido de que devemos negligenciar a aquisição do que énecessário e apropriado. Riqueza, no sentido estrito, isto é, grande superfluidade, pode realizar pouco pelanossa felicidade. Muitas pessoas ricas são infelizes porque carecem de qualquer cultura mental, de qualquerconhecimento e, portanto, de qualquer interesse objetivo que poderia qualificá-las para atividades intelectuais.Aquilo que a riqueza pode proporcionar, além da satisfação de certas necessidades reais e naturais, tem poucainfluência sobre nossa felicidade propriamente dita; pelo contrário, esta é perturbada pelas muitas e inevitáveispreocupações envolvidas na preservação de grandes propriedades. Contudo, os indivíduos são mil vezes maispreocupados em se tornarem ricos que na aquisição de cultura, embora seja quase certo que aquilo que somoscontribui muito mais à nossa felicidade que aquilo que temos. Então vemos muitos, industriosos como formigas,trabalhando incessantemente para ampliar a riqueza que já possuem. Além do estreito horizonte dos meios paraesse fim, não sabem nada; suas mentes estão em branco e, consequentemente, impassíveis de quaisquer outrasinfluências. Os prazeres mais elevados, aqueles do espírito, lhes são inacessíveis e em vão tentam substituí-lospelos fugidios prazeres dos sentidos, aos quais se entregam ocasionalmente com pouco gasto de tempo, masmuito de dinheiro. Com boa sorte, no fim de suas vidas terão como resultado uma enorme quantidade dedinheiro, que então deixam para seus herdeiros, seja para ampliá-la ainda mais ou esbanjá-la. Tal vida, emboraexercida com grande seriedade e um ar de importância, é tão tola quanto tantas outras que têm um chapéu deburro como símbolo.

    Aquilo que um homem tem em si próprio é, portanto, o elemento mais essencial à sua felicidade. Devido a isso,em regra, a maior parte daqueles que estão à parte da luta contra a penúria no fundo sentem-se tão infelizesquanto os que se encontram engajados nesta. O vazio de suas vidas interiores, a obtusidade de suasconsciências, a pobreza de suas mentes os levam à companhia de outros homens como a si mesmos, pois similissimili gaudet [cada qual com o seu igual]. Procuram, então, passatempo e entretenimento em comum,inicialmente em prazeres sensuais, em diversões de toda espécie e, finalmente, no excesso e libertinagem. Aorigem de tal extravagância deplorável, por meio da qual muitos jovens de famílias abastadas, ao ingressaremna vida com um grande patrimônio, comumente atravessam-na com extrema rapidez, não é outra senão o tédioque emerge da pobreza e vacuidade mentais que acabei de descrever. Esse jovem foi lançado no mundo comriquezas exteriores, mas interiormente pobre, e em vão procurou compensar sua pobreza interna tentandoobter tudo do exterior, analogamente a homens idosos que tentam se fortalecer através do fôlego de mulheresjovens. No fim, a pobreza interior também produziu pobreza externa.

    É desnecessário enfatizar a importância dos outros dois tipos de bens responsáveis pela felicidade na vidahumana. Pois, nos dias de hoje, o valor das posses é reconhecido tão universalmente que dispensarecomendações. Comparada com a segunda classe, a terceira aparenta um caráter muito etéreo, visto queconsiste apenas nas opiniões dos demais. Não obstante, todos precisam empenhar-se pela honra, isto é, um bomnome; a posição é aspirada apenas por aqueles que servem o Estado, e a glória por realmente muito poucos.Entretanto, a honra é tida como um tesouro inestimável, e a glória como o bem mais precioso que um homempode alcançar, o Tosão de Ouro dos eleitos; por outro lado, apenas tolos prefeririam posição à riqueza. Ademais,os bens da segunda e terceira classes agem e reagem entre si na medida em que a máxima de Petrônio habes,habeberis [um homem vale aquilo que possui] estiver correta; em contrapartida, opiniões favoráveis de outrem,em todas as formas, auxiliam-nos na obtenção de posses.

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    Capítulo II

    O que um homem éComo já vimos em linhas gerais, aquilo que um homem é contribui muito mais à sua felicidade que aquilo quepossui ou representa. Essa sempre depende daquilo que o homem é e, portanto, encerra em si próprio; pois suaindividualidade o acompanha em todo tempo e lugar, e assim esta colore tudo aquilo que vivencia. Em todaespécie de gozo, o homem encontra prazer principalmente em si próprio; se isso é verdadeiro em relação aosprazeres físicos, então quão mais em relação àqueles do intelecto! As palavras inglesas to enjoy oneself[divertir-se] constituem uma expressão muito adequada; por exemplo, não dizemos he enjoys Paris [ele gosta deParis], mas he enjoys himself in Paris [ele diverte-se em Paris]. Porém, se a individualidade estiver malcondicionada, todos os prazeres serão como vinhos finos numa boca impregnada de fel. Assim, se deixarmos delado os casos de grande infortúnio, tanto nas coisas boas quanto nas ruins, importa menos aquilo que acontececonosco que o modo como o encaramos, isto é, nossa natureza e grau de suscetibilidade geral. Aquilo que umhomem é e tem em si, ou seja, sua personalidade e seu valor, é o único fator imediato em sua felicidade ebem-estar. Todo o resto é mediato e indireto, de modo que sua influência pode ser neutralizada e frustrada; masnunca a influência da personalidade. Por tal razão, a inveja incitada por qualidades pessoais é a mais implacável,e também a mais cuidadosamente dissimulada. Ademais, a constituição de nossa consciência é o elementopresente e permanente em tudo que fazemos ou sofremos; nossa individualidade trabalha mais ou menosincessantemente durante toda a nossa vida; todas as outras influências, por outro lado, são temporais,ocasionais, fugazes e sujeitas à variação e à mudança. Aristóteles disse: nam natura perennis est, non opes [anatureza é eterna, não as coisas. (Ética a Eudemo, VII. 2)]. Isso se deve ao fato de que podemos suportar maisfacilmente um infortúnio que nos atinge externamente que aquele que criamos para nós mesmos, pois o destinopode mudar, mas nunca nossa própria natureza. Desse modo, bens subjetivos como um caráter nobre, umamente privilegiada, um temperamento aprazível, uma alma radiante e um corpo bem constituído, perfeitamentesão, numa palavra, mens sana in corpore sano [mente sã em corpo são (Juvenal, Sátiras, X. 356)], são oselementos primários e principais à nossa felicidade. Assim, devemos nos preocupar muito mais com apreservação de tais qualidades que com a aquisição de riquezas e honras externas.

    E, de todas essas qualidades, aquela que nos torna mais imediatamente felizes é a disposição alegre; pois essaexcelente qualidade é sua própria recompensa imediata. Aquele que é alegre e jovial sempre tem uma boa razãopara assim ser — o próprio fato de sê-lo. Nada pode compensar tão bem pela perda de qualquer outro bemcomo essa qualidade, enquanto que ela própria não pode ser substituída por nenhuma outra. Um homem podeser jovem, belo, rico e estimado; se quisermos saber de sua felicidade, devemos perguntar se é alegre. Poroutro lado, se for alegre, não importa se é jovem ou velho, aprumado ou corcunda, rico ou pobre; ele é feliz. Emminha juventude, certa vez abri um velho livro e encontrei estas palavras: Aquele que ri muito é feliz; aqueleque chora muito é infeliz, uma observação muito singela, tão evidente que fui incapaz de esquecê-la, nãoobstante que seja o superlativo de um truísmo. Por isso devemos sempre manter nossas portas abertas à alegria,pois sua presença nunca é inoportuna. Em vez disso, frequentemente hesitamos em deixá-la entrar, pois antes

