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Adolescente em conflito com a lei e medidassocioeducativas: Limites e (im)possibilidades

Rosângela FrancischiniHerculano Ricardo Campos

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

RESUMOReinserção social, readaptação, ajustamento social, integração à família e sociedade. Várias são as expres-sões empregadas para referir-se ao efeito desejado do trabalho com o jovem em conflito com a lei, emcumprimento de medidas socioeducativas, particularmente em privação de liberdade. Parte do aparatolegal do Estado, a partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, significam, essas medi-das, uma chamada à responsabilização do jovens, em face da transgressão cometida. No entanto, avalia-se, oque dá a essas medidas o caráter socioeducativo, fazendo com que o trabalho desenvolvido nas instituiçõesdiferencie-se do cumprimento de pena? Estrutura física, formação de recursos humanos, ações educativas etrabalho transdisciplinar são alguns dos aspectos implicados nesta questão. Neste contexto de discussãoinsere-se o presente artigo, que tem por objetivo discutir o caráter socioeducativo das medidas de privaçãode liberdade e as possibilidades de reinserção social do jovem em conflito com a lei.Palavras-chave: Adolescente, medidas socioeducativas, ato infracional.

ABSTRACTSocial re-insertion, re-adaptation, social adjustment, integration to family and to societyThere are several expressions used to refer to the expected effect of the work with the youth in conflict withthe law when socio-educational measures have been used. These measures are part of the State legalapparatus since the Child and Adolescent Statute (Estatuto da Criança e do Adolescente) has beenpromulgated and they represent responsibility assumed face to the transgression committed. However, howdifferent are those so called socio-educational measures from the traditional penalty pay? Some aspectsinvolved in this issue are physical structure, formation of human resources, educational activities andinterdisciplinary work. The aim of this article is to discuss the socio-educational features of the measures ofdeprivation of freedom and the possibilities of social re-insertion of the youth in conflict with the law.Key words: Adolescents, socio-educational measures, infraction of the rules.

v. 36, n. 3, pp. 267-273, set./dez. 2005PSICOPSICOΨΨ

INTRODUÇÃO

O papel desempenhado pelos movimentos sociaisorganizados no Brasil, a partir de meados da décadade 1970, foi essencial no sentido da luta pelaredemocratização do país, que vivia os efeitos do Re-gime autocrático-burguês instalado a partir de 1964.Um dos setores da sociedade que emergiu naquele con-texto, se fazendo ouvir por intermédio de contunden-tes denúncias e de um sem número de propostas, foi oda militância em prol de crianças e adolescentes. Rei-vindicava, principalmente, o status de sujeitos de di-reitos e, conseqüentemente, mudanças na concepçãodo atendimento a eles dirigido. Inicialmente contem-

pladas na Carta Constitucional de 1988 (art. 227), asdemandas daquele setor foram consolidadas em 1990,na forma de uma legislação específica sobre o tema,qual seja, o Estatuto da Criança e do Adolescente –ECA.

A Constituição de 1988 foi denominada “cidadã”,tendo em vista atender significativo número de reivin-dicações provenientes dos mais diversos setores dasociedade civil. O projeto de construção de uma so-ciedade democrática, participativa e inclusiva queemergiu naquele contexto foi, no entanto, desvirtuadoem face da perspectiva neoliberal adotada pelos go-vernos brasileiros a partir da década de 1990. No cam-po social, a frustração deveu-se ao não atendimento

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dos direitos a determinados grupos, em situação devulnerabilidade e risco, como é o caso da parcela decrianças e adolescentes dos setores empobrecidos dasociedade. (Oliveira, 2000).

Naquele contexto de euforia pela conquista de umalegislação que definia crianças e adolescentes comosujeitos de direitos, preocupação específica era desti-nada ao adolescente em conflito com a lei, suas possi-bilidades e condições de reinserção social, bem comodas ações a serem desenvolvidas pelas instituições nes-sa perspectiva. É para a intersecção desses aspectosque se volta o presente estudo, buscando discutir oatribuído caráter “educativo” ao tipo de trabalho quedeve ser desenvolvido pelas instituições, visando areinserção1 do adolescente.

