adorno e a educação pelo rádio

Upload: barbaragama

Post on 30-May-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/14/2019 Adorno e a Educao Pelo rdio

    1/17

    477Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 477-493, agosto 2003Disponvel em

    ADORNO E A EDUCAO MUSICAL PELO RDIO*

    IRAY C ARONE**

    RESUMO: Este artigo uma exposio do estudo analtico de umprograma semanal da National Broadcasting Company (NBC), The Music Appreciation Hour , destinado a crianas e jovens escolares, reali-zado por Theodor W. Adorno durante sua participao no PrincetonRadio Research Project (1938-1941). Tem duas partes: na primeira, Adorno analisou a pedagogia musical do programa; na segunda, apon-tou para as implicaes culturais desse programa, que, embora no co-mercial e sustentado pela prpriaNBC, tinha todas as marcas da inds-tria do entretenimento comercial.Palavras-chave : Theodor W. Adorno. Apreciao musical. Indstria

    do entretenimento. Projeto de Princeton.

    A DORNO AND THE MUSICAL EDUCATION THROUGH RADIO BROADCASTS

    ABSTRACT : This paper is an exposition of the analytical study of The Music Appreciation Hour , a weekly classical music program of the National Broadcasting Company directed to children andyoung students, that Theodor W. Adorno carried out during hisparticipation in the Princeton Radio Research Project (1938-1941). This study comprises two parts: in the first one, Adornoanalyzed the musical pedagogy of the program, while in thesecond one, he pointed out the cultural implications of the programthat, despite its non commercial character andNBC support, carriedall the marks of the entertainment industry.Key words : Theodor W. Adorno. Music appreciation. Entertainment

    industry. Princeton Project.

    * Mrcia Carone, minha irm.** Professora Assistente Doutora aposentada do Instituto de Psicologia da Universidade de S

    Paulo (USP) e pesquisadora da Universidade Paulista (UNIP). E-mail : [email protected]

  • 8/14/2019 Adorno e a Educao Pelo rdio

    2/17

    478 Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 477-493, agosto 2003Disponvel em

    egundo Horowitz (1993), antes da Primeira Grande Guerra, apedagogia musical nos Estados Unidos da Amrica do Norteenfatizava a necessidade de se aprender a ler msica, a tocar um

    instrumento e a perceber a forma da sonata e outros elementos da

    estrutura musical. Da surgiram os apreciadores musicais, que sedirigiam s classes mdias para popularizar um novo elitismo: o detornar a grande msica um privilgio democrtico. Com o adventoda radiodifuso, nos fins dos anos de 1920, os programas de msicaclssica concentravam-se na reputao e na personalidade os grandecompositores, os grandes intrpretes com estratgias publicitriaspara vender catlogos de discos; a National Broadcasting Company(NBC), de David Sarnoff, comandava tanto a maior rede de estaes

    de rdio da nao como a gravadoraRCA

    Victor. A realizao maisnotvel e prestigiada de Sarnoff foi a contratao de Walter JohannesDamrosch, concertista emigrado alemo, de 1928 a 1942, para umprograma semanal de apreciao musical dirigido s crianas e ao jovens das escolas norte-americanas, como complementao aocurrculo de msica.

    Quando Theodor W. Adorno foi contratado por Paul F.Lazarsfeld para participar da seo musical doPrinceton Radio Research

    Project , em 1938, realizou um estudo analtico do j consagradoprograma de educao de msica clssica pelo rdio,The NBC Music Appreciation Hour Conducted by Walter Damrosch. O artigo resultantedesse estudo ficou nos arquivos da Universidade de Columbia (Nova York) at 1994, quando foi redescoberto por musiclogos e publicadodepois de 55 anos, na revistaThe Musical Quarterly .

    interessante notar que o artigo de Adorno, intitulado Theanalytical study of theNBC Music Appreciation Hour, no foi

    publicado pelas duas antologias doRadio Research, por razes queagora se tornaram bastante bvias: ele no agradou a ningum. Muitoembora Adorno j fosse reconhecido como um excelente conhecedode msica clssica (a despeito das discordncias de Bernard H.Haggin, em Music in the nation) a sua crtica musical tornou-seinaceitvel na poca, porque atacava um programa educativo,aparentemente sem fins comerciais e no lucrativo, promovido pelarede para pessoas em idade escolar, de vrias partes do pas, que npodiam ter o privilgio de freqentar as grandes salas de concertos.

    Esse programa atingiu no ano de 1937, segundo consta, cercade 7 milhes de estudantes de 70 mil escolas dos Estados Unidos.

  • 8/14/2019 Adorno e a Educao Pelo rdio

    3/17

    479Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 477-493, agosto 2003Disponvel em

    Dirigido por Damrosch, cujos arranjos musicais eram executados pelaorquestra daNBC, a sua programao era semelhante, mas bastanteampliada, ao repertrio gravado por Toscanini naRCA Victor.