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    queremos saber se temos motivos suficientes para estarmos contentes; ou porque receamos ser atrapalhadospela alegria quando estamos envolvidos em deliberações sérias e cuidados importantes. Mas aquilo que seganha com isso é muito incerto, enquanto que a alegria é um ganho imediato. Apenas esta é, por assim dizer, averdadeira moeda da felicidade e não, como todo o resto, apenas um cheque em branco; pois é a única coisaque pode nos tornar imediatamente felizes no momento presente. Assim sendo, constitui o maior dos bens paraseres cuja realidade apresenta a forma de um momento presente infinitesimal situado entre duas eternidades.Assegurar e promover esse bem constitui o objetivo supremo na busca pela felicidade. É certo que nadacontribui menos à alegria que a riqueza, e nada contribui mais que a saúde. As classes baixas ou ostrabalhadores, especialmente aqueles que vivem no campo, têm as expressões mais alegres e contentes; arabugice e o mau-humor estão em casa entre os ricos, as classes altas. Consequentemente, devemos fazer todoo possível para manter um alto grau de saúde, pois seu florescer é a própria alegria. Para tal fim, como se sabe,devemos evitar excessos e irregularidades, todas as emoções violentas e desagradáveis, todo o esforço mentaldemasiado grande ou prolongado, realizar exercícios diários a céu aberto, banhos frios e medidas similares.Pois, sem a quantidade adequada de exercício diário, ninguém pode permanecer saudável; todos os processosvitais requerem exercício para funcionarem corretamente, não apenas as áreas mais diretamente envolvidas,mas também o corpo como um todo. Pois, como Aristóteles corretamente diz, a vida é movimento. A vidaconsiste de movimento e nisso reside sua própria essência. Movimentos rápidos e incessantes ocorrem em todasas partes do organismo; o coração, com seu complicado movimento duplo de sístole e diástole, bateimpetuosamente e incansavelmente; com vinte e oito batidas, conduz a massa inteira de sangue através detodas as artérias, veias e capilares; os pulmões bombeiam incessantemente como uma máquina a vapor; osintestinos se contraem sem cessar em motus peristalticus [movimento peristáltico]; todas as glândulasabsorvem e secretam sem interrupção; mesmo o cérebro tem seu próprio movimento duplo com cada batimentocardíaco e cada aspiração do pulmão. Quando há uma ausência quase completa de movimento externo, comoocorre no gênero sedentário de vida de tantos indivíduos, resulta uma notável e perniciosa desproporção entreo repouso externo e o tumulto interno. Pois o constante movimento interno requer auxílio parcial por parte doexterior. Essa falta de proporção é análoga ao caso onde, em consequência de alguma emoção, irrompe dentrode nós algo que somos obrigados a suprimir. Até as árvores, para florescer, precisam ser agitadas pelo vento.Aqui se aplica uma regra que pode ser anunciada de forma mais concisa em latim: omnis motus, quo celerior,eo magis motus [quanto mais rápido é um movimento, tanto mais é movimento]. Para vermos o quanto nossafelicidade depende de uma disposição alegre, e esta do nosso estado de saúde, comparemos a influência que asmesmas circunstâncias externas ou eventos têm sobre nós quando saudáveis e vigorosos com a que se produzquando um estado enfermo nos deixa deprimidos e inquietos. Não são as coisas objetivamente e nelas mesmas,mas o que são para nós e para nossa percepção aquilo que nos torna felizes ou infelizes. Isso é exatamente oque Epíteto diz: commovent homines non res sed de rebus opiniones [não são as coisas que comovem oshomens, mas suas opiniões sobre as coisas]. Em geral, nove décimos de nossa felicidade dependem somente dasaúde. Com ela, tudo se transforma numa fonte de prazer, enquanto que sem ela não podemos desfrutar denada, qualquer seja a sua natureza, e mesmo os outros bens subjetivos, como qualidades mentais, disposição etemperamento, são degradados e diminuídos pela saúde precária. Assim, não é sem razão que, quando duaspessoas se encontram, primeiramente perguntam sobre o estado de saúde uma da outra, esperando queestejam bem; porque isso, de fato, é o que há de mais importante para a felicidade. Segue-se que a maior dastolices é sacrificar nossa saúde a qualquer coisa, seja riqueza, carreira, estudos, glória e, especialmente,prazeres sensuais e outros gozos fugidios; em vez disso, deveríamos colocar a saúde em primeiro lugar.

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  • Aforismos para a Sabedoria de Vida Arthur Schopenhauer

    Por maior que seja a contribuição da saúde à alegria, que é tão essencial à felicidade, essa não depende apenasda saúde; porque, mesmo com uma saúde perfeita, podemos ter um temperamento melancólico e umadisposição predominantemente triste. A razão para isso, sem dúvida, encontra-se na constituição primária e,por conseguinte, inalterável do organismo, e mais especificamente na relação mais ou menos normal dasensibilidade com a irritabilidade e o poder de reprodução. Uma sensibilidade excessiva produzirá umadesigualdade de humor, excessos de alegria periódicos e melancolia predominante. Como o gênio écondicionado por um excesso de força nervosa e, assim, de sensibilidade, Aristóteles muito corretamenteobservou que todos os homens ilustres e eminentes são melancólicos: Todos os homens que se distinguiram nafilosofia, na política, na poesia ou nas artes parecem ter sido melancólicos (Problemata, 30, I, Berlin edn.). Essa,sem dúvida, é a passagem que Cícero tinha em mente naquela frase tão citada, Aristoteles ait, omnesingeniosos melancholicos esse [Aristóteles diz que todos os homens de gênio são melancólicos. (Tusculanaedisputationes, I. 33)]. Shakespeare fez uma descrição muito graciosa da grande e inata diversidade dotemperamento geral:

    Nature hath fram’d strange fellows in her time:Some that will evermore peep through their eyes,And laugh, like parrots, at a bag-piper;And others of such vinegar aspect,That they’ll not show their teeth in way of smile,Though Nestor swear the jest be laughable.

    [A natureza, agora, confecciona sujeitos bem curiosos: uns, de olhos apertados, riem, como papagaiotrepado numa gaita de foles; outros andam com tal cara de vinagre, que nunca os dentes mostram àguisa de sorriso, muito embora Nestor jurasse que a pilhéria é boa. (O Mercador de Veneza, ato I, cenaI)]

    Essa é exatamente a diferença descrita por Platão com as expressões δύσκολος [de humor difícil] e εὔκολος [dehumor fácil], a qual pode ser relacionada à grande diversidade de suscetibilidade exibida por pessoas diferentesperante impressões agradáveis e desagradáveis, em consequência da qual um homem ri daquilo que leva outroao desespero. Normalmente, quanto mais fraca é a suscetibilidade a impressões agradáveis, maior é para asdesagradáveis, e vice versa. Com possibilidades iguais e êxito ou fracasso de um evento, o δύσκολος ficaráincomodado ou angustiado se o evento fracassar, mas não se alegrará com o êxito. Por outro lado, o εὔκολοςnão ficará incomodado ou angustiado se o evento fracassar, mas se regozijará se houver êxito. Se o δύσκολοςtiver, em seus empreendimentos, sucesso em nove de dez, não ficará satisfeito, mas contrariado porque um dosempreendimentos fracassou. Por outro lado, o εὔκολος é capaz de encontrar consolo e alegria mesmo numúnico êxito no empreendimento. Assim como dificilmente encontramos um mal sem compensação, mesmo aquivemos que o δύσκολος e, portanto, aqueles de caráter sombrio e inquieto, tendem a suportar mais desgraças esofrimento imaginários, enquanto, em contrapartida, menos desgraças e sofrimentos reais que os de caráteralegre e despreocupado. Pois o homem que vê tudo negro sempre pensa no pior e, assim, tomando precauções,não terá desilusões tão frequentes como aquele que vê as coisas em cores e perspectivas promissoras. Todavia,quando uma afecção mórbida do sistema nervoso ou do aparelho digestório manifesta um δυσκολία [mauhumor] inato, isso pode chegar ao grau em que a insatisfação permanente produz um cansaço de viver e,consequentemente, surge uma tendência ao suicídio. Mesmo a menor contrariedade pode provocá-lo; quando o

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    mal atinge o grau mais elevado, a contrariedade nem mesmo é necessária. Pelo contrário, um homem decidecometer suicídio apenas em consequência de uma insatisfação permanente; o suicídio é cometido comdeliberação tão fria e resolução firme que o enfermo — nesta etapa, normalmente já sob certa supervisão — sevale do primeiro momento oportuno para recorrer, sem hesitação, sem esforço ou espanto, à forma de alívio que,naquele momento, é tão natural e oportuna. Descrições detalhadas desse estado mental são fornecidas porEsquirol em Des maladies mentales. Mesmo o homem mais saudável, talvez mesmo o mais alegre, pode emcertas circunstâncias decidir cometer suicídio, por exemplo, quando a magnitude de seu sofrimento oudesgraça inevitável são maiores que os terrores da morte. A diferença está somente na magnitude dosofrimento necessário, que é inversamente proporcional ao grau de δυσκολία. Quanto maior for esse, tantomenor poderá ser o motivo, até chegar a zero. Pelo contrário, quanto maior for o εὐκολία [bom humor] e asaúde que o sustenta, tanto maior deverá ser o peso do motivo. Há, pois, inumeráveis casos entre os doisextremos do suicídio, entre seu surgimento de uma intensificação mórbida de um δυσκολία inato e de seusurgimento no homem saudável e alegre, oriundo de motivos puramente objetivos.

