aaa gillesdeleuze o que e um dispositivo

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  • 8/9/2019 Aaa GillesDeleuze O Que e Um Dispositivo

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    O que um dispositivo?

    A filosofia de Foucault apresenta-se freqentemente como umaanlise de dispositivos concretos. Mas o que um dispositivo?1 antes demais nada um emaranhado, um conjunto multilinear. Ele composto delinhas de natureza diferente. E estas linhas do dispositivo no cercam ou

    no delimitam sistemas homogneos, o objeto, o sujeito, a lngua, etc.,mas seguem direes, traam processos sempre em desequilbrio, s vezesse aproximam, s vezes se afastam umas das outras. Cada linha quebrada, submetida a variaes de direo, bifurcante e engalhada,submetida a derivaes. Os objetos visveis, os enunciados formulveis,as foras em exerccio, os sujeitos em posio so como vetores outensores. Assim as trs grandes instncias que Foucault distinguirsucessivamente, Saber, Poder e Subjetividade, no tm de maneiraalguma contornos fixos, mas so correntes de variveis em luta umas comas outras. sempre numa crise que Foucault descobre uma novadimenso, uma nova linha. Os grandes pensadores so um pouco

    ssmicos, eles no evoluem mas procedem por crises e por abalos. Pensarem termos de linhas mveis, a operao de Herman Melville, e havialinhas de pesca, linhas de submerso, perigosas, at mesmo mortais. Hlinhas de sedimentao, disse Foucault, mas h linhas de "ruptura", de"fratura". Separar as linhas de um dispositivo, em cada caso, desenharum mapa, cartografar, medir a passos terras desconhecidas, e isso queele chama de "trabalho sobre o terreno". necessrio instalar-se sobre asprprias linhas, que no se limitam a compor um dispositivo, mas que oatravessam e o arrastam, do norte ao sul, do leste ao oeste ou em diagonal.

    As duas primeiras dimenses de um dispositivo, ou aquelas que

    Foucault separa no incio, so as curvas de visibilidade e as curvas deenunciao. Os dispositivos so como mquinas de Raymond Rousselanalisadas por Foucault, so mquinas de fazer ver e de fazer falar. Avisibilidade no remete a uma luz em geral que viria iluminar os objetospreexistentes, ela feita de linhas de luz que formam figuras variveis

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    inseparveis deste ou daquele dispositivo. Cada dispositivo temseu regime de luz, maneira pela qual a luz cai, se esfuma, seexpande, distribuindo o visvel e o invisvel, fazendo nascer oudesaparecer um objeto que no existe sem ela. No s a

    pintura mas a arquitetura: assim o "dispositivo priso" comomquina ptica, para ver sem ser visto. Se h uma historicidadedos dispositivos, a dos regimes de luz, mas tambm a dosregimes de enunciados. Pois os enunciados, por sua vez,remetem a linhas de enunciao sobre as quais se distribuem asposies diferenciais de seus elementos: e, se as curvas so elasprprias enunciados, porque as enunciaes so curvas quedistribuem variveis, de modo que uma cincia nesse momento,ou um gnero literrio, ou um estado de direito, ou ummovimento social, se definem precisamente atravs de regimesde enunciados que eles fazem nascer. No so nem os sujeitos

    nem os objetos, mas os regimes que devem se definir para ovisvel e para o enuncivel, com suas derivaes, suastransformaes, suas mutaes. E, em cada dispositivo, aslinhas transpem alguns limiares, em funo dos quais elas soestticas, cientficas, polticas, etc.

    Em terceiro lugar, um dispositivo comporta as linhas defora. Dir-se-ia que elas vo de um ponto singular a um outronas linhas precedentes; de certa maneira elas "retificam" ascurvas precedentes, traam tangentes, envolvem os trajetos deuma linha outra, operam o vai e vem do ver ao dizer e

    inversamente, agindo como flechas que no param deentrecruzar as coisas e as palavras, levando adiante a batalhaentre elas. A linha de fora se produz "em toda a relao de umponto a outro", e passa por todos os lugares de um dispositivo.Invisvel e indizvel, ela est estreitamente embaraada s

    outras, e, no entanto, pode ser desembaraada. ela que Foucault traa, sua trajetria que ele encontra em Roussel, em Brisset, nos pintoresMagritte ou Rebeyrolle. a "dimenso do poder", e o poder a terceiradimenso do espao, interior ao dispositivo, varivel com os dispositivos.

