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1 [email protected] Escriba A VOZ DO 78934617 - ID 55*438357*8 NOVEMBRO 2010 Jornalista Responsável: Jaricé Braga O ESCRIBA NEGRO NEGRO

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[email protected] VOZ DO 78934617 - ID 55*438357*8

NOVEMBRO 2010 Jornalista Responsável: Jaricé Braga

O ESCRIBANEGRONEGRO

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2 EscribaA VOZ DO

78934617 - ID55*438357*8 NOVEMBRO 2010 Jornalista Responsável: Jaricé Braga

Ser negro no Brasile no mundo

Publicamos nessa edição especial do nosso A Voz do Escriba, fragmentos daHistória do Negro no Brasil e no Mundo, uma edição em homenagem a AbdiasNascimento, ex-político e ativista social brasileiro.

Sou filho de Ogum, a quem elevo as oferendas de todas as dores e cores,lágrimas e sabores, o choro inconsolável das senzalas, a carne lanhada de cordas,os pulsos e os tornozelos a ferros, a solidão da raça.

Sou escravo e, no entanto, senhor de mim mesmo, pois não há ferrolho que metranque a consciência nem moralismo que me faça encarar o corpo com os olhosda vergonha. Tão povoado é o céu de minhas crenças, que não rejeito nem

mesmo a santería do clero. Antes, reverencio o cavalo de São Jorge, transfiroaos altares a devoção aos meus orixás, lanço ao rio a Virgem Negra na fé de que,entre tantas brancas, trazidas no andor do senhor de escravos, chegará o tempoem que a minha será Aparecida e, a seus pés, também os joelhos dos brancoshaverão de se dobrar.

Assim, eu e meu amigo Francisco Maciel resolvemos publicar uma ediçãohistórica ilustrada para que fique guardado para fins de conhecimento em razãodo negro no Brasil e no Mundo.

Abdias é um dos maiores defensores da defesa da cultura e igualdade para aspopulações afrodescendentes no Brasil, intelectual de grande importância para areflexão e atividade sobre a questão do negro na sociedade brasileira. Teve umatrajetória longa e produtiva, indo desde o movimento integralista, passando poratividade de poeta (com a Hermandad, grupo com o qual viajou de forma boêmiapela América do Sul), até ativista do Movimento Negro, ator (criou em 1944 oTeatro Experimental do Negro) e escultor.

Após a volta do exílio (1968-1978), insere-se na vida política (foi deputadofederal de 1983 a 1987, e senador da República de 1997 a 1999), além decolaborar fortemente para a criação do Movimento Negro Unificado (1978). Em2006, em São Paulo, criou o dia 20 de Novembro como o dia oficial daconsciência negra, o Dia de Zumbi. Recebeu o título de Doutor Honoris Causada Universidade de Brasília. É autor de vários livros: “Sortilégio”, “DramasPara Negros e Prólogo Para Brancos”, “O Negro Revoltado”, e outros.

Foi Professor Benemérito da Universidade do Estado de Nova York e doutor“Honoris Causa” pelo Estado do Rio de Janeiro, grande militante no combate àdiscriminação racial no Brasil.

Axé!Jaricé Braga

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Todo dia é dia de ZumbiO Quilombo dos Palmares (localizado na atual região de União dos Palmares, Alagoas) era uma

comunidade auto-sustentável, um reino (ou república na visão de alguns) formado por escravos negrosque haviam escapado das fazendas, prisões e senzalas brasileiras. Ele ocupava uma área próxima aotamanho de Portugal e situava-se onde era o interior da Bahia, hoje estado de Alagoas. Naquelemomento sua população alcançava por volta de trinta mil pessoas.

Zumbi nasceu em Palmares, Alagoas, livre, no ano de 1655, mas foi capturado e entregue a ummissionário português quando tinha aproximadamente seis anos. Batizado ‘Francisco’, Zumbi recebeuos sacramentos, aprendeu português e latim, e ajudava diariamente na celebração da missa. Apesardestas tentativas de aculturá-lo, Zumbi escapou em 1670 e, com quinze anos, retornou ao seu local deorigem. Zumbi se tornou conhecido pela sua destreza e astúcia na luta e já era um estrategista militarrespeitável quando chegou aos vinte e poucos anos.

Por volta de 1678, o governador da Capitania de Pernambuco cansado do longo conflito com oQuilombo de Palmares, se aproximou do líder de Palmares, Ganga Zumba, com uma oferta de paz. Foioferecida a liberdade para todos os escravos fugidos se o quilombo se submetesse à autoridade daCoroa Portuguesa; a proposta foi aceita, mas Zumbi rejeitou a proposta do governador e desafiou aliderança de Ganga Zumba. Prometendo continuar a resistência contra a opressão portuguesa, Zumbitornou-se o novo líder do quilombo de Palmares.

Quinze anos após Zumbi ter assumido a liderança, o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho foichamado para organizar a invasão do quilombo. Em 6 de fevereiro de 1694 a capital de Palmares foidestruída e Zumbi ferido. Apesar de ter sobrevivido, foi traído por Antonio Soares, e surpreendidopelo capitão Furtado de Mendonça em seu reduto (talvez a Serra Dois Irmãos). Apunhalado, resiste,mas é morto com 20 guerreiros quase dois anos após a batalha, em 20 de novembro de 1695. Teve acabeça cortada, salgada e levada ao governador Melo e Castro. Em Recife, a cabeça foi exposta empraça pública, visando desmentir a crença da população sobre a lenda da imortalidade de Zumbi.

Em 14 de março de 1696 o governador de Pernambuco Caetano de Melo e Castro escreveu ao Rei:“Determinei que pusessem sua cabeça em um poste no lugar mais público desta praça, para satisfazeros ofendidos e justamente queixosos e atemorizar os negros que supersticiosamente julgavam Zumbium imortal, para que entendessem que esta empresa acabava de todo com os Palmares

ributo - Escultura em homenagem a Zumbi dos Palmares em Poá - SP.Zumbi é hoje, para determinadossegmentos da população brasileira, um símbolo de resistência. Em 1995, a data de sua morte foiadotada como o dia da Consciência Negra. É também um dos nomes mais importantes da Capoeira.

Atualmente, o dia 20 de novembro, feriado em mais de 200 cidades brasileiras, é celebrado comoDia da Consciência Negra. O dia tem um significado especial para os negros brasileiros que reverenciamZumbi como o herói que lutou pela liberdade e como um símbolo de liberdade. Hilda Dias dos Santosincentivou a criação do Memorial Zumbi dos Palmares.

Tributo a Zumbi – “Zambi”, música composta por Edu Lobo e Vinicius de Moraes e popularizadapor Elis Regina. Mencionado em diversas letras da banda Soulfly. Mencionado na música “Ratamahatta”,da banda Sepultura. Mencionado na música “Apesar de Cigano”, composta por Altay Veloso e AladimTeixeira, e interpretada por Jorge Vercillo no álbum “Leve”. Seu nome é dado a um lutador no jogofeito em Adobe Flash: Capoeira Fighter 2. Quilombo, 1985, filme de Carlos Diegues sobre o Quilombodos Palmares. Gilberto Gil lançou um CD chamado “Z300 Anos de Zumbi”. A banda de nome ChicoScience & Nação Zumbi (atualmente é chamada somente de Nação Zumbi, após a morte do vocalistaChico Science). Música de Jorge Ben também cantada por Caetano Veloso nos CDs Noites do Nortee Noites do Norte Ao Vivo.

Música “300 anos” gravada por Alcione em 2007 (composta por Altay Veloso e Paulo CésarFeital).Nome do aeroporto de Maceió, Alagoas (Aeroporto Internacional Zumbi dos Palmares).

Musica “Palmares 1999” feita por Natiruts.Francisco Maciel

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ORFEU NEGROAbdias Nascimento nasce em Franca, SP, em 1914, o

segundo filho de Dona Josina, a doceira da cidade, e SeuBem-Bem, músico e sapateiro. Abdias cresce numa famíliacoesa, carinhosa e organizada, porém pobre, e vai sediplomar em contabilidade pelo Atheneu Francano em 1929.

Com 15 anos, alista-se no exército e vai morar na capitalSão Paulo. Na década dos 1930, engaja-se na Frente NegraBrasileira e luta contra a segregação racial emestabelecimentos comerciais da cidade. Prossegue na lutacontra o racismo organizando o Congresso Afro-Campineiroem 1938. Funda em 1944 o Teatro Experimental do Negro,entidade que patrocina a Convenção Nacional do Negroem 1945-46.

A Convenção propõe à Assembléia Nacional Constituintede 1946 a inclusão de políticas públicas para a populaçãoafro-descendente e um dispositivo constitucional definindoa discriminação racial como crime de lesa-pátria.

À frente do TEN, Abdias organiza o 1º Congresso doNegro Brasileiro em 1950.

Militante do antigo PTB, após o golpe de 1964 participadesde o exílio na formação do PDT. Já no Brasil, lidera em1981 a criação da Secretaria do Movimento Negro do PDT.

Na qualidade de primeiro deputado federal afro-brasileiroa dedicar seu mandato à luta contra o racismo (1983-87),apresenta projetos de lei definindo o racismo como crime ecriando mecanismos de ação compensatória para construira verdadeira igualdade para os negros na sociedadebrasileira. Como senador da República (1991, 1996-99),continua essa linha de atuação.

O Governador Leonel Brizola o nomeia Secretário deDefesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras doEstado do Rio de Janeiro (1991-94). Mais tarde, é nomeadoprimeiro titular da Secretaria Estadual de Cidadania e DireitosHumanos (1999-2000).

O trajetória acadêmica de Abdias Nascimento é brilhante:Professor Emérito, Universidade do Estado de Nova York,Buffalo (Professor Titular de 1971 a 1981, fundou a cadeirade Cultura Africana no Novo Mundo no Centro de EstudosPortorriquenhos). Artista plástico, escritor, poeta,dramaturgo. Bacharel em Economia, Universidade do Riode Janeiro, 1938. Diploma pós-universitário, InstitutoSuperior de Estudos Brasileiros (ISEB), 1957. Pós-graduação em Estudos do Mar, Pontifícia UniversidadeCatólica do Rio de Janeiro/ Ministério da Marinha, 1967.Doutor Honoris Causa, Universidade do Estado do Rio deJaneiro, 1993. Doutor Honoris Causa, Universidade Federalda Bahia, 2000.

Na política, também não deixa a desejar. Deputado federal(1983-86). Secretário de Estado, Governo do Rio deJaneiro, Secretaria Extraordinária de Defesa e Promoçãodas Populações Afro-Brasileiras (SEAFRO) (1991-1994).Senador da República (1991-99). Suplente do SenadorDarcy Ribeiro, assumiu a cadeira no Senado, representandoo Rio de Janeiro pelo PDT em dois períodos: 1991-1992 e1997-99. Secretário de Estado de Direitos Humanos e daCidadania, Governo do Estado do Rio de Janeiro, 1999.Coordenador do Conselho de Direitos Humanos, 1999-2000.

Abdias sendo homenageado pelo Presidente Luiz Inacio Lula da Silva

Abdias com o Editor do A Voz do Escriba Francisco Maciel em entrevista exclusiva

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Homenagem a Abdias Nascimento

O trajetória acadêmica de Abdias Nascimento é brilhante: Professor Emérito, Universidade do Estado de NovaYork, Buffalo (Professor Titular de 1971 a 1981, fundou a cadeira de Cultura Africana no Novo Mundo noCentro de Estudos Portorriquenhos). Artista plástico, escritor, poeta, dramaturgo. Bacharel em Economia,

Universidade do Rio de Janeiro, 1938. Diploma pós-universitário, Instituto Superior de Estudos Brasileiros(ISEB), 1957. Pós-graduação em Estudos do Mar, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro/

Ministério da Marinha, 1967. Doutor Honoris Causa, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1993. DoutorHonoris Causa, Universidade Federal da Bahia, 2000.