    A beleza é parcialmente análoga à saúde. Apesar de esse bem subjetivo não contribuir diretamente à nossafelicidade, mas apenas indiretamente, pela impressão que produz em outrem, tem, não obstante, uma grandeimportância até mesmo ao homem. A beleza é uma carta aberta de recomendação que nos conquista coraçõesde antemão; especialmente aqui se aplicam os versos de Homero:

    Não se despreza os dons gloriosos dos deuses,Que eles somente podem dar e que ninguémPode aceitar ou recusar por capricho.(Ilíada, III, 65.)

    Uma análise geral evidencia que a dor e o tédio são os dois inimigos da felicidade humana. Ademais, pode-seobservar que, na medida em que conseguimos nos afastar de um, nos aproximamos do outro, e vice versa. Eassim nossa vida realmente denota uma oscilação mais ou menos violenta entre ambos. Isso se origina do fatode que os dois têm entre si um antagonismo duplo, um exterior ou objetivo, e outro interior ou subjetivo.Externamente, necessidade e privação produzem dor; por outro lado, segurança e abundância engendram tédio.Assim, vemos as classes baixas lutando constantemente contra a privação e, portanto, contra a dor; por outrolado, as classes altas e ricas estão engajadas numa constante e, não raro, desesperada luta contra o tédio. [1] Oantagonismo interior ou subjetivo entre a dor e o tédio deve-se ao fato de que, num indivíduo, suasuscetibilidade a um mal é inversamente proporcional à sua suscetibilidade ao outro, visto que isso édeterminado pelo seu grau de capacidade intelectual. Porque a obtusidade mental é geralmente acompanhadapela obtusidade das sensações e ausência de sensibilidade, qualidades que tornam o indivíduo menos suscetívelàs dores e aflições de todo gênero e intensidade. Por outro lado, o resultado dessa obtusidade mental é o vaziointerior que se estampa em inúmeros semblantes e que se evidencia por uma constante e vívida atenção a todosos acontecimentos do mundo exterior, mesmo os mais banais. Esse vazio é a verdadeira fonte do tédio, econtinuamente almeja excitações externas como pretexto para ocupar sua mente e seus sentidos. O tipo decoisa que indivíduos escolhem para tal fim mostra que não são meticulosos, como evidenciado pelos miseráveise infelizes passatempos aos quais as pessoas recorrem e também pela natureza de sua sociabilidade econversação, e não menos pelo grande número de imbecis e mexeriqueiros que andam pelo mundo. O resultadoprincipal desse vazio interior é a busca por reuniões, diversões, prazeres e luxo de toda espécie, conduzindo

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    muitos à extravagância e, assim, à miséria. Nada nos protege mais certamente desses extravios como a riquezainterior, a riqueza do espírito, pois quanto mais eminente esse se torna, menos espaço resta para o tédio. Oexercício incessante dos pensamentos, sua atividade constantemente renovada em presença das manifestaçõesdiversas do mundo interior e exterior, a força e a capacidade das combinações sempre diferentes, situam umespírito eminente, exceto nos momentos de fadiga, fora do alcance do tédio. Por outro lado, essa inteligênciasuperior é diretamente condicionada por uma sensibilidade elevada e está enraizada numa maior impetuosidadeda vontade e, por conseguinte, da paixão. Da união dessas qualidades resulta uma intensidade muito maior detodas as emoções e uma elevada sensibilidade às dores espirituais e também às físicas, uma impaciência aindamaior na presença de obstáculos ou maior rancor pelo empecilho. Tudo isso contribui grandemente para umaumento de todo o espectro de pensamentos e concepções, logo, também de ideias desagradáveis, cujavivacidade se origina da força da imaginação. Isso se aplica, guardadas as proporções, a todos os estágiosintermediários entre os dois extremos, do imbecil mais obtuso até o maior o gênio. Por conseguinte, tantoobjetivamente como subjetivamente, quanto mais alguém se aproxima de uma dessas fontes de sofrimentohumano, mais se distancia da outra. Sua tendência natural, então, o levará a adaptar, tanto quanto possível, oobjetivo ao subjetivo e, dessa forma, precaver-se contra aquela fonte de sofrimento à qual é mais suscetível. Oshomens inteligentes e sábios buscarão, primeiramente, se libertar do sofrimento e das moléstias, e encontrarquietude e repouso, isto é, uma vida tranquila e modesta que se resguarda ao máximo de transtornos. Depois dealguma convivência com o que se denomina seres humanos, optarão por uma vida de isolamento ou, no caso deum intelecto elevado, de solidão. Pois quanto mais um homem encontra em si próprio, tanto menos precisa doexterior e menos úteis podem ser as demais pessoas. Por esse motivo, um homem de intelecto elevado tende àinsociabilidade. Na verdade, se a qualidade da sociedade pudesse ser substituída pela quantidade, talvezvalesse a pena viver no vasto mundo; mas, infelizmente, uma centena de tolos aglomerados ainda nãoproduziria um homem inteligente. Por outro lado, assim que a necessidade e a privação permitirem ao homemno outro extremo recuperar o fôlego, buscará a qualquer custo passatempo e companhia, e se acomodaráprontamente a qualquer coisa, desejando, acima de tudo, fugir de si mesmo. Na solidão, onde todos se veemlimitados aos seus próprios recursos, o indivíduo enxerga o que tem em si mesmo. O tolo em trajes finos suspirasob o fardo de sua própria individualidade miserável, da qual não pode se livrar, enquanto o homem de grandesdotes povoa e anima com seus pensamentos a região mais deserta e desolada. Há, pois, muita verdade no queSêneca diz: omnis stultitia laborat fastidio sui [toda estultice sofre o fastio de si mesma. (Epistulae, 9)], etambém na sentença de Jesus de Sirach, A vida de um tolo é pior que a morte. Logo, em geral, constataremosque todos são sociáveis na medida em que são intelectualmente pobres e vulgares. [2] Pois, neste mundo, temospouca escolha entre a solidão e a vulgaridade. Supõe-se que os seres humanos mais sociáveis são os negros, osquais, sem dúvida, são intelectualmente inferiores. Lembro-me de ter lido num periódico francês (Le Commerce,19 Outubro 1837) que os negros na América do Norte, tanto os livres quanto os escravos, se reúnem em grandenúmero nos menores espaços, pois nunca se cansam de ver refletidas suas caras negras de nariz achatado. Océrebro, pois, parece ser um parasita ou inquilino do organismo inteiro, e o ócio, isto é, o tempo que cada umtem para desfrutar livremente da própria consciência ou individualidade, é o fruto ou resultado de toda a suaexistência, que em geral consiste apenas de trabalho e dor. Mas o que resulta do ócio da maioria dos homens?Tédio e imbecilidade; exceto quando estão ocupados com prazeres sensuais ou desvarios. O modo como taispessoas desfrutam de seu ócio demonstra que esse não vale nada; é o ozio lungo d’uomini ignoranti [tédio doshomens ignorantes] de Ariosto. O homem vulgar só pensa em como passar o tempo; o homem de talento tentaaproveitá-lo. Indivíduos de inteligência limitada estão tão expostos ao tédio porque seu intelecto não passa de

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    um intermediário dos motivos para sua vontade. Se em certo momento não houver quaisquer motivosparticulares para pôr a vontade em ação, essa repousa e seu intelecto tira folga, pois, assim como a vontade,esse requer algo externo para entrar em atividade. O resultado é uma terrível estagnação de todos os poderesdo homem por completo, isto é, tédio. Para combatê-lo, os homens se lançam em trivialidades que agradamprovisoriamente a fim de estimular a vontade e, assim, por em atividade o intelecto, que terá de interpretá-las.Tais motivos são, pois, em relação aos motivos reais e naturais, aquilo que o papel-moeda é em relação aodinheiro, visto que seu valor é determinado arbitrariamente. Tais motivos são jogos de cartas e outros, queforam inventados exatamente para esse propósito. Na falta desses, o homem de inteligência limitada por-se-á abatucar e brincar com tudo aquilo que cair em suas mãos. Até mesmo um cigarro é bem-vindo como substitutopara o pensamento. Por isso, em todos os países, o principal entretenimento da sociedade é o jogo de cartas; é amedida do valor dessas reuniões e a manifesta bancarrota de todas as ideias e pensamentos. Não tendonenhuma ideia para trocar, trocam cartas, e tentam ganhar o dinheiro uns dos outros. Que espécie deplorável!Para não ser injusto, não deixo de dizer que, em defesa dos jogos de carta, poderia ser explicado como umtreinamento preliminar para a vida no mundo dos negócios, na medida em que é uma maneira de aprender aaproveitar-se inteligentemente das circunstâncias invariáveis estabelecidas pelo azar (das cartas, neste caso) afim de extrair delas o máximo possível. Para tal finalidade, precisamos aprender um pouco de dissimulação ecomo dar uma cara boa a um mau negócio. Exatamente por isso, o jogo de cartas tem um efeito desmoralizante,visto que o espírito do jogo é ganhar aquilo que outro possui através de quaisquer meios, truques eestratagemas. Mas o hábito de proceder dessa forma, adquirido no jogo, se arraiga, se infiltra na vida prática e,nas questões do dia-a-dia, o homem gradualmente passa a proceder da mesma maneira quando se trata demeum e tuum, considerando justificáveis quaisquer vantagens que tiver em mãos, conquanto sejam permitidaslegalmente. Os acontecimentos vulgares provam-no todos os dias. Como disse, o ócio livre é a flor, ou melhor, ofruto da existência de todo indivíduo, visto que apenas esse o coloca em posse de si próprio. Devemos, pois,julgar felizes aqueles que preservam em si próprios algo de valor; mas, para a maioria, o ócio resulta somentenuma criatura imprestável que é terrivelmente entediada e um fardo para si mesma. Alegremo-nos, pois, meusqueridos irmãos, de ser filhos não de escravas, mas de mães livres. (Gálatas 4:31)