    A rigor, o programa objetivava popularizar a msica clssica eao mesmo tempo fazer de Damrosch (que Adorno e os europeus notinham em alta conta como msico) o principal embaixadoramericano da compreenso e da apreciao musicais (Horowitz,1993) para as crianas e os jovens das escolas norte-americanasObviamente, era dedicado ao ensino complementar da apreciao damsica por intermdio do meio de comunicao mais abrangente,popular e ubquo de que se tinha notcia: o rdio. Era acompanhadopor quatro manuais dirigidos aos estudantes (Students Worksheets ) e

    um guia dos professores de msica (Teachers Guide ), publicados pelaeditora da Universidade de Columbia em 1939.O objetivo de Adorno, segundo as suas prprias palavras, era o

    de mostrar que a radiodifuso, mesmo quando se prope a colocar noar programas musicais de carter puramente educacional, falhava emlevar os ouvintes-destinatrios a uma relao viva e real com a msicou seja, a ter uma verdadeira experincia musical.

    Alm de acompanhar as apresentaes musicais do programa,

    que ocorriam s sextas e aos sbados, Adorno tomou como objeto deanlise os materiais impressos para os professores e alunos virtuais(ao que tudo indica, o programa foi muito bem-sucedido nas escolas,pois Damrosch chegava a receber cerca de 50 mil cartas de alunospor ano).

    Essa anlise disse respeito pedagogia musical do programa es suas implicaes culturais. Na primeira parte, foram examinadocriticamente os postulados implcitos nos quatro manuais do

    estudante. Na segunda parte, o alvo principal da crtica adorniana foia esttica do efeito, que reduzia a apreciao musical ao prazer ou diverso derivados da audio, subordinando a msica sria sexigncias da indstria do entretenimento comercial, condicionandoo ouvinte a um tipo de audio regredida e convertendo a culturamusical numa cultura de aparncia.

    Embora a expresso indstria cultural tenha aparecidoposteriormente, naDialtica do esclarecimento, os modelos de crtica

    cultural de Adorno j se estavam esboando nesse estudo analticomsicas clssicas, geradas muito antes da sociedade industrial egozando de autonomia como obras de arte, foram convertidas em

  • 8/14/2019 Adorno e a Educao Pelo rdio

    4/17

    480 Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 477-493, agosto 2003Disponvel em

    pseudocultura pelos monoplios comerciais da msica, com afinalidade de democratizar a msica clssica e promover umaaparente elevao cultural das audincias:

    Ser mostrado que no apenas h insuficincia na parte puramente musicae pedaggica do programa, mas tambm que ele conduz a um mundo mu-sical fictcio dominado pelos nomes de personalidades, etiquetas estilsticasvalores pr-digeridos que no podem ser experienciados pela audincia dMusic Appreciation Hour; na verdade, o programa apresenta o material demodo a fomentar, de modo proposital ou no, atitudes estereotipadas e con-vencionais, ao invs de levar compreenso concreta do sentido musical(Adorno, 1994, p. 326)

    Embora reconhecendo a existncia de algumas idias excelentesnos materiais impressos, bem como os esforos da redeNBC para apreparao e organizao dos concertos, Adorno disse que as falhas dpedagogia musical do programa foram devidas a causas mais profunda

    Consideramos como a mais importante dessas causas a tendncia ideolgicmencionada no artigo sobre uma crtica social da msica no rdio. O rdio,como uma empresa dentro de uma cultura comercial, forado a promover,no interior do ouvinte, uma atitude ingenuamente entusiasta com relao aqualquer material que se lhe oferea, e assim, indiretamente, em relao aoprprio rdio. Este vis promocional do rdio um obstculo permanentepara se alcanar uma relao adequada com um material musical preeminentemente srio. (Idem, ibid., p. 327)

    1. Anlise pedaggica e musical A primeira parte, como j dissemos, a anlise pedaggica e

    musical do contedo dos quatro cursos dos manuais do estudante. Oobjetivo mais geral destes era o de conduzir os estudantes do lado dfora para o lado de dentro da msica, por meio dos seguintes passos(1) Srie A estudo da famlia orquestral, ou seja, dos instrumentosmusicais; (2)Srie B estudo das idias e imagens transportadas peloveculo musical; (3)Srie C estudo da estrutura e das formas damsica pura; e (4)Srie D estudo do significado da msica comoexpresso da vida e da poca do compositor. Pretendiam levar oestudante a entender o mundo musical por etapas e de acordo com odesenvolvimento psicolgico das crianas: dos aspectos fsicos imaginativos da msica aos mais abstratos e intelectuais, ou seja, teoria musical propriamente dita. De acordo com o guia do professor:

  • 8/14/2019 Adorno e a Educao Pelo rdio

    5/17

    481Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 477-493, agosto 2003Disponvel em