    Ela se compe, com o poder, com o saber.Enfim Foucault descobre as linhas de subjetivao. Essa nova

    dimenso j suscitou tantos mal entendidos que passamos pordificuldades em precisar suas condies. Mais que qualquer outra, suadescoberta nasce de uma crise do pensamento de Foucault, como se eletivesse que remanejar o mapa dos dispositivos, encontrar para eles umanova orientao possvel, para no deix-los simplesmente se fechar sobreas linhas de fora intransponveis, impondo contornos definitivos. Leibnizexprimia de maneira exemplar esse estado de crise que relana opensamento quando se cr que tudo est quase resolvido: pensvamos terchegado ao porto, mas somos jogados de novo em alto mar. E Foucault,

    por sua vez, pressente que os dispositivos que analisa no podem sercircunscritos por uma linha que os envolve, sem que outros vetorespassem por cima ou por baixo: "transpor a linha", ele diz, como "passardo outro lado"? Essa ultrapassagem da linha de fora, o que se produzquando ela se recurva, faz meandros, afunda, e torna-se subterrnea, ouantes quando a fora, em vez de entrar numa concordncia linear comoutra fora, volta-se sobre si prpria e se exerce sobre si prpria ou seafeta a si mesma. Esta dimenso do Si no de maneira alguma umadeterminao preexistente que se encontraria pronta. Antes de mais nada,uma linha de subjetivao um processo, uma produo de subjetividade

    em um dispositivo: ela tem que se fazer, contanto que o dispositivo o permita ou possibilite. uma linha de fuga. Ela escapa s linhasprecedentes, elase lhes escapa. O Si no nem um saber nem um poder. um processo de individuao que age nos grupos ou nas pessoas, e sesubtrai tanto s relaes de foras estabelecidas quanto aos saberes

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    constitudos: uma espcie de mais-valia. No seguro que tododispositivo comporte isto.

    Foucault considera o dispositivo da cidade ateniensecomo o primeiro lugar da inveno de uma subjetivao: que,

    de acordo com a definio original que ele prope, a cidadeinventa uma linha de fora que passa pela rivalidade doshomens livres. Ora, desta linha sobre a qual um homem livre pode comandar outros, separa-se outra muito diferente,segundo a qual aquele que comanda os homens livres deve elemesmo ser mestre de si. So estas regras facultativas dodomnio de si que constituem uma subjetivao, autnoma,mesmo se, na seqncia, ela chamada a fornecer novossaberes e a inspirar novos poderes. Perguntar-se- se as linhasde subjetivao no so a borda extrema de um dispositivo, e seelas no esboam a passagem de um dispositivo a outro: elas

    preparariam neste sentido as "linhas de fratura". E, assim comoas outras linhas, as de subjetivao no tm uma frmula geral.Brutalmente interrompida, a pesquisa de Foucault deveriamostrar que os processos de subjetivao apresentameventualmente modalidades totalmente diferente do grego, porexemplo os dispositivos cristos, os das sociedades modernas,etc. No se pode invocar dispositivos onde a subjetivao nopasse pela vida aristocrtica ou pela existncia estilizada dohomem livre, mas pela existncia marginalizada do "excludo"?Assim o sinlogo Toke explica como o escravo alforriado

    perdia de certa forma seu estado social, e se encontravaremetido a uma subjetividade isolada, queixosa, existnciaelegaca, de onde ele iria retirar novas formas de poder e saber.O estudo das variaes dos processos de subjetivao parecemesmo ser umas das tarefas fundamentais que Foucault deixou

    queles que o seguiriam. Ns cremos na fecundidade extrema destapesquisa, que os projetos atuais, no que concerne a uma histria da vidaprivada, abrangem apenas parcialmente. Quem se subjetiva so s vezesos nobres, aqueles que dizem, segundo Nietzsche, "ns os bons...", mas

    sob outras condies so os excludos, os maus, os pecadores, ou podemtambm ser os eremitas, ou tambm as comunidades monacais ou mesmoos hereges: toda uma tipologia de formao subjetiva em dispositivosmveis. E por toda parte misturas a serem desfeitas: as produes desubjetividade escapam dos poderes e dos saberes de um dispositivo parase reinvestirem nos poderes e saberes de um outro dispositivo, sob outrasformas ainda por nascer.