    Ademais, assim como o país mais feliz é aquele que tem pouca ou nenhuma necessidade de importação, tambémo homem mais afortunado é aquele a quem basta sua própria riqueza interior e que requer para seuentretenimento e diversão pouco ou nada do exterior. Pois importações são custosas, tornam-nos dependentes,implicam perigos, ocasionam problemas e incômodos e, no fim, são apenas um substituto inferior para a nossaprópria produção. Não devemos esperar muito dos outros ou do mundo exterior em geral. Aquilo que umhomem pode ser para outro não é grande coisa; no fim, todos acabam sozinhos, e a grande questão é quem estásozinho. A esse propósito, Goethe observou (Dichtung und Wahrheit, vol. III, p. 474) de maneira geral que,essencialmente, em todas as coisas, cada qual está reduzido a si próprio, ou, como diz Oliver Goldsmith:

    Still to ourselves in ev’ry place consign’d,Our own felicity we make or find.

    [Reduzidos em qualquer lugar a nós mesmos, criamos ou encontramos nossa felicidade. (O Viajante, II.431 e seg.)]

    Cada qual deve, por si próprio, ser e proporcionar-se o melhor e o mais importante. Quanto mais esse for o caso,

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    quanto mais o indivíduo encontrar em si próprio as causas de seus prazeres, mais feliz será. Portanto, comrazão Aristóteles diz: a felicidade pertence àqueles que se bastam a si mesmos (Ética a Eudemo, VII. 2). Poistodas as fontes externas de felicidade e prazer são, por natureza, extremamente incertas, precárias, fugidias esujeitas a mudança; portanto, mesmo sob as circunstâncias mais favoráveis, podem facilmente se esgotar; comefeito, isso é inevitável, pois nem sempre estão ao nosso alcance. Em idade avançada, quase todas essas fontesde felicidade inevitavelmente se exaurem, pois somos abandonados pelo amor, humor, prazer das viagens e daequitação, aptidão para relações sociais; amigos e parentes também nos são tomados pela morte. Aquilo que sepossui em si mesmo adquire, neste período, importância capital, pois é a única coisa que resistirá ao tempo; emqualquer idade, isso é e permanece a única fonte genuína e duradoura de felicidade. Não há muito a se ganharcom o mundo; a miséria e a dor preenchem-no; se um homem escapar-lhes, o tédio estará à espreita em cadacanto. Ademais, são a baixeza e a perversidade que governam o mundo, e a tolice predomina. O destino é cruele a humanidade é desprezível. Em um mundo dessa natureza, o indivíduo rico em si mesmo é como umahabitação iluminada, quente e alegre em meio à neve e ao gelo de uma noite de dezembro. Por conseguinte, odestino mais afortunado nesta terra é, sem dúvida, possuir uma individualidade distinta e rica, e,particularmente, bons dotes intelectuais; esse é o destino mais feliz, embora talvez não seja, no fim, o maisbrilhante. Havia muita sabedoria na observação que a Rainha Cristina de Suécia, aos dezenove anos, fez sobreDescartes, a quem só conhecia por meio de um ensaio e de relatos verbais e que então vivera na Holanda porvinte anos na mais profunda solidão. Mr. Descartes est le plus heureux de tous les hommes, et sa condition mesemble digne d’envie [Descartes é o mais feliz de todos os homens, e sua condição me parece digna de inveja. (Vie de Descartes, Baillet, VII, 10)]. Naturalmente, como foi o caso com Descartes, as circunstâncias externasdevem ser favoráveis o bastante para permitir que um homem seja seu próprio mestre, satisfeito com aquiloque é. Por isso, Eclesiastes (7:11) diz: Tão boa é a sabedoria como a herança, e dela tiram proveito os que veemo sol. O homem ao qual a natureza e o destino concederam o dom da sabedoria velará e cuidará para assegurarque a fonte interior de sua felicidade permaneça acessível, e as condições para isso são a independência e oócio. E os obterá, de bom grado, pelo preço da moderação e da parcimônia, visto que não está, como outros,restrito às fontes exteriores de prazer. Por isso a perspectiva dos cargos, do dinheiro, do favor e da aprovaçãodo mundo não o induzirão a renunciar a si próprio a fim de adaptar-se às perspectivas sórdidas ou ao gostovulgar dos homens. [3] Quando esse for o caso, seguirá o conselho dado por Horácio em sua epístola a Mecenas:Nec somnum plebis laudo, satur altilium, nec Otia divitiis Arabum Liberrima muto [não faço elogio ao sono daplebe nem troco meu ócio pelos tesouros da Arábia (I, 7)]. É uma grande tolice sacrificar o interior em troca doexterior, isto é, abdicar, em todo ou em parte, da quietude, do ócio e da independência pelo esplendor, aposição, a pompa, os títulos e as honras. Entretanto, foi o que Goethe fez; pessoalmente, meu gênio me temconduzido decididamente ao caminho oposto.

    A verdade aqui examinada, de que a principal causa da felicidade humana vem de dentro de nós próprios,também é confirmada pela observação muito acertada de Aristóteles em Ética a Nicômaco (I. 7; e VII. 13, 14),onde diz que todo prazer pressupõe algum tipo de atividade e, portanto, a aplicação de alguma forma de força,sem a qual não pode existir. Esse ensinamento aristotélico, de que a felicidade do homem consiste no livreexercício de suas faculdades mais elevadas, também é apresentado por Estobeu em sua exposição da moralperipatética (Eclogae ethicae, II, 7), por exemplo: felicitatem esse functionem secundum virtutem, per actionessuccessus compotes [a felicidade consiste em exercer as próprias virtudes em trabalhos que atingem osresultados desejados]; explica também que por ἀρέτη [virtude] designa toda forma de maestria. Assim sendo, o

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    propósito original dessas forças que a natureza proveu ao homem é a luta contra a necessidade e a privação,que o assaltam por todas as partes. Quando essa luta cessa, suas forças sem emprego se transformam em umfardo, e então precisa jogar com elas, isto é, usá-las sem qualquer objetivo, pois, do contrário, expõe-se à outrafonte de sofrimento humano, o tédio. Assim, são as classes altas, os ricos, as maiores vítimas desse mal, eLucrécio nos forneceu uma descrição de sua condição lamentável. A verdade desta descrição ainda pode serreconhecia nos dias de hoje em todas as grandes cidades:

    Exit saepe foras magnis ex aedibus ille,Esse domi quem pertaesum est, subitoque reventat;Quippe foris nihilo melios qui sentiat esso.Currit, agens mannos, ad villam praecipitanter,Auxilium tectis quasi ferre ardentibus instans:Oscitat exemplo, tetigit quum limina villae;Aut abit in somnum gravis, atque oblivia quaerit;Aut etiam properans urbem petit, atque revisit.

    [Frequentemente sai dos grandes palácios aquele que está aborrecido de estar em casa, e volta em ummomento porque não se sente melhor que em casa. Ou corre desesperadamente à sua casa de campocomo se levasse socorro a uma casa incendiada. Mas assim que cruza os umbrais, boceja de tédio oucai num sono profundo buscando esquecer a si próprio, a não ser que prefira retornar à cidade. (Denatura Deorum, III, 1060—7.)]