O Governador Leonel Brizola o nomeiaSecretário de Defesa e Promoção das

Populações Afro-Brasileiras do Estado doRio de Janeiro (1991-94). Mais tarde, énomeado primeiro titular da Secretaria

Estadual de Cidadania e Direitos Humanos(1999-2000).

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Abdias NascimentoEm 1968, Abdias viaja aos Estados Unidos com

apoio da Fundação Fairfield, para encontrar-se comlideranças do movimento social afronorteamericano.No roteiro dessa viagem, visita a Spirit House, dopoeta Amiri Baraka (LeRoi Jones) em Newark. Viajatambém a Oakland, Califórnia, onde é recebido porBobby Seale na sede dos Panteras Negras. Visitavárias instituições no Harlem, em Nova Iorque,inclusive o Negro Theater Ensemble.

No dia da promulgação do AI-5, Abdiasencontra-se em Nova Iorque e lá fica, inaugurandoum novo período de sua vida e atividade cultural epolítica.

Durante o período de exílio nos Estados Unidos,leciona na Escola de Artes Dramáticas daUniversidade Yale; participa, na qualidade de VisitingFellow, do seminário A Humanidade em Revolta naUniversidade Wesleyan, em Middletown, CN.Funda a cadeira de Cultura Africana no NovoMundo, Centro de Estudos Portorriquenhos,Universidade do Estado de Nova Iorque, Búfalo,onde leciona até 1981.

Participa em vários eventos internacionais domundo africano, como o 6º Congresso Pan-Africano(Dar-es-Salaam, 1974) e o Encontro porAlternativas para o Mundo Africano, reunião defundação da União de Escritores Africanos (Dakar,1976). Leciona como professor visitante noDepartamento de Línguas e Literaturas Africanas daUniversidade de Ifé, na cidade sagrada de Ilé-Ifé,Nigéria. Participa do 2º Festival Mundial de Artes eCulturas Negras e Africanas (Festac ’77), em Lagos,e do 1º e 2º Congressos de Cultura Negra dasAméricas (Cali, Colômbia, 1977 e Panamá, 1980)e é eleito Coordenador Geral do Terceiro Congressode Cultura Negra das Américas.

Volta ao Brasil com a decretação da anistia, e naqualidade de deputado federal, senador e secretáriode estado, continua sua atividade a nívelinternacional. Apresenta propostas de rompimentode relações com o regime racista sul-africano e deapoio à libertação da Namíbia.

Organiza o 3º Congresso de Cultura Negra dasAméricas, realizado pelo IPEAFRO em São Pauloem 1982. Organiza e participa de vários semináriosinternacionais, com patrocínio da ONU, em apoioà independência da Namíbia.

A convite do Governo de Gana, profere em 1988a palestra inaugural de uma série anual emhomenagem ao sociólogo pan-africanista W. E. B.Du Bois, organizada pelo Centro W. E. B. Du Boisde Cultura Pan-Africana em Accra. Em 1989,

cumpre missão em Angola como consultor daUNESCO.

Em 1994 participa, representando o Estado doRio de Janeiro, no primeiro encontro do CongressoNacional Africano da África do Sul realizado emDurban após a libertação de Nelson Mandela. Poucoantes das eleições, em outubro de 1994, participada delegação do PDT à primeira reunião daInternacional Socialista realizada em terras africanas,em Johannesburgo, África do Sul.

Em 1995, a convite do novo Governo daRepública da Namíbia, comparece às celebraçõesda independência daquele país em Windhoek.

É escolhido patrono do Congresso Continentaldos Povos Negros das Américas, realizado noParlamento Latinoamericano em São Paulo, emcomemoração ao Tricentenário da Imortalidade deZumbi dos Palmares, 20 de novembro de 1995.

Em 2001, é agraciado pelo Centro Schomburgde Pesquisa da Cultura Negra, centro de referênciamundial que integra o sistema de bibliotecas públicasdo município de Nova Iorque, com o PrêmioHerança Africana Mundial comemorativo dos 75anos da fundação daquela instituição.

De 1996 a 2001, participa do projeto Além doRacismo: Iniciativa Comparativa de RelaçõesHumanas Brasil, África do Sul e Estados Unidos,organizada pela Fundação Sulista de Educação, deAtlanta, GA, EUA (www.beyondracism.org).Contribui com textos e depoimentos, e participa dereunião internacional realizada em Capetown, Áfricado Sul.

A convite das entidades organizadoras, profere apalestra de abertura da 2ª Plenária Nacional deEntidades Negras Rumo à 3ª Conferência Mundialcontra o Racismo (Rio de Janeiro, maio de 2001).Participa na própria Conferência, em Durban, comoum dos palestrantes principais (Keynote Speakers)do Fórum Mundial das ONGs, a convite daorganização internacional da Conferência.

Recebe o Prêmio UNESCO na CategoriaDireitos Humanos e Cultura de Paz em 2001 e oPrêmio Comemorativo das Nações Unidas porServiços Relevantes em Direitos Humanos em 2003.

Em 2004, na ocasião dos dez anos de liberdadedo regime de apartheid, recebe prêmio dereconhecimento do Governo da República da Áfricado Sul pelo seu trabalho em prol da campanhainternacional pela democratização daquele país.

Os textos de alguns dos discursos epronunciamentos feitos nos fóruns internacionaismencionados estão no livro O Quilombismo, 2ª ed.Brasília: Fundação Cultural Palmares/ OR Editora,2002.

pelo mundo

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Abdias Nascimento e oSurgimento de umPan-Africanismo

Contemporâneo GlobalAo sair do seu país para o exílio, em 1968,

Nascimento penetrou diretamente numa situaçãomundial marcada por fortes correntes políticas, nonível dos Estados, que ele teve de assumir ourejeitar quase de imediato. Em primeiro lugar, omundo estava dividido entre dois blocos,comunista e capitalista. Ele não se alinhou comnenhum deles. No seio do pan-africanismo, ele foiigualmente obrigado a operar uma seleção imediataentre as três grandes vertentes históricas dessemovimento, assim como entre as diversas correntesque se agitavam no interior de cada uma delas.

No momento em que Nascimento começou aatuar na arena internacional, o pan-africanismo erauma força desgastada e em plena bancarrota comoexpressão dos anseios dos povos negros em geral.Ora absorvido pela poderosa dinâmica domovimento comunista internacional (maoísmo,castrismo, leninismo, stalinismo, trotsquismo...); oradesacreditado pelas próprias práticas das elitesnegras que assumiram o comando de Estadossoberanos na África, no Caribe e no Pacífico nasdécadas dos 1960 e 1970; ora pervertido pelossectarismos e extremismos de membros de sua faixa“nacionalista” - o pan-africanismo como talencontrava-se num processo de decadênciaintelectual justo no momento em que mais as lutasdos povos afrodescendentes dele precisavamcomo instrumento de combate. Mas apreocupação maior naquele momento tinha-sevoltado à redefinição de uma linha de condutapolítica e cultural capaz de sustentar as lutasespecíficas dos povos e comunidadesafrodescendentes de todo o mundo. O ambienteinternacional, marcado pela bipolarizaçãoideológica e estratégica entre blocos, e pelacrescente distância entre as possibilidadeseconômicas e tecnológicas do Norte em relaçãoao Sul, tinha se tornado demasiado complexo paraas idéias programáticas já obsoletizadas do velhopan-africanismo de início do século. A primeiracontribuição de Abdias do Nascimento a essepropósito de renovação ideológica foi a introduçãoda experiência diferenciada dos povos

afrodescendentes da América Latina no grandedebate sobre a composição de uma nova sociedade.Assim, a discussão da questão racial ganhou novadimensão intelectual e teórica com as teses“nascimentistas” sobre o modelo sócio-racial ibero-latino.

No fim das contas, qual teria sido a relação deNascimento com as três vertentes do pan-africanismo mundial? Sem dúvida, ele tinhaafinidades marcadas com o pan-africanismo“diaspórico-continentalista” (Marcus Garvey,Malcolm X, Maulana Ron Karenga, ElijahMuhammed, Patrice Lumumba), e se identificou deimediato com essa vertente. Mas também combateucom vigor os extremismos e sectarismos que aminavam.

Como homem de letras e artista, Nascimento seidentificou de maneira natural e espontânea com opan-africanismo político-cultural da Négritude. Essavertente baseava-se na noção de uma identidadeafricana específica de cunho racial e culturalglobalista e na proposta de uma independêncianacional sustentada num amplo e permanenteprocesso de desalienação psíquico-cultural (AiméCésaire, Léon Damas, Léopold Sédar Senghor,Cheikh Anta Diop, Frantz Fanon, Alioune Diop).Ele discordava das tendências assimilacionistas dacorrente “senghoriana”, que combateu semhesitações como perigosa aberração.

Mais complexas foram as relações de Nascimentocom o chamado pan-africanismo de Manchester,aquele que surgiu ao começo do século XX com arealização, em Londres, da Primeira ConferênciaPan-Africana, organizada por Sylvester Williams,advogado de Trinidad, e W. E. B. Du Bois, cientistapolítico, sociólogo e historiador negro norte-americano. O pan-africanismo de Manchester(Sylvester Williams, W. E. B. Du Bois, GeorgePadmore, Caseley Hayford, Nnamdi Azikwe, JomoKenyatta, C. L. R. James, Eric Williams, RasMakonnen) se definiu desde o início como“continentalista”, o que era lógico em razão dapavorosa exploração e dominação colonial em quea África se encontrava submersa. Entretanto, com aindependência dos países africanos e a suaconsolidação, a “subordinação estratégica” das lutasdas diásporas africanas das Américas, do Caribe edo Pacífico à luta pela independência começou aperder seu caráter de exigência estratégica. Abdiasdo Nascimento impugnou de imediato a noção deque as diásporas teriam de desempenhar um papelsecundário, logístico, como ocorria com os judeusdo mundo em relação a Israel. Ele colocou asdiásporas das Américas, do Caribe e do Pacíficono mesmo nível de urgência estratégica dos povosdo continente.

Um dilema para Nascimento, na sua açãointernacional, foi a questão dos métodos a utilizarna luta pela liberdade dos povos negros. Luta

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Imagem de 1890 mostrando o contraste entrenorte-americanos ricos e a pobreza de ex-

escravos negros.

Estabelecimento de venda de escravos em Atlanta, Georgia.

armada “por todos os meios necessários” (KwameNkrumah, Malcolm X, Amílcar Cabral, FrantzFanon)? Ou via pacífica, mediante sucessivas etapasde negociação (Martin Luther King, Léopold SédarSenghor, Desmond Tutu, Albert Luthuli)? Homempacífico por natureza, Nascimento sempre teve umapredileção pela negociação. Apaixonado nadenúncia da opressão, sempre foi moderado noconfronto fraternal das idéias; a luta violenta nuncafoi o caminho predileto de seu coração. Na horaem que o “guerrilheirismo” gozava de grandeaudiência, ele enxergou no emprego do terrorismocomo arma de combate o perigo da escalada doterror. Mas, diante da crueldade racista daspotências colonizadoras, como nas colôniasportuguesas, e sob os implacáveis regimes deapartheid na África do Sul, na Namíbia e noZimbabwe, apoiou a luta armada nesses países.Paralelamente, e bem antes de se produzirem oshorrores que o mundo hoje testemunha, Nascimentodenunciava o crescente perigo de guerra civil quedetectava na prática de muitos dirigentes da Áfricaindependente de impor aos povos sob seu controleas estruturas e sistemas de repressão física legadospela dominação colonial.

Sobre a política em geral, deve-se dizer que eranecessário ter muita coragem e convicção moral parase opor, como Nascimento o fez sem trégua, a umaideologia política muito popular no mundo africanonaquele momento, cuja perda de prestígio no espaçode menos de uma década, após a queda do blocosoviético, ninguém poderia então prever. Mais

especificamente, sobre a questão sócio-racial,Nascimento esclareceu muito do que até então ficavaduvidoso para a maioria dos pan-africanistas emrelação à natureza orgânica e estrutural do racismolatino-americano. Foram os seus escritos edenúncias que mais contribuíram para avançar apremissa teórica de que na América Latina se formouum sistema de dominação étnico-racial e sócio-econômico específico, baseado precisamente na“mestiçagem programada” entre raças e etniassituadas em posições fixas de inferioridade e desuperioridade.

