adin 1.842-rj - gestão compartilhada

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Decisão do STJ sobre gestão compartilhada do serviço de saneamento básico.

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  • 03/04/2008 PLENRIO

    AO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 1.842 RIO DE JANEIRO

    V O T O V I S T A

    O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES: Cuida-se de Ao Direta de Inconstitucionalidade, com pedido de medida liminar, proposta pelo Partido Democrtico Trabalhista-PDT, com fundamento no art. 102, I, a e p, da Carta Magna, em face da Lei Complementar n 87, de 16 de dezembro de 1997, (LC 87/1997/RJ) e da Lei n 2.869, de 18 de dezembro de 1997, (Lei 2.869/1997/RJ), ambas editadas no Estado do Rio de Janeiro.

    Em virtude de conexo, continncia e identidade de objeto, apreciam-se conjuntamente as ADI 1826, 1843 e 1906, que impugnam as mesmas normas da presente ao, porm de forma menos ampla (fl. 1.146). Ressalve-se que a ADI 1906 infirma, ainda, o Decreto n 24.631, de 3 de setembro de 1998, do Estado do Rio de Janeiro (Dec. 24.631/1998/RJ).

    Desde logo, o Relator, Min. Maurcio Corra, remeteu o mrito das presentes ADI ao Plenrio, dada a relevncia do tema para os estados e municpios da Federao (fl. 1.148).

  • ADI 1842 / RJ

    Em razo de sua complexidade, pedi vista para melhor

    exame da matria. Passo a analisar a questo em tpicos.

    1) Sntese da Controvrsia:

    No caso, as normas estaduais impugnadas referem-se

    instituio da Regio Metropolitana do Rio de Janeiro (art. 1 da LC

    87/1997/RJ) e da Microrregio dos Lagos (art. 2 da LC 87/1997/RJ).

    Nesse contexto, as citadas normas estaduais definem o

    respectivo interesse metropolitano ou comum como as funes pblicas

    e os servios que atendam a mais de um municpio, assim como os que,

    restritos ao territrio de um deles, sejam de algum modo dependentes,

    concorrentes, confluentes ou integrados de funes pblicas, bem como

    os servios supramunicipais (art. 3 da LC 87/1997/RJ). Ademais,

    atribuem ao Estado do Rio de Janeiro a qualidade de Poder Concedente

    para prestao de servios pblicos relativos ao estabelecido interesse

    metropolitano (arts. 5, pargrafo nico, e 7 da LC 87/1997/RJ; e 3 e 12 da

    Lei 2.869/1997/RJ).

    Os requerentes sustentam que os arts. 1 a 11 da LC

    87/1997/RJ e 8 a 21 da Lei 2.869/1997/RJ violam a Constituio Federal ao

    transferir ao Estado do Rio de Janeiro funes e servios de competncia

    municipal, especialmente quanto ao servio pblico de saneamento

    bsico.

    Argiu-se afronta ao princpio democrtico e ao equilbrio

    federativo (art. 1; 23, I; e 60, 4, I, da Constituio Federal); autonomia

    2

  • ADI 1842 / RJ

    municipal (art. 18 e 29 da Constituio Federal); ao princpio da no-

    interveno dos estados nos municpios (art. 35 da Constituio Federal),

    bem como o rol de competncias municipais, discriminadas no texto

    constitucional vigente (arts. 30, I, V e VIII, e 182, 1, da Constituio

    Federal).

    Sustenta-se, ainda, a inaplicabilidade do art. 25, 3, da Carta

    Magna espcie, uma vez que as leis estaduais no integraram a

    organizao, planejamento e execuo de funes pblicas de interesse

    comum, mas usurparam a execuo de polticas pblicas exclusivas dos

    municpios que integram Regio Metropolitana e Microrregio.

    A Assemblia Legislativa e o Governador do Estado do Rio

    de Janeiro, por sua vez, aduzem que o fenmeno da conurbao deve ser

    considerado na soluo de problemas de organizao, planejamento e

    execuo de funes pblicas de interesse comum, defendendo que a

    declarao da existncia de interesse comum ficou reservada

    constitucionalmente ao Estado que congregue os Municpios que foram

    politicamente considerados como submetidos a tratamento unificado de

    certas funes (art. 25, 3, CF/88) (fl. 352).

    A Advocacia-Geral da Unio suscitou preliminares de inpcia

    da inicial e de perda de objeto, alm de ressaltar que a legislao

    impugnada considera um uso eficiente dos recursos pblicos e a

    limitao da capacidade financeira municipal, assegurando

    representao poltica local no Conselho Deliberativo da Regio

    Metropolitana (fl. 1.165).

    3

  • ADI 1842 / RJ

    Por fim, a Procuradoria-Geral da Repblica opinou pela

    improcedncia da presente ao, vez que a transposio total ou parcial

    de certas atividades ou servios, antes considerados de exclusivo

    interesse do municpio, para alm de sua prpria rbita, tendo em vista

    seu tratamento em nvel regional, por razes de ordem dimensional,

    social, institucional, geogrfico, natural, econmico ou tcnica, no pode

    ser considerada inconstitucional, visto no haver ofensa autonomia

    municipal, restrita, to-somente, ao interesse local. (fl. 1.186).

    O Relator, Min. Maurcio Corra, rejeitou inicialmente a

    preliminar de inpcia da inicial e entendeu que as ADI estariam

    prejudicadas quanto ao Dec. n 24.631/1998/RJ, porquanto revogado pelo

    Dec. n 24.804/1998/RJ, bem como quanto aos arts. 1, 2, 4 e 11 da LC

    87/1997/RJ, em virtude de alteraes legislativas supervenientes que

    modificaram sua redao.

    Quanto aos demais dispositivos impugnados, o Relator

    julgou improcedentes as aes, aduzindo que a instituio de

    conglomerados urbanos por atuao legislativa do Estado no afronta

    autonomia municipal, minimizada pelo art. 25, 3, da Constituio

    Federal.

    Nessa linha, o Relator afirma que o agrupamento de

    municpios ocorre para cometer ao Estado a responsabilidade pela

    implantao de polticas unificadas de prestao de servios pblicos,

    objetivando ganhar em eficincia e economicidade, considerados os

    4

  • ADI 1842 / RJ

    interesses coletivos e no individuais. Ainda complementa:

    Sob outra perspectiva, a demanda por servios

    pblicos agiganta-se de tal modo que as autoridades

    executivas no conseguem, isoladamente, atender s

    necessidades da sociedade, impondo-se uma ao

    conjunta e unificada dos entes envolvidos,

    especialmente da unidade federada, a quem incumbe a

    coordenao, at porque o nmero de habitantes de

    cada Municpio desses conglomerados compe a

    prpria populao do Estado-membro.

    Indaga-se, no caso desses aglomerados, o que se

    pretende com a delimitao de uma rea de servios

    unificados. Busca-se a personificao de um ente para

    fins de administrao centralizada, que planeje a

    atuao pblica sobre territrio definido e que

    coordene e execute obras e servios de interesse

    comum de toda a rea, de sorte que a populao seja

    atendida com eficincia. Por outro lado, a

    complexidade das obras e dos servios metropolitanos,

    invariavelmente de altssimo custo, no permite que os

    poderes executivos municipais, de forma isolada, os

    satisfaam. Como o interesse da sociedade, alis direito

    pblico oponvel contra o Estado, de mbito regional

    e no apenas local, a Constituio autorizou a

    instituio desses aglomerados, sempre por lei

    complementar pela relevncia que se revestem.

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  • ADI 1842 / RJ

    Especificamente quanto ao servio de saneamento bsico, o

    voto do Min. Maurcio Corra assenta:

    Os incisos I a VII [do art. 3 da LC 87/1997/RJ] no

    fogem finalidade e aos limites da permisso

    constitucional. Tratam do planejamento integrado do

    desenvolvimento econmico e social da regio como um

    todo; da questo do saneamento bsico, a includo o

    abastecimento de gua, tema de manifesto interesse

    regional, dado que, em geral, os mananciais so

    comuns a diversos Municpios, afigurando-se

    conveniente que sua explorao ocorra de forma

    racional e compartilhada (...).

    (...)

    Por tudo o que foi dito anteriormente, parece-me

    claro que as questes de saneamento bsico extrapolam

    os limites de interesse exclusivo dos Municpios,

    justificando-se a participao do estado-membro.

    Com efeito, as guas superficiais ou subterrneas,

    fluentes, emergentes e em depsito, nos limites do

    territrio do Estado-membro, so bens deste (CF, artigo

    26, I), sendo evidente sua competncia supletiva para

    legislar sobre o tema, observadas as normas gerais

    fixadas pela Unio (CF, artigo 22, IV c/c artigo 25, 1).

    A Lei federal 9433/97, que regulamentou o inciso XIX

    do artigo 21 da Carta da Repblica e criou o Sistema

    Nacional de Gerenciamento de Recursos Hdricos,

    definiu a gua como bem de domnio pblico,

    6

  • ADI 1842 / RJ

    dependendo seu uso de outorga do Poder Pblico

    federal ou estadual, conforme sejam guas federais ou

    estaduais.

    Por outro lado, da competncia comum a

    responsabilidade com sade pblica, proteo ao meio

    ambiente, promoo de programas de saneamento

    bsico e fiscalizao da explorao dos recursos

    hdricos (CF, artigo 23, II, VI, IX e XI). ainda de

    competncia concorrente a faculdade de legislar sobre

    conservao da natureza, defesa do solo e dos recursos

    naturais, proteo do meio ambiente e controle da

    poluio (CF, artigo 24, VI).

    Verificado o interesse regional predominante na

    utilizao racional das guas, pertencentes

    formalmente ao Estado, o que o torna gestor natural de

    seu uso coletivo, assim como da poltica de

    saneamento bsico cujo elemento primrio tambm a

    gua, resta claro competir ao Estado-membro, com

    prioridade sobre o Municpio, legislar acerca da

    poltica tarifria aplicvel ao servio pblico de

    interesse comum.

    De outra sorte, os Ministros Joaquim Barbosa e Nelson Jobim

    abriram divergncia para (i) declarar como no prejudicado o exame da

    constitucionalidade dos 1 e 2 do art. 4 e 1 e 2 do art. 11 da LC

    87/1997/RJ; e (ii) julgar procedente a ao quanto (a) expresso a ser

    submetido assemblia legislativa do inciso I do art. 5, (b) ao pargrafo

    nico do art. 5; (c) aos incisos I, II, IV e V do art. 6; (d) ao art. 7; (e) ao

    7

  • ADI 1842 / RJ

    art. 10, todos da LC 87/1997/RJ; alm dos (f) arts. 11 a 21 da Lei n

    2.869/1997/RJ.