    Os dispositivos tm portanto como componentes linhas devisibilidade, de enunciao, linhas de fora, linhas de subjetivao, linhasde ruptura, de fissura, de fratura, e todas se entrecruzam e se misturam, demodo que umas repem as outras ou suscitam outras, atravs de variaes

    ou mesmo de mutaes de agenciamento. Duas conseqnciasimportantes decorrem disto para uma filosofia dos dispositivos. Aprimeira o repdio aos universais. O universal na verdade no explicanada, ele que deve ser explicado. Todas as linhas so linhas de variao,que no tm nem mesmo coordenadas constantes. O Uno, o Todo, oVerdadeiro, o objeto, o sujeito, no so universais, mas processossingulares, de unificao, de totalizao, de verificao, de objetivao,de subjetivao imanentes a um determinado dispositivo. E ainda, cadadispositivo uma multiplicidade na qual operam determinados processosem devir, distintos daqueles que operam em outro. neste sentido que a

    filosofia de Foucault um pragmatismo, um funcionalismo, umpositivismo, um pluralismo. Talvez seja a Razo que apresente o maior problema , porque processos de racionalizao podem operar sobresegmentos ou regies de todas as linhas consideradas. Foucaulthomenageia a Nietzsche com uma historicidade da razo; ele assinala

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    toda a importncia de uma pesquisa epistemolgica sobre asdiversas formas de racionalidade de saber (Koyr, Bachelard,Canguilhem), de uma pesquisa sociopoltica dos modos deracionalidade do poder (Max Weber). Ele reserva, talvez, para

    si mesmo, a terceira linha, os estudos dos tipos de "razo" emsujeitos eventuais. Mas o que ele recusa essencialmente, aidentificao destes processos em uma Razo por excelncia.Ele recusa toda restaurao dos universais de reflexo, decomunicao, de consenso. Pode-se dizer desta maneira quesuas relaes com a Escola de Frankfurt, e com os sucessoresdesta escola, so uma longa seqncia de mal entendidos pelosquais ele no responsvel. Da mesma forma que no h auniversalidade de um sujeito fundador ou de uma Razo porexcelncia que permitiria julgar os dispositivos, no huniversais da catstrofe onde a razo se alienaria, desmoronaria

    de uma vez por todas. Como Foucault diz a Gerard Raulet, noh uma bifurcao da razo mas ela no para de se bifurcar, htantas bifurcaes e desdobramentos quanto instauraes,tantos desabamentos quanto construes, segundo os cortesoperados pelos dispositivos, e "no h nenhum sentido sob aproposio segundo a qual a razo um longo discurso queagora terminou". Deste ponto de vista, a questo que se colocaa Foucault, de saber se possvel avaliar o valor relativo de umdispositivo, se no se pode invocar valores transcendentescomo coordenadas universais, uma questo com a qual se

    corre o risco de retroceder e de perder o sentido. Dir-se- quetodos os dispositivos se eqivalem (niilismo)? H muito tempoque pensadores como Espinosa ou Nietzsche demonstraram queos modos de existncia deviam ser avaliados de acordo comcritrios imanentes, segundo seu teor de "possibilidades", de

    liberdade, de criatividade sem apelar-se a valores transcendentes.Foucault far a mesma aluso a critrios "estticos", compreendidos comocritrios de vida, que substituem as pretenses de um julgamentotranscendente por uma avaliao imanente. Quando lemos os ltimos

    livros de Foucault, devemos nos esforar para compreender o programaque ele prope aos seus leitores. Uma esttica intrnseca dos modos deexistncia, como ltima dimenso dos dispositivos?

    A segunda conseqncia2 de uma filosofia dos dispositivos umamudana de orientao, ela se desvia do Eterno para apreender o novo. No se supe que o novo designe a moda, mas pelo contrrio, acriatividade varivel segundo os dispositivos: de acordo com a questoque comeou a ser formulada no sculo XX, como possvel no mundo aproduo de alguma coisa nova? verdade que, em toda sua teoria daenunciao, Foucault recusa explicitamente a "originalidade" de umenunciado como critrio pouco pertinente, pouco interessante. Ele quer

    considerar somente a "regularidade" dos enunciados. Mas o que eleentende por regularidade, o traado da curva que passa pelos pontossingulares, ou os valores diferenciais do conjunto enunciativo (assim eledefinir as relaes de fora por distribuies de singularidades em umcampo social). Quando ele recusa a originalidade de um enunciado, elequer dizer que a eventual contradio de dois enunciados no suficientepara os distinguir, nem para marcar a novidade de um em relao aooutro. Pois o que conta a novidade do prprio regime de enunciao, namedida que ele pode abranger enunciados contraditrios. Por exemplo,pode se perguntar qual regime de enunciado aparece com o dispositivo da