O ESTATUTO DA CRIANÇA E DOADOLESCENTE

A euforia que acompanhou a promulgação do ECAera justificada, visto que ele expressava a quebra deum padrão nas políticas públicas voltadas para a in-fância e a adolescência brasileiras que tinha, no míni-mo, um século de duração. Ao adotar a Doutrina daProteção Integral, também chamada Doutrina das Na-ções Unidas Para a Proteção dos Direitos da Infância,o Estatuto rompeu com a tradição do “menor”, expres-sa no Código de Menores de 1927, e com a Doutrinada Situação Irregular, consubstanciada no Código de1979 e na Política Nacional do Bem-Estar do Menor.

Em sintonia com a concepção assumida pelo ECA,de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos,redirecionaram-se as atribuições do Estado e o papelda família e da sociedade em relação a eles. Nestaperspectiva, lê-se no seu artigo 4º que,

É dever da família, da sociedade e do Estado asse-gurar à criança e ao adolescente, com absoluta prio-ridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, àeducação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivên-cia familiar e comunitária, além de deixá-los a sal-vo de toda forma de negligência, discriminação,exploração, violência, crueldade e opressão (Bra-sil, 1990, p. 23).

Dentre as transformações legais contidas no Esta-tuto, destacam-se algumas que melhor caracterizam oespírito da nova lei. São elas:

a) Municipalização da política de atenção direta;

b) Eliminação de formas coercitivas de internação,por motivos relativos ao desamparo social, namedida em que suprime a figura da situaçãoirregular. Neste sentido, a privação de liberdadesó é aceita nos casos de flagrante de ato infra-cional ou por ordem escrita e fundamentada daautoridade judicial competente;

c) Participação paritária e deliberativa do gover-no-sociedade civil, assegurada pela existênciade Conselhos de Direitos da Criança e do Ado-lescente, nos três níveis da organização políticae administrativa do país: federal, estadual e mu-nicipal;

d) Hierarquização da função judicial, transferindoaos conselhos tutelares, de atuação exclusiva noâmbito municipal, tudo o que for relativo à aten-ção de casos não vinculados ao âmbito da infra-ção penal, nem a decisões relevantes passíveisde produzir alterações importantes na condiçãojurídica da criança ou do adolescente.

Vale destacar que a perspectiva do controle, vigen-te durante a Doutrina da Situação Irregular, foi substi-tuída pela da convivência, constituindo, sob o ECA, aidéia básica para assegurar a paz social e a preserva-ção dos direitos do conjunto da sociedade (Mendez,1993; Costa, 1997; Volpi, 2001).

O ADOLESCENTE EM CONFLITO COM ALEI E AS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS

É nesta perspectiva que se observam os itens espe-cíficos do Estatuto que tratam do adolescente infrator.A esse respeito, inicialmente, ressalte-se que somenteos adolescentes – pessoas entre 12 e 18 anos de idade– são passíveis de cometerem o ato infracional, enten-dido como a transgressão das normas estabelecidas, dodever jurídico, que em face das peculiaridades que oscercam, não pode se caracterizar enquanto crime.Logo, ainda que os adolescentes se encontrem sujeitosa todas as conseqüências dos seus atos infracionais,não são passíveis de responsabilização penal. Cabe-lhes, nesses casos, medidas socioeducativas, cujoobjetivo é menos a punição e mais a tentativa dereinserção social, de fortalecimento dos vínculos fa-miliares e comunitários.

Mesmo considerando o adolescente como pessoana condição peculiar de desenvolvimento (Brasil,1990), ao adotar medidas socioeducativas enquantosanções – fruto da transgressão do dever jurídico –, oECA foge às armadilhas das concepções retri-bucionista e paternalista. No retribucionismo encon-tra-se a defesa do aumento da repressão na proporçãoda gravidade das infrações praticadas, na expectativa

1 Ressalte-se que essa discussão é norteada pelo Estatuto, seus con-ceitos e perspectivas. Vários outros termos correlatos são empregadospela literatura para fazer referência a essa condição: reintegração social,ressocialização, ajustamento/adaptação, reorganização da vida etc.

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da prevenção do cometimento delas; o paternalismo,por seu turno, tende a isentar de culpa os adolescentesque as cometerem, naturalizando a prática do atoinfracional.