    A divergncia, em resumo, sustenta que o estabelecimento de

    regio metropolitana no significa simples transferncia de competncias

    para o Estado.

    Nesse sentido, o voto do Min. Joaquim Barbosa assenta que a

    restrio autonomia dos municpios metropolitanos no decorre da

    criao individual de cada regio metropolitana, mas da configurao

    normativa constitucional, devendo ser preservada sua capacidade de

    decidir efetivamente sobre os destinos da regio. E conclui o Min.

    Joaquim Barbosa:

    Assim, a criao de uma regio metropolitana no

    pode, em hiptese alguma, significar o

    amesquinhamento da autonomia poltica dos

    municpios dela integrantes, materializando no

    controle e na gesto solitria pelo estado das funes

    pblicas de interesse comum. Vale dizer, a titularidade

    do exerccio das funes pblicas de interesse comum

    passa para a nova entidade pblico-territorial-

    administrativa, de carter intergovernamental, que

    nasce em conseqncia da criao da regio

    metropolitana.

    8

  • ADI 1842 / RJ

    Por sua vez, o voto do Min. Nelson Jobim aduziu:

    Considerando o contexto da prestao de servio

    de saneamento bsico no Brasil, as caractersticas de

    indivisibilidade do servio, na maioria das situaes

    concretas, as realidades prticas de municpios ditos

    deficitrios e outros considerados superavitrios, e

    ainda os dispositivos da Constituio Federal que

    claramente prevem uma competncia compartilhada

    entre Unio, Estados e Municpios nessa temtica,

    proferi voto no sentido de reconhecer a competncia

    executria do servio de saneamento bsico, no aos

    Estados ou aos Municpios, mas a um agrupamento de

    municpios.

    Nessa linha, concluiu o Min. Nelson Jobim:

    (1.1) As REGIES METROPOLITANAS,

    AGLOMERADOS URBANOS e MICRORREGIES no

    so entidades polticas autnomas de nosso sistema

    federativo, mas, sim, entes com funo administrativa e

    executria;

    (1.2) Tais entes no detm competncia poltico-

    legislativa prpria;

    (1.3) Sua competncia, bem como suas atribuies,

    so, na verdade, o somatrio integrado das

    competncias e atribuies dos MUNICPIOS

    formadores;

    9

  • ADI 1842 / RJ

    (1.4) O INTERESSE METROPOLITANO o conjunto

    dos interesses dos MUNICPIOS sob uma perspectiva

    intermunicipal;

    (1.5) As funes administrativas e executivas da

    REGIO METROPOLITANA somente podem ser

    exercidas por rgo prprio ou por outro rgo

    (pblico ou privado) a partir da autorizao ou

    concesso dos MUNICPIOS formadores;

    (...)

    (1.10) Caber aos MUNICPIOS integrantes da

    regio decidir, no mbito do CONSELHO

    DELIBERATIVO, a forma como prestaro os servios

    de natureza metropolitana, especialmente aqueles

    referentes ao SANEAMENTO BSICO;

    (...)

    (1.13) O SANEAMENTO BSICO, por se constituir

    em tpico interesse intermunicipal, no pode ser

    atribudo ao mbito estadual, sob pena de violao

    grave federao e autonomia dos Municpios.

    (...)

    (1.16) Qualquer legislao que atribua a competncia

    executria de REGIES METROPOLITANAS ao

    ESTADO ou, de alguma forma, subordine as

    deliberaes da AGLUTINAO a um aceite ou

    autorizao da Assemblia Legislativa Estadual

    inconstitucional.

    (1.17) Na mesma linha, inconstitucional a

    legislao complementar estadual que, ao criar a

    10

  • ADI 1842 / RJ

    estrutura de funcionamento da REGIO

    METROPOLITANA, vincule a indicao dos

    representantes municipais autorizao do

    GOVERNADOR DO ESTADO ou de qualquer

    autoridade estadual.

    Segundo os votos divergentes, o parmetro para aferio da

    constitucionalidade das normas que estipulassem a regio metropolitana

    residiria no respeito diviso de responsabilidade entre municpios e

    estado.

    Por esse motivo, a posio divergente entendeu como

    inconstitucional os dispositivos da LC 87/1997/RJ e da Lei n

    2.869/1997/RJ que regulam a tarifa, inclusive reajuste e reviso, e o servio

    de saneamento bsico.

    Dessa forma, duas orientaes despontam quanto

    possibilidade de transferncia aos estados dos servios de interesse

    metropolitano, em especial dos servios de saneamento bsico: (i) a

    posio do Ministro Maurcio Corra, que permite a alterao da

    titularidade para os Estados, inclusive atuando como poder concedente

    desses servios; e (ii) o entendimento dos Ministros Joaquim Barbosa e

    Nelson Jobim, que no a admitem.

    Destaque-se, no entanto, que os votos divergentes dos

    Ministros Joaquim Barbosa e Nelson Jobim no coincidem quanto

    titularidade das funes pblicas de interesse metropolitano.

    11

  • ADI 1842 / RJ

    Enquanto o r. voto do Min. Nelson Jobim ressalta que as

    funes administrativas e executivas da REGIO METROPOLITANA

    somente podem ser exercidas por rgo prprio ou por rgo (pblico ou

    privado) a partir da autorizao ou concesso dos municpios

    formadores, o entendimento do Min. Joaquim Barbosa assenta que a

    titularidade do exerccio das funes pblicas de interesse comum passa

    para a nova entidade poltico-territorial-administrativa, de carter

    intergovernamental, que nasce em conseqncia da criao da regio

    metropolitana.

    Ademais, ressalte-se que, concomitantemente ao presente

    julgamento, o Plenrio aprecia a ADI-MC 2077/BA, Rel. Min. Ilmar

    Galvo, a qual cuida de questo semelhante.

    Na ADI-MC 2077/BA, discute-se a constitucionalidade dos

    arts. 59, V; 228; 230, 1; e 238 da Constituio do Estado da Bahia, com

    redao dada pela Emenda Constitucional n 7/1999, que, em termos

    gerais, definiam restritivamente o interesse local e outorgavam ao Estado

    da Bahia a titularidade dos servios de saneamento bsico.

    Nesse caso, o Relator, Min. Ilmar Galvo, votou pela

    concesso da medida cautelar, entendendo pela inconstitucionalidade das

    disposies da Constituio do Estado da Bahia que afastam a

    possibilidade de os municpios organizarem e prestarem servios

    pblicos de interesse local, alm de utilizarem de instrumentos como

    convnios para servios pblicos gerados ou concludos fora de seu

    territrio.

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  • ADI 1842 / RJ

    Na ocasio, o Min. Nelson Jobim reiterou seu entendimento,

    reconhecendo a competncia executria do servio de saneamento

    bsico, no aos Estados ou aos Municpios, mas a um agrupamento de

    municpios.

    No mesmo sentido, manifestou-se o Min. Eros Grau,

    defendendo que a competncia para a prestao dos chamados servios

    comuns permanece sob a titularidade dos Municpios; a eles incumbe a

    delegao entidade da Administrao Indireta ou a outorga de

    concesso a empresa privada, quando a sua prestao for empreendida

    no diretamente por eles.

    Frise-se que no mbito da ADI-MC 2077/BA, no se cuidava

    de regies metropolitanas, aglomeraes urbanas e microrregies. No

    entanto, tambm nesse caso, o entendimento de que a titularidade do

    servio de saneamento bsico permaneceria com os municpios

    despontou nos trs primeiros votos colhidos, restringindo os Estados ao

    papel de instituir os agrupamentos de municpios, sem participar

    efetivamente na execuo ou prestao dos servios comuns.

    Para melhor examinar a controvrsia, pedi vista de ambos os

    casos. Passo a examin-los separadamente.

    2) Anlise das Preliminares

    No que tange s preliminares argidas na ADI 1842/RJ,

    acompanho os votos que me precederam para afastar a alegao de

    inpcia da inicial, uma vez que os requisitos pertinentes foram

    13

  • ADI 1842 / RJ

    plenamente atendidos na espcie. Com efeito, verifica-se que os autores

    das ADI cumpriram o dever bsico de oferecer razes para as

    impugnaes.

    No que tange perda de objeto, verifico que o Dec.

    24.631/1998/RJ foi revogado pelo Dec. 24.804/1998/RJ (fl. 1.188) e que a LC

    87/1997/RJ teve sua redao alterada pelas Leis Complementares 89/1998;

    97/2001; e 105/2002, todas do Estado do Rio de Janeiro.

    Destaco que restaram alterados de forma superveniente os

    arts. 1, caput e 1; 2, caput; 4, caput e incisos I a VII; 11, caput e incisos I

    a VI; e 12 da LC 87/1997/RJ. Conseqentemente, as presentes ADI

    somente mantm seu objeto quanto ao art. 3; 1 e 2 do art. 4; arts. 5 a

    10; e 1 e 2 do art. 11 da LC 87/1997/RJ, alm dos arts. 8 a 21 Lei

    2.869/1997/RJ.

    Nesse particular, acompanho a divergncia para julgar

    prejudicada a ao quanto aos arts. 1, caput e 1; 2, caput; 4, caput e

    incisos I a VII; 11, caput e incisos I a VI; e 12 da LC 87/1997/RJ.

    3) Autonomia Municipal e Integrao Metropolitana

    Na espcie, a questo centra-se na preservao de dois

    importantes valores constitucionais: a autonomia municipal e a

    integrao por meio das regies metropolitanas, aglomeraes urbanas e

    microrregies.

    Relativamente autonomia municipal, a Constituio

    14

  • ADI 1842 / RJ

    Federal conferiu nfase ao mencionar os municpios como integrantes do

    sistema federativo (art. 1 da CF/1988) e ao fixar sua autonomia junto com

    os Estados e Distrito Federal (art. 18 da CF/1988).

    Observe-se que o texto constitucional de 1988, na linha da

    tradio brasileira (CF de 1946, art. 7o, VII , e; CF de 1967/1969, art. 10,

    VII, e), manteve a autonomia municipal como princpio sensvel (CF,

    art. 34, VII, c).

    Alguns contornos institucionais permitem fornecer alguma

    densidade para o parmetro de controle da autonomia municipal. Por

    exemplo, reconheceu-se ao municpio competncia para legislar sobre

    assuntos de interesse local, suplementar a legislao federal e estadual no

    que couber, instituir e arrecadar os tributos de sua competncia (taxas,

    imposto predial e territorial urbano, transmisso inter vivos, por ato

    oneroso, de bens imveis, servios de qualquer natureza) (art. 30 e 156).