    No levando em considerao a ordem seguida, entretanto, o atrativo daS-rie Adepende em larga medida do grau de familiaridade que as crianas pos-sam vir a ter dos vrios instrumentos orquestrais como personalidades e nomeros sons desencarnados. Da a importncia de se usar cartes coloridos dinstrumentos ou de trazer alguns instrumentos reais para as salas de aula sempre que for possvel. (Idem, ibid., p. 330) Adorno disse, a esse respeito, que no se devia exagerar a

    importncia do lado descritivo e fsico da msica, porque, embora hajauma tradio que personaliza os instrumentos orquestrais, os sonsinstrumentais so apenas meras funes da estrutura do todo damsica, sem nenhum valor intrnseco como sons individuais. Nestesentido, a ateno do estudante no devia ser desviada pedagogicamente para o que apenas subsidirio, ou seja, os meios no deveriamsubstituir os fins. Orientada para discernir os sons de uma flauta aoouvir uma sinfonia de Haydn, por exemplo, a criana poder se sentirtrada pelos adultos, pois numa sinfonia de Haydn os instrumentosno falam como personalidades, mas funcionam dentro da coernciadas partes (idem, ibid.). Alm disso, uma criana que espera pelaentrada deste ou daquele instrumento, ao ouvir uma sinfonia, podeno ouvir a prpria msica ao se concentrar no reconhecimento decada instrumento. A sua mente habitua-se a se concentrar emaspectos tcnicos (technique-minded ), com a converso dos meios(instrumentos) em fins em si mesmos, numa atitude fetichista comrelao msica.

    Com relao aos aspectos imaginativos, objeto daSrie B , Adorno disse que raramente aparecem descries da natureza oualgo semelhante na msica. No obstante isso, o manual do estudantedizia, a respeito de animais na msica:

    A Cavalgada das Valqurias descreve o vo dos cavalos atravs das nuveNs ouvimos os sons dos cascos no galope (trompa e violoncelo), os seus relinchos (instrumentos de sopro), a cano de batalha das virgens (trombetase trombones) e os seus sinistros gritos de guerra (instrumentos de corda)(Idem, ibid., p. 333)

    No entanto, as Valqurias e os cavalos so apenas entidadesmticas pelas quais a msica de Wagner tenta transfigurar as nuvensa tempestade e o relmpago. A Cavalgada das Valqurias o que

    se pode chamar de mitologizao musical de uma trovoada e nadamais que isso. Logo, dificilmente a criana ir perceber cavalorelinchando ou galopando, ao ouvir o que no pretende ser uma

  • 8/14/2019 Adorno e a Educao Pelo rdio

    6/17

    482 Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 477-493, agosto 2003Disponvel em

    descrio fsica da natureza. Seria suficiente, diz Adorno, contar aela algo sobre o mito das Valqurias e o ritmo da msica.

    Outro problema apontado por Adorno, naSrie B , disserespeito aos temas musicais. Pretendia-se criar o hbito nosestudantes de se dar a ateno aos temas, a toc-los ou a segui-loscomo uma abordagem mais externa do que interna msica:

    O tema sendo o lado de fora da msica e a estrutura o lado de dentro, atendncia em direo audio atomstica (que o problema principal dacrtica social da msica no rdio) aqui expressamente fomentada peloMusic Appreciation Hour. A idia de que o tema o mais fcil na msicaconduz novamente a uma mudana da ateno do todo para a parte. (Idem,ibid., p. 331)

    A audio atomstica , na verdade, uma forma de regresso daaudio, que torna impossvel a compreenso de uma sinfonia comouma unidade completa e funcional, na qual o tema e o seu desenvol-vimento no podem ser separados. A criana, entretanto, pode serconduzida a uma apreenso da totalidade ou da unidade musicalatravs de um mtodo simples, sugerido por Adorno: ela deve tocarou cantar uma melodia infantil tal comoLondon bridges is falling down. Em seguida, como aprendeu a cano sem lhe ocorrer que elatem um tema distinto do desenvolvimento, poder analis-lasegundo o motivo fundamental que repetido e variado. Dessa formapoder entender que o tema nada mais que ummaterial domovimento e no o seu objetivo ou essncia. A noo de tema, entono desaparecer, mas a ele ser dado o seu lugar certo e ganhar poa o seu verdadeiro significado. A necessidade fomentada peloseducadores musicais de levar os alunos a reconhecerem uma msicpela identificao ou citao de seus temas repousa numa concepofetichizada da msica, cujas implicaes culturais Adorno pretendeutirar na segunda parte de sua anlise.

    A Srie Dapresentava um programa de Bach precedido por umresumo de sua biografia, corretamente caracterizando-o como o fimde uma era e o comeo de outra, pois foi o ltimo grande compositorda escola polifnica e, ao mesmo tempo, o fundador de toda a msicamoderna. No entanto, dentro da abordagem que pretendia ir doconcreto para o abstrato, o manual dizia: Bach nasceu na pequenacidade de Eisenach, Alemanha, sombra do castelo Wartburg, que tambm conhecido por ns como o local de uma das grandes cenasdo Tannhuser de Wagner (Adorno, 1994, p. 334).

  • 8/14/2019 Adorno e a Educao Pelo rdio

    7/17

    483Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 477-493, agosto 2003Disponvel em

    O elo estabelecido entre Bach-Eisenach-Wartburg-Tannhuser- Wagner, diz Adorno, puramente fortuito, no tendo nenhuma basena msica e nos compositores em questo: o castelo Wartburg temcertas associaes com cavalheiros, glamour medieval, armaduras

    brilhantes e lindas donzelas; na msica de Bach no h absolutamentenada que sugira tais caractersticas. Conseqentemente, de umaabsoluta falta de gosto introduzir Bach em termos de um herioperstico, ou no distinguir o compositor de suas criaturas,contribuindo para coloc-los no mesmo panteo de grandeza,indiscriminadamente adorados pelo lado externo.