O reconhecimento de que a obediência a regrasmínimas é essencial para o convívio social requer aresponsabilização do adolescente, quando ele desen-volve condutas transgressoras desses padrões. Consi-derá-los pessoas em desenvolvimento expressa tãosomente a tutela especial a que têm direito, por lei,assim como a identidade peculiar desses sujeitos, nãoimplicando a supressão da sua sujeição ao ordena-mento jurídico. Neste sentido, reitera-se a concepçãode Leonardo Barbosa, quando defende que “o proces-so de desenvolvimento do adolescente passa pelaaprendizagem de um posicionamento crítico e respon-sável em relação às suas condutas” (Barbosa, 2002,p. 10).

Muito embora não se questione a necessidade daobediência a um certo ordenamento jurídico, tambémnão se perde de vista que tais regras são definidas pore a partir de um grupo social específico, aqui denomi-nado dominante, o qual constrói toda uma teia de rela-ções sociais e uma subjetividade (ideológica) que, aomesmo tempo em que é expressão dessa teia, é tam-bém sua fonte de retroalimentação. Logo, há um pa-drão de referência de relação social, que serve paradelimitar as fronteiras do que se considera transgres-são. Conseqüentemente, segue-se um padrão de refe-rência quando se pensa em ressocialização, o daquelegrupo social específico.

Algumas das dúvidas que ressaltam da afirmaçãode que as medidas sócio-educativas buscam a rein-serção social, o fortalecimento dos vínculos familia-res e comunitários, dadas as considerações acima, são:é possível essa ressocialização? Possível para quem?Do que se reveste a idéia desses vínculos para gruposcujo padrão de sociabilidade é marcado pela violên-cia? Acredita-se que, dada a complexidade da aborda-gem dessas questões, não há possibilidade de fazê-lono escopo do presente escrito. Sugere-se, não obstante,além de Passetti (2002) e Fraga (2002), a leitura deBaierl e Almendra (2002), para quem:

É certo que não se ignora que, como fórmulamaior de arrefecimento, quiçá eliminação da cri-minalidade, violenta ou não, está, entre outras coi-sas, a educação das gentes, a superação das desi-gualdades sociais, a satisfação mínima de necessi-dades econômicas, as pulverizações de preconcei-tos, de idiossincrasias, de vaidades, de ambições.Bem, mas isso não é para nós homens, frágeis, im-perfeitos, egoístas, pobres arremedos do divinomodelo (p. 79).

Do ponto de vista do tratamento emprestado peloECA à questão do adolescente em conflito com a leifaz-se necessário esclarecer que, enquanto sanção, amedida não é pena. Ou seja, muito embora se asseme-lhe à pena ao considerar o princípio da personalidadena sua aplicação – apenas o autor do crime respondepor ele –, ser decorrência de lei e visar à ordem públi-ca, a medida difere daquela em aspectos essenciais.Primeiro, se a aplicação da pena, do castigo, busca es-tabelecer uma relação entre o ato cometido e o rigorda punição, a aplicação da medida deve buscar umamaior individualização, no sentido da sua adequação àhistória de cada adolescente em particular, ao invés deadequar-se apenas à infração cometida.

Em segundo lugar, de caráter essencial é a diferen-ça que remete à finalidade imediata de uma e de outra.Com a pena, busca-se causar sofrimento ao trans-gressor, puni-lo por meio da privação de direitos. Coma medida sócio-educativa, por outro lado, é a ação pe-dagógica sistematizada que é visada, mesmo quandose trata de medida de privação de liberdade. A respei-to da relação entre ação pedagógica e privação de li-berdade, é importante considerar o debate que é susci-tado a partir da compreensão de que há uma contradi-ção entre essas duas ações. Conforme apontado porBazílio, “como é possível pensar em processo educa-cional em estabelecimentos cujo objetivo é precisa-mente a tutela, o controle dos tempos e corpos?”(Bazílio, 2003, p. 46)2. Poderiam ser, esses estabeleci-mentos, adaptados em sua estrutura física e em rela-ção à capacitação do pessoal técnico-administrativo deforma que, mesmo com a “privação da liberdade”, elespudessem cumprir o caráter educativo das medidas?