    Previu-se, ainda, a aprovao de uma lei orgnica municipal,

    com a observncia dos princpios estabelecidos na Constituio (eleio

    de prefeito, vice-prefeito e vereadores, nmero de vereadores, sistema

    remuneratrio dos agentes polticos, iniciativa popular, inviolabilidade

    dos vereadores por suas opinies, palavras e votos no exerccio do

    mandato e na circunscrio do Municpio, limites de gastos do Poder

    Legislativo Municipal, sistema de prestao de contas e de controle

    externo), a teor dos arts. 28 e 29 da Carta Magna.

    15

  • ADI 1842 / RJ

    Em reforo autonomia municipal, estabelece a Constituio

    sistema de transferncia de recursos do Estado-membro e da Unio para

    os Municpios (arts. 158, IV, e 159, I, a).

    Tradicionalmente, a autonomia municipal tem importante

    relevo na histria brasileira, sendo inclusive anterior autonomia

    estadual e prpria instituio do Federalismo no Pas [cf. GARCIA,

    Maria. O Modelo Poltico Brasileiro: Pacto Federativo ou Estado

    Unitrio in MARTINS, MENDES & TAVARES (coord.). Lies de Direito

    Constitucional em Homenagem ao Jurista Celso Bastos. So Paulo: Saraiva,

    2005. pp. 778 (791-792)].

    Nada obstante a extensa discusso doutrinria acerca da

    natureza, ou no, dos municpios como entes federados (a propsito, cf.

    MENDES, COELHO & BRANCO. Curso de Direito Constitucional. So

    Paulo: Saraiva, 2007, pp. 769-770; CASTRO, Jos Nilo de. Direito Municipal

    Positivo. 4 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. pp. 53 e ss.), possvel

    caracterizar o ncleo essencial da autonomia municipal consoante as

    diretrizes constitucionais supracitadas.

    De forma geral, a autonomia demanda a pluralidade de

    ordenamentos e a repartio de competncias. Em seu clssico estudo, o

    Prof. Baracho bem assentou que a autonomia pressupe poder de direito

    pblico no soberano, que pode, em virtude de direito prprio e no em

    virtude de delegao, estabelecer regras de direito obrigatrias (cf.

    BARACHO, Jos Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Federalismo. Rio de

    Janeiro: Forense, 1986. p. 85).

    16

  • ADI 1842 / RJ

    Especificamente quanto autonomia dos municpios, a

    doutrina destaca quatro atribuies ou capacidades essenciais: a) poder

    de auto-organizao (elaborao de lei orgnica prpria); b) poder de

    autogoverno, pela eletividade do prefeito, do vice-prefeito e dos

    vereadores; c) poder normativo prprio, ou de autolegislao, mediante a

    elaborao de leis municipais na rea de sua competncia exclusiva e

    suplementar; e d) poder de auto-administrao: administrao prpria para

    criar, manter e prestar os servios de interesse local, bem como legislar

    sobre seus tributos e aplicar suas rendas (MEIRELLES, Hely Lopes.

    Direito Municipal Brasileiro. 14 ed. So Paulo: Malheiros, 2006, p. 93).

    Dessas atribuies, caracterizam-se os elementos da

    autonomia municipal, quais sejam, autonomia poltica (capacidade de

    auto-organizao e autogoverno), a autonomia normativa (capacidade de

    fazer leis prprias sobre matria de sua competncia), a autonomia

    administrativa (administrao prpria e organizao de servios locais) e a

    autonomia financeira (capacidade de decretao de seus tributos e

    aplicao de suas rendas, que uma caracterstica da auto-

    administrao). (SILVA, Jos Afonso da Silva. O Municpio na

    Constituio de 1988. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, pp. 8-9).

    Em sentido semelhante, o art. 28 (2) 1 da Constituio Alem

    garante a autonomia municipal nos seguintes termos: Aos Municpios

    deve ser garantido o direito de regular todos os interesses da comunidade

    local, nos moldes das leis, com responsabilidade prpria. (Den

    Gemeinden mu das Recht gewhrleistet sein, alle Angelegenheiten der rtlichen

    Gemeinschaft im Rahmen der Gesetze in eigener Verantwortung zu regeln).

    17

  • ADI 1842 / RJ

    A propsito dessa garantia, o Prof. Otto Gnnenwein ensina:

    El derecho a la autonoma administrativa no es ningn derecho fundamental em el sentido de um derecho pblico subjetivo de los Municipios, ninguna libertad del Municipio fundamental como aquella de que hablaba la Constitucin de 1848. A la autonoma administrativa se le concede ms bien una garanta institucional. Est protegida contra qualquier posible supresin por parte del legislador. Pero el todava discutido artculo 91 de la Ley del Tribunal de Constitucionalidade concede a los Municipios una proteccin jurdica immediata em la figura de la queja constitucional por la cual, en caso necessario, pude declararse nula una norma legal que contravenga el artculo 28.

    En la pratica, la garanta institucional se aproxima as, nuevamente, a una concesin de una esfera de libertad fundamental. De modo indirecto se reconoce tambin con ello el derecho del individuo a desarrollar en la comunidad local, juntamente con los dems ciudadanos, una administracin independiente del Estado. Al Municipio se le conceden derechos de defensa contra el Estado, cuando el poder legislativo o el ejecutivo violan el derecho a la autonomia administrativa, institucionalmente garantizado. (...).

    En cuanto al alcance de la garanta institucional, la sentencia del 10-11 de diciembre de 1929 del Tribunal del Estado del Imperio Aleman ha perdurado como modelo. No slo es inadimisible la supresin total de la competencia del Municipio, sino que el legislador tampoco debe coartala de tal forma que su autonoma administrativa quede interiormente vaca, pierda la posibilidad de actuar firmemente y slo pueda llevar una existencia ficticia; es decir, que se realice lo que se ha llamado um bloqueo de esencia. Las tareas del

    18

  • ADI 1842 / RJ

    Municipio no deben contraerse a los retazos de asuntos pblicos no reclamados por el Estado. Al juzgar el problema de si existe una intromisin contra la esencia de la autonoma, hay que atender a lo que queda de esa autonoma despus de esa intromisin. En la determinacin del concepto de autonoma administrativa no es la historia lo menos importante.

    Habra que considerar ficticia la existencia de los Municipios si el legislador del Estado separara la administracin comunal partes de su ncleo y de su centro, por ejemplo, si al igual que los Estados principescos absolutos, quisiera arrebatar a los Municipios la administracin de su patrimonio, e hiciera nombrar los rganos y los funcionarios de los Municipios por las autoridades del Estado, y tambin cuando quisiera configurar la inspecin del Estado segn las lneas histricas de la tutela y, por ejemplo, declarara ejecutables ls decisiones de los Municipios nicamente cuando, despes de ser sometidas a las autoridades de inspeccin, no suscitaran objeciones. Tambien existira una falta de contenido em la autonoma administrativa cuando el Estado convirtiera gran parte de las tareas de la comunidad local em tareas del Estado, y confiara su desempeo a los Municipios slo em carcter delegado. Las tareas importantes de la comunidad local no pueden sustraerse al desempeo por los Municipios, bajo su propria responsabilidad, cosa que ocurrira si existiera una administracin delegada.(GNNENWEIN, Otto. Derecho Municipal Alemn. Trad. Miguel Saenz-Sagaseta. Madrid: Instituto de Estudios de Administracion Local, 1967. pp. 46/50).

    Dessas consideraes, depreende-se que a essncia da

    autonomia municipal contm primordialmente (i) auto-administrao, que

    implica capacidade de decisria quanto aos interesses locais, sem

    19

  • ADI 1842 / RJ

    delegao ou aprovao hierrquica; e (ii) autogoverno, que determina a

    eleio do chefe do Poder Executivo e dos representantes no Poder

    Legislativo (cf. BARACHO, Jos Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do

    Federalismo. Rio de Janeiro: Forense, 1986. p. 93).

    Com efeito, a caracterstica do autogoverno traduz (a)

    independncia da administrao municipal em relao a outras estruturas

    organizacionais e (b) o direito reflexo dos administrados de participarem

    no processo decisrio quanto aos interesses locais, como bem apontou o

    Prof. Gnnenwein, elegendo o poder executivo (prefeito e vice-prefeito) e

    poder legislativo (vereadores) locais. Por sua natureza, o autogoverno

    compreende a autonomia poltica e normativa.

    De outra sorte, a auto-administrao demanda (a) mnimo de

    competncias materiais - incluindo a gesto de seus servidores,

    patrimnio e tributos (b) executadas por autoridade, isto sem

    delegao, e com responsabilidade prprias.

    Evidentemente, o mnimo de competncias materiais

    municipais depende do contexto histrico e circunscreve-se ao interesse

    predominantemente local, ou seja, aquele interesse que no afeta

    substancialmente as demais comunidades.

    Como bem apontado pelo Prof. Alar Caff Alves, razes de

    ordem tcnica, econmica, ambiental, social, geogrfica etc. podem

    transpor certas atividades e servios do interesse eminentemente local

    para o regional e vice-versa, sem constituir qualquer violao

    autonomia municipal [ALVES, Alar Caff. Regies Metropolitanas,

    20

  • ADI 1842 / RJ

    Aglomeraes Urbanas e Microrregies: novas dimenses constitucionais

    da organizao do Estado brasileiro in Revista de Direito Ambiental Vol.

    21. Ano 6. jan-mar 2001. p. 57 (77)]

    Ademais, o controle da estrutura e do financiamento na

    gerncia de interesses locais indispensvel para que o municpio possa

    implementar suas decises sem necessidade de autorizao ou referendo

    dos estados e da Unio.

    Logo, a auto-administrao engloba a autonomia

    administrativa e financeira.

    Em resumo, assegura-se a autonomia municipal desde que

    preservados o autogoverno e a auto-administrao dos municpios.

    No que se refere integrao metropolitana, por sua vez, a

    Constituio Federal acolheu expressamente a possibilidade de criao de

    regies metropolitanas, aglomeraes urbanas e microrregies, nos

    termos do art. 25, 3, verbis:

    3 Os Estados podero, mediante lei complementar,

    instituir regies metropolitanas, aglomeraes urbanas

    e microrregies, constitudas por agrupamentos de

    Municpios limtrofes, para integrar a organizao, o

    planejamento e a execuo de funes pblicas de

    interesse comum.

    Assim, a Carta Magna no ignorou os fenmenos da

    21

  • ADI 1842 / RJ

    concentrao urbana e da conurbao, ou seus desafios, que extravasam

    interesses locais de modo a atingir diversas comunidades e a situar-se sob

    diferentes autoridades municipais. O prprio crescimento das estruturas

    urbanas conecta municpios limtrofes de forma to acentuada que, por

    vezes, no possvel discernir e precisar responsabilidades e interesses

    locais.