    Apesar de as crticas de Adorno pedagogia adotada peloprograma terem sido, at agora, muito pontuais, as suas anlises da

    teoria musical, explcita ou implcita a ele, foram as mais srias edefinitivas. Sem dvida, a parte conceptual dos manuais era a quemais comprometia negativamente o objetivo educacional doprograma daNBC.

    A introduo da teoria musical dos manuais correu por contade Charles H. Farnsworth e outros especialistas, mas os conceitosprincipais foram expressos de tal modo que se tornaram incom-preensveis para aqueles que no tinham familiaridade com as

    estruturas musicais. Ao tentar descrever a msica como unidadeestrutural, o autor usava a expresso movimento ideal para caracterizar uma melodia, tentando passar a idia de que os movimentosmusicais no so movimentos que ocorrem no mundo externo, masdentro da esfera particular do som estruturado. O termo ideal, porsua vez, carregava consigo associaes erradas, a do padro dperfeio platnica. Segundo Adorno, essa assero incompreensvepara crianas e jovens seria fundamental para o entendimento da

    estrutura e das formas musicais, objetivo maior daSrie C. Adorno sugeriu, dentro da abordagem externo/interno dapedagogia do programa, que a relao entre a abertura e a sinfoniafosse explicada imediatamente quando o Coriolanus estivesse sendapresentado pela orquestra, ou seja, como o momento correto para seentender a abertura como um enredo dramtico. Dessa maneira, assinfonias posteriormente executadas seriam apreendidas pelos alunocomo indissociadas da abertura, ou seja, como dramas musicais.

    A apresentao da seqncia das formas musicais, no programapareceu se basear na suposio de que o desenvolvimento histrico dmsica coincidia com o desenvolvimento do simples ao complexo, o

  • 8/14/2019 Adorno e a Educao Pelo rdio

    8/17

    484 Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 477-493, agosto 2003Disponvel em

    que palpavelmente absurdo, diz Adorno. A velha forma da fuga, poexemplo, uma das mais difceis de ser entendida pelo leigo. Oprocedimento pedaggico correto seria discutir a forma da fuga emcontraste com a sua contrapartida, a forma da sonata; depois de

    elaborar as semelhanas e os contrastes entre as duas mais integraisformas musicais, poder-se-ia esclarecer que a primeira fundamentalmente esttica e a segunda, dinmica, bastando para isso compararuma fuga de Bach, ou de algum predecessor, com uma sonata deBeethoven.

    Outra impropriedade pedaggica dos manuais, segundo Adorno, era a sua abordagem dos compositores, como se houvesse umdesenvolvimento unilateral e evolutivo da msica: primeiro, apresen

    tavam um concerto de Bach; depois, um concerto de Hndel, at sechegar s sinfonias romnticas de Tchaikovski. As ltimas, no entantoestariam mais prximas da conscincia musical dos jovens, acostumados com a msica romntica de efeitos emocionais.

    Adorno sugeriu, ento, uma seqncia diferente e inversa primeira: primeiro, apresentao e discusso de peas sinfnicas dSchubert, no s por causa da pequena dificuldade em segui-las, matambm para que o aluno aprendesse a analisar o seu esqueleto

    estrutural. A seguir, se tornaria mais fcil abordar Haydn, harmonica-mente mais primitivo que Schubert, mas com maior densidadetemtica que aquela que encontramos no primeiro movimento daSinfonia em C maior de Schubert. Desse modo, o aluno poderiareconhecer neste as formas que j aprendeu naquele. A discusso sobrHaydn poderia ser conduzida suavemente para Mozart, de tal modoque as diferenas entre os seus mtodos de composio pudessem semostradas e compreendidas. A partir dos trs concertos anteriores,estaria preparado o caminho para se entrar numa sinfonia deBeethoven. Os artifcios polifnicos do perodo tardio da obra deBeethoven, por sua vez, constituiriam uma boa transio para umadiscusso da msica de Bach, que deveria ser iniciada com peas nocontrapontsticas.

    De qualquer maneira, os concertos no deveriam ser apresenta-dos mediante arranjos orquestrais, tal como Damrosch vinhafazendo, mas em sua clareza original e economia de meios (idemibid., p. 339).

    A seguir, Adorno analisou todos os erros pedaggicos econceituais do programa, sobretudo daSrie C : a falta de especifici-

  • 8/14/2019 Adorno e a Educao Pelo rdio

    9/17

    485Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 477-493, agosto 2003Disponvel em

    dade na explicao na forma do rond e o efeito devastador dessafalha explicativa, quando se tem de tratar do mais importante tipo deforma musical, a sonata (essencialmente diferente da primeira):

    Compreender a sonata significa ouvir do modo correto, nada mais e nadamenos. Como o Music Appreciation Hour ajuda a fomentar tal escuta? A forma da sonata explicada pelo Hour em termos absolutamente esque-mticos, tais como: exposio, desenvolvimento e recapitulao. Podemos eperar, ento, que o jovem ao ouvir, pela primeira vez, que a sonata intelectualmente sofisticada e que a sua forma A-B-A, julgar a msica como muto barulho por nada. (Idem, ibid., p. 343)

    Erroneamente, pois, o princpio do desenvolvimento quegoverna o todo da forma da sonata reduzido, nessa explicao, seo do meio oficialmente chamada de desenvolvimento. Trs pontodeveriam ser absolutamente esclarecidos para o aluno alcanar umacompreenso real da forma da sonata, sem a qual Haydn, Mozart eBeethoven permanecero livros fechados para ele: (a) o princpio ddesenvolvimento geral, ou princpio dinmico, como base da formada sonata; (b) o fechamento e a economia completa da forma dasonata (em comum com a fuga, embora ela seja fundamentalmentedinmica); (c) a sonata como a tentativa de se alcanar uma unidademusicalmente completa dentro da multiplicidade.