A reintrodução do mundo simbólico na políticapan-africanista - No plano internacional, Abdiasdo Nascimento desempenhou um importante papelde conciliação entre as três grandes vertentes dopan-africanismo. Hoje, não tenho dúvida de que issosó foi possível porque ele mesmo portava em sipróprio, de maneira harmônica, essas três vertentespolíticas. Homem do século XX, na virada do séculoXXI ele já era o esboço de um pan-africanismofuturo; um amplo movimento político baseado norespeito às diferenças entre povos, culturas,civilizações e gêneros. Um movimento cultural emque o gênero feminino, enfim resgatado de séculosde opróbrio, encontra-se de novo em posiçãopioneira da civilização e da humanização dassociedades, papel que sempre desempenhou nahistória do mundo africano. Um pan-africanismo emque a busca pela eqüidade sócio-econômica entreraças, etnias e gêneros está indissociavelmente ligada

ao desenvolvimento identitário de cada um dessesagregados orgânicos da sociedade civilcontemporânea.

Eu não acredito ter “forçado” o pensamento deAbdias do Nascimento nesta descrição de seu pan-africanismo, nem penso ter imposto meus própriossonhos aos dele. Sem dúvida, uma idéia fiel eabrangente das contribuições “nascimentistas” às trêsvertentes pan-africanistas que surgiram no séculoXX será objeto de estudos posteriores. Masacredito que, em sua ação internacional, elereintroduz no pan-africanismo militante do séculopassado uma noção fundamental que estava seperdendo no próprio fogo daquelas lutas: a idéia deque um futuro político libertário deve ser, também,construído artisticamente, na harmonia pessoal, naalegria, na amizade e no carinho. Ou seja, paixão nadenúncia das opressões, mas respeito às múltiplasdiferenças. O pan-africanismo “nascimentista”compromete a ira contra todos os tipos de injustiça,ainda que cometidos por nós mesmos, com a música,a dança, a pintura, a poesia e o riso. Acredito que,além das múltiplas contribuições políticas que elefez ao mundo em que viveu, e que sem dúvida outrosanalistas conseguirão analisar e expor com o devidorigor, Abdias do Nascimento introduz uma grandedose de amor no pan-africanismo do século vinte.

Carlos Moore Wedderburn. Texto resumidodo prefácio do livro O Brasil na Mira do Pan-Africanismo (Salvador: CEAO/ EDUFBA,2002), págs. 17-32.

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Trechos do Pronunciamento deAbdias Nascimento ao receber o título

de Doutor Honoris Causa daUniversidade Federal da Bahia

Recebo um título de doutor da mesma academiaque há décadas venho questionando e contestandopor sua postura de marginalizar, humilhar,desprezar e discriminar o povo afrodescendente.Pois reitero: continuo questionando e contestandoa academia brasileira.

Sei que a postura dessa academia não mudoude forma significativa, pois o negro continuamarginalizado e discriminado na estrutura daeducação deste país desde o ensino básico esobretudo no superior. Minha presença aquirepresenta o desejo da coletividade afro-brasileirade que esta universidade, a mais antiga do Brasil,dê o exemplo de forjar um caminho de verdadeirainclusão do povo de ascendência africana na nossaacademia.

Não estou falando apenas da admissão dealunos negros, embora este seja um aspectonecessário em todo o país. Falo sobretudo do queeles e os outros alunos vão aprender. Oconhecimento formal e científico sempre discorreusobre nós, retratando os povos africanos e seusdescendentes como escravos natos, objetos depesquisa científica, ratos de laboratório.

Aqui mesmo na Faculdade de Medicina destauniversidade, sob a égide de Nina Rodrigues, papadas teses lombrosianas no Brasil, mediu-se nossoscrânios para calcular o índice cefálico;dimensionou-se a largura da nossa narina comoprova cabal de nosso suposto estado patológicocongênito; negou-se a nossa arte enquantoprodução criativa taxando-a da representaçãodeformada de uma mentalidade primitiva e doentia.

A psiquiatria de Nina Rodrigues, desenvolvidanesta instituição, julgava nossa religião umamanifestação de patologia mental. A Faculdadecriou e ostentou, durante muitos anos, uma dasmais monstruosas peças da didática racistaconhecidas no Brasil: a exposição de objetossagrados do nosso culto junto a armas usadas emhomicídios e outros instrumentos de crimes, aolado das cabeças de cangaceiros degolados e defetos defeituosos, os chamados “monstros dadegenerescência” das teorias eugenistas.

As peças sagradas, muitas confiscadas pelapolícia, simbolizavam um dos mais caros projetosde Nina Rodrigues: o controle psiquiátrico dareligiosidade afro-brasileira. A exposição,transferida à Secretaria de Segurança Pública, láficou intacta até o ano passado como testemunha

muda do implícito endosso das autoridadescientíficas às lições embutidas na sua configuração.

É preciso virar esse conhecimento eurocentristade cabeça para baixo, sacudi-lo até remover o lixoe construir no vazio uma nova epistemologia.Incorporar-lhe a experiência e o saber dos povosafrodescendentes em suas várias dimensões, vistosda sua ótica e expressos na sua própria voz,possibilitando a reconstrução da civilização e dasoberania dos nossos antepassados no Continentee o redimensionamento das culturas e histórias deluta forjadas por nós, seus descendentes, nadiáspora.

Para isso, não adianta fingir “esquecer” o legadoracista ou fazer de conta que ele perdeu suainfluência. É preciso examiná-lo, identificá-lo nas suasnovas sutilezas, e sobretudo desvelá-lo no silêncioque reforça a exclusão discriminatória. Silêncioconsignado na mudez daquelas peças sagradasexibidas hoje sem qualquer identificação ou indicação

de origem na Sala Estácio de Lima do Museu daCidade. Silêncio ensurdecedor quando se trata doracismo na sala de aula e no currículo das nossasescolas.

A mesma ciência que criou esse legado racistaempenhou-se na tarefa de apagar, esquecer e ocultara História e a produção intelectual dos povosafricanos. O pensamento africano não faz parte dacultura universitária de nosso País, porque no seuconceito a África não figura como lugar de produçãodo conhecimento. Trata-se, talvez, do maior embusteperpetrado pelo eurocentrismo.

Observadores e estudiosos criteriosos comoBasil Davidson, Martin Bernal, Jean Ziegler, JanheinzJahn, Walter Rodney, Chancellor Williams, RobertFarris Thompson e outros vêm demonstrando olongo processo de desenvolvimento intelectual,tecnológico, político, econômico, artístico, espirituale cultural da África, consignado também no trabalhodo grande cientista senegalês Cheikh Anta Diop ede pesquisadores como Théophile Obenga, Ivan VanSertima, Wayne Chandler, Runoko Rashidi e tantosoutros.

Os maiores sábios da antiga Grécia tiveram deprestar tributo ao Egito, onde muitos delesestudaram, como é o caso de Pitágoras, Euclides etantos outros. Heródoto, chamado Pai da História,registrou sem rodeios a identidade dos egípcios, aodescrevê-los como “negros de cabelos lanudos”.

Mas a História eurocentrista apagou, e o ensinobrasileiro ignora, quatro milênios de desenvolvimentoafricano no Egito, como se o conhecimento humanotivesse brotado, pronto e acabado, de um repentino“milagre grego”. Igualmente ignoradas são outrascivilizações africanas como Axum e Meroe, osimpérios de Gana, Mali, Monomotapa e Songhai,enfim, os numerosos e brilhantes estados e culturasque se desenvolveram de norte a sul do ContinenteAfricano.

Semelhante processo se aplica à História do Brasile da diáspora africana. Distorcem a imagem dosafricanos e afro-descendentes, transformando-nosem seres ignorantes e passivos que teriam aceito debom grado a escravização a que fomos submetidos.

Apenas nas últimas décadas deste século, ainsistência do Movimento Negro vem propiciandoa revisão de tal imagem ao mostrar que os africanosse levantaram em revoltas, insurreições, e resistênciaquilombola em todo o território das Américas edurante toda a sua história.

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Esse fato ganhou maior reconhecimentosimbólico com a inscrição em 1997, por iniciativada Senadora Benedita da Silva, do nome de Zumbidos Palmares no Panteão dos Heróis da Pátria, naPraça dos Três Poderes em Brasília, onde passoua figurar ao lado de Tiradentes.

Um dos eventos mais relevantes da luta pelajustiça e a liberdade no Brasil, ocorrido aqui naBahia, continua relegado à penumbra da Histórianacional: a Conjuração Baiana de 1798, conhecidatambém como Revolta dos Alfaiates.

Eminentemente popular, protagonizado pormodestos artesãos ao lado de negros e mulatosforros, é conhecida também como Revolta dosBúzios, referência à concha africana que era seusigno. Defendia um programa bem mais avançadoe consistente que o da Conspiracão Mineira deTiradentes, conduzida por burgueses, literatos esacerdotes brancos sem grande compromisso comas verdadeiras necessidades e aspiraçõespopulares.

Além de querer instituir “um governodemocrático” para o Brasil, os revoltosos dos

Raimundo Nina Rodrigues

Um fato que ganhou umreconhecimento simbólico com a inscrição

em 1997, por iniciativa da SenadoraBenedita da Silva, do nome de Zumbi dos

Palmares no Panteão dos Heróis daPátria, na Praça dos Três Poderes em

Brasília, onde passou a figurar ao ladode Tiradentes.

Heródoto, chamado Pai da História, registrousem rodeios a identidade dos egípcios, ao

descrevê-los como “negros de cabeloslanudos”.Búzios pretendiam abolir o cativeiro e a

discriminação racial, instituir a liberdade religiosa edividir entre a população “tudo que houvesse nacapital”.

Sobre eles se abateu uma repressão dura, cruel eracista. Morreu enforcado apenas um “inconfidente”mineiro enquanto sangraram quatro revolucionáriosbaianos, todos negros. Os governantes precisavamevitar que chegasse às massas despossuídas de

outros cantos do País o exemplo dessa revolta, bemmais perigosa do que a conspiração dos padres epoetas.

Mas sufocar a Conjuração de 1798 não bastoupara abafar o espírito de liberdade na Bahia. Logocomeçaram as Revoltas dos Malês, que sesucederam, uma após a outra, entre 1807 e 1835,apesar de duramente reprimidas.

Lições de dignidade como essas têm seuscorrelatos não só em Palmares, mas em cadapedaço de chão que o africano pisou no Brasil e nadiáspora africana das Américas. Para ajudar aresgatar essa verdade, apresentei em outubro de1997 o Projeto de Lei do Senado no. 234, quepropõe inscrever no Livro dos Heróis da Pátria, aolado de Tiradentes e de Zumbi dos Palmares, osnomes de João de Deus Nascimento, ManuelFaustino dos Santos Lira, Luís Gonzaga das Virgense Lucas Dantas Torres, líderes da ConjuraçãoBaiana de 1798, cujo legado libertário podemoscomemorar no dia 13 de agosto próximo.

Esses heróis e essas lutas inserem-se no contextointernacional da tradição de luta pan-africanista, cujahistória urge resgatar desde os tempos de Zumbi noBrasil e Rainha N’Zinga em Angola até os seusdesdobramentos mais recentes nos processos dederrota do colonialismo na África e de luta contra oracismo na diáspora.

O fenômeno quilombola tem uma dimensão muitoespecial nessa trajetória. Tanto no Brasil como noCaribe e em todas as Américas, onde existe na formade cumbes, palenques, cimarrones e maroon

societies, quilombo não é só um reduto de escravosfugidos. Resistência contra a sistemática violação dadignidade da pessoa humana, é também aconstrução da vida em liberdade.