    Em sua juventude, esses indivíduos provavelmente tiveram uma abundância de força muscular e reprodutora.Com o passar dos anos, restam apenas os poderes mentais; se houver falta desses ou dos materiais necessáriosà sua atividade, sua condição é miserável. Visto que a vontade é a única força inesgotável, tentam estimulá-laexcitando as paixões, por exemplo, com grandes apostas em jogos de azar, esse vício deveras degradante.Pode-se dizer que, em geral, todo indivíduo desocupado escolherá uma atividade adequada ao exercício de suasforças predominantes; pode ser jogo de bilhar ou xadrez, caça ou pintura, corrida de cavalos ou música, jogosde carta ou poesia, a heráldica ou a filosofia, e assim por diante. Poderíamos investigar tais interessesmetodicamente, reduzindo-os à raiz das três forças fisiológicas fundamentais. Temos, pois, de considerá-los emseu exercício sem objetivo, no qual se manifestam como a origem de três tipos possíveis de prazer. Dentre esses,cada homem escolherá o que lhe é mais adequado segundo a predominância nele de uma ou outra dessas forças.Primeiramente, temos os prazeres da força reprodutiva, que consistem na comida, na bebida, na digestão, nodescanso e no sono. Há mesmo nações inteiras nas quais esses são considerados prazeres nacionais. Depois,temos os prazeres da irritabilidade, que consistem na caminhada, corrida, luta, dança, esgrima, equitação ejogos atléticos de todo gênero, incluindo também a caça e até os combates de guerra. Finalmente, temos osprazeres da sensibilidade, que consistem no contemplar, pensar, sentir, fazer poesia, tocar música, estudar, ler,meditar, inventar, filosofar etc. Sobre o valor, o grau e a duração de cada um desses tipos de prazer podem serfeitas muitas observações, mas deixo tal cuidado aos leitores. Mas todos constatarão claramente que, quantomais nobre é a natureza da força que condiciona nosso prazer, maior esse será; isso porque é condicionado peloemprego de nossas próprias forças e nossa felicidade consiste na repetição frequente desse prazer. Ninguémnegará, nesse respeito, que a sensibilidade, cujo predomínio decidido estabelece a distinção entre o homem e asdemais espécies animais, tem primazia sobre as outras duas forças fisiológicas fundamentais, que existem no

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    animal no mesmo grau ou talvez em grau mais enérgico que no homem. Nossas forças cognitivas estãorelacionadas à sensibilidade; assim, sua preponderância nos qualifica para aquilo que se denominam prazeresespirituais, que consistem no entendimento; e tais prazeres serão, de fato, tanto maiores quanto maisacentuada for essa preponderância. [4] O homem normal, vulgar, só nutre um interesse vívido por algo namedida em que excita sua vontade, ou seja, na medida em que é um interesse pessoal. Mas a excitação contínuada vontade nunca é um bem puro, ou seja, envolve dor. Os jogos de cartas, essa ocupação universal da “boasociedade” em todos os países, são um meio de proporcionar esse tipo de excitação, e isso através de interessestão ínfimos que não podem acarretar mais que dores momentâneas e ligeiras, nunca dores permanentes esérias. O jogo de cartas, na verdade, pode ser considerado como simples cócegas da vontade. [5] Por outro lado,o homem dotado de grande força intelectual é capaz — e tem necessidade — de interessar-se vivamente pelascoisas no caminho da inteligência pura, sem qualquer mescla de vontade. Esse interesse o transporta então auma região onde a dor é essencialmente estranha; transporta-o, por assim dizer, à atmosfera onde os deusesvivem fácil e serenamente, Θεῶν ῥεῖα ζωόντων [dos deuses que vivem com leveza]. Entretanto, a vida dasmassas transcorre no entorpecimento, visto que seus pensamentos e desejos se dirigem para interessesmesquinhos do bem-estar pessoal, com suas misérias de toda espécie. Por tal razão, um tédio intolerável seapodera deles desde o momento em que tais objetivos estejam satisfeitos, e ficam reduzidos a si mesmos, sendoque apenas o fogo selvagem da paixão pode incitar ação nas massas embotadas e indolentes. Pelo contrário, aexistência do homem dotado de faculdades intelectuais excepcionais é rica em ideias e cheia de vida esignificado. Objetos dignos e interessantes ocupam-no assim que tiver a liberdade para devotar-se a eles,carregando dentro de si um manancial dos prazeres mais nobres. O estímulo exterior lhe vem das obras danatureza e da contemplação da atividade humana, assim como das muitas e variadas produções dos espíritosmais eminentes de todos os tempos e de todos os países; apenas tal homem será capaz de desfrutar tais obrascompletamente, pois é o único que pode compreendê-las e senti-las em sua plenitude. Logo, foi apenas para eleque os grandes espíritos viveram; para ele se dirigiram realmente; o resto não passa de ouvintes ocasionais queentendem uma coisa ou outra pela metade. Naturalmente, o homem de intelecto tem mais necessidades que osoutros homens, a necessidade de aprender, de ver, de estudar, de meditar, de praticar e, consequentemente,também a necessidade de ócio. Pois, como Voltaire observou exatamente, il n’est de vrais plaisirs qu’avec devrais besoins [não há verdadeiros prazeres sem verdadeiras necessidades]; e essa necessidade é a condiçãopara alcançar os prazeres que sempre serão inacessíveis aos demais. De fato, para esses últimos, mesmoquando estão rodeados de belezas da natureza e da arte, de obras intelectuais de toda espécie, tais coisas nofundo lhes são aquilo que cortesãs são para um velho. Como resultado, um homem assim privilegiado tem duasvidas, uma pessoal e uma intelectual. E essa última gradualmente chega a ser seu verdadeiro fim, para o qual aprimeira não foi considerada mais que um meio, enquanto que para o resto dos homens sua própria existência,superficial, vazia e atormentada, deve ser tida como um fim em si mesmo. O homem superior terá essa vidaintelectual como principal ocupação. Através da constante expansão de seu juízo e conhecimento, essa vidaintelectual, como uma obra de arte em vias de formação, adquire uma consistência, uma intensidadepermanente, uma unidade cada vez mais completa. Comparada com esta, as vidas puramente práticas dosdemais traçam uma contraste penoso, dirigidas unicamente ao conforto pessoal, uma vida que pode se alargar,mas nunca se aprofundar. Não obstante, como disse, para os demais tal vida deve ser considerada como um fimem si mesmo, enquanto que para o homem de intelecto é apenas um meio.

    Nossa vida prática, real, quando as paixões não a agitam, é tediosa e monótona; quando a agitam, torna-se

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    dolorosa. Por isso só são felizes aqueles que houverem recebido como patrimônio uma soma de inteligência queexcede a medida que o serviço de sua vontade reclama. Porque assim podem levar, além de sua vida efetiva,uma vida intelectual que os ocupa e diverte sem dor, podendo mantê-la vivaz e atarefada. O simples ócio, isto é,a inteligência desocupada a serviço da vontade, não basta; é preciso um excedente de força, pois apenas issonos torna aptos para uma ocupação puramente espiritual que não esteja a serviço da vontade. Pelo contrário,otium sine litteris mors est et hominis vivi sepultura [o ócio sem os estudos é morte e sepultura do homem vivo.(Sêneca, Epistulae, 82)]. Na medida desse excedente, a vida intelectual que existe ao lado da vida realapresentaria inumeráveis gradações, desde os trabalhos do colecionador que descreve os insetos, os pássaros,os minerais, as moedas, até as mais elevadas produções da poesia e da filosofia. Uma vida intelectual como estaprotege não só contra o tédio, mas também contra suas perniciosas consequências. Resguarda, com efeito,contra as más companhias e contra os numerosos perigos, as desgraças, as perdições e as extravagâncias a quese está exposto ao buscar sua felicidade apenas no mundo externo. Quanto a mim, por exemplo, minha filosofianunca me faz ganhar nada, mas me poupou de muitas perdas.