    2. A promoo da pseudocultura musicalDisse Adorno que as falhas pedaggicas e musicais do programa

    da NBC, evidenciadas pela anlise, combinavam com uma idiaantiintelectualista da prpria apreciao musical, ao reduzi-la aosefeitos da msica sobre o ouvinte:

    A apreciao seria a soma total dos efeitos musicais no ouvinte. uma nocomum em esttica desde a definio de tragdia por Aristteles como umforma de arte cujo objetivo era o de produzir os efeitos de piedade e medono espectador. Goethe estava plenamente consciente do perigo disso quan-do escreveu: a perfeio da obra de arte em si mesma o postulado eterno indispensvel. Que pena que Aristteles, que sempre teve o perfeito diantede si, tivesse pensado no efeito!. (Idem, ibid., p. 353)

    fcil perceber que a esttica do efeito mais perigosa aindaquando se vive numa sociedade de mercado, que vive de provocarefeitos comportamentais no consumidor. Alm disso, uma com-

  • 8/14/2019 Adorno e a Educao Pelo rdio

    10/17

    486 Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 477-493, agosto 2003Disponvel em

    preenso incorreta da apreciao supor que o efeito da obra de arteseja idntico ao seu significado, ou que a inteno da obra de arte ade criar tal efeito.

    No caso de uma experincia esttica inteiramente adequada, oefeito da obra de arte e a apreenso plena do seu significado, por umouvinte ideal, coincidiro. Mas esta coincidncia no se presumeexistir quando se trata da apreciao musical das crianas e dos jovenDessa maneira, diz Adorno, um erro do programa supor ou trataros seus alunos como ouvintes ideais para os quais o significado dobra de arte e o efeito sobre eles coincidiro. Na verdade, o efeito damsica seria concebido, pelo programa, como o ponto de partida daapreciao, mas tambm o seu ponto de chegada ou objetivo o que

    um evidente crculo vicioso. Talvez isso sinalizasse, afinal, a poucrelevncia dada pelo programa compreenso intelectual da msicacomo se a apreciao fosse uma mera fruio sensorial da arte musicaum encantamento dos sentidos. Mas, o que seria o efeito, de acordocom o guia do professor?

    A discusso pode incluir (...) se a pea permanece coerente quase at aoponto da monotonia, ou se ela muda continuamente at aonde a imagina-o levar, a nenhum lugar em particular, ou se ela tem a medida suficientedo mesmo e do diferente (unidade e variedade) para nos agradar. (Apud Adorno, 1994, p. 354)

    Para um jovem sem experincia musical, diz Adorno, uma peade msica moderna avanada parecer levar a nenhum lugar emparticular, justamente porque ele incapaz de compreender asrelaes sutis que constituem a sua estrutura ou o padro complicadode sua forma. Mas, ento, o compositor deveria ser proibido deescrever tal obra?

    Isso significaria a inaugurao da lei do mnimo esforo como a qualidadsuprema da msica, e a auto-satisfao filistina e a ignorncia seriam os juzde seu valor esttico. Isso sem dizer que no apenas a compreenso, mas tambm o prazer, no sentido primitivo recomendado pelo Hour, varia de sujei-to para sujeito, e que algo que nos agrada tal como concebido pelo Hourpode vir a impedir uma conscincia musical mais altamente desenvolvida, vice-versa (Adorno, 1994, p. 355).

    Este , sem dvida, o ponto principal da crtica de Adorno aoprograma de educao musical pelo rdio: se o efeito o propsitoda msica sria, ento a boa msica aquela que satisfaz o ouvint

  • 8/14/2019 Adorno e a Educao Pelo rdio

    11/17

    487Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 477-493, agosto 2003Disponvel em

    e nada exige dele. E como o ouvinte sempre tem razo, comoeventual comprador de discos, o que ser da msica sria que noatinge o seu senso musical j administrado comercialmente ereafirmado pelo programa?

    Por meio do discurso do ns que deveramos ser agradados, existe a idiinsustentvel de um sentimento musical natural. Esse sentimento musi-cal natural no existe: apenas a aparncia de atitudes historicamentemutveis, e pode-se dizer seguramente que o que hoje chamado de natu-ral musicalmente sobretudo o resduo de conveno passada. (Idem, ibid.

    Assim, algo que resduo social de convenes passadas representado como um trao inerente do prprio material musical;o uso moderado da dissonncia, por exemplo, recomendadopelo programa, como se ela no fosse muito natural aos nossosouvidos.