Organizados política e economicamente, osquilombos e seus pares em outros países produziameconomicamente, se organizavam politicamente, sedefendiam e enfrentavam enormes desafios,construindo diariamente sua vida em liberdade - ouseja, sua cidadania.

Com base nessa constatação histórica, lancei em1980 a tese do quilombismo, buscando nas raízesda nossa experiência histórica um modelo paraorientar a nossa atuação política. Trata-se de umaproposta não apenas para os povosafrodescendentes na diáspora como para a NaçãoBrasileira.

O quilombismo almeja a construção de um Estadovoltado para a convivência igualitária de todos oscomponentes da população, preservando-se erespeitando-se a pluralidade de identidades ematrizes culturais. A construção da verdadeira

democracia, nos moldes do quilombismo, passaobrigatoriamente pela efetiva implantação depolíticas compensatórias e de ação afirmativa parapossibilitar a construção de uma cidadania plena paratodos os grupos discriminados.

O quilombismo faz parte de uma tradição depensamento largamente ignorado no Brasil e queurge conhecer: a do pan-africanismo, que tem o seu

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Vinícius de Moraes:o branco mais negro do Brasil

é o pai de Barack ObamaNa noite do dia 25 de setembro de 1956, estreou

no Teatro Municipal do Rio de Janeiro a peça Orfeuda Conceição, do poeta brasileiro Vinícius deMorais (1913-1980). Esta peça é uma adaptaçãodo mito grego do lendário cantor Orfeu, cuja lira,dotada de sons melodiosos, amansava as feras quevinham deitar-se-lhe aos pés. Filho da musa Calíope,ele resgatou a sua esposa Eurídice do Inferno, apósela ter sido picada por serpente. A história de Viníciusdecorre numa favela carioca, durante os três diasde carnaval. (Abdias Nascimento estava no elenco.)

Em 1959, o diretor francês MarceI Camustranspôs a peça para o cinema. Daí surgiu o filmeOrfeu Negro, com músicas de Luiz Bonfá e TomJobim, a negra atriz americana Marpessa Dawn, osnegros brasileiros Breno Mello, Lourdes de Oliveirae Adhemar da Silva. Cheio de belas imagens, comoa do romper do sol na favela, a do aparecimento daMorte numa central elétrica, e ainda com o som dossambas empolgantes, a película baseada na obra doletrista de “Garota de Ipanema”, além de alcançargrande sucesso comercial, ganhou a Palma de Ourodo Festival de Cinema de Cannes e o Oscar deMelhor Filme Estrangeiro em Hollywood.

Pois bem, nesse ano de 1959, uma jovemamericana de dezesseis anos, extremamente branca,

Zumbi dos Palmares

início nos primórdios da luta quilombola e queinaugurou o século vinte com uma articulaçãoteórica e política profundamente vinculada à metade libertar a África do jugo colonial.

A essência do pan-africanismo consiste noreconhecimento da experiência comum desse jugocolonialista que se estende, travestido de formasdiversas de dominação racista, aos descendentesda África em toda a diáspora. Entre os primeirosfundadores da fase articulada do pan-africanismodestacam-se W. E. B. DuBois, um dos maioresintelectuais do século, e Marcus Garvey, umgigante da mobilização coletiva, que encabeçou omovimento pan-africanista de maior penetraçãopopular.

A Négritude, articulada por poetas e intelectuaisde expressão francesa como Aimé Césaire, LéonDamas, Alioune Diop e Léopoldo Sedar Senghor,expressava outra dimensão de mobilizaçãoantirracista e anticolonialista. Futuros estadistasafricanos como Kwame Nkrumah, Julius Nyereree Jomo Kenyatta, e pensadores como FrantzFanon, Albert Memmi, George Padmore, C. L.

R. James, Eusi Kwayana, Walter Rodney, sãoapenas alguns exemplos entre os construtores dolegado panafricano.

Hoje, um dos grandes temas da reflexão pan-africanista é o das reparações aos povosafrodescendentes não apenas pelos danos físicos eeconômicos sofridos no bojo do processoescravista, como também pelo processo dedegradação moral coletivo que representa o racismoe a discriminação.

Os países africanos reclamam danos na forma deperdão da dívida externa e revisão das exigênciasde ajustes estruturais pelos organismos internacionaisfinanceiros como o FMI e o Banco Mundial. Nospaíses da diáspora, apoiando-se nas indenizaçõesprovenientes da escravatura perpetrada durante operíodo do holocausto na Europa, reivindica-sereparações pelo processo escravista, na forma defundos para programas sérios de ações sociais ouna forma de políticas públicas compensatórias oude ação afirmativa em benefício da coletividade deorigem africana. (...)

sem um pingo de sangue negro, chamada StanleyAnn Dunham, nascida no Kansas, resolveu assistirem Chicago ao primeiro filme estrangeiro de suaexistência. Foi ver o Orfeu Negro, só com atoresnegros, paisagens brasileiras, música brasileira,história brasileira. Ela saiu do cinema em estado deêxtase, maravilhada. Adorou aqueles negrosencantadores de um país tropical e logo admitiu:

- Nunca vi coisa mais linda, em toda a minha vida.Depois de tal arrebatamento, a jovem Stanley

embarcou para o Havaí. E ali, aos dezoito anos, elase tornou colega, numa aula de russo, de um jovemnegro de vinte e três anos, Barack Hussein Obama,nascido no Quênia.

A moça branca do Kansas, influenciada pelo filmeOrfeu Negro, entregou-se a ele e dessa uniãointerracial, nasceu em 4 de agosto de 1961 ummenino, a quem ela deu o mesmo nome do pai eque é agora o primeiro presidente negro dos EstadosUnidos.

No começo da década de 1980, ao visitar o seufilho em Nova York, a senhora Stanley o convidoupara ver o filme Orfeu Negro num cinema de arte.Segundo o depoimento do próprio Barack, no meiodo filme ele se sentiu entediado, quis ir embora.Disposto a fazer isto, desistiu da ideia no momento

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em que olhou o rosto da mãe, iluminado pela tela. Afisionomia da senhora Stanley mostravadeslumbramento. Então o filho pôde entender, comoele confessa em sua autobiografia, porque ela se uniua seu pai africano.

Mas não é justo deixar as coisas assim tãosimples. Conta Obama: “Para minha mãe, oconhecimento de pontos importantes das grandesreligiões do mundo era uma parte necessária de umaeducação impecável. Em nossa casa, a Bíblia, oAlcorão e o Bhagavat Gita ficavam na prateleirajuntamente com livros das mitologia negra,norueguesa e africana”, escreveu o presidenteamericano no seu livro A Audácia da Esperança.“E apesar do seu secularismo, minha mãe era demuitas formas a pessoa mais espiritualizada queconheci”.

Obama tem parentes indonésios, havaianos,africanos, chineses e até americanos. Sua mãe erauma antropóloga com “um instinto inabalável paraa caridade, a bondade e o amor”, e não terianenhuma dificuldade em ser brasileira.

Prefácio de Vinícius de Moraesa Orfeu da Conceição”

As datas de saída deste livro e da estréia, noTeatro Municipal desta cidade, de “Orfeu daConceição” são propositadamente coincidentes. Éuma espécie de festa que me deu, pois não me foifácil escrever a peça, e muito menos encená-la.Há 16 anos, uma certa noite em casa do arquitetoCarlos Leão, a cavaleiro do Saco de SãoFrancisco, depois de ler numa velha mitologia omito grego de Orfeu, dava eu início aos versos doprimeiro ato, que terminei com a madrugadaraiando sobre quase toda a Guanabara, visível deminha janela. Só em Los Angeles, seis anos depois,consegui encontrar o segundo e terceiro atos, sendoque este último perdi, só indo refazê-lo em 1953quando, a instâncias de meu amigo poeta JoãoCabral de Mello Neto, resolvi concorrer aoConcurso de Teatro do IV Centenário de SãoPaulo.

É difícil prever o destino de uma peça de teatro,sobretudo quando foi, como esta, ensaiada em trêsmeses apenas, por contingências dos meus deveresde diplomata com data certa para regressar aoposto. Três meses realmente heróicos, em que umaequipe de seis (o diretor Leo Jusi, o cenógrafoOscar Niemeyer, o compositor Antônio CarlosJobim, a figurinista Lila de Moraes, a coreógrafaLina de Luca e o pintor Carlos Scliar) crioucondições para um elenco de 45 figuras, com 10atores principais, pisar em cena, depois de umexaustivo trabalho em que há que salientar primeiroa coragem e lealdade dos atores e logo em seguidaa capacidade de trabalho e devotamento do diretorLeo Jusi. Mas a verdade é que deram todos, cadaqual no seu setor, o máximo. São amigos meus,

me merecem tudo - e eu lhes sou devotadamentegrato.

Dentro de uma semana, às 9 da noite, no TeatroMunicipal, cessarão todas as nossas agonias. Depoisda “ouverture” para grande orquestra, escrita porAntônio Carlos Jobim especialmente para a peça, opano se abrirá sobre cenário de Oscar Niemeyer:dois amigos muito queridos; duas obras que vivema partir daqui perfeitamente integradas com a minhapeça. Luiz Bonfá estará executando, da orquestra,o violão de Orfeu da Conceição, interpretado porHaroldo Costa: outros dois amigos a quem aprendia querer muito. Os atores portarão os figurinos feitospor uma estreante em teatro como eu, como OscarNiemeyer, como Antônio Carlos Jobim: minhamulher Lila Moraes. E as gentis dançarinas dançarãoos bailes que lhes foram marcados por uma outra

estreante como coreógrafa de teatro: minha amigaLina de Luca. E em tudo haverá uma cor, umdesenho, um toque de Carlos Scliar: um cuja amizadevem de longe.

Escravo de meus amigos, de quem tudo recebo ea quem tudo dou, agora pergunto eu: que maioralegria?

E uma última palavra: esta peça é uma homenagemao negro brasileiro, a quem, de resto, a devo; e nãoapenas pela sua contribuição tão orgânica à culturadeste país - melhor, pelo seu apaixonante estilo deviver que me permitiu, sem esforço, num simplesrelampejar do pensamento, sentir no divino músicoda Trácia a natureza de um dos divinos músicos domorro carioca.

Rio, 19-9-1956 - Vinicius de Moraes

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A VisãoBantu da

Sacralidadedo MundoNatural

O mundo natural para o povo Bântu é a totalidadede totalidades amarradas acima como um pacote(futu) por Kalunga, a energia superior e maiscompleta, dentro e em volta de cada coisa no interiordo universo ( luyalungunu).

Nossa Terra, o “pacote de essências” (futu dian’kisi) para a vida na Terra, é parte dessa totalidadede totalidades. É vida. É o que é, visível e invisível. Éa ligação do todo em um através do processo de vidae viver ( dingo-dingo dia môyo ye zinga). É o que nóssomos porque somos uma parte disso. É o quemantém cada coisa na Terra e no Universo em seulugar.

O conceito Bântu-Kôngo da sacralidade do mundonatural é simples e claro. Tem-se que deixá-los definiro nosso planeta com suas próprias palavras: “Aosolhos do povo Africano, especialmente aqueles emcontato com os ensinamentos das antigas escolasAfricanas, a Terra, nosso planeta, é futu dia n’kisidiakânga Kalûnga mu diâmbu dia môyo - um (pacote)de essências/remédios amarrados por Kalunga comintenção de vida na Terra”.

Esse futu ou funda contém cada coisa que a vidaprecisa para sua sobrevivência: essências/remédios(n’kisi / bilongo), comida (madia), bebida (ndwinu),etc.

O mundo natural é o que nós vemos, tocamos,sentimos, saboreamos e ouvimos e ainda assim nósnão podemos alcançar o significado em sua totalidade.É o mistério de todos os mistérios. É o cerne do queé espiritual e sagrado. É ligar e desligar (Kala yeZima) de todas as coisas, i.e., Nkingu Kibeni WangudiWa Kinenga mu biobio (a chave princípio de equilíbrioem tudo). Todas essas coisas, com ou sem expressão,com ou sem poder de locomoção, de acordo com oconceito Bântu de sacralidade são seres (Kadi).