    O homem normal, pelo contrário, está limitado, quanto aos prazeres da vida, às coisas exteriores, tais como ariqueza, a posição, a esposa, os filhos, os amigos, a sociedade etc.; nisso se funda a felicidade de sua vida. Demodo que tal felicidade se desmorona quando essas coisas são perdidas ou o desiludem. Podemos caracterizaressa relação dizendo que seu centro de gravidade está fora dele. Por isso seus desejos e seus caprichos sãosempre variáveis; quando seus meios permitirem, comprará prontamente coisas como casas de campo oucavalos, dará festas ou empreenderá viagens; em geral, levará uma vida suntuosa, tudo isso precisamenteporque busca em qualquer parte uma satisfação vinda de fora. É como um homem extenuado que esperaencontrar em soluções e em remédios a saúde e o vigor cujo verdadeiro manancial é própria a força vital. Paranão passar imediatamente ao extremo oposto, tomemos agora um homem dotado de uma potência intelectualque, sem ser excessiva, excede, todavia, a medida comum e estritamente suficiente. Veremos esse homem,quando as fontes exteriores de prazer esgotarem-se ou deixarem de satisfazê-lo, cultivar de modo obcecadoalgum ramo das belas artes, ou então alguma ciência, tal como botânica, mineralogia, física, astronomia,história etc., e encontrar nela grande prazer e diversão. Por tal razão, podemos dizer que seu centro degravidade está parcialmente dentro dele. Não obstante, o mero diletantismo na arte ainda está muito distanteda faculdade criadora, e o mero conhecimento científico deixa de lado as relações dos fenômenos entre si, nãosendo capazes de absorver completamente o homem comum; não podem ocupar todo o seu ser e, porconseguinte, entrelaçar-se tão estreitamente na trama de sua existência que se veja incapaz de nutrir interessepor todo o resto. Isso está reservado exclusivamente à suprema eminência intelectual, comumente denominadagênio; somente ela toma como assunto, íntegra e absolutamente, a essência e a existência das coisas. Depois,segundo sua tendência individual, trabalhará para expressar suas profundas concepções a esse respeito pormeio da arte, da poesia ou da filosofia. Assim, apenas para um homem desse gênero é uma necessidadeirresistível a ocupação permanente consigo mesmo, com seus pensamentos e com suas obras; para ele, asolidão é bem-vinda, o ócio é o bem supremo e todo o mais é supérfluo; na verdade, quando o possui, muitasvezes é um fardo. Somente em relação a esse homem podemos afirmar que seu centro de gravidade estácompletamente dentro dele. Isso explica-nos, ao mesmo tempo, por que esses homens de uma espécie tão rara,mesmo os de melhor caráter, não conferem aos seus amigos, à sua família, à comunidade em geral esseinteresse íntimo e ilimitado de que muitos outros são capazes. Porque podem, em último caso, prescindir detudo, contanto possuam a si próprios. Existe, pois, neles um elemento isolante, cuja ação será tanto mais

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    enérgica na medida em que os demais homens não puderem satisfazer-lhes plenamente. Desse modo, nãopodem ver esses outros como seus iguais; na verdade, sentindo constantemente a dessemelhança de suanatureza em tudo e por tudo, habituam-se gradualmente a vagar entre os demais homens como se fossem seresde espécie distinta e, em suas meditações sobre os demais, a servir-se da terceira e não da primeira pessoa doplural. As virtudes morais beneficiam principalmente os outros; as virtudes intelectuais, por outro lado,beneficiam primariamente aqueles que a possuem; portanto, a primeira faz com que sejamos largamenteestimados, a segunda, ignorados.

    Considerado a partir desse ponto de vista, o homem mais bem dotado intelectualmente por natureza será o maisfeliz, de modo que sem dúvida o subjetivo está mais próximo de nós que o objetivo; pois o efeito desse último,seja qual for sua natureza, nunca trabalha senão por intermédio do primeiro, isto é, do subjetivo, sendo a açãodo objetivo apenas secundária. É o que escreve Luciano nestes belos versos:

    A riqueza da alma é a única riqueza;Os demais bens trazem mais problemas que vantagens.(Epigrammata, 12.)

    Um homem interiormente rico não pede ao mundo exterior mais que um dom negativo, a saber, ócio para podercultivar e desenvolver as faculdades de seu espírito e para poder desfrutar de suas riquezas interiores. Reclama,pois, unicamente, toda a sua vida, todos os dias e todas as horas, ser ele mesmo. Para o homem destinado aimprimir a marca de seu espírito na humanidade inteira, não existe mais que uma só felicidade e uma sódesgraça, isto é, poder aperfeiçoar suas habilidades e completar suas obras ou não. Todo o resto lhe éinsignificante. Por isso, vemos os grandes espíritos de todos os tempos concederem o maior valor ao ócio.Porque o ócio de um homem vale tanto quando ele próprio. Videtur beatitudo in otio esse sita [a felicidade estáno ócio], diz Aristóteles (Ética a Nicômaco, X. 7), e Diógenes Laércio (II.5.31) menciona também que Socratesotium ut possessionum omnium pulcherrimam laudabat [Sócrates exaltava o ócio como a mais bela dasriquezas]. Essa também é a compreensão de Aristóteles quando declara que a vida mais bela é a do filósofo (Ética a Nicômaco, X, 7, 8, 9). Mesmo aquilo que disse em Política (IV. II) é relevante: exercer livremente seutalento, seja qual for, é a verdadeira felicidade. E Goethe em Wilhelm Meister: wer mit seinem Talent zu einemTalent geboren ist, findet in demselben sein schönstes Dasein [quem nasceu com um talento, para um talento,encontra no mesmo a sua mais bela existência]. Todavia, possuir ócio não só está fora do destino comum, senãotambém da natureza comum do homem, pois seu destino natural é empregar o tempo em adquirir o necessáriopara sua existência e para sua família. Esse é um filho da miséria e da privação, não um espírito livre. Porconseguinte, o ócio converte-se rapidamente em um peso — e, logo, num martírio — para o homem vulgar assimque não puder ocupá-lo com medidas artificiais e fictícias de todo tipo: com o jogo, com passatempos ou comhobbies de qualquer gênero. Por isso mesmo, o ócio traz também perigos, e disse-se com razão que difficilis inotio quies [difícil é a quietude no ócio]. Por outro lado, uma inteligência que excede em muito a medida normalé igualmente um fenômeno anormal e, por conseguinte, inatural. No entanto, uma vez que exista, o homemdotado dela, para encontrar a felicidade, necessita precisamente desse ócio que, para os demais, éimediatamente inoportuno ou pernicioso, de modo que, sem ócio, não seria mais que um Pégaso tolhido e,portanto, desgraçado. Entretanto, se essas duas anomalias, uma exterior e outra interior, se encontramreunidas, sua união produz um caso de suprema felicidade, porque o homem assim favorecido levará então umavida de ordem superior, uma vida que se subtrai das duas fontes opostas de sofrimento humano, livre da

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    necessidade e do tédio, livre do cuidado penoso de dedicar-se a sustentar sua existência e da incapacidade desuportar o ócio (i.e. a existência livre propriamente dita). O homem não pode esquivar-se desses dois malessenão quando esses se neutralizam e se eliminam mutuamente.

    Tendo em vista tudo que foi exposto acima, devemos considerar, por outro lado, que as grandes faculdadesintelectuais, em consequência de uma atividade preponderante dos nervos, produzem uma grande sensibilidadeà dor, em todas as suas formas. Ademais, o temperamento apaixonado que condiciona tais dons e, ao mesmotempo, a maior vivacidade e perfeição de todas as imagens e concepções, que são inseparáveis deles, conferemàs emoções produzidas uma violência incomparavelmente mais enérgica, enquanto que, em geral, há maisemoções dolorosas que agradáveis. Por fim, devemos lembrar também que as elevadas faculdades intelectuaisfazem de seu possuidor um homem estranho ao resto da humanidade e às suas atividades. Isso porque, quantomais possui em si mesmo, menos pode encontrar nos outros, e cem objetos, nos quais os demais sentem umprazer infinito, lhe parecem insípidos e repugnantes. Talvez dessa maneira a lei de compensação, que reina emtudo, domine igualmente aqui. Já se afirmou com frequência, e não sem alguma razão, que no fundo o homemmais limitado de espírito é mais feliz, embora ninguém o inveje por tal felicidade. Não quero antecipar ao leitora solução definitiva dessa controvérsia, ainda porque o próprio Sófocles emitiu dois juízos diametralmenteopostos:

    Sapere longe prima felicitatis pars est.

    [O saber é a parte principal da felicidade. (Antígona, 1328.)]

    E, em outra parte, diz:

    Nihil cogitantium jucundissima vita est.

    [Na falta de inteligência consiste a vida mais agradável. (Ajax, 550.)]