    A apreciao musical , no fundo, convertida em prazer ediverso. No h dvida alguma de que a noo de diverso ( fun),popular nos Estados Unidos e, numa certa medida, na Inglaterra,acaba jogando aqui um papel esttico. Relacionada com humor,diverso e relaxamento, essa noo pressupe que a arte no deva sesria, nem mesmo na esfera esttica, postulando, ao contrrio, quea arte contra a realidade rdua da vida real:

    A noo defun reflete um processo social que mecaniza e oprime o indiv-duo num tal grau que no seu tempo livre ele deve sentir alvio de suas responsabilidades. Em nossa poca, esse alvio assume, sob o nome defun , aforma de uma regresso infncia. O adulto que declara terfun est mol-dado pelo padro do menino brincalho, descuidado, frvolo, que certamen-te no existe como ouvinte musical. (Idem, ibid., p. 374, nota 18)

    Em outras palavras, ao conectar a apreciao musical com oprazer e a diverso, no sentido regredido da diverso, os educadoreesto subordinando a msica s categorias dos bens de consumo,particularmente com o entretenimento comercial e a esttica prticaadvogada pelo programa.

    Segundo o manual do aluno, aqueles que usam suas mentesmais ativamente obtero mais prazer ou diverso na escuta musicados concertos. Mas, diz Adorno, quanto maior a atividade mental,menor o relaxamento do sujeito que ouve e, portanto, maior ser adistncia com a diverso. A msica sria, ouvida de modo ativo oupassivo, no promove a diverso por sua prpria natureza.

  • 8/14/2019 Adorno e a Educao Pelo rdio

    12/17

    488 Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 477-493, agosto 2003Disponvel em

    Mesmo substituindo o termo diverso, to prprio daindstria do entretenimento, pelo termo prazer ( pleasure ), diz Adorno, ainda assim estaramos usando qualitativos gustativos para msica, ou seja, advogando um hedonismo musical (reivindicado

    explicitamente nos livros de Carl Seashore e Deems Taylor) que nostraz, por associao, a imagem de um violinista cigano tocando umapea de Beethoven num caf-concerto. A beleza dos coloridos musicaseria ento comparvel sensao de beleza experimentada diante dpinturas ornamentais de um pr-do-sol ou de uma bela jovem, ouseja, de uma beleza natural que no transmite jamais a idia de algoque estruturalmente belo.

    Assim, de acordo com os manuais daSrie C , numa sinfonia, o

    primeiro movimento exige que prestemos ateno aos seus padrescomplicados; o segundo permite-nos sonhar; o terceiro, relaxar; e oquarto eleva o nosso esprito a um alegre estado de exaltao mentalIsso lembra, diz Adorno, a receita de felicidade dada aos pobres: seles dormem num quarto frio, precisam apenas de colocar o p parafora do cobertor para sentir maior prazer e conforto em recoloc-losob o seu calor. O segundo e o terceiro movimentos de uma sinfonia,descritos inadequadamente como momentos que nos permitemsonhar e relaxar, no correspondem maior parte das sinfonias (comoo segundo da Quarta Sinfonia de Brahms, que no menos compli-cado que o primeiro). O mesmo acontece com o movimento final dasinfonia, que no conduz a um eufrico estado de exaltao mentalpois podemos ouvir uma pea musical altamente excitante de formaatenta e compreend-la sem nos excitarmos.

    Embora o programa tentasse tornar a msica sria acessvel scrianas, substituindo a expresso grande obra de arte pelos termodiverso e prazer, o resultado final foi o barateamento da msicsem, no entanto, diminuir a necessidade de adorao dos msicos comolderes espirituais. A educao musical, diz Adorno, no significa adorao dos msicos, mas sim o respeito pela obra, manifestado pelpreocupao do ouvinte com o sentido musical per se.

    O prazer da apreciao musical, segundo os mtodos doprograma, coincidiria com o prazer do reconhecimento: A msicaque conhecida e relembrada at que possa ser assobiada ou cantadou ser revista silenciosamente na mente, torna-se amada e ouvidacom apreciao (apud Adorno, 1994, p. 358). Ora, diz Adorno,no h dvida de que o reconhecimento tem um papel importantena experincia musical. Mas o programa estava enfatizando, de fato

  • 8/14/2019 Adorno e a Educao Pelo rdio

    13/17

    489Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 477-493, agosto 2003Disponvel em

    um prazer no-espontneo e no-imediato: o de possuir umconhecimento musical como uma propriedade. Mas isso est longe,sem dvida, da verdadeira compreenso musical. o prazer doavarento que aprecia o ouro que acumulou.

    O culto das personalidades, que no novidade na histria damsica, foi tambm uma caracterstica marcante do programa. A funo do culto da personalidade na msica teve, no entanto, umaspecto progressista no sculo XVI e no comeo do XVII. Mas,atualmente, diz Adorno, desempenha um papel manipulador nosetor musical. No caso do programa, o regente Damrosch foi coroadopor um halo de poderes misteriosos e mgicos de personalidade: MrDamrosch volta-se para a orquestra, ondula no ar a sua batuta como

    uma varinha mgica e instantaneamente lindas msicas so ouvidasem centenas de salas de aulas, do Maine Califrnia. Nenhum contode fadas mais maravilhoso que isso (idem, ibid., p. 361).