Os povos Bântu, Kôngo e Luba, entre eles, aceitamo mundo natural como sagrado em sua totalidadeporque, através dele, vêem refletida a grandeza deKalunga. A energia superior de vida, aquele que éinteiramente completo (lunga) por si próprio. Assim,quando um Mûntu (ser humano) vê um minúsculocristal (ngêngele) ele/ela vê nele, não só suasacralidade, mas também a presença divina deKalunga.

Além da atenção e admiração dadas amontanhas, vales, ao vento, ao céu e às mudançasdo ciclo natural, o Mûntu dá especial atenção aomundo da floresta porque, como se diz, “MfindaKasuka tufukidi” - nós perecemos se as florestas sãoextintas. Por causa dessa visão popular entre os Bântu,

o próprio ato de entrar na floresta torna-se um ritualsagrado.

Antes de alguém entrar na floresta deve preparar-se ritualmente, porque adentrar na floresta é entrarnuma das mais ricas e bem documentadas bibliotecasvivas na Terra. Em seu leito e abaixo vivem centenase centenas de criaturas, grandes e pequenas, visíveise invisíveis, fracas e poderosas, amigáveis e hostis,conhecidas e desconhecidas. Em seu interior correm,serpenteando, rios dentro dos quais nadam multidõesde peixes. E acima de suas folhagens pode-se ouvirsons e melodias de todos os tipos. Todas essas“coisas”, dentro da floresta, constituem assuntos deaprendizagens para Mûntu, das quais ele coleta dadosque pode “engavetar” em sua memória para usofuturo. Esse é o processo de construir conhecimento- nzailu.

Por causa dos aspectos de hostilidade presentesna floresta, o Mûntu deve proteger-se antes de entrarna floresta. Para isso, algumas vezes tem queimunizar seu corpo -kândika nitu antes de deixar aaldeia, especialmente durante a estação de caça.

O processo nkandukulu a nitu - imunização do corpoconsiste em esfregar preparação medicinal no corpo,introduzir algo no corpo através de pequenas incisõesna pele ou através da boca. Até mesmo os cães decaça passam por esse processo e são imunizadosantes deles serem conduzidos para dentro do mato.

Adentrar uma floresta familiar é percebido comoandar nos passos dos ancestrais. É descobrir o queeles conheceram transmitiram para nós, mas tambémencontrar saída onde eles deixaram fechado de modoque possamos caminhar em direção a maisdescobertas para as necessidades de nossas geraçõese aquelas das gerações futuras. Porém lá é mais queisso.

Andar na mata durante a iniciação é revisitarMakulu , onde cada coisa é possível de ser encontrada- Digamos aqui antes do trecho, que estudiosos Kôngomodernos estão usando este termo, makulu, nas suasconversações para significar biblioteca. Bem, não sãoas bibliotecas do mundo, coleções, em grandes parte,dos trabalhos dos mortos (bakulu), os ancestrais? Nãoé humanidade constituída por mais mortos do quevivos?

A revisita de makula tem um grande impacto namente de ngudi-a-ngânga (mestre iniciadores) e seusseguidores (lândi) intelectualmente bem comoespiritualmente. O processo em si mesmo é chamado“Mokina ye bafwa”- conversar com o morto .

Isso é, sumariamente: reunião com os ancestrais,i.e., com a presença de sua energia (ngolo minieniemiâu). Viver a experiência do tempo, como hoje évivida bem como foi vivida no passado e como deveser vivida no futuro. Andar no passado seguindo KiniKia bakulu (a sombra dos ancestrais). Rever o laçoda comunidade biogenética - n’sing’a dikânda: comofortificá-lo e como expandir seus ensinamentos. Éestar em contato espiritualmente bem comointelectualmente com a sabedoria tradicional Africana(kingânga) do passado. É entender as condições devida e viver daquele tempo e de agora. Finalmente, éconversar com “bakulu”, ancestrais, numa experiênciapessoal, i. é., sentindo sua presença entre nós hoje eamanhã.

Por causa da sacralidade do mundo natural comoum real mundo vivo, tão ilustrado pela verdura deplantas e florestas, mawubi/maghubi, a maioria dasreuniões que dão poderes espiritualmente é mantidaem florestas. Por causa de sua importância para avida e o viver, o mundo natural, e a floresta emparticular, são percebidos como um templo aberto paratodos. As pessoas são conduzidas para dentro dessetemplo mais espiritualmente sagrado, essa bibliotecaviva, para tornar-se de verdade homem/mulheratravés do processo de iniciação, i. é., Mu bulwa mèso- manter-se de olhos abertos. (..)

O mundo natural é o mais seguro e rico laboratórioda raça humana. É um laboratório sem paredes, queos Bântu continuam a descobrir desde a sua maistenra idade. O processo fundamental de aprendizagempara os jovens Bântu tem lugar dentro desseslaboratórios sem paredes. As pessoas andam dentrodeles silenciosamente, por causa da sua sacralidade,e elas ficam de pé ali assim como diante demonumentos.

Autor: Fu-Kiau K.K. Bunseki. Traduçãoportuguesa por Valdina O. Pinto

Fonte: http://www.ritosdeangola.com.br/page.php?152.0

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A Arte Africana eo Cubismo de Picasso

África não era uma página embranco antes da invasãocolonial; Havia produzidoconhecimentos e técnicas,

Observem como a imagem criada por PabloPicasso, nesse auto-retrato, e no quadro Les demoisellesd’Avignon ao lado, o artista revela toda a influência daarte africana sobre o seu trabalho. Observe também nas

cores a predominância dos tons terrosos tais comoencontrados nas máscaras expostas acima. À presença

do traço geométrico e dos espaços delimitados porlinhas pretas (aspecto que lembra muito a pintura

japonesa) pode ser somada uma crescente utilização dascores vivas que o norte da África sugere. Picasso, Le

Corbusier ou os impressionistas, toda a arte pictóricaeuropéia sentiu, em maior ou menor grau, o impacto da

luz e da vida cultural africana. Que seria da arteocidental sem a África?

além de obras de grande valornos campos da arquitetura,escultura , música ,dança,poesia e literatura oral.”O Correio da Unesco Julhode 1997

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A criatividade e o imaginário das culturas africanas possuem um forte impactovisual e decorativo, influenciando profundamente algumas correntes da artecontemporânea, tanto no Brasil quanto no Exterior.por exemplo o Cubismo, queteve Picasso como seu grande expoente , e outros artistas, como Braque, Cézannee Matisse, beberam dessa fonte, experimentando em seus trabalhos inovaçõesestilísticas que inauguraram outras formas de abordagem e novos caminhos para aarte do ocidente.

Compreender essa influência é reconhecer a contribuição da arte africanapara a criação e o desenvolvimento de novas formas artísticas. A arte africana,resultado de uma grande influência de etnias e culturas presentes naquele continente,caracteriza-se por ser totalmente funcional, ou seja, voltada para a utilização doobjeto. Por isso, na África o conceito de arte pela arte é praticamente inexistente.Todo objeto tem uso prático. Complexa e variada, a arte africana também é bastanteritualística.

“Muitas das máscaras representam antepassados do clã e, por isso, sãoobjetos de orgulho da família. Numa cerimônia aos ancestrais, um dançarino, usuárioda máscara, entra em transe profundo. Durante esse estado sua mente se comunicacom os antepassados, trazendo deles mensagens de sabedoria. Tais cerimôniaspodem durar horas ou dias e são sempre acompanhadas de muita dança e músicastradicionais africanas”.Fonte: http://africasaberesepraticas.blogspot.com/2009/10/arte-africana_25.html

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Kabbalah e os Orixás daCultura Afrobrasileira

A respeito dos Orixás na cultura afro-brasileira esua correlação direta com a Kabbalah e com aestrutura da Árvore da Vida. Muita gente esqueceque o Egito fica na África e que os cultos antigosafricanos tiveram origem nas mesmas fontes que oculto judaico (e posteriormente Cristão e Católico).

Desta maneira, a estrutura dos Orixás é baseadanos mesmos arquétipos universais que regem todosos princípios psicológicos humanos, representadosdiretamente na Árvore Sephirática.

Obaluaiyê quer dizer “rei e dono da terra”; suaveste é palha e esconde o segredo da vida e da morte.Está relacionado a terra quente e seca, como o calordo fogo e do sol – calor que lembra a febre dasdoenças infecto-contagiosas. O lugar de origem deObaluaye é incerto, há grandes possibilidades quetenha sido em território Tapá (ou Nupê) e se esta éou não sua origem seria pelo menos um ponto dedivisão dessa crença. Conta-se em Ibadã queObaluaye teria sido antigamente o Rei dos Tapás.Uma lenda de Ifá confirma esta última suposição.Obaluaye era originário em Empê ( Tapá ) e havialevado seus guerreiros em expedição aos quatroscantos da terra. Uma ferida feita por suas flechastornava as pessoas cegas, surdas ou mancas.

Obaluaye representa a terra e o sol, aliás, ele é opróprio sol, por isso usa uma coroa de palha (AZÊ)que tampa seu rosto, porque sem ela as pessoas nãopoderiam olhar para ele. Ninguém pode olhar o soldiretamente. Esta forte mente relacionado os troncose os ramos das árvores e transporta o axé preto,vermelho e branco. Sua matéria de origem é a terrae, como tal, ele é o resultado de um processo anterior.Relaciona-se também com os espiritos contidos naterra. O colar que o simboliza é o ladgiba, cujas contassão feitas da semente existente dentro da fruta doIgi-Opê ou Ogi-Opê, palmeiras pretas. Usa tambémbradga, um colar grande de cauris. É interessantenotar que a lenda de Omulu/Obaluaye mescla toda atransição alquímica, da TERRA até o SOL (outransformação de Chumbo em Ouro), tal qual diversasoutras mitologias e seus heróis na jornadade Malkuth até Tiferet.

Na mitologia católica, Omulu é sincretizado comSão Lázaro.

Yemoja na Africa Iemanjá, cujo nome deriva deYèyé omo ejá (“Mãe cujos filhos são peixes”), é oorixá dos Egbá, uma nação iorubá estabelecidaoutrora na região entre Ifé e Ibadan, onde existe aindao rio Yemoja. As guerras entre nações iorubás levaramos Egbá a emigrar na direção oeste, para Abeokutá,no início do século XIX. Evidentemente, não lhes foipossível levar o rio, mas, em contrapartida,transportaram consigo os objetos sagrados e ossuportes do axé da divindade.

Yemanjá seria a filha de Olorum, Deus único, e éconsiderada o orixá do mar. Do casamento de Oxaláe Iemanjá (O Casamento alquímico entre o Sol e aLua) nasceram todos os demais orixás.

Deusa das águas, mares e oceanos, é amanifestação da procriação, da restauração, dasemoções e símbolo da fecundidade. Está associadaao poder genitor, a interioridade, aos filhos contidosem si mesma. Seu adedé (leque) simboliza a cabeçamestra. Ela é muito bonita, vaidosa e dança com oobebé (espelhinho) e pulseiras. Na Nigéria ela épatrona da sociedade Geledes, sociedade femininaligada ao culto das Yamis, as feiticeiras. No Rio deJaneiro, Santos e Porto Alegre, o culto a Iemanjá émuito intenso durante a última noite do ano, quandocentenas de milhares de adeptos vão, cerca de meianoite, acender velas ao longo das praias e jogar florese presente no mar.

Iemanjá está diretamente relacionada a Yesod ecorresponde a todas as deusas lunares e guardiãsdos mistérios, como Ísis, Hecate, Selene e Diana.Na mitologia católica, está relacionada a NossaSenhora dos Navegantes.