    Tampouco os filósofos do Antigo Testamento entendem-se entre si. Temos: A vida de um tolo é pior que a morte!(Jesus de Sirach, 12:12); em contrapartida: Porque na muita sabedoria há muito enfado; e o que aumenta emconhecimento, aumenta em dor (Eclesiastes, 1:18). Entretanto, não quero deixar de mencionar aqui que ohomem sem necessidades espirituais, em virtude da medida escassa e estritamente normal de suas forçasintelectuais, é o que se designa por filisteu. É uma expressão exclusivamente própria da língua alemã,proveniente das universidades; mas, posteriormente, foi empregada em um sentido mais elevado, ainda queanálogo ao sentido original, que denota o oposto dos filhos das Musas. Assim, o filisteu é e permanece umἄμουσος ἀνήρ [homem abandonado pelas musas]. Colocando-me em um ponto de vista mais elevado, gostariade definir os filisteus dizendo que são pessoas constante e seriamente ocupadas com uma realidade que não érealidade. Entretanto, essa definição de natureza transcendental não se adequaria à perspectiva popular queadotei neste ensaio; poderia, por conseguinte, não ser compreendida por todos os leitores. A primeira definição,pelo contrário, admite mais facilmente uma elucidação especial e designa bastante bem a essência da questão,a raiz de todas aquelas qualidades que caracterizam o filisteu. Esse é, como temos dito, um homem semnecessidades espirituais. Disso segue-se que, no que diz respeito a ele próprio, nunca terá prazeres espirituais,segundo a máxima já citada, il n’est de vrais plaisirs qu’avec de vrais besoins [não há prazeres verdadeiros semnecessidades verdadeiras]. Nenhuma aspiração em adquirir conhecimento e juízo por eles próprios anima sua

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    existência, tampouco qualquer aspiração aos prazeres estéticos, porque essas duas aspirações estãoestritamente unidas. Quando a moda ou alguma outra autoridade lhe impõe esses prazeres, desvencilha-sedeles o mais rapidamente possível, como alguém condenado ao trabalho forçado. Os únicos prazeres para elesão os sensuais, com os quais se sente compensado pela falta dos demais. Assim, ostras e champanhe são o fimsupremo de sua existência, e o objetivo de sua vida é proporcionar para si mesmo tudo que contribua aobem-estar corporal. É feliz na medida em que esse fim o ocupe inteiramente. Porque, se esses bens lhe foramoutorgados de antemão, é imediatamente vítima do tédio, contra o qual se vale de todos os meios imagináveis,como bailes, teatros, sociedades, jogos de cartas, jogos de azar, cavalos, mulheres, bebidas, viagens etc. E, nãoobstante, tudo isso não basta para espantar o tédio quando a ausência de necessidades intelectuais tornaimpossíveis os prazeres intelectuais. Assim sendo, é uma característica própria do filisteu uma seriedade gravee seca, semelhante à do animal. Nada o alegra, nada o comove, nada desperta seu interesse; pois os prazeressensuais se esgotam prontamente, e as sociedades, sendo compostas de tais filisteus, tornam-se logo tediosas;por fim, até o jogo de cartas acaba por aborrecê-lo. Seja como for, resta-lhe ainda desfrutar, à sua maneira, dosprazeres da vaidade. Esses consistem em exceder os demais em riqueza, posição, ou influência e poder,conquistando com isso seu apreço; ou então cuidará de, ao menos, rodear-se daqueles que transbordam essasvantagens, para assim aquecer-se no reflexo de seu esplendor (um snob). Dessa natureza fundamental dofilisteu que acabamos de expor, segue-se que, no que diz respeito aos outros, como não possui necessidadesintelectuais, mas apenas físicas, buscará os homens que possam satisfazer essas últimas e não as primeiras. Aúltima coisa que espera de seus amigos é a posse de qualquer espécie de capacidade intelectual. Pelo contrário,quando as encontra, excitam sua antipatia e até seu ódio. Porque não sente em sua presença mais que umainoportuna inferioridade e uma inveja surda e secreta, que oculta com o maior cuidado, dissimulando-ainclusive para si mesmo; embora, precisamente por isso, converte-se às vezes em uma raiva muda. Desse modo,nunca pensa em medir seu apreço ou sua consideração pelas faculdades do espírito, mas restringe-seexclusivamente à posição e à riqueza, ao poder e à influência, que aos seus olhos constituem as únicasqualidades verdadeiras, nas quais também deseja se distinguir. Tudo isso decorre do fato de que são homenssem necessidades espirituais.

    Uma grande aflição para todos os filisteus é que as idealidades não os entretêm, e que, para se esquivarem dotédio, precisam sempre recorrer às realidades. Essas, por um lado, se esgotam rapidamente e, então, em vez dedivertir, fatigam; por outro, arrastam consigo desgraças e males de toda espécie. Já as idealidades, por sua vez,são inesgotáveis e, em si mesmas, inofensivas e inocentes.

    Em todas essas observações sobre as qualidades pessoais que contribuem à nossa felicidade, levei em conta ascondições físicas e, principalmente, as qualidades intelectuais. Para uma explicação sobre influência direta eimediata da perfeição moral sobre nossa felicidade, remeto o leitor ao meu ensaio premiado Sobre oFundamento da Moral, §22.

    A vida nômade, que representa o estágio mais baixo da civilização, pode também ser encontrada no mais elevado, onde todos1.são turistas ocasionalmente. O primeiro nasceu da necessidade, o segundo, do tédio.Aquilo que torna as pessoas sociáveis é exatamente sua pobreza interior.2.Esses alcançam sua prosperidade à custa de seu ócio; mas que benefício poderia haver na prosperidade se, para alcançá-la,3.devo abrir mão da única coisa que a torna desejável, a saber, o ócio?A natureza exibe um contínuo progresso, primeiro a atividade mecânica e química do mundo inorgânico, prosseguindo ao4.vegetal, com seu gozo surdo de si próprio, desse para o mundo animal, onde surgiu a aurora da inteligência e da consciência. Apartir desse precário início, sobe grau por grau, cada vez mais alto, e, no último e supremo passo, chega ao homem. Em seuintelecto, a natureza alcança o ponto culminante e o fim de suas criações, fornecendo assim o mais perfeito e mais difícilpresente que é capaz de produzir. Todavia, mesmo no interior da espécie humana, o entendimento apresenta numerosasdiferenças observáveis de grau, e apenas em casos extremamente raros alcança o grau mais elevado, uma inteligênciarealmente eminente. Esse é, pois, em seu sentido mais estrito e rigoroso, o produto mais difícil e supremo da natureza e,consequentemente, o mais raro e precioso que o mundo pode oferecer. Em tal inteligência, apresenta-se o conhecimento mais

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    sóbrio e nela se reflete o mundo de modo mais claro e completo que em qualquer outro objeto. Assim, o ser que está dotado detal inteligência possui o mais nobre e delicado que há na terra, possui um manancial de prazeres em comparação com o qualtodos os demais são ínfimos. Dessa forma, não pede nada do mundo exterior senão ócio para desfrutar em paz de seu bem epolir seu diamante. Pois todos os demais prazeres não-intelectuais são de natureza baixa; todos conduzem a movimentos davontade, tais como anseios, esperanças, temores e ambições, seja qual for sua natureza. Nada disso se realiza sem dor;ademais, no caso das conquistas, surge a decepção mais ou menos como uma regra, ao passo que com os prazeres intelectuaisa verdade se faz cada vez mais clara. Nenhuma dor existe no domínio da inteligência, nele tudo é conhecimento. Por isso, osprazeres intelectuais são acessíveis a todos por meio — e, portanto, na mesma medida — da própria inteligência; pois toutl’esprit qui est au monde, est inutile à celui qui n’en a point [toda a inteligência que há no mundo é inútil àquele que não temnenhuma (La Bruyère)]. Entretanto, uma desvantagem que sempre acompanha esse privilégio é que, em toda a natureza, asuscetibilidade à dor aumenta à medida que se eleva o grau de inteligência, chegando ao seu apogeu na inteligência maiselevada.A vulgaridade consiste, no fundo, no tipo de consciência na qual a vontade predomina completamente sobre o intelecto, onde o5.último não faz mais que estar a serviço de sua soberana, a vontade. Quando tal serviço não exige inteligência, quando nãoexistem motivos nem grandes nem pequenos, o entendimento cessa por completo e sobrevém uma vacuidade absoluta depensamentos. A vontade sem intelecto é a coisa mais comum e vulgar que há; algo que todo bronco possui e manifesta quandocai. Esse estado constitui, pois, a vulgaridade, no qual os únicos elementos ativos são os órgãos dos sentidos e a pequenaquantidade de intelecto necessária para apreender os dados dos sentidos. Por conseguinte, o homem vulgar sempre estáreceptivo a todas as impressões e percebe instantaneamente tudo que se passa ao seu redor, de modo que o menor som,qualquer circunstância, por insignificante que seja, desperta imediatamente sua atenção, assim como ocorre com os animais.Essa condição mental revela-se em seu semblante e no todo de sua aparência exterior; daí resulta a aparência vulgar cujaimpressão é ainda mais repulsiva quando, como é frequente, sua vontade — o único fator de sua consciência — é baixa, egoístae má.