    Em especial, duas dificuldades agravam-se nessa nova

    estrutura urbana: (i) a inviabilidade econmica e tcnica de os municpios

    implementarem isoladamente determinadas funes pblicas e (ii) a

    possibilidade de um nico municpio obstar o adequado atendimento dos

    interesses de vrias comunidades.

    Desde a Constituio de 1937, dispe-se sobre o

    agrupamento de municpios para instalao, explorao e administrao

    dos servios pblicos comuns, inclusive atribuindo-o personalidade

    jurdica limitada a seus fins. (art. 29, CF/1937). A constituio e

    administrao de tais agrupamentos deveriam ser reguladas pelo Estado,

    nos termos do pargrafo nico do art. 29, CF/1937.

    Relativamente Constituio de 1946, permitiu-se ao Estado

    to-somente a criao de rgo de assistncia tcnica aos Municpios

    (art. 24, CF/1946) para auxiliar no fenmeno metropolitano.

    No tocante Constituio de 1967 (art. 157, 10), inclusive

    com a Emenda Constitucional n 1/1969 (art. 164), o tema foi tratado no

    mbito da Ordem Econmica, dispondo que a Unio, mediante lei

    complementar, poder para a realizao de servios comuns, estabelecer

    22

  • ADI 1842 / RJ

    regies metropolitanas, constitudas por municpios que,

    independentemente de sua vinculao administrativa, faam parte da

    mesma comunidade scio-econmica.

    Com amparo nessa disposio, a Lei Complementar federal

    n 14/1973 criou as regies metropolitanas de So Paulo, Belo Horizonte,

    Porto Alegre, Recife, Salvador, Curitiba, Belm e Fortaleza.

    De outra sorte, a atual Carta Magna no s devolve a

    competncia da instituio das regies metropolitanas aos Estados

    federados, como inaugura outros institutos similares, quais sejam as

    aglomeraes urbanas e microrregies. O Prof. Jos Afonso da Silva

    diferencia os referidos agrupamentos municipais:

    Regio Metropolitana constitui-se de um conjunto de

    Municpios cujas sedes se unem com certa

    continuidade urbana em torno de um Municpio plo.

    Microrregies formam-se de grupos de Municpios

    limtrofes com certa homogeneidade e problemas

    administrativos comuns, cujas sedes no sejam unidas

    por continuidade. Aglomerados urbanos carecem de

    conceituao, mas, de logo, se percebe que se trata de

    reas urbanas, sem um plo de atrao urbana, quer

    tais reas sejam cidades sedes dos Municpios, como na

    baixada santista (em So Paulo), ou no. (SILVA, Jos

    Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19 ed.

    So Paulo: Malheiros, 2001. p. 649).

    23

  • ADI 1842 / RJ

    Para estas formas de integrao, a Constituio Federal de

    1998 estabelece como requisitos: (i) lei complementar estadual; (ii)

    agrupamento de municpios limtrofes; (iii) o objetivo de integrar a

    organizao, o planejamento e a execuo; (iv) no mbito de funes

    pblicas; e (v) de interesse comum.

    Evidentemente, a integrao metropolitana passa

    necessariamente pela autonomia municipal para dar solues que vo

    alm do que cada municpio pode realizar (cf. BARACHO, Jos Alfredo

    de Oliveira. Teoria Geral do Federalismo. Rio de Janeiro: Forense, 1986. p.

    141).

    De forma geral, o saudoso Hely Lopes Meirelles assim

    equaciona o equilbrio entre autonomia municipal e integrao

    metropolitana:

    O essencial que a lei complementar estadual contenha

    normas flexveis para a implantao da Regio

    Metropolitana, sem obstaculizar a atuao estadual e

    municipal; oferea a possibilidade de escolha, pelo Estado, do

    tipo de Regio Metropolitana a ser instituda; torne

    obrigatria a participao do Estado e dos Municpios

    interessados na direo e nos recursos financeiros da Regio

    Metropolitana; conceitue corretamente as obras e servios de

    carter metropolitano, para que no se aniquile a autonomia

    dos Municpios pela absoro das atividades de seu interesse

    24

  • ADI 1842 / RJ

    local; e, finalmente, se atribuam Regio Metropolitana

    poderes administrativos e recursos financeiros aptos a

    permitir o planejamento e a execuo das obras e servios de

    sua competncia sem os entraves da burocracia estatal. Sem

    estas caractersticas a Regio metropolitana no atingir

    plenamente suas finalidades (MEIRELLES, Hely Lopes.

    Direito Municipal Brasileiro. 14 ed. So Paulo:

    Malheiros, 2006, p. 83).

    Em sentido semelhante, o Prof. Alar Caff Alves ensina:

    Pela funo da referida lei complementar [que institui

    agrupamento de municpios], deduz-se que tais regies

    devero ter tratamento constitucional a nvel do

    Estado, perfazendo as bases institucionais de sua

    criao e funcionamento em face da existncia de

    municpios delas integrantes. Quer dizer tambm que,

    uma vez constitudas por lei complementar, a

    integrao dos municpios ser compulsria para o

    efeito de realizao das funes pblicas de interesse

    comum, no podendo o ente local subtrair-se figura

    regional, ficando sujeito s condies estabelecidas a

    nvel regional para realizar aquelas funes pblicas de

    interesse comum. Esta peculiaridade, singular em

    nosso direito, define os limites da autonomia

    municipal no mbito urbano-regional metropolitano.

    [ALVES, Allar Caff. Regies Metropolitanas,

    Aglomeraes Urbanas e Microrregies: novas

    25

  • ADI 1842 / RJ

    dimenses constitucionais da organizao do Estado

    brasileiro. in Revista de Direito Ambiental. Ano 6. Jan-

    Mar 2001. p. 57 (61-62)].

    Destaque-se que ponto fundamental na constituio da

    integrao metropolitana o interesse comum, que no se confunde com o

    simples somatrio de interesses locais.

    Com efeito, a partir de fenmenos como a conurbao, o

    desatendimento de determinadas funes pblicas pode afetar no s

    aquela comunidade, mas pode atingir situaes alm de suas fronteiras,

    principalmente considerando os municpios limtrofes. Ou seja, a falta de

    determinado servio ou atividade que normalmente s diz respeito a uma

    nica comunidade, pode eventualmente neutralizar o esforo de vrios

    municpios ao redor.

    Da que a integrao metropolitana surja no s como

    condio de viabilidade para determinadas polticas pblicas, mas como

    forma de exigir a execuo das decises tomadas coletivamente.

    Nesse ponto, destaque-se que o mencionado interesse comum

    no comum apenas aos municpios envolvidos, mas ao Estado e aos

    Municpios do agrupamento urbano (cf. SILVA, Jos Afonso da. Direito

    Urbanstico Brasileiro. 4 ed. So Paulo: Malheiros, 2006. p. 164).

    Ressalte-se que o carter compulsrio da participao dos

    municpios em regies metropolitanas, microrregies e aglomeraes

    urbanas j foi acolhido pelo Pleno deste STF, ao julgar inconstitucional

    26

  • ADI 1842 / RJ

    tanto a necessidade de aprovao prvia pelas Cmaras Municipais (ADI

    1841/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 20.9.2002) quanto a exigncia de

    plebiscito nas comunidades interessadas (ADI 796/ES, Rel. Min. Nri da

    Silveira, DJ 17.12.1999).

    Na verdade, tais aspectos da integrao metropolitana

    (interesse comum e compulsoriedade) no so incompatveis, em tese,

    com o ncleo essencial da autonomia dos municpios participantes.

    Com efeito, a deciso e a execuo colegiadas so aptas a, por

    um lado, garantir o adequado atendimento do interesse comum e

    vincular cada comunidade e, por outro lado, preservar o autogoverno e a

    auto-administrao dos municpios.

    Assim, determinados os elementos essenciais da autonomia

    municipal e da integrao metropolitana, passo a analisar sua relao

    com a funo pblica de interesse comum em discusso, qual seja, o

    saneamento bsico.

    4) Agrupamentos Municipais e Saneamento Bsico

    Como bem apontado pelo Min. Maurcio Corra, a

    competncia para promover a melhoria das condies de saneamento

    bsico comum da Unio, dos Estados e Municpios (art. 23, IX, CF/1988).

    Recentemente, a Lei Federal n 11.445/2007 - em atendimento

    ao comando do art. 21, XX, da Carta Magna fixou diretrizes sobre o

    saneamento bsico, definindo-o nos seguintes termos:

    27

  • ADI 1842 / RJ

    Art. 3o Para os efeitos desta Lei, considera-se:

    I - saneamento bsico: conjunto de servios, infra-

    estruturas e instalaes operacionais de:

    a) abastecimento de gua potvel: constitudo pelas

    atividades, infra-estruturas e instalaes necessrias ao

    abastecimento pblico de gua potvel, desde a

    captao at as ligaes prediais e respectivos

    instrumentos de medio;

    b) esgotamento sanitrio: constitudo pelas atividades,

    infra-estruturas e instalaes operacionais de coleta,

    transporte, tratamento e disposio final adequados

    dos esgotos sanitrios, desde as ligaes prediais at o

    seu lanamento final no meio ambiente;

    c) limpeza urbana e manejo de resduos slidos:

    conjunto de atividades, infra-estruturas e instalaes

    operacionais de coleta, transporte, transbordo,

    tratamento e destino final do lixo domstico e do lixo

    originrio da varrio e limpeza de logradouros e vias

    pblicas;

    d) drenagem e manejo das guas pluviais urbanas:

    conjunto de atividades, infra-estruturas e instalaes

    operacionais de drenagem urbana de guas pluviais,

    de transporte, deteno ou reteno para o

    amortecimento de vazes de cheias, tratamento e

    disposio final das guas pluviais drenadas nas reas

    urbanas;

    28

  • ADI 1842 / RJ

    Por outro lado, o art. 3, II, da LC 87/1997/RJ, inclui no

    conceito de saneamento bsico o abastecimento e produo de gua

    desde sua captao bruta dos mananciais existentes no Estado, inclusive

    subsolo, sua aduo, tratamento e reservao, a distribuio de gua de

    forma adequada ao consumidor final, o esgotamento sanitrio e a coleta

    de resduos slidos e lquidos por meio de canais, tubos ou outros tipos

    de condutos e o transporte das guas servidas e denominadas

    esgotamento, envolvendo seu tratamento, decantao em lagoas para

    posterior devoluo ao meio ambiente em cursos dgua, lagos, baas e

    mar, bem como as solues alternativas para os sistemas de esgotamento

    sanitrio.

    No h dvida quanto complexidade e importncia da

    prestao de servios de saneamento bsico.