    Revoluo francesa ou da Revoluo bolchevique: a novidade doregime que conta, e no a originalidade do enunciado. Todo dispositivo sedefine assim por seu teor de novidade e criatividade, que marca ao mesmotempo sua capacidade de se transformar, ou de se cindir em proveito deum dispositivo futuro, ou ao contrrio, de fortificar-se sobre suas linhas

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    mais duras, mais rgidas ou slidas. Na medida que elasescapam das dimenses do saber e poder, as linhas desubjetivao parecem particularmente capazes de traarcaminhos de criao, que no param de abortar, mas tambm,

    de serem retomados, modificados, at a ruptura do antigodispositivo. Os estudos ainda inditos de Foucault sobre osdiversos processos cristos, abrem sem dvida numerosas viasa este respeito. Contudo, no se acreditar que a produo desubjetividade seja devolvida religio: as lutas anti-religiosasso tambm criadoras assim como os regimes de luz, deenunciao ou de dominao, passam pelos domnios os maisdiversos. As subjetivaes modernas no se parecem mais nemcom a dos Gregos nem com a dos cristos, e o mesmo ocorrecom a luz, com os enunciados e os poderes.

    Ns pertencemos a dispositivos e agimos neles. A

    novidade de um dispositivo em relao aos precedentes podeser chamada de sua atualidade, nossa atualidade. O novo oatual. O atual no o que somos, mas antes o que ns nostornamos, aquilo que estamos nos tornando, isto o Outro,nosso tornar-se outro. Em todo dispositivo, preciso distinguiraquilo que ns somos (aquilo que ns j no somos mais) eaquilo que ns estamos nos tornando: a parte da histria, e aparte do atual. A histria o arquivo, o desenho daquilo quens somos e que paramos de ser, enquanto que o atual oesboo daquilo que ns nos tornamos. De modo que a histriaou o arquivo o que nos separa ainda de ns mesmos enquantoque o atual este Outro com o qual ns j coincidimos.Acreditou-se, s vezes, que Foucault desenhava o quadro dasociedade moderna com o dispositivo das sociedadesdisciplinares em oposio aos velhos dispositivos de soberania.

    Mas isto no quer dizer nada: as disciplinas descritas por Foucault so ahistria daquilo que ns deixamos de ser pouco a pouco, e nossaatualidade se delineia nas disposies de controle aberto e contnuo,muito diferentes das recentes disciplinas fechadas. Foucault concorda

    com Burroughs, que anuncia nosso futuro controlado ao invs dedisciplinado. A questo no saber se pior. Pois tambm ns apelamos para produes de subjetividade capazes de resistir a esta novadominao, muito diferente daquelas que se exerciam antigamente contraas disciplinas. Uma nova luz, novos enunciados, uma nova potncia,novas formas de subjetivao? Em todo dispositivo, ns temos quedesembaraar as linhas do passado recente das do futuro prximo: a partedo arquivo da parte do atual, a parte da histria daquela do devir, a parteda analtica e a do diagnstico. Se Foucault um grande filsofo, porque ele se serviu da histria em proveito de outra coisa: como diziaNietzsche, agir contra o tempo e assim mesmo sobre o tempo, em favor

    espero de um tempo que est porvir. Pois o que aparece como o atual ou onovo segundo Foucault, o que Niestzsche chamava de intempestivo, doinatual, este devir que se bifurca com a histria, este diagnstico quecontinua a anlise por outros caminhos. No predizer mas estar atento aodesconhecido que bate porta. Nada o mostra melhor que uma passagemfundamental daArqueologia do saber, e que vale por toda a obra:

    "A anlise do arquivo comporta, pois, uma regioprivilegiada: ao mesmo tempo prxima de ns, mas diferentede nossa atualidade, trata-se da orla do tempo que cerca nossopresente, que o domina e que o indica em sua alteridade; aquilo que, fora de ns, nos delimita. A descrio do arquivodesenvolve suas possibilidades (e o controle de suaspossibilidades) a partir dos discursos que comeam a deixar justamente de ser os nossos; seu limiar de existncia instaurado pelo corte que nos separa do que no podemos