    Os compositores, tais como Beethoven e Mozart, so transfor-mados em gnios musicais, ou seja, em gigantes, em flagranteanalogia com os contos de fadas, de onde emergem miraculosamenteNo entanto, nenhuma explicao dada porque so consideradossuperiores com relao a outros compositores.

    Seria uma boa idia abrir um programa nesse curso, falando aos alunosVocs ouviram que Beethoven um grande compositor e essa conversa provavelmente os irrita. No mnimo, gostariam de saber por que ele grandequando comparado a outros compositores. porque colocou um coro finalna Nona Sinfonia, ou porque a pera Fidlio baseada em idias humanit-rias? porque introduziu a expresso subjetiva como um elemento bsico dmsica? Esta ltima certamente a sua contribuio mais notvel, mas se desejarmos compreender a msica de Beethoven, devemos saber como a expresso subjetiva pode ser percebida dentro da obra de Beethoven e comonos seus elementos especficos, essa msica superior a outra msica. Ento, poderemos comparar a msica de Beethoven com a de seus contempo-rneos. Apontaremos para os elementos especficos de sua tcnica, tal coma economia estrita de suas composies que utiliza cada pedao do materiatemtico e no apresenta nada que no tenha uma funo dentro do todo.(Idem, ibid., p. 362)

    Poderiam ser acrescentadas, para se dar pleno sentido musicalao termo grandeza, as comparaes entre compositores cujoprincipal valor foi o de representarem adequadamente o seu tempo(Corelli, Lully e, numa grande medida, Hndel) e Beethoven, cujamsica inerentemente um ataque s convenes musicais de seu

  • 8/14/2019 Adorno e a Educao Pelo rdio

    14/17

    490 Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 477-493, agosto 2003Disponvel em

    tempo. As explicaes poderiam ajudar na compreenso da msicasria moderna, que assim poderia ser interpretada como uma heranade Beethoven. Quando os alunos tiverem aprendido isso, no teronecessidade de cham-lo de gigante e percebero a sua singulari

    dade na devida proporo, no apenas historicamente, mas tambmem termos absolutos.Mas o mximo dessa exaltao de gnios da msica foi dirigida

    ao prprio Damrosch, numa linha de alta presso publicitria daNBC.Embora Damrosch no estivesse consciente disso, a publicidade jogavconjuntamente os holofotes sobre aNBC, nos manuais dos alunos:

    Ento apareceu o rdio. Mr. Damrosch viu que atravs dessa maravilhosa inveno ele poderia tocar praticamente a todos os jovens da nao. Com aajuda da National Broadcasting Company, ele fundou TheNBC Music Appreciation Hour, e por onze anos tem conduzido estes programas das sex-tas-feiras (...). Percebendo que atravs desse maravilhoso e novo meio ele poderia atingir milhes de ouvintes, ao passo que antes apenas tocava para algumas centenas de pessoas, organizou, com a cooperao da NationalBrodcasting Company, a srie de programas de concertos conhecida comoThe Music Appreciation Hour. (Apud Adorno, 1994, p. 364)

    Damrosch no era, de fato, um msico de valor notvel (o queno prejudicaria o empreendimento pedaggico do programa), masas fotografias e os letreiros que as acompanhavam, O seu condutor Walter Damrosch, sugeriam que esse esplndido e velho homem,esse Wotan da msica clssica descia das suas alturas e dava toda sua energia amorosa para as pequenas crianas.

    A idia de sucesso, emprestada da competio comercial, fotambm usada para designar o padro musical dos compositores. Naintroduo ao programa de Beethoven, daSrie D, foi dito:

    O gnio de Beethoven no teve de esperar pelo reconhecimento pstumo.Ele rapidamente alcanou a fama e se tornou bem-sucedido. Muito antes desua morte, teve a satisfao de saber que era considerado o maior compositode seu tempo. (Apud Adorno, 1994, p. 365)

    A aprovao pblica e a remunerao tornaram-se, pois, oscritrios para se julgar o alto padro musical de Beethoven. No casoem questo, bem sabido que Beethoven nunca se tornou bem-

    sucedido comercialmente, embora no tenha passado fome. Naverdade, quando alguns dos aristocratas austracos, que lhe garantiamuma pequena penso, morreram, parte dela foi cancelada e Beethoven

  • 8/14/2019 Adorno e a Educao Pelo rdio

    15/17

    491Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 477-493, agosto 2003Disponvel em

    precisou entrar em litgio para obter esse dinheiro. Mais tarde, caiuem dificuldades financeiras por causa de seu sobrinho e, aproximadamente, em 1821, foi preso pela polcia por causa de sua aparnciamiservel. No caso de Wagner, o programa usou o mesmo padro de

    avaliao: a histria de um homem que lutou na juventude e foidevidamente remunerado na maturidade, segundo o ditado latino per aspera ad astra.

    Novamente, diz Adorno, ocorreu uma distoro histrica darealidade, em prol da reafirmao da ideologia da cultura queentroniza os bens materiais e o sucesso nas finanas. Ora, issosignifica tambm desvalorizar a msica sria que ainda no alcanoaprovao pblica e fomentar uma atitude reacionria em termos

    musicais. Cita alguns exemplos do programa: a msica do excntrico Mahler preterida pelo gnio Sibelius, e a msica de SamueBarber valorizada pela sua moderao no uso da dissonncia.