Mensageiro dos Orixás, ele é o primogênito douniverso no mito da gênesis dos elementos cósmicos.É o resultado da integração água e terra, masculino efeminino, sendo o terceiro elemento. Cultuado entreos Orixás, apenas por seu intermédio é possivel adoraras Yabás-Mi (as feiticeiras). Traçar e abrir caminhosé uma das suas principais atividades, pois ele circulalivremente entre todos os elementos do sistema. É o

princípio da comunicação. Esta fortementerepresentado no Opon-Ifá (tábua adivinhatória de Ifá– Deus da Adivinhação) pelos triângulos e losângulos.O sistema oracular funciona graças a ele. Estáprofundamente associado ao segredo datransformação de materiais em indivíduosdiferenciados. Exú é o alter ego de todos os indivíduos.É o princípio dinâmico da expansão (evolução), agentede ligação, princípio do nascimento de seres humanos,princípio da reparação (causa/efeito). Exerce o papelde propulsor do desenvolvimento, de mobilizador, defazer crescer, de ligar, de unir o que está separado,de transformar, de comunicar e de carregar. Todosos Orixás necessitam de suas forças, pois ele estáligado à evolução e ao destino de cada um.

Exú é o primeiro que se serve e se cultua, é oSenhor, o decano de todos os elementos.

Exú representa a esfera de Hod está relacionadodiretamente com Toth, Hermes, Mercúrio, Loki,Anansi, Ogma, Prometeus e todos os deuses e heróisprofessores e responsáveis por carregar osensinamentos do Divino para os Homens. Hod faz aponte da linguagem, entre os sentimentos e opensamento abstrado, sem o qual não haveria ométodo científico nem o armazenamento doaprendizado.

Apesar de ser um dos mais importantes Orixás, aIgreja Católica, através dos picaretas Jesuítas,sincretizou o Exú na figura do Diabo, associando aodemônio elementos como o tridente, a cor vermelhoe preta e o falo. Os ignorantes das IgrejasNeopentecostais propagam esta besteirada em suasperseguições às outras religiões e cultos, gerandomuito do preconceito em relação aos Umbandistas epraticantes das religiões afro-brasileiras.

Dona das águas. Na áfrica, mora no rio oxum.Senhora da fertilidade, da gestação e do parto, cuidados recém-nascidos, lavando-os com suas águas efolhas refrescantes. Jovem e bela mãe, mantém suascaracterísticas de adolescente. Cheia de paixão, buscaardorosamente o prazer. Coquete e vaidosa, é a maisbela das divindades e a própria malícia da mulher-menina. É sensual, exibicionista, consciente de suarara beleza. Se utiliza desses atributos com jeito ecarinho para seduzir as pessoas e conseguir seusobjetivos.

Osun é chamada de Yalodê, título conferido àpessoa que ocupa o lugar mais importante entre todasas mulheres da cidade, além disso, ela é a rainha detodos os rios e exerce seu poder sobre as águas doces,sem a qual a vida na terra seria impossível. Dançade preferência sob o ritmo de sua terra: Igexá. Suadança lembra o comportamento de uma mulhervaidosa e sedutora.

Oxum está relacionada diretamente com Netzach ecorresponde às deusas da beleza de todos os panteões,como Vênus, Afrodite, Ishtar, Astarte, Frigga eLakshmi. Na mitologia católica, Oxum equivale aNossa Senhora da Conceição.

MARCELO DEL DEBBIO por Helder Lima

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NOVEMBRO 2010 Jornalista Responsável: Jaricé Braga

Os OrixásOs Orixás são cultuados como divindades de um plano astral superior, ARUANDA, que na Terra

representam às forças da natureza (muitas vezes confundindo-se a força da natureza com o próprio Orixá).O Orixá é considerado um antepassado espiritual. Cada um de nós tem um Orixá, um pai que rege nossa

cabeça e nossa vida e alcançaram a divindade através de atos extraordinários que praticaram, passando amanifestarem- se como forças da natureza.

YEMANJÁ - É considerada a mãe dos orixás. No Brasil, a orixá goza de grande popularidadeentre os seguidores de religiões afro-brasileiras, e até por membros de religiões distintas.Em Salvador, ocorre anualmente, no dia 2 de Fevereiro, uma das maiores festas do país emhomenagem à “Rainha do Mar”. Outra festa importante dedicada a Iemanjá ocorre durante apassagem de ano no Rio de Janeiro. Milhares de pessoas comparecem e depositam no maroferendas para a divindade. A celebração também inclui o tradicional “Banho de pipoca” e assete ondas que os fiéis, ou até mesmo seguidores de outras religiões, pulam como forma depedir sorte à Orixá. Na Umbanda, é considerada a divindade do mar, além de ser a deusapadroeira dos náufragos, mãe de todas as cabeças humanas. Iemanjá veste branco e azul ouverde claro e as contas de seus filhos são de vidro verde claro transparente, ou azul claro. Seudia é sábado. Sua saudação é Odô Iá!

NANÃ - Dona da lama do fundo dos rios, a lama que moldou todos os homens. Mãe deOxumarê e Omulu É o Orixá feminino mais velho do panteão, pelo que é altamente respeitada.Veste-se de branco e azul. Suas contas são de louça branca com riscos azuis. Traz na mão oIbiri, seu cetro. Protege os enfermos desenganados e é patrona dos professores. Seu dia é asegunda-feira, e sua saudação é Saluba! Nanã proprietária de um cajado. A avó dos ORIXÁS

também chamada de Nanã Buruku. É um VODUM da lama,dos pântanos. Tem também relações com a morte. Em certosmitos é considerada a esposa de OXALÁ e ainda mãe deOMULÚ e OXUMARÉ, orixás procedentes da mesmaregião que ela (DAOMÉ).

OMOLU/OBALUAÊ - De origem Jeje, é o deus davaríola, da peste, das doenças da pele e hoje em dia da Aids.Omolu e Obaluaê, são as manifestações velho e jovem deum mesmo Orixá, chamado Xapanã. Suas cores são overmelho, o amarelo e o preto, que veste sob capuz de palha-da-costa enfeitado com búzios. Seus colares são tambémde búzios e contas de louça branca intercaladas com pretasou, então, brancas intercaladas com pretas e vermelhas.Dança portando um instrumento denominado Xaxará,espécie de cetro. Homenageado às segundas feiras. Suasaudação é Atotô!

OGUM - É o deus do ferro, da guerra e da tecnologia.Patrono dos ferreiros, engenheiros e militares. Seu dia éterça feira, veste azul escuro ou verde e vermelho. Seusfilhos usam contas de louça azul escuro ou verde com riscosazuis. Dança com espada e enrola-se em mariô (folha novado dendezeiro desfiada), é saudado com o grito Ogunhê!

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OXALÁ - É o orixá da criação e faz parte dos orixás denominados funfun, isto é, brancos, ouque se vestem de branco. Oxalá é o deus criador do homem e da cultura material. No Brasiltem o status de pai dos orixás e senhor supremo. Seu dia é sexta-feira, quando se costumausar roupa branca para homenageá-lo. Suas contas são igualmente brancas, de louça, mas osfilhos da qualidade Oxaguiã usam umas poucas contas azuis a cada seqüência de contas brancas.É saudado com o brado: Êpa Babá!

OXÓSSI - É um dos muitos deuses caçadores (Odés) na África. Rei da cidade de Keto. Éprotetor dos caçadores, dos chefes de família, e dos animais que vivem nas florestas. Seusfilhos usam contas de louça azul turquesa, ou verde leitoso. Veste-se com estas cores e overmelho. Dança segurando o Ofá, um adereço em forma de arco e flecha. É louvado àsquintas-feiras. Okê Arô Oxóssi!

OXUM - É deusa das águas doces. É também a deusa do ouro, da fecundidade, do jogo debúzios e do amor. Veste amarelo, dourado, rosa e azul claro. Seu fio de contas é feito decontas de vidro amarelo claro ou escuro ou de louça amarelo claro, dependendo da qualidade.Dança com um espelho-leque na mão, o Abebê, e pode usar espada, quando é de qualidadeguerreira. É a segunda (e a mais amada) esposa de Xangô. Seu dia é sábado. Saudamo-la assim:Ora Ieiê Ô!

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OIA/IANSÃ - Senhora dos ventos e dastempestades, dona do raio, esposa principal deXangô, dona das almas dos mortos (eguns).Seu dia é quarta-feira, usa roupa marromescuro e vermelha e às vezes branca. O colarde seus filhos é de contas marrom escuro. Seubrado: Eparrei!

XANGÔ - Orixá do trovão e da justiça,protetor dos juízes, advogados, burocratas. Usaroupa branca e vermelha, e coroa na cabeça,pois é rei. Seu fio de contas se faz com essascores. Dança com um machado duplo na mão(Oxé) e é dono de um instrumento musicalusado só para ele: o Xerê, chocalho de latão.A Quarta-feira é seu dia e sua saudação é Kawó-Kabyesilé !

EXU - Exu Orixá não incorpora em ninguémpara dar consultas como fazem os Exus deUmbanda, eles são assentados na entrada dascasas de candomblé como guardiões, e em todacasa de candomblé tem um quarto para Exu,sempre separado dos outros Orixás, ondeficam todos os assentamentos dos exus da casae dos filhos de santo que tenham exu assentadoRecebe diversos nomes, de acordo com afunção que exerce ou com suas qualidades:Elegbá ou Elegbará, Bará ou Ibará, Alaketu,Agbô, Odara, Akessan, Lalu, Ijelu (aquele que

rege o nascimento e o crescimento de tudo oque existe), Ibarabo, Yangi, Baraketu (guardiãodas porteiras), Lonan (guardião dos caminhos),Iná (reverenciado na cerimônia do padê). Asegunda-feira é o dia da semana consagrado aExu. Suas cores são o vermelho e o preto; seusímbolo é o ogó (bastão com cabaças querepresenta o falo); suas contas e cores são opreto e o vermelho. ; as oferendas são bodes egalos, pretos de preferência, e aguardente. Suasaudação é “Larôye!” que significa o bemfalante e comunicador.Gilson Nascimento da SilvaFraternidade 100 – M.I.

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Candomblé com Sotaque FrancêsNascido Pierre Edouard Leopold Verger, em

Paris, em uma família abastada, o etnólogodesprezou o cargo de diretor na empresa gráficado pai, quando tinha 30 anos, em troca daliberdade de sair fotografando povos e costumespelos cinco continentes. Considerado um dosmaiores fotógrafos do mundo na época, fez váriosensaios par o Museu do Homem, de Paris, deu avolta ao mundo como fotografo do estinto jornal“Paris Soir”, virou correspondente de guerra darevista americana “Life”, Segunda Guerra e foi umdos primeiros fotógrafos da conceituada agênciafrancesa Magnum.

Verger correu mundo sem pressa, até“descobrir” a África, onde passou anos estudandoa cultura iorubá na Nigéria e na costa de Daomé,hoje República do Benin. Sua intimidade com acultura daqueles povos, de onde saiu a maioriados escravos que vieram para a Bahia, fez comque adotasse o nome africano Fatumbi, passandoa se chamar Pierre Fatumbi Verger. Logo depoisfez uma nova descoberta: a Bahia, de onde nãomais saiu.

Verger já faz planos para novos projetos:vai ordenar os quilômetros e quilômetros de fitagravada com importantes registros sobre culturaoral que conseguiu em suas viagens pela África.Antes, em setembro, irá à França participar deum colóquio de antropólogos, onde falará sobre asua convivência de dois meses no continenteafricano com o famoso antropólogo Roger Bastide,que o orientou em suas pesquisas. Filho deOxaguian- Orixá jovem, que se caracterizasobretudo pelo apego à liberdade e o espírito dejustiça – Verger recebeu o título de Doutor pelaSorbonne e se tornou consultor do Centro deEstudos Afro-Orientais da Universidade Federalda Bahia, tendo cursado apenas o antigo liceu.

O Globo: De que se trata o livro que o senhoresta escrevendo?