Longe de considerar a situação como simples, anova lei admite a complexidade do problema, sujei-tando-se aos princípios da brevidade, excepciona-lidade em relação à condição de pessoa em desenvol-vimento e incorporando a noção de privação de li-berdade como último recurso dentre as medidassocioeducativas. Estas podem ser, de acordo com oartigo 112 do ECA, a advertência, a obrigação de re-parar o dano causado, a prestação de serviços à comu-nidade, a liberdade assistida, a internação em regimede semiliberdade e a internação em estabelecimentoeducacional (Brasil, 1990).

14 ANOS DO ECA E A REALIDADEDA SUA IMPLANTAÇÃO

Como fica evidenciado nas disposições acima,grande foi o avanço legal no que diz respeito ao aten-

2 Confira, também, Chauí, 1987; Mendes, 2000; Herman (1998),citados por Bazílio.

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dimento dos adolescentes em conflito com a lei. Con-tudo, a observação da realidade atual das instituiçõesvoltadas para tal clientela deixa margem para muitasinterrogações sobre a distância entre o que é preconi-zado pela lei e o que é efetivamente desenvolvido nes-sas instituições. De acordo com Adorno, pouco depoisda promulgação do Estatuto, “alterações na filosofia enos programas de trabalho”, adequação das “rotinastécnicas e administrativas” e “coordenação e conexãoentre serviços e políticas de diferentes ordens” (Ador-no, 1993, pp. 110-111), eram identificados como desa-fios a serem transpostos com vistas à efetivação, naprática, dos novos conceitos legais.

A esse respeito, avaliações recentes (Martini eBrancalhão, 2000; Bazílio e Kramer, 2003; Barbosa,2002; Volpi, 2001) têm indicado que, catorze anos de-pois da promulgação do ECA, persiste um modelo deatendimento que, ao mesmo tempo em que remete àsações desenvolvidas no contexto dos Códigos de Me-nores, expressa a atualidade das preocupações deAdorno, acima referidas. De acordo com Bazílio, apóstodos esses anos, cabe perguntar por que “a práticasocial com relação à infância continua sendo marcadapor violência, negligência e incompetência na esferapública?” (Bazílio, 2003, p. 29-30). No que concerneao adolescente em conflito com a lei, por um lado háque questionar sobre o que existirá por trás da dificul-dade dos governos procederem ao reordenamento ju-rídico-institucional, que garantiria o aperfeiçoamentodo atendimento e, por outro, por que é tão difícil aoadolescente não reincidir, ou seja, inserir-se social-mente.

Muito embora seja importante problematizar aadequação do judiciário e das instituições ao Estatuto,no presente estudo enfatiza-se a discussão a respeitodas instituições, articulando-a com reflexões sobre for-mação, como base da referida inserção social. Se, emface da sua condição especial de desenvolvimento, oadolescente infrator está sujeito às medidas do Estatu-to, e não ao Código Penal, decorre que as instituiçõescumpridoras da política pública de execução de medi-da não podem disponibilizar a estrutura que existe nasprisões comuns. É necessário que o diferencial sócio-educativo das medidas se manifeste, inclusive, na es-trutura física das instituições para adolescentes, na ex-pectativa de se possibilitar a ressocialização, entendi-da como integração familiar, participação no sistemade ensino, ocupação de um lugar na comunidade e, sefor o caso, exercício de uma atividade laboral3.

Esta possibilidade, a ser alcançada via o cumpri-mento das medidas, não pode ser entendida em senti-do funcionalista, que remete a uma estática do sujeitosocial, fadado a voltar a ser. Ao contrário, requer

considerar o sujeito ativo, que é influenciado pela di-nâmica social mas que a influencia com sua maneirade ser e de fazer. A responsabilidade que cabe ao su-jeito na construção de um projeto de vida é relativizadapela sua peculiar inserção nos grupos e classes so-ciais. Logo, muito embora seja de fato na e pela açãoeducativa que se dá a feitura do projeto individual,toda ação educativa revela-se parcial, condicionada.

Acredita-se que investigar o caráter educativo dasmedidas aplicadas ao adolescente infrator requer terclaro que o ato educativo, de maneira mais ou menosexplícita para quem com ele lida, pressupõe um con-ceito, uma idéia, uma expectativa em relação ao perfilque assumirá o educando que deseja formar através deum processo qualquer; em relação à sociedade na qualesse processo formativo se dá e essa pessoa irá viver;e à forma como essa pessoa irá se relacionar com osdemais nessa sociedade, muito em face de tal proces-so. Logo, a pergunta que ressalta é: o que dá o caráter“educativo” das medidas? Em outras palavras, educarpara o quê, para o exercício de uma profissão, de umavida em família, de continuidade e/ou (re)integraçãoao sistema educativo formal? O que o adolescente quese encontra em conflito com a lei demanda das insti-tuições formadoras?