    Por um lado, as prprias circunstncias naturais e o elevado

    custo para a adequada prestao do servio pblico e, principalmente,

    para instalao e manuteno da infra-estrutura necessria - como canais

    e tubos em paralelo para amplo abastecimento de gua e recolhimento de

    esgoto, estruturas de drenagem de guas pluviais, estaes de tratamento

    etc. - demandam expressivos aportes financeiros, alm de condies

    tcnicas, que nem sempre esto ao alcance da grande maioria dos

    municpios brasileiros.

    Alm disso, o servio de saneamento bsico constitui

    monoplio natural, pois os custos fixos de implantao e manuteno do

    sistema so to elevados que uma nica fornecedora pode atender a toda

    demanda com custo menor que mltiplas fornecedoras (cf. COOTER &

    29

  • ADI 1842 / RJ

    ULEN. Law and Economics. 5 ed. Boston: Pearson, 2007. p. 35 e ss.

    POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 7 ed. New York: Aspen,

    2007. p. 367 e ss.).

    Assim, a configurao de monoplio natural revela no s ser

    inexeqvel o estabelecimento de concorrncia na prestao de servio de

    saneamento bsico, como tambm indica que a reunio da demanda de

    municpios limtrofes pode reduzir custos e tornar o servio mais atrativo

    para concessionrios privados.

    Notoriamente, poucos so os municpios que por si ss tm

    condies de atender adequadamente funo pblica de saneamento

    bsico. Normalmente, o prprio acesso aos recursos hdricos depende da

    integrao das redes de abastecimento entre diversos municpios.

    Captao, tratamento, aduo, reserva, distribuio e,

    posteriormente, recolhimento e conduo do esgoto, bem como sua

    disposio final indicam vrias etapas que usualmente ultrapassam os

    limites territoriais de um dado municpio.

    Ademais, raras comunidades compreenderiam isoladamente

    poder aquisitivo suficiente para atrair o interesse de concessionrios

    privados ou para custear diretamente a prestao dos servios inerentes

    ao saneamento bsico.

    Por outro lado, a inadequao na prestao da funo pblica

    de saneamento bsico enseja problemas ambientais e de sade pblica

    que afetam comunidades prximas, principalmente nos casos em que se

    30

  • ADI 1842 / RJ

    verifica o fenmeno da conurbao.

    O vnculo entre saneamento bsico e sade pblica to

    estreito que a prpria Constituio Federal atribuiu competncia ao SUS

    para participar na formulao da poltica e da execuo das aes de

    saneamento bsico (art. 200, IV, CF/1988).

    Dessa forma, a funo pblica do saneamento bsico

    freqentemente extrapola o interesse local e passa a ter natureza de

    interesse comum, apta a ensejar a instituio de regies metropolitanas,

    aglomeraes urbanas e microrregies, nos termos do art. 25, 3, da

    Constituio Federal.

    Com efeito, a integrao do planejamento e execuo do

    saneamento bsico de agrupamento de municpios no s privilegia a

    economicidade e eficincia de recursos naturais e financeiros - por

    exemplo, aproveitando estao de tratamento e redes de distribuio e

    coleta para diversas comunidades como permite subsdios cruzados,

    isto , a compensao de deficit na prestao de servio em determinadas

    reas com o superavit verificado nas reas de maior poder aquisitivo.

    Registre-se que esta integrao pode ocorrer tanto

    voluntariamente, por meio de gesto associada, empregando convnios

    de cooperao ou consrcios pblicos, consoante os arts. 3, II, e 24 da Lei

    Federal n 11.445/2007 e 241 da Constituio Federal, como

    compulsoriamente, nos termos em que prevista na lei complementar

    estadual que institui as aglomeraes urbanas.

    31

  • ADI 1842 / RJ

    No direito comparado, discutem-se vrios modelos que

    permitam a integrao de comunidades locais para a prestao da funo

    de saneamento bsico.

    Por exemplo, na rea metropolitana de Nova Iorque (NYC)

    ocorreu verdadeira incorporao de diferentes municpios (Bronx,

    Brooklin, Manhattan, Queens e Staten Island) para concentrar a execuo

    dos servios de saneamento bsico sob a autoridade do prefeito do

    municpio plo. Assim, o New York City Departament of Environmental

    Protection controla todo o servio de abastecimento de gua e

    recolhimento de esgoto.

    A anexao de municpios menores pelos municpios plos

    foi a primeira soluo promovida para atender interesses comuns

    (MARTIN MATEO, Ramon. Problematica Metropolitana. Madrid:

    Montecorvo, 1974. p. 233).

    Tal modelo ainda empregado atualmente, como demonstra

    o caso da Cidade de Toronto, em que foram incorporados 6 municpios de

    seu entorno (cf. BURNS, Daniel. A recente reforma municipal do Canad

    com ateno particular ao caso de Toronto in O Desafio da Gesto das

    Regies Metropolitanas em Pases Federativos. Braslia, Cmara dos

    Deputados, 2004. p. 27-29).

    Na Alemanha, destaca-se o modelo dos Kreise, que institui

    associao distrital, com regime de competncias de interesse comum. A

    propsito, Andreas J. Krell explicita a natureza e caractersticas das

    circunscries municipais:

    32

  • ADI 1842 / RJ

    Nesse ponto, cabe fazer um excurso para uma instituio famosa da administrao pblica na Alemanha, o Kreis, cuja traduo adequada crculo ou circunscrio municipal. A competncia dos Kreise baseada no princpio da subsidiariedade, quer dizer: somente aquelas funes que os prprios municpios no conseguem exercer sozinhos de maneira satisfatria, devem ser cumpridos pelo respectivo Kreis, que, na mdia, integra de 20 a 30 municpios menores e rurais.

    O Kreis exerce funes genuinamente supra-municipais como a construo e a manuteno de estradas regionais, a gesto de parques naturais, o controle de qualidade do ar ou o transporte coletivo regional. Ao lado dessas, ele desenvolve tambm medidas de compensao para reduzir as diferenas de capacidade administrativa dos seus membros e cumpre a funo de complementao, oferecendo servios que os municpios no seriam capazes de resolver sozinhos, como por exemplo, o abastecimento de gua, o tratamento de esgotos ou a manuteno de escolas secundrias. A execuo da maioria das tarefas obrigatrias dos municpios so de responsabilidade dos Kreise (autorizao de construes, porte de armas, licensiamento de automveis, servios de estrangeiros, defesa civil).

    Ao lado dessas atividades, o Kreis exerce tambm funes da esfera governamental superior, isto , dos governos dos estados federados. Verificamos, portanto, uma funo dupla do Kreis, como comunidade territorial supralocal e grmio ou microrregio municipal e, por outro lado, como direito administrativo estadual. (KRELL, Andreas Joachim. Perspectivas dos Municpios, in Livro de Teses da XVI Conferncia Nacional de Advogados, Braslia: OAB, s.d.,

    33

  • ADI 1842 / RJ

    p.44).

    Ainda a respeito dos Kreise, Aspsia Camargo asseverou em

    estudo comparativo entre os federalismos alemo e brasileiro:

    Os mecanismos de cooperao horizontal entre municpios [alemes] so muito mais eficazes, em torno do Kreis, e correspondem a unidades microrregionais de planejamento, e as aes estratgicas de conjunto, a mecanismos de controle e execuo nas quais se aplica o princpio da subsidiariedade em favor dos mais fracos, sempre de maneira complementar e respeitando o espao de autonomia das comunas. (CAMARGO, Aspsia Federalismo Cooperativo e o Princpio da Subdisiariedade: Notas sobre a Experincia Recente do Brasil e da Alemanha, in HOFMEISTER & CARNEIRO, Federalismo na Alemanha e no Brasil. So Paulo: Fundao Konrad Adenauer, 2001, p. 82).

    Na Espanha, aplicou-se modelo na regio metropolitana de

    Bilbao em que havia um conselho geral, com representantes dos

    municpios perifricos, e uma comisso executiva, presidida pelo prefeito

    do Municpio plo. Todavia, no se estabeleceram competncias claras

    que diferenciassem o papel da organizao metropolitana e dos

    municpios que a compunham (cf. MARTIN MATEO, Ramon.

    Problematica Metropolitana. Madrid: Montecorvo, 1974. p. 234/235).

    Ressalte-se que aps a nova Constituio espanhola de 1978,

    os modelos regionais foram reformulados de acordo com cada Comunidad

    Autonoma. Assim, enquanto na regio metropolitana de Madri os servios

    de saneamento bsico so executados exclusivamente por meio da

    34

  • ADI 1842 / RJ

    empresa pblica Canal de Isabel II, na regio de Barcelona a adeso

    Entidade de Meio Ambiente da rea Metropolitana no compulsria.

    Na ndia, a responsabilidade pelas reas metropolitanas no

    dos governos locais ou da Unio, mas dos governos estaduais, que em

    geral criam instituies especializadas.

    A exceo a regio metropolitana de Nova Delhi, pois na

    qualidade de capital da ndia, constitui territrio da Unio, com Poder

    Legislativo prprio. Formada em 1957, a Grande Delhi amalgamou 11

    municpios ao Municpio de Delhi, que s abrange 10% da rea

    metropolitana.

    A partir de ento, a responsabilidade pelos servios bsicos

    de construo, manuteno e limpeza de drenos e trabalhos de

    drenagem; limpeza, remoo e disposio do lixo e outros materiais

    poluidores; (...) melhorias de bueiros (...); servio de gua; limpeza de vias

    pblicas; entre outros restou transferida dos municpios anexados para a

    Municipal Corporation of Delhi (cf. MARTHUR, Om Prakash. ndia:

    arranjos financeiros e estruturas de gesto da regio metropolitana de

    Nova Delhi. in O Desafio da Gesto das Regies Metropolitanas em Pases

    Federativos. Braslia, Cmara dos Deputados, 2004. p. 29-31).

    Na Frana, criaram-se comunidades urbanas, atribuindo ao

    mbito metropolitano os servios sanitrios e de saneamento. Tambm na

    Inglaterra, definiram-se competncias semelhantes entre a Autoridade

    Metropolitana e os Conselhos de Distrito metropolitano (cf. BARACHO,

    Jos Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Federalismo. Rio de Janeiro:

    35

  • ADI 1842 / RJ

    Forense, 1986. p. 133).

    Por bvio, modelo funcional de saneamento bsico no deve

    ignorar as indispensveis fontes de recursos hdricos [cf. BARROSO, Luis

    Roberto. Saneamento Bsico: Competncias Constitucionais da Unio,

    Estados e Municpios in Revista Dilogo Jurdico n 13 abr/mai 2002,

    Salvador, disponvel em www.direitopublico.com.br. Acesso em

    5.12.2007, p. 5].

    No Brasil, a Lei federal n 9.433/1997 estipulou como

    fundamento da Poltica Nacional a administrao dos recursos hdricos

    em funo das bacias hidrogrficas (art. 1, V, da Lei n 9.433/1997).