Pierre Verger: O livro é sobre o trabalhode plantas e especialmente entre os iorubás e seusdescendentes aqui na Bahia. Ainda não escolhi otítulo. São plantas medicinais e litúrgicas, mágicastambém. Algumas são encontradas no Brasil. Ésobre a medicina que se usa nas aldeias do Benine da Nigéria, de onde saíram os negros que vierampara Bahia. As pesquisas cientificas com plantasacontecem em todo mundo. Os laboratóriossempre estudam a composição das plantas, partemdo que fazem as pessoas que têm conhecimentoprático para chegar aos medicamentos. Osremédios sempre imitam a natureza. Já háfarmacêuticos e outros especialistas interessados.O livro trará pouco mais de 400 fórmulas, descritasem quatro línguas. No total recolhi mais de duasmil combinações de plantas.

O Globo: Como o senhor conseguiu recolhertantas fórmulas?

Pierre Verger: É difícil conseguir informaçõesdesse tipo quando se quer. Eu aprendi sobre oassunto porque não queria saber. Cheguei a África,onde terminei vivendo 17 anos como fotógrafo.Acontece que para fazer boas fotos é preciso sedeixar esquecer no lugar, esquecer de onde a genteveio, viver normalmente entre o povo da terra, paraque tudo fique natural. É uma atitude um poucopassiva, a mesma que tive em minhas pesquisas. (...)

O Globo: Há quem diga que as novas geraçõesde negros baianos começam a perder o contatocom suas raízes africanas, que estão mais voltadospara o que fazem os negros em outras partes domundo. O senhor concorda?

Pierre Verger: Não há um Brasil, são muitosbrasis. Reconheço que os estados brasileiros, queculturalmente são diferentes uns dos outros,começam a ficar parecidos, misturados, talvez porinfluência da televisão. Mas a Bahia tem um saborparticular, essa influência muito forte dosdescendentes de africanos da costa do Benin. Essaterra ainda é muito diferente do resto do país. Oque me atrai aqui é justamente essa mistura cultural,que faz com que na Bahia possam conviver pessoasde origens diferentes, sem problemas. Há problemascomeçando agora, mas são coisas que vêm de fora.

O Globo: Que problemas são esses? Pierre Verger: Problemas inter-raciais, porque

a Bahia passou a ter elementos que não tinha nopassado. Elementos que vêm um pouco da atitudede certos intelectuais que vivem falando em racismo.Só pelo fato de falar no assunto, ele começa a setornar realidade, começa a se criar uma situaçãoque não existia antes. Porque, afinal, a Bahia é olugar do mundo onde encontrei as relações raciaismais fáceis. Aqui não existem bairros negros, aquise chama um amigo de “meu nego”para ser gentil,negro é uma palavra carinhosa. Isso se baseia nofato dos negros, mestiços e brancos terem uma vidaem comum. Não é que o racismo não exista, mas asociedade baiana discrimina menos do que resto domundo, o que já é um progresso. Agora, tem aquelagente que não quer parecer negro, quer ser maisclara, ter cabelo liso... Isso é uma piada. Quando

cheguei a Bahia, em 1946, nem notei que aqui viviatambém gente branca. Só descobri que tinha brancotempos depois, quando tive de ilustrar um livro deum professor da Universidade Federal da Bahia,sobre elites de cor da cidade, publicada pelaUnesco. O que eu acho é que n Bahia há um certoprestígio em ser negro, por causa do candomblé.

O Globo: De que forma o candomblé confereprestígio ao negros baianos?

Pierre Verger: O candomblé é admirado erespeitado também pelos brancos, e isso faz comque se tenha um certo orgulho de ser negro. Osnegros ligados o candomblé não sofrempreconceitos raciais. Veja o caso de uma vendedorade acarajé: essas mulheres geralmente são filhas desanto, e por isso o pessoal vai lá com um certorespeito, as pessoas ligadas à seita beijam a sua mão.Cria-se uma atmosfera de apreço pela gente deorigem africana.

O Globo: O senhor não vê nisso algum traço defolclorização da cultura negra?

Pierre Verger: Não acho que seja folclore,porque a cultura negra está presente na cidade.Alguns dos maiores edifícios de Salvador têm nomesde orixás – Iemanjá, Xangô, Oxaguiam, Oxalufã.As pessoas que vivem ou trabalham nesses edifíciosestão contentes com isso. Coisas desse tipo fazemcom que os negros se sintam bem em sua pele. Podehaver algum tipo de racismo, mas que não se deveesquecer que existe também essa valorização dacultura chegada com os africanos. (...)

O Globo: O transe, no candomblé, funcionacomo uma terapia psicanalítica?

Pierre Verger: O candomblé é muito importantedo ponto de vista da psicanálise, com uma grandevantagem. Na psicanálise há o psicodrama, aspessoas são levadas a representar publicamente oque está escondido em sua personalidade, mostrarseu lado mais vergonhoso. Isso é horrível. Nocandomblé é o contrário, isso ocorre em clima defesta, a gente pode mostrar o que é e ser admirado,porque afinal de contas não é a pessoa que estáfazendo ou dizendo aquelas coisas, é o orixá.

Entrevista de Pierre Verger por Maria JoséQuadros publicada no jornal O Globo 16/08/1992.

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Para não dizer que não falamosdos irmãos índigenas

Ninguém duvida da importância das cunhadas para a Maçonaria. Elas são a porta de entrada para ainstituição e muito mais que o braço filantrópico da Ordem: as cunhadas são a perfeita metade de nossaunião e a cúmplice insubstituível de nossa utopia. Elas nos cercam: as cunhadas estão atrás, ao lado e àfrente do nosso projeto de aperfeiçoamento. Sem elas, nem a Maçonaria nem a Humanidade teriamfuturo.

Para o polêmico antropólogo, educador e escritor Darci Ribeiro, sem as cunhadas o Brasil não existiria.Cito: “A instituição social que possibilitou a formação do povo brasileiro foi o cunhadismo, velho uso

indígena de incorporar estranhos à sua comunidade. Assim que ele a assumisse, estabelecia,automaticamente, mil laços que o aparentavam com todos os membros do grupo.”

Tornando-se marido, o estrangeiro passava a fazer parte da sociedade nativa, pois tornava-se parentede todos os membros da comunidade: “Isso se alcançava graças ao sistema de parentesco classificatóriodos índios, que relaciona, uns com os outros, todos os membros de um povo. Assim é que, aceitando amoça, o estranho passava a ter nela sua temericó e, em todos os seus parentes da geração dos pais,outros tantos pais ou sogros. O mesmo ocorria em sua própria geração, em que todos passavam a serseus irmãos ou cunhados. Na geração inferior eram todos seus filhos ou genros”, escreve Darcy Ribeiro.

“Sem a prática do cunhadismo, era impraticável a criação do Brasil. Os povoadores europeus que aquivieram ter eram uns poucos náufragos e degredados, deixados pelas naus da descoberta, ou marinheirosfugidos para aventurar vida nova entre os índios. Por si sós, teriam sido uma erupção passageira da costaatlântica, toda povoada por grupos indígenas”, continua o antropólogo.

Um exemplo é João Ramalho, “fundador da paulistinidade”, “muito aparentado com os índios”, tãopoderoso que, em 1553, era capaz de levantar, cinco mil índios de guerra, enquanto todo o governoportuguês da época não conseguiria dois mil.

Diogo Álvares Correia, o Caramuru, “pai heráldico dos baianos”. Náufrago, ele foi bem acolhido pelosíndios Tupinambás, cujo morubixaba Taparica lhe deu uma das filhas, Paraguaçu. Ele se fixou na regiãoem 1510 cercado de sua numerosa família indígena e se converteu na base essencial da instalação portuguesana Bahia.

O processo foi o mesmo em Pernambuco, onde vários portugueses de “acunhadaram” com os índiosTabajaras, inclusive Jerônimo de Albuquerque, grande capitão de guerra na luta da conquista do Maranhãoocupado pelos franceses. Aliás, os franceses se acunhadaram com os Tamoios para tentar fundar a FrançaAntártica, na Ilha do Governador.

Os índios brasileiros pagaram caro por essa hospitalidade. Esgotado o ciclo do cunhadismo, oscolonizadores passaram às guerras de captura dos seus ex-parentes como mão-de-obra para seu projetomercantilista, até levá-los à beira do extermínio.

Talvez seja preciso inventar uma nova forma de cunhadismo. Ou talvez ele já exista. O certo é que,hoje, mais do que nunca, o mundo inteiro precisa das cunhadas Liberdade, Igualdade e Fraternidade.Sem elas, a tribo humana corre perigo de extinção.

Fonte: Darcy Ribeiro. O povo brasileiro. A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhiadas Letras, 1995, pp. 81-86.

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Guile Xangô conta que a equipe de TV invadiu o salão doHotel Fazenda Fonte Nova com luz câmera microfoneempáfia, e a repórter não disse bom dia boa tarde como vai,foi logo metralhando perguntas o senhor é o Barão, foi o senhorBarão que encontrou os corpos trucidados no chalé, foramseus empregados, seus seguranças participaram, foi o senhorque deu ordens para o massacre?

Maximiliano Álvares de Albuquerque, o Barão, afirmouque a repórter não passava de uma atrevida mal-educada eque deveria se retirar das dependências do hotel, ela e suaturma, naquele exato momento, porque a porta da rua era aserventia da casa. Declarou que não entendia aquela barulheiratoda por causa de meia dúzia de vagabundos e que, na suaregião, nas terras dele, o costume era cortar o mal pela raiz, oúltimo gatuno saiu dali com os próprios pés, mas sem as mãos,e todos viviam na santa paz de Deus há mais de 50 anos.

A repórter insistiu, parecia chuva, e fazia muito tempo quenão chovia por ali, como aconteceu, quando aconteceu, porque aconteceu e, se o senhor Barão não foi o mandante, porque deixou acontecer já que era dono e senhor do pedaço?O Barão confessou que não sujava mão com tão pouca tinta;e a repórter insistiu quem matou os meninos; e o Barão seencrespou, não eram meninos, eram bandidos, e com certezaeles próprios se mataram, bandidos são capazes de tudo,antes eles do que eu. E a lei, perguntou a repórter; eu sou alei, respondeu o Barão; e a repórter: e a justiça; e o Barão: eusou a justiça; e a repórter: então o senhor Barão concordacomigo que fez justiça com as próprias mãos; e o Barão: ajustiça é cega, sempre foi, e eu não vi nada, não sei nada, nãovi nada; e a repórter: mas não é muda, e eu sei que para osenhor Barão tanta faz seis ou meia dúzia, tudo bem, o senhorBarão já disse o que eu queria ouvir. E o senhor Barão, sepoliciando para não pular no pescoço da atrevida: eu nãodisse nada, a senhora é quem está dizendo, e dizendo asneira,isso é uma entrevista ou um tribunal; e a repórter: é umaentrevista, e bastante reveladora; e o Barão: a senhora estáfazendo muita pipoca com muito pouco milho; e a repórter:se vamos falar de milho, é de grão em grão que a galinhaenche o papo; e o Barão, triunfante: a senhora deve ser galinhapara entender desse assunto; e a repórter, gritante: terminoua entrevista, tubarão de araque, a gente se vê no tribunal.

O Barão bateu com a bengala no tampo da mesa, ritmandoa debandada da turba. Um garoto trêmulo veio trazendo umagarrafa de água mineral e uma batelada de pílulas. O Barão:quem pediu isso, quero conhaque, conhaque, e manda selaro Zelão. E o garoto: mas o doutor avisou que o senhor não

Os deznegrinhos

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pode. E eu quero saber lá do que o doutor diz quepode ou não pode, disse o Barão, arremessando abengala contra o garoto, que se desviou, pegou abengala no ar, colocou a bengala sobre a mesa, forade alcance. Você já está um homem, Tavinho, disseo Barão, furioso e surpreso, faz o que eu mando, éo melhor para a nossa saúde.