O fato do envolvimento com o trabalho/consumo,a família, a educação etc. comporem as expectativasem relação ao adolesceste infrator, depois de cum-prida a medida que lhe coube, significa que há, porpressuposto, um padrão/concepção de sujeito, deorganização e de convivência sociais, que as medidascontribuiriam, de alguma maneira, para atingir.

Assim, o duplo caráter das medidas – punição (re-paro) e criação de condições para a não reincidência –em princípio, teria por finalidade operar um reorde-namento dos valores e padrões de conduta do sujeitotransgressor. Possibilitar uma ressignificação dos seuspadrões de socialização, de modo que os “novos mo-delos” primem pela consideração da integridade davida e da preservação do patrimônio4. Neste sentido,em última instância, denominar de socioeducativa umamedida que foi aplicada em face da transgressão doordenamento jurídico significa atribuir-lhe – princípioe condição – a possibilidade de operar, no sujeito, mu-danças que necessariamente impliquem na consciên-cia de que a integridade da vida deve ser mantida,assim como preservado o patrimônio.

3 Ainda que a medida de privação seja cumprida em regime fecha-do, a instituição para tal não pode ter o caráter de “instituição total”.Para essa discussão sugere-se a leitura de Foucault (1990) e Goffman(1999).

4 Note-se que a perspectiva que assume a ação ético-formativa nasociedade capitalista reflete a contradição inerente a ela, ao apontar nadireção do trinômio Estado, família e propriedade privada.

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A esse respeito, de acordo com Alice Itani,É fato que a educação surge como uma necessida-de da civilização para o processo de socialização.Por esse processo, os indivíduos são instituídoscom a imposição da lei social à psique, tornan-do-se humanos. Ou com um conteúdo que pode-mos considerar de natureza humana. Essa açãoeducativa socializa, impõe regras de vivência co-letiva, é realizada pelas diversas instâncias da so-ciedade, desde a família até a escola, imprimindo-se o valor da vida como um valor constitutivo doser humano. Mas por essa ação pode-se tambémreproduzir a desigualdade e se instalar o rompi-mento com uma ética da vida. (Itani, 1998, p. 38).Como já referido, dada a orgânica relação entre

educação e sociedade, que torna o processo educativoparcial e relativo, não há certeza de que tal processocumpra as expectativas em termos do adolescente quese espera, uma vez que seu resultado é um sujeito fru-to de uma dinâmica que, em muito, extrapola esse pro-cesso. O mais que se pode esperar é que, dadas certascondições de trabalho, de relações, de vida, enfim, nointerior das instituições, o educando assuma uma es-pecífica postura de respeito frente à sua vida e à vidados demais.

Referir-se às condições que as instituições de cum-primento de medidas socioeducativas dispõem no sen-tido de oportunizar a reinserção social implica consi-derar, ao menos, os aspectos relacionados à estruturafísica, aos recursos humanos e às ações a serem desen-volvidas.

No tocante ao primeiro aspecto, como indicadoanteriormente, é necessário ultrapassar as atuais con-dições, em quase tudo semelhantes às das prisões co-muns. Se, em grande parte das instituições voltadaspara os adolescentes, alcançou-se o objetivo de extin-guir a coerção física e o uso da força como estratégiaeducativa, se os mesmos têm direito a visitas sema-nais, inclusive visitas íntimas para aqueles que têmparceiras fixas, por outro lado eles se encontram alo-jados em celas e não em dormitórios que, além de nãoserem o espaço adequado para pessoas em processode desenvolvimento, ainda fogem às exigências míni-mas de salubridade e dignidade para qualquer ser hu-mano. A esse respeito, inclusive, acrescente-se que agrande maioria das instituições não dispõe de espaçoespecífico para possibilitar a participação de familia-res na dinâmica do atendimento aos jovens.