    Com efeito, a bacia hidrogrfica deve ser o ncleo da

    unidade de planejamento e o referencial para toda ao de

    aproveitamento de recursos hdricos, inclusive de saneamento bsico,

    uma vez que consiste no elemento determinante para viabilidade e

    racionalidade do sistema.

    Ressalte-se que o art. 1, VI, da Lei n 9.433/1997 tambm

    prev como fundamento a gesto descentralizada dos recursos hdricos

    com a participao do Poder Pblico, dos usurios e das comunidades.

    Dessa forma, a integrao metropolitana em funo de

    saneamento bsico surge como imperativo da prpria Poltica Nacional

    dos Recursos Hdricos e deve pautar-se no uso racional dos recursos

    36

  • ADI 1842 / RJ

    hdricos, alm de promover o adequado atendimento do interesse comum

    e resguardar a autonomia dos municpios.

    De acordo com o relatrio do Seminrio Desafio da Gesto

    das Regies Metropolitanas nos Pases Federativos promovido pela

    Cmara dos Deputados, ao menos 26 reas metropolitanas, que agregam

    cerca de 439 municpios, j foram institudas no Pas (cf. MOURA, Rosa.

    A situao socioeconmica das Regies Metropolitanas: desigualdades e

    diversidade regional in O Desafio da Gesto das Regies Metropolitanas em

    Pases Federativos. Braslia, Cmara dos Deputados, 2004. p. 34).

    Nesse contexto, preciso garantir, por um lado, que um

    municpio isoladamente no obstrua todo o esforo comum para

    viabilidade e adequao da funo de saneamento bsico em toda regio

    metropolitana, microrregio e aglomerado urbano.

    Por outro lado, tambm deve se evitar que o poder decisrio

    e o poder concedente concentrem-se nas mos de um nico ente, quer o

    estado federado, quer o municpio plo.

    Nesse sentido, a instituio de regies metropolitanas,

    aglomeraes urbanas ou microrregies pode vincular a participao de

    municpios limtrofes, com o objetivo de executar e planejar a funo

    pblica do saneamento bsico, seja para atender adequadamente s

    exigncias de higiene e sade pblica, seja para dar viabilidade

    econmica e tcnica aos municpios menos favorecidos. Repita-se que este

    carter compulsrio da integrao metropolitana no esvazia a

    autonomia municipal [cf. ALVES, Alar Caff. Regies Metropolitanas,

    37

  • ADI 1842 / RJ

    Aglomeraes Urbanas e Microrregies: novas dimenses constitucionais

    da organizao do Estado brasileiro in Revista de Direito Ambiental Vol.

    21. Ano 6. jan-mar 2001. p. 57 (77); e VASQUES, Denise. Instituio de

    Regies Metropolitanas e Competncias Constitucionais Luz do

    Supremo Boletim de Direito Municipal n 05, Ano XXI, maio 2005, p. 368

    (373)].

    Alm disso, a integrao da funo pblica de saneamento

    bsico implica necessariamente a concentrao da regulao, do controle,

    do planejamento e da superviso do servio do saneamento bsico, de

    forma a uniformizar sua execuo. No entanto, tal concentrao no viola

    a autonomia municipal nos casos em que a titularidade do interesse

    comum seja de rgo em que os representantes eleitos das comunidades

    locais (autogoverno) participem de deciso colegiada (auto-

    administrao).

    Na verdade, o problema surge no momento em que deve se

    arbitrar, de acordo com os atuais padres constitucionais, que ente tem a

    responsabilidade de atender ao saneamento bsico nos casos de

    aglutinaes urbanas. Em outras palavras, quem detm o poder

    concedente quanto ao servio de saneamento bsico: os municpios, o

    estado, o municpio plo? a prpria entidade metropolitana?

    Conforme exposto, o voto do Relator, Min. Maurcio Corra,

    admite a possibilidade de o Estado-membro regular e executar funes e

    servios pblicos de interesse comum, cometendo-lhe a

    responsabilidade pela implantao de polticas unificadas de prestao

    de servios pblicos.

    38

  • ADI 1842 / RJ

    Esse entendimento tem amplo suporte doutrinrio [cf.

    BARROSO, Luis Roberto. Saneamento Bsico: Competncias

    Constitucionais da Unio, Estados e Municpios in Revista Dilogo

    Jurdico n 13 abr/mai 2002, Salvador, disponvel em

    www.direitopublico.com.br. Acesso em 5.12.2007, p. 21; TANAKA, Snia

    Yuriko Kanashiro. O Poder Concedente dos Servios Pblicos de

    Saneamento Bsico, sobretudo na Regio Metropolitana de So Paulo:

    Estado ou Municpio? in Boletim de Direito Municipal n 6, Ano XXI, jun

    2005. p. 466 (474); FIGUEIREDO, Marcelo. O Saneamento Bsico e o

    Direito uma viso dos principais problemas jurdicos in WAGNER

    JUNIOR, Luiz Guilherme da Costa (coord.). Direito Pblico: Estudos em

    homenagem ao Professor Adilson Abreu Dallari. Belo Horizonte: Del Rey,

    2004. p. 511 (520)].

    No entanto, data venia, entendo que tal concluso no merece

    prosperar, pois no compatvel com a Constituio Federal a

    transferncia integral do poder concedente seja ao estado federado, seja ao

    municpio plo, uma vez que eliminaria, neste aspecto, a capacidade de

    auto-administrao dos municpios envolvidos e, conseqentemente,

    ncleo essencial da autonomia municipal.

    De outra sorte, os votos divergentes dos Ministros Joaquim

    Barbosa e Nelson Jobim compreendem que deve ser respeitada a diviso

    de responsabilidades entre municpio e estados, porm no coincidem

    quanto titularidade das funes pblicas de interesse comum.

    Por um lado, o r. voto do Min. Nelson Jobim, amparado pelos

    39

  • ADI 1842 / RJ

    votos dos Ministros Ilmar Galvo e Eros Grau na ADI-MC 2077/BA,

    ressalta que as funes administrativas e executivas da REGIO

    METROPOLITANA somente podem ser exercidas por rgo prprio ou

    por rgo (pblico ou privado) a partir da autorizao ou concesso dos

    municpios formadores.

    Por outro lado, o entendimento do Min. Joaquim Barbosa

    assenta que a titularidade do exerccio das funes pblicas de interesse

    comum passa para a nova entidade poltico-territorial-administrativa, de

    carter intergovernamental, que nasce em conseqncia da criao da

    regio metropolitana.

    De acordo com o ordenamento constitucional, no razovel

    a manuteno do poder concedente em cada municpio participante, sob

    pena de esvaziar o contedo do art. 25, 3, da Constituio Federal e a

    prpria instituio de regio metropolitana, microrregio ou aglomerao

    urbana, alm de inviabilizar a prestao integrada e o adequado

    atendimento do interesse comum.

    Na realidade, ao contrrio da posio sustentada pelo Min.

    Jobim, o interesse comum tutelado pelas aglomeraes municipais no

    constitui apenas o somatrio integrado das competncias e atribuies

    dos municpios formadores.

    A inadequao da prestao da funo de saneamento bsico

    em um nico municpio pode inviabilizar todo o esforo coletivo e afetar

    vrios municpios prximos.

    40

  • ADI 1842 / RJ

    Assim, o interesse comum muito mais que a soma de cada

    interesse local envolvido, pois a m conduo da funo de saneamento

    bsico por apenas um Municpio pode colocar em risco todo o esforo do

    conjunto, alm das conseqncias para a sade pblica de toda a regio.

    A soluo parece residir no reconhecimento de sistema

    semelhante aos Kreise alemes, em que o Agrupamento de municpios junto

    com o estado federado detenha a titularidade e o poder concedente, ou seja,

    o colegiado formado pelos municpios mais o estado federado decida

    como integrar e atender adequadamente funo de saneamento bsico.

    Nesse sentido, o magistrio de Alar Caff pertinente:

    A criao por lei complementar da Constituio do estado, conforme o dispositivo da Carta Federal, das referidas figuras regionais, induz ao entendimento de que aquelas funes pblicas de interesse comum no so de exclusiva competncia local. E mais, no so tambm de competncia exclusiva do Estado. (...) Se o entendimento fosse de ordem tradicional, unilinear e sem interpretao sistemtica, ao Estado simplesmente seria adjudicada a titularidade daqueles servios cujo controle e execuo demandassem ao administrativa supralocal. Neste caso, no haveria necessidade de participao dos municpios na gesto e controle de tais funes pblicas, uma vez que, sendo de carter regional, no seria, na forma da perspectiva tradicional, de sua pertinncia normativa e executiva. Seria inteira e privativamente de competncia do Estado, com excluso dos municpios.

    Porm, por j no estarmos sob a gide do federalismo dual, estanque e centralizador, a interpretao no pode ser essa, sob pena de admitir a

    41

  • ADI 1842 / RJ

    inutilidade jurdica das referidas figuras regionais, no plano da Constituio. Como essa linha seria um despautrio hermenutico, no h como deixar de interpretar que aquelas funes pblicas de interesse comum so de competncia conjunta (comum) dos municpios metropolitanos e do Estado que os integra. Por isso que so chamadas funes pblicas de interesse comum. Seu exerccio, entretanto peculiar, visto que os municpios no podero exerc-las de modo isolado, seno conjuntamente, numa espcie de co-gesto entre eles e o Estado que tem a responsabilidade de organiz-las originariamente, mediante lei complementar.

    (...)Aqui, o poder originrio concedente de servios ou

    funes comuns so municpios e o Estado, vez que somente estes entes possuem corpos legislativos para regrar sobre os servios pblicos de interesse regional. Entretanto, mediante um condomnio legislativo (obtido mediante o exerccio de compatnicias comuns e concorrentes complementares e supletivas), aqueles entes polticos podero e devero, por exigncia constitucional, criar as condies para a organizao intergovernamental administrativa pblica (uma espcie de autarquia territorial plurifuncional) para ser titular (derivado) do exerccio de competncias relativas s funes pblicas de interesse comum. Vale dizer que o Estado cria e organiza tal entidade administrativa, mediante lei complementar, mas no pode deixar, sob pena de inconstitucionalidade da medida, de admitir a participao dos municpios metropolitanos (ou integrantes das aglomeraes urbanas ou microrregies) para decidirem sobre assuntos regionais que, em ltima instncia, so tambm de seu interesse (local).