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    mais dizer e do que fica fora de nossa prticadiscursiva; comea com o exterior de nossa prprialinguagem; seu lugar o afastamento de nossasprprias prticas discursivas. Nesse sentido, vale

    para nosso diagnstico. No porque nos permitirialevantar o quadro de nossos traos distintivos eesboar, antecipadamente, o perfil que teremos nofuturo, mas porque nos desprende de nossascontinuidades; dissipa essa identidade temporal emque gostamos de nos olhar para conjurar as rupturasda histria; rompe o fio das teleologiastranscendentais e a onde o pensamentoantropolgico interrogava o ser do homem ou suasubjetividade, faz com que o outro e o externo semanifestem com evidncia. O diagnstico assim

    entendido no estabelece a autenticao de nossaidentidade pelo jogo das distines. Ele estabeleceque somos diferena, que nossa razo a diferenados discursos, nossa histria a diferena dostempos, nosso eu a diferena das mscaras.(FOUCAULT, [1969], 1987: 150 e 151)3.

    As diferentes linhas de um dispositivo se dividem emdois grupos: linhas de estratificao ou de sedimentao, linhasde atualizao ou de criatividade. A ltima conseqncia destemtodo o que trata toda a obra de Foucault. Na maior partedos seus livros, ele determina um arquivo preciso, com meioshistricos extremamente novos, sobre o Hospital Geral nosculo XVII, sobre a clnica no sculo XVIII, sobre a priso nosculo XIX, sobre a subjetividade na Grcia antiga, depois nocristianismo. Mas a metade de sua tarefa. Pois por causa do

    rigor, por vontade de no misturar tudo, por confiana no leitor, ele noformula a outra metade. Ele a formula somente e explicitamente nasentrevistas contemporneas a cada um de seus livros: o que hoje em diaa loucura, a priso, a sexualidade? Quais modos novos de subjetivao

    ns vemos aparecer hoje que, certamente, no so gregos nem cristos?Esta ltima questo, principalmente, persegue Foucault at o fim (ns queno somos mais gregos nem mesmo cristos...). Se Foucault at o fim dasua vida dava tanta importncia s suas entrevistas, na Frana e maisainda no estrangeiro, no por gosto da entrevista, porque ele alitraava linhas de atualizao que exigiam um modo de expresso diversodaquele exigido pelas linhas assimilveis nos grandes livros. Asentrevistas so diagnsticos. Como em Nietzsche, onde difcil ler asobras sem juntar oNachlass4 contemporneo de cada uma destas obras. Aobra completa de Foucault, tal como a concebiam Defert e Edwald, nopode separar os livros que nos marcaram a todos, e as entrevistas que nos

    levam a um porvir, um devir: os estratos e as atualidades.

    Resumo das discusses.

    Sr. Karkeits nota que Gilles Deleuze no empregou a palavra"verdade". Onde deve se colocar o dizer verdadeiro que Foucault fala nassuas ltimas entrevistas? Trata-se de um dispositivo em si? Ou umadimenso de todo dispositivo?

    Gilles Deleuze responde que, em Foucault, no h nenhumauniversalidade do verdadeiro. A verdade designa o conjunto dasprodues que se fazem no interior de um dispositivo. Um dispositivoabrange verdades de enunciao, verdades de luz e de visibilidade,verdades de fora, verdades de subjetivao. A verdade a efetuao daslinhas que constituem o dispositivo. Extrair do conjunto dos dispositivosuma vontade de verdade que passasse de uma outra como uma constante uma proposio sem sentido segundo Foucault.

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    Manfred Franck observa que a filosofia de Foucault pertence a uma tradio ps-hegeliana e ps-marxista quequeria romper com o universal do pensamento do Iluminismo.Contudo, acha-se em Foucault universais de toda a sorte:

    dispositivos, discursos, arquivos, etc., que provam que aruptura com o universal no radical. No lugar de umuniversal, encontram-se vrios, em vrios nveis.

    Gilles Deleuze sublinha que a verdadeira fronteira estentre constantes e variveis. A crtica dos universais pode setraduzir numa questo: como possvel que alguma coisa novasurgisse no mundo? Outros filsofos, Whitehead, Bergson,fizeram desta questo a questo fundamental da filosofiamoderna. Pouco importa que se empregue os termos gerais parapensar os dispositivos: so nomes de variveis. Toda constante suprimida. As linhas que compem os dispositivos afirmam

    variaes contnuas. No h mais universais, isto quer dizer queno h nada mais do que linhas de variao. Os termos geraisso coordenadas cujo sentido to somente o de tornar possvela avaliao de uma variao contnua.