    Capítulo III

    O que um homem temEpicuro, o grande doutor em felicidade, dividiu de modo admirável e judicioso as necessidades humanas emtrês classes. Primeiramente, as necessidades naturais e necessárias que, se não satisfeitas, produzem dor.Compreendem, pois, apenas o victus et amictus [comida e vestimenta] e são fáceis de satisfazer. Depois, asnecessidades naturais que não são necessárias, isto é, as necessidades de satisfação sexual, ainda que Epicuronão a afirme em relação a Laércio; (reproduzo, no geral, toda essa doutrina de forma sutilmente modificada ecorrigida). Essas necessidades são mais difíceis de satisfazer. Finalmente, as que não são naturais nemnecessárias, as necessidades do luxo, da abundância, da pompa e do esplendor, que são infindáveis e muitodifíceis de satisfazer. (cf. Diógenes Laércio, X, c. 27, §149 e §127, e Cícero, De finibus, I, c. 14 e 16).

    É difícil, senão impossível, definir o limite de nossos desejos razoáveis em relação à fortuna. Porque a satisfaçãoquanto a isso não repousa em uma quantidade absoluta, mas relativa, a saber, na relação entre os desejos e afortuna. Assim, pois, considerar as posses em si mesmas é algo tão desprovido de sentido como considerar onumerador de uma fração sem denominador. A ausência de certos bens aos quais um homem nunca pensou emaspirar não lhe faz falta alguma, e ficará perfeitamente satisfeito sem eles; enquanto outro, que possui cemvezes mais que o primeiro, se sentirá desgraçado porque lhe falta exatamente o objeto que deseja. Nesserespeito, cada qual tem também seu próprio horizonte do que lhe é possível conseguir, e suas pretensões nãoultrapassam esses limites. Quando um objeto, situado dentro de seus limites, se lhe apresenta de tal maneiraque possa estar seguro de consegui-lo, se sentirá feliz; pelo contrário, se sentirá desgraçado se obstáculos odespojarem dessa perspectiva. O que está além desse horizonte não exerce nenhuma influência sobre ele. Porisso a grande fortuna do rico não incomoda o pobre; por outro lado, quando fracassa em seus planos, o homem

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    rico não é consolado por todas as riquezas que já possui. A riqueza é como a água do mar; quanto mais se bebe,mais sede produz; o mesmo ocorre também com a glória. Após a perda de riqueza ou posição, nosso humorhabitual não diferirá muito do que antes nos era próprio, assim que a dor inicial for superada. O motivo disso éque, havendo o destino diminuído nossas posses, nós próprios reduzimos nossas pretensões na mesma medida.No caso de uma desgraça, essa operação é extremamente dolorosa; uma vez verificada essa operação, a dor sefaz cada vez menos intensa e acaba por desaparecer; a ferida se cicatriza. Contrariamente, no advento de umacontecimento feliz, nossas pretensões se elevam e se dilatam; nisso consiste o prazer. Porém, esse não duramais que o tempo necessário para que essa operação seja realizada. Habituamo-nos à escala ampliada denossas pretensões e nos fazemos indiferentes às riquezas que lhe são correspondentes. É isso que afirma apassagem de Homero, Odisseia, XVIII. 130—7, cujos dois últimos versos são:

    Tal é o espírito dos homens terrestres, semelhantes aos dias concedidos pelo Pai de todos os homens ede todos os deuses.

    A origem de nossa insatisfação está em nossos esforços sempre renovados para elevar o fator de nossaspretensões, enquanto que o outro fator permanece fixo e impede que isso aconteça.

    Com uma raça tão pobre e cheia de necessidades, não surpreende que a riqueza seja estimada, e até venerada,mais intensa e sinceramente que qualquer outra coisa, e mesmo o poder não é considerado senão como ummeio para atingir a fortuna. Não nos surpreende tampouco ver os homens porem de lado ou passarem por cimade qualquer outra consideração quando se trata de adquirir riquezas, por exemplo, quando vemos os própriosprofessores de filosofia se aproveitarem da filosofia para enriquecer.

    Os homens são frequentemente acusados por seus desejos dirigirem-se principalmente ao dinheiro e por oamarem acima de tudo. Não obstante, é muito natural, e mesmo inevitável, amar aquilo que, como um Proteuinfatigável, a qualquer momento está pronto a tomar a forma do objeto atual de nossos desejos cambiantes oude nossas necessidades tão diversas. Isso porque qualquer outro bem não pode satisfazer mais que um sódesejo, mais que uma só necessidade; por exemplo, os alimentos não valem senão para aquele que tem fome, ovinho para aquele que está sóbrio, os medicamentos para o enfermo, um cobertor durante o inverno, asmulheres para a juventude etc. Todas essas coisas são boas apenas para um propósito específico, isto é, sãorelativamente boas. Apenas o dinheiro é o bem absoluto, porque não satisfaz uma única necessidade in concreto,senão a necessidade em geral, in abstracto.

    A fortuna disponível deve ser considerada como um baluarte contra o grande número de males e desgraças quepodem suceder. Não devemos considerá-la como uma permissão e ainda menos como uma obrigação de ter quebuscar os prazeres do mundo. As pessoas que, sem terem fortuna patrimonial, chegam por seu talento aporem-se em condições de ganhar muito dinheiro quase sempre são vítimas da ilusão de acreditar que seutalento é um capital permanente e que o dinheiro que esse talento produz é, por conseguinte, o interessecapital. Assim, não reservam nada daquilo que ganham para consolidar um capital duradouro, mas gastam namesma medida em que ganham. Segue-se que, comumente, caem na pobreza quando seus ganhos diminuem oucessam por completo, porque seu próprio talento, passageiro por natureza, por exemplo, o talento para quasetodas as belas artes, se esgota, ou bem as circunstâncias especiais que lhe faziam produtivo desaparecem.Alguns artesãos podem, de fato, levar essa existência, porque as capacidades exigidas para seu ofício não seperdem facilmente ou podem ser supridas pelo trabalho de seus obreiros, ademais, seus produtos são objetos

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  • Aforismos para a Sabedoria de Vida Arthur Schopenhauer

    de necessidade, cuja demanda está sempre assegurada; um provérbio alemão diz com razão Ein Handwerk hateinen goldenen Boden [um trabalho manual vale como ouro]. Entretanto, não ocorre o mesmo com os artistas ecom os virtuosi de toda espécie, exatamente por isso são tão bem pagos. Assim sendo, aquilo que ganhamdeveria tornar-se seu capital, porém, em sua presunção, o consideram como se não fosse mais que os juros e,assim, rumam à sua ruína. Em contrapartida, as pessoas que possuem fortuna patrimonial sabem muito bem,desde o princípio, distinguir entre um capital e os juros. Assim, pois, a maioria tratará de assegurar seu capital,e não o hipotecará em caso algum; e até reservará, se possível, pelo menos um oitavo dos juros para aliviar umacrise eventual; dessa forma conseguem preservar sua riqueza. Nada do que acabamos que dizer se aplica aoscomerciantes, para os quais o dinheiro é, em si mesmo, o instrumento da ganância, o utensílio profissional, porassim dizer. Disso segue-se que, ainda quando o dinheiro é adquirido por seu próprio trabalho, buscarãoconservá-lo e aumentá-lo através do modo como o empregam. Assim, em nenhuma outra classe a riqueza é tãohabitual como na dos comerciantes.

    Em geral, se observará que, comumente, os que já vivenciaram verdadeira necessidade e privação as tememmenos e estão mais inclinados à extravagância que os que não conhecem esses males senão por referência. Àprimeira categoria pertencem todos os que, por qualquer sorte ou por habilidades especiais, tenham passadorapidamente da pobreza ao bem-estar; à outra, os que tenham nascido com fortuna e a conservaram, e quecomumente se preocupam mais com o porvir e, portanto, são mais econômicos que os primeiros. Daí se poderiadeduzir que a necessidade, vista desse ângulo, não é uma coisa tão má como parece. Não obstante, a verdadeirarazão talvez seja que, para o homem nascido com uma fortuna patrimonial, a riqueza parece algo indispensável,como o elemento da única existência possível, como o ar. Logo, cuidará dela como sua própria vida e será,geralmente, ordeiro, prudente, precavido e econômico. Pelo contrário, para aquele que, desde seu nascimento,viveu na pobreza, esta lhe parecerá o estado natural; mas a riqueza que, de algum modo, adquirirposteriormente, será considerada uma coisa supérflua, útil apenas para desfrutar dela e esbanjá-la. Pois,quando a houver perdido, saberá sair do apuro sem ela como antes, e ainda se livrará de um peso. As coisas sãocomo Shakespeare diz em Henrique VI (III, I, 4):

    The adage must be verifiedThat beggars mounted run their horse to death.

    [deve cumprir-se o adágio, que o mendigo montado faz seu cavalo galopar até a morte.]

    Acrescentemos que essas pessoas possuem, não tanto em sua cabeça como em seu coração, uma firme eexcessiv