    Neste sentido, no poder o Estado, ao criar a figura regional em apreo, gerenciar solitria e

    42

  • ADI 1842 / RJ

    exclusivamente as funes pblicas de interesse comum (incluindo servios correspondentes) , pois, da entidade pblica administrativa (autarquia) organizada a nvel regional, de carter intergovernamental, onde representantes do Estado e dos municpios envolvidos devero, de forma paritria, participar das funes normativas, diretivas e adminsitrativas correspondentes. [ALVES, Alar Caff. Regies Metropolitanas, Aglomeraes Urbanas e Microrregies: novas dimenses constitucionais da organizao do Estado brasileiro in Revista de Direito Ambiental Vol. 21. Ano 6. jan-mar 2001. p. 57 (77)]

    Tendo em vista os termos da Constituio de 1988, Jos

    Afonso da Silva concorda que a titularidade [dos servios comuns] no

    pode ser imputada a qualquer das entidades em si, mas ao Estado e aos

    Municpios envolvidos. E o autor ressalta:

    No nos parece, em princpio, que [a participao dos municpios em agrupamentos urbanos] se trate de cooperao, porque a lei complementar estadual, ao instituir a regio metropolitana, implica a definio das funes pblicas de interesse comum. Comum a quem? Funes pblicas de interesse comum a Estado e a Municpio na regio metropolitana e essa parece-nos a fundamental alterao que a atual formulao constitucional implica. E cabe lei complementar estadual definir estas funes pblicas de interesse comum. Mas essa definio tem limites, pois entre elas, evidentemente, no podem estar as de estrito interesse local, as que no tm dimenso metropolitana, que continuam integradas autonomia dos municpios integrantes; nem as do Estado que no sejam tambm de estrito interesse metropolitano. (SILVA, Jos

    43

  • ADI 1842 / RJ

    Afonso da. Direito Urbanstico Brasileiro. 4 ed. So Paulo: Malheiros, 2006. p. 164)

    Nada obstante a discusso doutrinria quanto

    possibilidade de a regio metropolitana, a microrregio e o aglomerado

    urbano deterem personalidade jurdica prpria [a propsito cf.

    ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. O Problema da Concesso de

    Servios Pblicos em Regies Metropolitanas: (Re)Pensando um tema

    relevante. Interesse Pblico n 24, Ano 5, mar/abr 2004, Porto Alegre:

    Notadez p. 187 (191 e ss.)], o importante a existncia de estrutura

    (convnio, agncia reguladora, conselho deliberativo etc.) com alguma

    forma de participao de todos os entes envolvidos, capaz de concentrar

    em um rgo uniformizador e tcnico, responsvel pela regulao e

    controle do servio de saneamento bsico.

    Assim, cabe a este rgo colegiado regular e fiscalizar a

    execuo de suas decises, definindo inclusive as formas de concesso do

    servio de saneamento bsico, poltica tarifria, instalao de subsdios

    cruzados etc.

    Ressalte-se, porm, que a participao dos entes nessa

    deciso colegiada no necessita ser paritria, desde que apta a prevenir a

    concentrao do poder decisrio no mbito de um nico ente. A

    participao de cada Municpio e do Estado deve ser estipulada em cada

    regio metropolitana de acordo com suas particularidades, sem que se

    permita que um ente tenha predomnio absoluto.

    Isto , ainda que a participao do Estado federado nessa

    organizao seja imprescindvel [BARACHO, Jos Alfredo de Oliveira.

    44

  • ADI 1842 / RJ

    Teoria Geral do Federalismo. Rio de Janeiro: Forense, 1986. p. 133; ALVES,

    Alar Caff. Regime Jurdico do Planejamento Metropolitano e

    Autonomia Municipal in Vox Legis Vol. 137. Ano XII. mai 1980. p. 1 (6);

    SILVA, Jos Afonso da. Direito Urbanstico Brasileiro. 4 ed. So Paulo:

    Malheiros, 2006. p. 164; e ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. O

    Problema da Concesso de Servios Pblicos em Regies Metropolitanas:

    (Re)Pensando um tema relevante. Interesse Pblico n 24, Ano 5,

    mar/abr 2004, Porto Alegre: Notadez p. 187 (191 e ss.)], inclusive para

    assegurar os interesses de outras comunidades no abrangidas pela

    aglomerao de municpios, seu voto isolado no pode ser suficiente para

    fixar todo planejamento e a execuo da funo pblica de saneamento

    bsico.

    Obviamente, no se exige que o Estado ou o Municpio-plo

    tenham peso idntico a comunidades menos expressivas, seja em termos

    populacionais, seja em termos financeiros. A preservao da autonomia

    municipal impede apenas a concentrao do poder decisrio e regulatrio

    nesses entes.

    Em concluso, na hiptese de integrao metropolitana, o

    poder decisrio e o eventual poder concedente no devem ser

    transferidos integralmente para o estado federado, como entendia o Min.

    Maurcio Corra; nem permanecer em cada municpio individualmente

    considerado, como sustentava mais enfaticamente o Min. Nelson Jobim.

    Antes, a regio metropolitana deve, como ente colegiado,

    planejar, executar e funcionar como poder concedente dos servios de

    45

  • ADI 1842 / RJ

    saneamento bsico, inclusive por meio de agncia reguladora, de sorte a

    atender o interesse comum e autonomia municipal.

    5) Exame das normas questionadas

    luz das consideraes acima expostas, todos os

    dispositivos que condicionam a execuo da integrao metropolitana ao

    exclusivo crivo de autoridade estadual so inconstitucionais.

    Assim, a expresso a ser submetido Assemblia

    Legislativa do inciso I do art. 5, alm do pargrafo nico do art. 5; dos

    incisos I, II, IV e V do art. 6; do art. 7; do art. 10, todos da LC 87/1997/RJ

    so efetivamente inconstitucionais por no pressuporem o poder

    decisrio da integrao metropolitana no mbito do colegiado de

    municpios integrantes e do estado federado, como os Conselhos

    Deliberativos criados nos arts. 4 e 11 da LC 87/1997/RJ.

    Ao contrrio, tais dispositivos delegam diretamente ao

    Estado do Rio de Janeiro, ou alguma de suas autoridades, a palavra final

    a respeito da execuo e funcionamento da organizao metropolitana e

    das funes de interesse comum.

    Quanto aos arts. 11 a 21 da Lei n 2.869/1997/RJ, a estrutura

    de saneamento bsico para o atendimento de regio metropolitana retira

    dos municpios qualquer poder de decidir, concentrando no Estado do

    Rio de Janeiro todos os elementos executivos, inclusive a conduo da

    especfica Agncia Reguladora e a fixao das tarifas dos servios das

    concessionrias.

    46

  • ADI 1842 / RJ

    A titularidade do servio de saneamento bsico,

    relativamente distribuio de gua e coleta de esgoto, qualificada por

    interesse comum e deve ser concentrada na Regio Metropolitana e na

    Microrregio, nos moldes do art. 25, 3, da Carta Magna, respeitando a

    conduo de seu planejamento e execuo por decises colegiadas dos

    municpios envolvidos e do Estado do Rio de Janeiro.

    Frise-se que no se veda a concesso do servio por meio de

    lei estadual ou o controle de sua execuo por meio de agncia

    reguladora no mbito estadual, mas estas providncias devem ser

    dirigidas a partir de deciso em que os municpios e o estado federado

    tenham participado conjuntamente.

    Dessa forma, os arts. 11 a 21 da Lei n 2.869/1997/RJ,

    porquanto decorrentes da deciso singular do Estado do Rio de Janeiro,

    so inconstitucionais.

    Acrescento, ainda, a manifesta inconstitucionalidade dos

    pargrafos 2 tanto do art. 4, quanto do art. 11 da LC 87/1997/RJ, que

    condiciona a execuo dos respectivos Conselhos Deliberativos

    ratificao pelo Governador do Estado, que no restou apontada pelos

    votos divergentes.

    Em suma, declaro a inconstitucionalidade da expresso a ser

    submetido Assemblia Legislativa do inciso I do art. 5, alm do

    pargrafo 2 do art. 4; do pargrafo nico do art. 5; dos incisos I, II, IV e

    V do art. 6; do art. 7; do art. 10, e do pargrafo 2 do art. 11 todos da LC

    47

  • ADI 1842 / RJ

    87/1997/RJ, bem como dos 11 a 21 da Lei n 2.869/1997/RJ.

    6) Modulao dos Efeitos da Declarao de

    Inconstitucionalidade

    A aprovao da Lei n. 9.868/1999 introduziu significativa alterao na tcnica de deciso de controle de constitucionalidade brasileiro. Em seu art. 27, a lei consagra a frmula segundo a qual, ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razes de segurana jurdica ou de excepcional interesse social, poder o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois teros de seus membros, restringir os efeitos daquela declarao ou decidir que ela s tenha eficcia a partir de seu trnsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

    Resta notrio que o legislador optou conscientemente pela adoo de uma frmula alternativa pura e simples declarao de nulidade, que corresponde tradio brasileira.

    O dogma da nulidade da lei inconstitucional pertence tradio do Direito brasileiro. A teoria da nulidade tem sido sustentada por praticamente todos os nossos importantes constitucionalistas (BARBOSA, Rui. Os atos inconstitucionais do Congresso e do Executivo. In: Trabalhos jurdicos. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1962, p. 70-1; e O direito do Amazonas ao Acre Septentrional. Rio de Janeiro: Jornal do Commercio, 1910, v. 1, p. 103; CAMPOS, Francisco Luiz da Silva. Direito

    48

  • ADI 1842 / RJ

    constitucional. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1956, v. 1, p. 430-1; BUZAID, Alfredo. Da ao direta de declarao de inconstitucionalidade no direito brasileiro. So Paulo: Saraiva, 1958, p. 130-2; NUNES, Jos de Castro. Teoria e prtica do Poder Judicirio. Rio de janeiro: Revista forense, 1943, p. 589).

    Fundada na antiga doutrina americana, segundo a qual the inconstitutional statute is not law at all (Cf. WILLOUGHBY, Westel Woodbury. The Constitutional law of the United States. New York, 1910, v. 1, p. 9-10. Cf. tambm COOLEY, Thomas M. A treatise on the constitutional limitations. 4. ed. Boston, 1878, p. 227), significativa parcela da doutrina brasileira posicionou-se em favor da equiparao entre inconstitucionalidade e nulidade. Afirmava-se, em favor dessa tese, que o reconhecimento de qualquer efeito a uma lei inconstitucional importaria na suspenso provisria ou parcial da Constituio (Cf. BUZAID, Alfredo. Da ao direta de declarao de inconstitucionalidade no direito brasileiro, cit. p. 128-32).

    No entanto, no se deve perder de vista que, em determinados casos, a aplicao excepcional da lei inconstitucional traduz exigncia do prprio ordenamento constitucional. De fato, h situaes em que a aplicao da lei mostra-se, do prisma constitucional, indispensvel no perodo de transio, at a promulgao da nova lei.