O Barão já estava no segundo conhaque quandoo Pedro Paladino entrou acompanhado do Cigano.Você se encrencou com aquele pessoal da TV, dissePedro Paladino, eu dei ordens para você ficarcalado, só falar na minha presença. E quem é vocêpara me dar ordens, moleque, disse o Barão, vocêdevia era estar cuidando pra que repórter nenhumviesse fuçar por aqui, mas nem isso você consegueimpedir, e olha que eu lhe pago muito bem pra vocêcuidar dos meus assuntos. A morte dos meninos nãovai ajudar em nada, pelo contrário, só vai complicaros seus assuntos, disse Pedro Paladino. A morte debandidos não tem nada a ver com minhas terras,disse o Barão. Você pode até pensar assim, masescuta o que eu vou lhe dizer, eles vão cortar a suacabeça, vão acabar com você, disse Pedro Paladino.Isso não vai acontecer, disse o Barão, se levantandopara pegar a bengala, e você vai continuar aí fechadoem copas, Cigano? Os tempos mudaram, disse oCigano. Os tempos mudaram e você só faz merda,Cigano, disse o Barão, some daqui, desinfeta, tiraumas férias. Dinossauros, resmungou PedroPaladino. Fala alto pra gente ouvir, disse o Barão.Eu estava aqui pensando que a extinção atual dasespécies vivas do nosso planeta é um fenômenonatural que se inscreve no quadro do processo daevolução, mas, contudo, todavia, devido àsatividades humanas, as espécies e os ecossistemassão hoje objeto de ameaças mais graves do que emqualquer outra época histórica, disse Pedro Paladino,engolindo de uma dose generosa de conhaque. OZelão tá selado, disse Tavinho. Você vem comigo,disse o Barão para Pedro Paladino, você está muitogordo, cevado, aproveita pra fazer um pouco deexercício e me contar as novidades. Você paga, vocêmanda, eu obedeço, disse Pedro Paladino, mascuidado pra não cair do cavalo.

Do alto do cavalo, o Barão ouvia a tagarelice doPedro Paladino, hipotecas, ações, liminares,testamentos, projetos de regularização fundiária emáreas de propriedade da União, títulos, cadastros,disposições constitucionais transitórias, causasimpeditivas ou suspensivas, ascendentes edescendentes, tutela e curatela, novo código civil,senilidade. Traduz esse grego, pediu o Barão. Ogoverno federal quer distribuir suas terras para oscamponeses, disse Pedro Paladino, bebendoconhaque no gargalo, o governo estadual quer fazerdaqui um clube campestre para seus funcionários, ogoverno municipal cobiça a área para construir casaspopulares, os empresários têm planos de inauguraruma escola de futebol e seus filhos legítimos estãobatalhando duro pra botar você num asilo sob aalegação de senilidade, entre outras coisas menosdignas, e depois arrancar algum trocado do governofederal ou do estadual ou do municipal ou dosempresários, se possível de todos, isso sem falar

nos seus sobrinhos e netos que também querem umpedaço do bolo, quer dizer, você continua umexcelente partido, e aconselho você a se casar comuma beldade de vinte anos, trinta no máximo, umabalzaca bacanuda, fazer alguns filhos nela, se possívelcom a minha ajuda, estou pronto pra isso, sou umhomem de boa vontade, um homem justo, e acreditoque você merece uma família melhor no pouco futuroque lhe resta nesse mundo cruel. Acabou, perguntouo Barão. Acabei, disse Pedro Paladino.

Você não tem novidade, disse o Barão, agora medeixa e vai pastar, um conhaque dessa qualidadenão se bebe no gargalo. Bom passeio, patrão, dissePedro Paladino, você devia ir a Machu Picchu, asruínas de lá são bem melhores, sei, sei, não precisagritar, você não quer manter relações com arealidade, eu entendo, vai nessa.

O Barão trotou por seus domínios imaginários.Nada ali, agora, era real. Tinha existido uma fazendacom candelabros, pratarias, um cravo, três pianos,canapés, vasos, namoradeiras de palhinha, retratosnas paredes, lembranças de um passado grandiosoque se movia no tempo, a visita do Imperador D.Pedro II se transformando na visita do ditador GetúlioVargas e provavelmente nenhuma das duas visitasera verdadeira, apenas mentiras de prestígio. Umatípica fazenda de café, hortaliças, pomar dejabuticabas, e mangueiras, goiabeiras, abacateiros,mamoeiros e pés de jambo, tamarindo, carambola,jamelão, amora e grumixama, um imenso jataí, umaesplendorosa sapucaia. Porcos, cavalos, bois,vacas, cabritos, muitos cabritos, era a Fazenda dosCabritos. As terras se espalhando em morros meia-laranja, aráveis a um alto custo e baixa produtividade,e só na base da tração animal.

A fazenda era um pouso natural para os viajantes.Com a chegada dos tempos difíceis, as despesaseram grandes, a família começou a cobrar uma taxade pernoite, e o pouso virou pousada, depoispensão familiar, hotel, hotel fazenda. Deu certoaproveitar as fontes, as cachoeiras, a água farta, e onegócio cresceu. Piscinas, saunas, quadras de tênis,campos de futebol, lagos para pesca, açudes,cavalos, salões de jogos, uma pista de aviação.

Nada daquela herança era fruto do seu suor, doseu tino comercial, de sua visão de administrador.O Barão se comprazia em exibir seu porte atléticopelas piscinas, a dar aulas de tênis e de equitação àshóspedes mais atraentes, animar as festas, bancarjogadas e jogatinas. Foi a sua fase gloriosa einconseqüente de pavão juvenil. Com o passar dotempo, deu-se o papel de agitador cultural, derelações públicas. As chegadas eram alegres e aspartidas melancólicas, os shows inesquecíveis, a vidaboa. Todos os irmãos, cinco homens e quatromulheres, casaram-se com hóspedes. As cerimôniasde casamento eram realizadas no salão principal,com muita pompa e circunstância, padrinhos ricos,convidados poderosos. O seu casamento foi na beirada piscina central.

Vieram os nascimentos e as mortes, mas a vidacontinuava. Até que as fontes secaram, as cachoeirasviraram barrancos, e o fim do hotel fazenda coincidiucom o fim da família. Fonte Nova caiu no seu colo

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e, de centro do mundo, passou a ser periferia. Omato tomou conta das quadras, dos campos, aspiscinas viraram esgoto, e tome mofo, decadência,sombras, fantasmas, silêncio, ruínas. Nenhuma aviãodescia mais daquele céu vazio. Agora queriam varrersuas memórias, mas só passando por cima do seucadáver. Morreria sem deixar rastros. Não ficariacomo nome de avenida, de praça, de escola, declube, de conjunto habitacional, de bairro pobre.Lutaria até o fim, até o esquecimento total.

Veio trotando de volta para o hotel, o vento nocapim, bandos de anuns, urubus no céu morto.Cruzou com quatro trabalhadores que aindatentavam conservar alguma coisa contra o cupim dotempo, uma tarefa inútil. O velho Cigano, pau paratoda obra, limpava a única piscina ainda emcondições de funcionamento. A água vinha emcaminhões-tanque e era nela que dava as suasbraçadas diárias, ainda tinha orgulho de sua formafísica, não se entregaria sem luta. Cigano ergueu amão em saudação, o corpo em posição militar, aarma na cintura, seu eterno guarda-costas. Deviaestar longe daqui, mas continuava visível, como senada tivesse acontecido, cabeça dura. Acenou devolta e continuou seu trote. Falaria com Ciganoquando tudo se acalmasse, mas já sabia a respostada pergunta que lhe faria, o Cigano era homem deuma palavra só e praticamente era tudo o que lherestava como família. Não devia ter gritado:desinfeta. Na verdade, nada tinha acontecido.

Entregou o Zelão aos cuidados de Tavinho e subiupara seu quarto. Não demorou a adormecer. Semprefoi bom de cama e já não lembrava mais quando seacostumou com o fato de ser o único hóspede doseu próprio hotel. Preciso mandar o Cigano limparo chalé, pensou o Barão, jogar gasolina, tacar fogo,fogo lava melhor que água. O sono veio como umaredenção, tacar fogo em tudo, lá da cidade elesveriam o grande incêndio.

Relutou durante uma semana, não vou, quem nãodeve não teme, mas o incômodo do carro de políciaparado na porta do hotel, dias seguidos, venceu suateimosia. Vou no meu cavalo, disse o Barão. E foi,montado no Zelão, seguido pelo carro do PedroPaladino. Apeou na porta da delegacia para serrecebido por uma pequena multidão que lhe gritavaassassino, assassino, e abriu caminho a bengala erebenque, rejeitando a proteção dos policiais, vocêsnão precisam me proteger, eu sei me defender daplebe, protejam essa súcia de vadios, malta devagabundos.

A delegada recebeu Maximiliano Álvares deAlbuquerque com o olhar curioso de quem examinauma relíquia. Sente-se, e ele sentou com umdesconforto de colegial. O senhor conhece o cidadãoRogério Rodrigues dos Santos, ex-fuzileiro naval?Não conheço. Ele é seu empregado há 30 anos.Não tenho empregado com esse nome. E o nomeCigano lhe diz alguma coisa? Esse é meu empregado.Não sabia que Rogério Rodrigues dos Santos eCigano são a mesma pessoa? Não sabia. Existemoutros detalhes que o senhor desconhece? Nãopresto atenção em detalhes, e a senhora? Quem faz

as perguntas aqui sou eu. O Cigano está preso? Jálhe disse que sou eu que faço as perguntas.

A delegada mostrou imagens dos corpos dosjovens assassinados, ia apresentando as fotos comose estivesse jogando cartas, um jogo de pôquer. Nãotenho nada a ver com esses vagabundos, disse oBarão. Não eram vagabundos, senhor Maximiliano,eram todos trabalhadores, quatro deles trabalhavame estudavam, e só tiveram a infelicidade de acharque sua propriedade estava abandonada e pernoitarem um dos seus chalés num feriado prolongado. Omundo não vai acabar por causa de meia dúzia denegros, disse o Barão. Há quanto tempo, senhorBarão, se me permite lhe chamar pelo vulgo, háquanto tempo o senhor não sai de sua propriedade?Nunca saí, sempre vivi lá, disse o Barão, é o mundo,meu mundo, não preciso de mais nada. Precisa sim,senhor Barão, disse a delegada, o senhor não é a

lei, o senhor não é a justiça,o senhor não é o dono domundo, o senhor precisaresponder pelos seusdesmandos.

Depois de quatro horasde interrogatório, o Barãonão quis saber de cavalo.Voltou no carro de PedroPaladino e não reagiuquando a multidão recebeusua figura abatida comgritos de assassino,assassino.

Aboletou-se na velhacadeira de balanço e, davaranda do hotel, deixouseu olhar se perder nosespaços vazios, nassombras. Eu não quero serpreso, disse o Barão. Vaisobrar pro Cigano, a cordasempre rebenta do ladomais fraco, disse PedroPaladino. Se eu for preso,quero que você consigaminha prisão domiciliar,disse o Barão. Vocêsempre gostou demordomia, Barão, tudobem, disse PedroPaladino, mas, seexpulsarem você daqui, omundo inteiro vai ser a suadesgraça, aí não vai fazerdiferença se você vaimofar num asilo ou numacela de prisão.

Tavinho veio lá dedentro com uma garrafa deconhaque e duas taças.

Não sei se você notou,Barão, mas os setemeninos mortos eramnegros, a repórter que te

entrevistou é negra, a delegada é negra, eu não sounada branco, disse Pedro Paladino.

Bobagem, o avô do meu pai, meu bisavô, overdadeiro Barão, era como eu fui um dia, umhomem alegre, amante dos prazeres da vida, dovinho, do conhaque, do jogo, das mulheres, elegostava de ficar numa roda de meninos negros, decontar histórias pra eles, de puxar pelas rédeas umcavalo levando uma penca de negrinhos a passeio equando foi decretada a Abolição todos os escravosdecidiram ficar aqui nessa fazenda, eles acharam quea Abolição foi um péssimo negócio, disse o Barão.

Muito bonito o que você diz, Barão, disse PedroPaladino, mas vai com calma, o mundo mudou, ahistória é outra, não dá mais para continuar abolindonegros.

Francisco Maciel