A respeito dos recursos humanos disponíveis, alémdos educadores há que se considerar os técnicos, comopsicólogos, assistentes sociais, o corpo administrativoe o setor de segurança. Particularmente em relação aoseducadores, que fazem parte do cotidiano dos inter-

nos, é recorrente que seu papel se resuma à guarda dascelas em que se encontram os adolescentes, levando aque alguns se refiram a si mesmos enquanto “abre efecha cadeados”. Logo, quase nada do que se esperade um educador é desenvolvido, no sentido da realiza-ção de ações que, efetivamente, considerem o caráterde sujeitos em condição de desenvolvimento – em quese encontram os jovens sob seu cuidado – e tenhamcomo perspectiva a sua reinserção social.

Ainda em relação aos educadores, ressalte-se ainexistência de uma história de vida que contempleprocessos de formação por meio do qual poderiam,realmente, serem denominados educadores. O que seobserva é a manutenção dos mesmos procedimentosde composição de equipes empregados na época dasdoutrinas do Direito do Menor e da Situação Irregular,em que a preocupação básica era o encarceramento e arepressão dos internos. A alocação de pessoal para asreferidas instituições não obedece à exigência de cri-térios mínimos para o trabalho educativo com jovensna condição específica de em conflito com a lei, iden-tificando-se atualmente nas unidades de atendimentopessoas, por exemplo, cuja função anterior era de vi-gia; outras que desempenhavam atividades em unida-des como creche, abrigo etc., e que foram realocadascontra sua vontade; e mesmo outras que, apesar deconcursadas especificamente para o cargo em questão,não demonstram interesse em atuar com jovens nascondições referidas.

Por outro lado, a ciência Psicológica, produzindo,aderindo a, e mesmo fortalecendo, um discurso que,com raras exceções, desconsidera questões da ordemdo socio-histórico-cultural, cria um conjunto de dis-positivos (teorias, instrumentos de medida e avaliaçãopsicológicas, dentre outros) que, por um lado, não ul-trapassa os limites de um sujeito individualizado e, poroutro, fica circunscrito ao reduto “psi”. Em relação aoprimeiro aspecto, assim se posicionando, a prática dopsicólogo no interior da instituição de cumprimentodas medidas sócio-educativas restringe-se, não raro, àutilização das referidas técnicas de medida e avalia-ção, com o objetivo de emitir laudo psicológico, quevia de regra funciona como instrumento de discrimi-nação e opressão. No entanto, é cada vez mais eviden-te a necessidade de um profissional que considere ocampo da subjetividade no enfrentamento da proble-mática da violência, investigando sua constituição, seudesenvolvimento.

Sobre a redução da compreensão dos processosde subjetivação ao campo “psi”, é necessário obser-var que essa compreensão, conforme apontado porMiranda (2000), requer uma concepção transversalistaque, necessariamente, considere os mais diversos cam-pos do saber que se (pre)ocupam com a constituição

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do sujeito. Assim, a definição das ações educativasinstitucionalizadas com o objetivo de produzir novospadrões de socialização, portanto, novos processos desubjetivação, deve pautar-se no entrelaçamento dossaberes produzidos pela Psicologia, Sociologia, Peda-gogia, Arte, História, dentre outros.

Ainda, no tocante às ações a serem desenvolvidasno interior das instituições, com vistas à ressocia-lização, se esta pressupõe convívio com a família e acomunidade, (re)ingresso no sistema escolar e o exer-cício de uma profissão, então se espera que tais açõesefetivamente reflitam tal perspectiva socializadora.Contudo, a literatura da área tem revelado uma quasetotal ausência de ações que contemplem os aspectosesperados. A falta de um planejamento que integre oconjunto das atividades reflete-se em projetos isola-dos, que geralmente resumem-se na oferta de oficinas,como serigrafia, panificação, artesanato etc., as quaiscarecem de uma proposta pedagógica que oportunize,além da atividade física, ocupacional, a formação doadolescente para a cidadania, como preconiza o ECA(Costa, 1997; Volpi, 1997).