    Em razo destes casos, a disposio contida no art. 27 da Lei n. 9.868/1999 prev modalidade de deciso no direito brasileiro semelhante ao modelo consagrado no

    49

  • ADI 1842 / RJ

    direito portugus, que, no art. 282 (4), da Constituio, estabelece frmula que autoriza o Tribunal Constitucional a limitar os efeitos das decises de inconstitucionalidade com fundamento no princpio da segurana jurdica e no interesse pblico de excepcional relevo.

    A propsito do modelo portugus, registre-se a opinio abalizada de Jorge Miranda:

    A fixao dos efeitos da inconstitucionalidade destina-se a adequ-los s situaes da vida, a ponderar o seu alcance e a mitigar uma excessiva rigidez que pudesse comportar; destina-se a evitar que, para fugir a conseqncias demasiado gravosas da declarao, o Tribunal Constitucional viesse a no decidir pela ocorrncia de inconstitucionalidade; uma vlvula de segurana da prpria finalidade e da efetividade do sistema de fiscalizao.Uma norma como a do art. 282, n 4, aparece,

    portanto, em diversos pases, seno nos textos, pelo menos na jurisprudncia.Como escreve Bachof, os tribunais

    constitucionais consideram-se no s autorizados mas inclusivamente obrigados a ponderar as suas decises, a tomar em considerao as possveis conseqncias destas. assim que eles verificam se um possvel resultado da deciso no seria manifestamente injusto, ou no acarretaria um dano para o bem pblico, ou no iria lesar interesses dignos de proteo de cidados singulares. No pode entender-se isto, naturalmente, como se os tribunais tomassem como ponto de partida o presumvel resultado da sua deciso e passassem por cima da Constituio e da lei em ateno a um resultado desejado. Mas a verdade que um resultado injusto, ou por qualquer outra razo duvidoso, tambm em regra embora no sempre um resultado juridicamente errado. (MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, 3 ed. Coimbra: 1991, t. 2, p. 500-502).

    Ressalte-se, ademais, que o instituto vem tendo

    50

  • ADI 1842 / RJ

    ampla utilizao desde a sua adoo. Segundo Rui Medeiros, entre 1983 e 1986, quase um tero das declaraes de inconstitucionalidade com fora obrigatria geral tiveram efeitos restritos. Essa tendncia manteve-se tambm entre 1989 e 1997: das 50 declaraes de inconstitucionalidade proferidas em processos de controle abstrato de normas pelo menos 18 teriam sido com limitao de efeitos (MEDEIROS, Rui. A Deciso de Inconstitucionalidade. Lisboa: Universidade Catlica Editora, 1999. p. 689).

    Acentue-se que, ao contrrio do imaginado por alguns autores, tambm o conceito indeterminado relativo ao interesse pblico de excepcional relevo no mero conceito de ndole poltica. Em verdade, tal como anota Rui Medeiros, a referncia ao interesse pblico de excepcional relevo no contrariou qualquer inteno restritiva, nem teve o propsito de substituir a constitucionalidade estrita por uma constitucionalidade poltica ou de colocar a razo de Estado em lugar da razo da lei. Essa opo nasceu da constatao de que a segurana jurdica e a eqidade no esgotavam o universo dos valores ltimos do direito que, em situaes manifestamente excepcionais, podiam justificar uma limitao de efeitos.

    Resta, assim, evidente que o art. 282 (4) da Constituio portuguesa adota, tambm em relao ao interesse pblico de excepcional relevo, um conceito jurdico indeterminado para abarcar os interesses constitucionalmente protegidos no subsumveis nas noes de segurana jurdica e de eqidade.

    Essa orientao enfatiza que os conceitos de

    51

  • ADI 1842 / RJ

    segurana jurdica, eqidade e interesse pblico de excepcional relevo expressam valores constitucionais e no simples frmulas de poltica judiciria (MEDEIROS, Rui. A Deciso de Inconstitucionalidade. Lisboa: Universidade Catlica Editora, 1999. p. 705-715).

    A frmula consagrada na Constituio portuguesa e agora reproduzida parcialmente no art. 27 da Lei n. 9.868/1999 no constitui modelo isolado. Ao revs, trata-se de sistema que, positiva ou jurisprudencialmente, vem sendo adotado pelos vrios sistemas de controle de constitucionalidade.

    Provavelmente, antes do advento da Lei n 9.868/1999, talvez

    o STF fosse o nico rgo importante de jurisdio constitucional a no

    fazer uso, de modo expresso, da limitao de efeitos na declarao de

    inconstitucionalidade.

    De fato, srie expressiva de Cortes Constitucionais e Cortes

    Supremas adota a tcnica da limitao de efeitos, v.g. a Corte

    Constitucional austraca (Constituio, art. 140), a Corte Constitucional

    alem (Lei Orgnica, 31, 2 e 79, 1), a Corte Constitucional espanhola

    (embora no expressa na Constituio, adotou, desde 1989, a tcnica da

    declarao de inconstitucionalidade sem a pronncia da nulidade), a Corte

    Constitucional portuguesa (Constituio, art. 282, n. 4), o Tribunal de

    Justia da Comunidade Europia (art.174, 2 do Tratado de Roma), o

    Tribunal Europeu de Direitos Humanos (caso Markx, de 13 de junho de

    1979), entre outras [Cf. CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Da

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  • ADI 1842 / RJ

    Declarao de Inconstitucionalidade e seus efeitos em face das Leis n.

    9.868 e 9.882/99. In: SARMENTO, Daniel (org.). O Controle de

    Constitucionalidade e a Lei 9.868/99. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001].

    interessante notar que mesmo nos Estados Unidos da

    Amrica passou-se a admitir, aps a Grande Depresso, o

    estabelecimento de limites declarao de inconstitucionalidade (TRIBE,

    Laurence. The American Constitutional Law. New York: The Foundation

    Press,1988).

    A Suprema Corte americana considerou o problema

    proposto pela eficcia retroativa de juzos de inconstitucionalidade a

    propsito de decises em processos criminais. Se as leis ou atos

    inconstitucionais nunca existiram enquanto tais, eventuais condenaes

    nelas baseadas quedam ilegtimas, e, portanto, o juzo de

    inconstitucionalidade implicaria a possibilidade de impugnao imediata

    de todas as condenaes efetuadas sob a vigncia da norma

    inconstitucional. Sobre o tema, afirma Tribe:

    No caso Linkletter v. Walker, a Corte rejeitou ambos os extremos: a Constituio nem probe nem exige efeito retroativo. Parafraseando o Justice Cardozo pela assertiva de que a constituio federal nada diz sobre o assunto, a Corte de Linkletter tratou da questo da retroatividade como um assunto puramente de poltica (poltica judiciria), a ser decidido novamente em cada caso. A Suprema Corte codificou a abordagem de Linkletter no caso Stovall v. Denno: Os critrios condutores

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  • ADI 1842 / RJ

    da soluo da questo implicam (a) o uso a ser servido pelos novos padres, (b) a extenso da dependncia das autoridades responsveis pelo cumprimento da lei com relao aos antigos padres, e (c) o efeito sobre a administrao da justia de uma aplicao retroativa dos novos padres. (TRIBE, Laurence. The American Constitutional Law. New York: The Foundation Press,1988).

    Segundo a doutrina, a jurisprudncia americana evoluiu para admitir, ao lado da deciso de inconstitucionalidade com efeitos retroativos amplos ou limitados (limited retrospectivity), a superao prospectiva (prospective overruling), que tanto pode ser limitada (limited prospectivity), aplicvel aos processos iniciados aps a deciso, inclusive ao processo originrio, como ilimitada (pure prospectivity), que sequer se aplica ao processo que lhe deu origem (cf. PALU, Oswaldo Luiz. Controle de constitucionalidade. 2a. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 173; e MEDEIROS, Rui. A Deciso de Inconstitucionalidade. Lisboa: Universidade Catlica, 1999. p. 743).

    Destarte, o sistema difuso ou incidental mais tradicional do mundo admitiu a mitigao dos efeitos da declarao de inconstitucionalidade e, em casos determinados, acolheu at mesmo a pura declarao de inconstitucionalidade com efeito exclusivamente pro futuro (Cf. SESMA, Victoria Iturralde. El Precedente en el Common Law, Madrid: 1995, p. 174 e ss.).

    Em diversos casos, a adoo de declarao de

    inconstitucionalidade mitigada decorreu de construo pretoriana.

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  • ADI 1842 / RJ

    So os exemplos da Alemanha, na fase inicial, e da Espanha.

    Nesses dois sistemas, dominava a idia do princpio da nulidade como

    princpio constitucional no-escrito ( 78 da Lei da Corte Constitucional

    alem; art. 39 da Lei Orgnica da Corte Constitucional espanhola). Essa

    orientao, todavia, no impediu que, em casos determinados, ambas as

    Cortes constitucionais se afastassem da tcnica da nulidade e passassem a

    desenvolver frmulas alternativas de deciso.

    Em outras palavras, a admisso formal do princpio da

    nulidade no impediu a adoo de tcnica alternativa de deciso naqueles

    casos em que a nulidade poderia revelar-se inadequada (v.g. casos de

    omisso parcial) ou trazer conseqncias intolerveis para o sistema

    jurdico (ameaa de caos jurdico ou situao de insegurana jurdica).

    Na Espanha, embora nem a Constituio nem a lei orgnica do Tribunal Constitucional tenham adotado expressamente uma declarao de inconstitucionalidade com efeitos restritos, a Corte Constitucional, marcadamente influenciada pela experincia constitucional alem, passou a adotar, desde 1989, a tcnica da declarao de inconstitucionalidade sem a pronncia da nulidade, como reportado por Garcia de Enterra:

    A recente publicao no Boletim Oficial do Estado de 2 de maro ltimo da j famosa Sentena 45/1989, de 20 de fevereiro, sobre inconstitucionalidade do sistema de liquidao conjunta do imposto sobre a renda da unidade

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  • ADI 1842 / RJ

    familiar matrimonial, permite aos juristas uma reflexo pausada sobre esta importante deciso do Tribunal Constitucional, objeto j de mltiplos comentrios periodsticos.A deciso importante, com efeito, por seu

    fundamento, a inconstitucionalidade que declara, tema no qual no haver sido produzido at agora, discrepncia alguma. Mas parece-me bastante mais importante ainda pela inovao que se supe na determinao dos efeitos dessa inconstitucionalidade, que a sentena remete ao que se indica no dcimo-primeiro fundamento e este explica como uma eficcia para o futuro, que no permite reabrir as liquidaes administrativas ou dos prprios contribuintes (auto-liquidaes) anteriores (GARCA DE ENTERRA, Eduardo. Justicia Constitucional: la doctrina prospectiva en la declaracin de ineficacia de las leyes inconstitucionales. In: Revist