    Raymond Bellour pergunta onde se deve situar os textosde Foucault que se relacionam com a arte: do lado do livro, eportanto do arquivo, ou do lado das entrevistas e portanto doatual?

    Gilles Deleuze lembra o projeto de Foucault de escreverum livro sobre Manet. Nesse livro Foucault teria sem dvidaanalisado mais que as linhas e as cores, o regime de luz deManet. Esse livro teria pertencido ao arquivo. As entrevistasteriam tirado do arquivo as linhas de atualidade.

    Foucault poderia ter dito: Manet o que o pintor deixade ser. Isso no retira nada do valor de Manet. Pois a grandeza

    de Manet o devir de Manet no momento em que ele pinta. Essasentrevistas teriam consistido em separar linhas de fissura e de fratura quefazem com que os pintores de hoje entrem em regime de luz dos quais sedir: eles so outros, isto , h um devir outro da luz.

    Para as artes tambm, h a complementariedade dos dois aspectosda analtica (do que ns somos e por isso mesmo do que ns deixamos deser) e do diagnstico (o devir outro no qual ns chegamos). A analtica deManet implica num diagnstico daquilo que torna-se a luz a partir deManet e depois dele.

    Walter Seitter se espanta com o "fisicalismo" que permeia aapresentao de Gilles Deleuze.

    Gilles Deleuze refuta a expresso na medida em que ela deixariasupor que, sob regimes de luz, haveria uma luz bruta fisicamenteenuncivel. O fsico um limiar de visibilidade e de enunciao. No hnenhum dado, em um dispositivo, que esteja no seu estado selvagem, mas

    que haja um regime fsico da luz, de linhas de luz, de ondas e vibraes,por que no?

    Fati Tricki pergunta como e onde introduzir nos dispositivos a possibilidade de demolio das tcnicas modernas da servido. Ondepodem se localizar as prticas de Michel Foucault?

    Gilles Deleuze indica que no h uma resposta geral. Se hdiagnstico em Foucault, porque preciso assinalar, para cadadispositivo, suas linhas de fissura e de fratura. Em certos momentos elasse situam no nvel dos poderes, noutros no nvel dos saberes. De ummodo geral, pode-se dizer que as linhas de subjetivao indicam asfissuras e as fraturas. Mas trata-se de uma casustica. Tem-se que avaliarde acordo com o caso, de acordo com o teor dos dispositivos. Dando-seuma resposta geral, suprimisse esta disciplina que to importante quantoa arqueologia, isto , a disciplina do diagnstico.

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    Faiti Tricki pergunta se a filosofia de Foucault podechegar a romper os muros do ocidente. uma filosofia extra-muros?

    Gilles Deleuze: Foucault restringiu por muito tempo seu

    mtodo s seqncias curtas da histria francesa. Mas com osltimos livros, ele visa uma seqncia longa, desde os gregos.Uma mesma extenso pode-se fazer geograficamente? Pode-seservir de mtodos anlogos aos de Foucault para estudar osdispositivos orientais ou aqueles do Oriente Mdio?Certamente, pois a linguagem de Foucault, que considera ascoisas como feixes de linhas, como emaranhado, comoconjuntos multilineares, como oriental.

    Notas da traduo:

    1. Traduo de Ruy de Souza Dias (com agradecimentos aFernando Cazarini) e Helio Rebello (reviso tcnica), finalizada em maro

    de 2001, a partir do texto: DELEUZE, Gilles. Qu'est-ce qu'un disposif? INMichel Foucault philosophe. Rencontre internationale. Paris 9, 10, 11janvier 1988. Paris, Seuil. 1989.

    2. A partir deste pargrafo e at o Resumo das discusses este textofoi traduzido e publicado como Foucault, historiador do presente INESCOBAR, Carlos Henrique (org.) Dossier Deleuze. Rio de Janeiro: Hlon,1991:85-88.

    3. FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber.[1969].Traduo de Luiz Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense-Universitria, 1987.

    4. Nachlass: [Do Alemo: nach: depois; lass: deixado.] deixado pradepois; rascunhos; escritos no publicados; esplio; herana.

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