Em relação às oficinas, que aqui requerem atençãoparticular por ocuparem lugar de destaque nas açõesinstitucionais, observe-se que nem mesmo a habilita-ção profissional dos adolescentes é garantida por seuintermédio. Esta situação decorre, ao menos, de doisaspectos essenciais: primeiro, da restrição de opçãodos jovens quanto a que trabalho desenvolver, poisnem sempre se interessam pelo tipo de atividade que éproposto. E segundo, porque as atividades não con-sideram as especificidades dos sujeitos a quem sedestinam: a peculiar condição de pessoas em desen-volvimento, o particular momento da adolescência e acircunstância de se encontrarem em conflito com a lei.Ou seja, constata-se a ausência de uma integração en-tre a atividade manual e a perspectiva pedagógica queremete à ética da vida.

Neste contexto de análise, uma reflexão sobre ainstituição escolar é reiterativa da precariedade do sis-tema de cumprimento de medidas e da ausência de umprojeto pedagógico amplo para suas unidades. De ma-neira geral, quando existe uma escola no interior dasmesmas, ela funciona precariamente, sem pessoal qua-lificado, sem vínculo com o sistema formal e sem qual-quer tipo de regulamentação. No tocante ao trabalhocom pessoas do convívio dos adolescentes, como refe-rido anteriormente, observa-se a quase absoluta faltade estrutura para lidar com as famílias e com outrosmembros da comunidade de origem, como amigos, vi-zinhos etc. Ou seja, tanto se lida com uma arquiteturainadequada quanto com a falta de formação dos edu-cadores das unidades de atendimento para desenvol-verem ações dessa natureza (Poglia et al; 2001). Res-

salte-se que as condições de acompanhamento dos jo-vens egressos, trabalho importantíssimo a ser desen-volvido, não deixa nada a dever ao precário quadroantes descrito.

Para ilustrar esse quadro de carências, inadequa-ções, despreparo e insensibilidade, recorre-se ao de-poimento de adolescentes privados de liberdade. Combase em tais depoimentos, tudo leva a crer que, se asdesigualdades sociais são relativamente deixadas delado, outras tomam seu lugar e oprimem da mesma for-ma. Dessa maneira, não parece que há um contextoadequado para se trabalhar em prol de uma ética dorespeito à vida.

Dizem eles que:Aqui a gente passa o dia na cela, sem ter o quefazer a não ser escutar rádio e ver televisão. (...)Aqui dentro é um mundo, lá fora é outro. Tenhomuita vontade de mudar. A pessoa sai com vonta-de de mudar, mas a sociedade não deixa. A minharecuperação depende de mim e também da socie-dade (A. T., 18 anos), (Parcelle, 2002, p. 41).O CEDUC é uma prisão. Era para ter alguma coisa

para recuperar a gente. Era para ser tipo uma escolapara a gente aprender e quando sair ter um trabalho.Ocupo meu tempo só pensando. Fico pensando no meufuturo, como é que vai ser. Vou ver se tento reconstruirminha vida. Acho que não estou tendo possibilidade.A gente não pode construir um caminho sozinho, temde ter ajuda (G. C., 16 anos), (Parcelle, 2002, p. 47).

Para concluir, concorda-se com Constantino, quan-do afirma que “A instituição pretende ajustar o indi-víduo à sociedade, mas acaba produzindo o efeitocontrário, o de reafirmação de sua marginalidade”(Constantino, 2000, p. 28). Como expressão dessa con-dição, é possível observar o progressivo aumento donúmero de jovens que reincidem nas suas transgres-sões, comprometendo cada vez mais as já pequenaspossibilidades de reinserção.

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Recebido em: 07/07/2004. Aceito em: 06/10/2005.

Autores:Rosângela Francischini – Doutora em Lingüística pelo IEL/UNICAMP. Do-cente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Coordenadora do Nú-cleo de Estudos Socioculturais da Infância e Adolescência – NESCIA – De-partamento de Psicologia – UFRN.Herculano Ricardo Campos – Doutor em Educação pela UFRN. Docente doPrograma de Pós-Graduação em Psicologia e pesquisador do Núcleo de Estu-dos Socioculturais da Infância e Adolescência – NESCIA – Depto de Psicolo-gia – UFRN.

Endereço para correspondência:ROSÂNGELA FRANCISCHINIRua Ismael Pereira da Silva, 1733, apto. 202 – Capim MacioCEP 59082-000, Natal, RN, BrasilFones: (84) 642-1039, (84) 8819-0678 e (84) 215-3590E-mail: [email protected]