    A totalidade dessas caractersticas do programa, Adornochamou-a de tendncia para produzir Babbitts musicais (refern-cia ao personagem George Babbitt, de Sinclair Lewis, que simboliza mediocridade cultural do homem norte-americano). A babiteria(babbittry ) musical, com sua nfase no efeito da msica sobre o

    ouvinte, fomenta a idia de que o relaxamento prazeroso a prpriafuno da msica. Neste sentido, fcil imaginar que a msica odescanso do guerreiro, isto , do homem de negcios que aps alabuta se permite uma espcie de entrega ao sentimentalismomusical. O antiintelectualismo manifesto por essa atitude tambmse revela na astcia com relao aos valores que mandam nomercado: para a babiteria, a importncia de alguma coisa pode semedida e expressa em termos quantitativos, ou seja, em termos do

    dinheiro que foi gasto com ela. A concluso de Adorno, ao final da anlise, de que se amentalidade filistina grassa entre aqueles que receberam educaomusical, ento no se poder esperar que os jovens, musicalmenteno-conscientes, tornem-se melhores que os seus educadores.

    Concluses

    A iniciativa educacional daNBC poderia merecer elogios porser um servio pblico prestado pelo rdio, em prol da democrati-zao da cultura musical. No entanto, a anlise de Adorno permitiu

  • 8/14/2019 Adorno e a Educao Pelo rdio

    16/17

    492 Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 477-493, agosto 2003Disponvel em

    mostrar como ela obedeceu aos interesses dos monoplios comer-ciais no setor musical, pela via da transmisso radiofnica. Noaparecia comobusiness porque no contava com patrocniocomercial e implicava enormes despesas daNBC. Mas tinha todas

    as marcas da indstria do entretenimento, de modo que a intenoeducativa foi solapada por uma inteno comercial no confessadaa de vender a msica clssica, alm de vender uma imagempromocional da redeNBC. Parece que a regra de ouro para secomercializar os clssicos a de converter a cultura em pseudocultura musical, a formao do ouvinte em semiformao e a aprecia-o musical em diverso.

    A anlise hipercrtica de Adorno poderia at parecer injusta e

    impertinente diante do enorme esforo daNBC. Mas parece quehoje, quando a indstria cultural da msica j realizou os seusobjetivos e chegou, com isso, sua plena e horrenda visibilidade, asuas palavras no parecem ser to indigestas quanto nos anos de1930 e 1940. Essa , inclusive, a opinio de muitos crticosmusicais dos anos de 1990 para c, como se Adorno tivessediagnosticado a doena ainda quando os sintomas eram iniciais econfusos, fora de um enquadre definido.

    Em ltima anlise, a apreciao musical conduzida peloprograma, sob a presso dos monoplios comerciais do setor musicalcriou uma espcie de homogeneidade (ou nivelamento por baixo)entre a msica como arte autnoma e a msica popular comercial,por meio do poder de massificao do rdio como um grande executordas tendncias objetivas de deteriorao cultural e da regresso daaudio.

    O programa de apreciao musical pelo rdio foi um

    fenmeno tipicamente norte-americano, que dependeu da existn-cia de grandes corporaes capitalistas invadindo o setor musicalde um lado, e de grandes redes de emissoras de rdio a percorrero pas inteiro, de outro. Mas hoje os monoplios da msica usamuma grande diversidade de estratgias para vender seus produtos,em qualquer parte do mundo. De certa maneira, os programas deapreciao musical parecem ser uma coisa ultrapassada, comoestratgias para atrair consumidores. Os discos compactos demsica clssica, os mais vendveis, atomizam e trituram a msicaclssica de modo tal que podemos ouvir uma srie de trechosmusicais, extrados de vrios compositores de pocas diferentesnuma tacada s, sem maiores esforos de compreenso e aprecia

  • 8/14/2019 Adorno e a Educao Pelo rdio

    17/17

    493Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 477-493, agosto 2003 l h d b

    musicais. Essa tendncia objetiva equivale a impor, no planosubjetivo, um nico padro de escuta da msica, popular ou sria:atomstico, desconcentrado, pouco exigente etc. Adorno tinharazo quando no parecia ter razo, ao apontar para os elementos

    ocultos de uma programao de msica clssica dos anos de 1930que se desnudaram no curso do tempo. Afinal de contas, tudo diverso do ouvinte e lucro das gravadoras. Isso cultura?

    Recebido e aprovado em maio de 2003.

    Referncias bibliogrficas

    ADORNO, T.W.; HORKHEIMER, M.Dialtica do esclarecimento:fragmentos filosficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. ADORNO, T.W. Analytical study of theNBC music appreciationhour. The Musical Quarterly , Oxford, v. 78, n. 2, p. 326-377, 1994.HAGGIN, B.H. Music in the nation.New York: Duell, Sloan andPearce, 1949.

    HOROWITZ, J. Professor Leny.New York Review of Books,Nova York, v. 40, n. 11, p.1-2, 10 jun. 1993.