a trama de vínculos na história de um representante sindical

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Apresentamos a hipótese de que o modelo democrático representativo, quando aplicado a grupos e organizações, pode cumprir a função psíquica de intermediário entre o desejo dos membros de evitar o estabelecimento de um vínculo tirânico como líder e, ao mesmo tempo, evitar os conflitos da convivência. Para abordar o tema, utilizamos o método de entrevista de história de vida, tendo como sujeito de pesquisa um sindicalista que, por 20 anos seguidos, atuou em um sindicato ligado à justiça federal do estado de São Paulo. A presente pesquisa tinha como objetivo refletir sobre o lugar do representante no grupo, em oposição ao lugar de líder. A partir dos dados obtidos, foi possível levantar a hipótese de que, enquanto o líder está investido em seu Eu Narcísico e onipotente, o representante identifica seu Ideal do Eu com os ideais do grupo, podendo postergar a satisfação de seus ideais em troca de ser reconhecido pelo grupo. Assim, o líder, ao receber uma transferência narcísica do grupo, pode pretender retomar o lugar do Pai da horda e, através da violência ou da sedução, exigir para si uma parcela quase total de poder. O representante, por outro lado, assume um lugar de tabu, recebendo uma transferência de poder para exercer funções típicas do papel de intermediário, mas, nesse caso, o grupo mantém o poder de destitui-lo de seu papel e massacrá-lo (mesmo que simbolicamente). No caso estudado, pudemos observar o sindicalista entrevistado exercendo esse papel de representante, a partir de posições que se repetiram ao longo de sua vida. Ocupou, a nosso ver, o papel de intermediário entre as pressões do momento democrático que o país viveu em 1988/1989 e os ideais autocráticos dos partidos de esquerda, que aqui representaram o grupo que buscava um vínculo tirânico em relação à categoria. O entrevistado viu se enredado em uma trama de vínculos e na repetição de rituais que terminaram em uma crise que levou à sua ruptura com o grupo. Tal ruptura o levou a uma posição de ostracismo e lhe causou um intenso sofrimento, que o levou a uma depressão.

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  • 5/21/2018 A trama de v nculos na hist ria de um representante sindical

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    INSTITUTO DE PSICOLOGIA

    AUGUSTO DUTRA GALERY

    A trama de vnculos na histria de umrepresentante sindical

    So Paulo2014

  • 5/21/2018 A trama de v nculos na hist ria de um representante sindical

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    AUGUSTO DUTRA GALERY

    A trama de vnculos na histria de um representantesindical

    (Verso Corrigida)

    Tese apresentada ao Instituto dePsicologia da Universidade de So

    Paulo, como parte dos requisitos para

    obteno do grau de Doutor em

    Psicologia

    rea de concentrao: Psicologia Social

    Orientadora: Prof Maria Ins Assumpo

    Fernandes

    So Paulo2014

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    Nome: Galery, Augusto Dutra

    Ttulo: A trama de vnculos na histria de um representante sindical

    Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de

    So Paulo para obteno do grau de Doutor em Psicologia

    Aprovado em:

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. ____________________________________________________________

    Instituio: ________________________ Assinatura: ________________________

    Prof. Dr. ____________________________________________________________

    Instituio: ________________________ Assinatura: ________________________

    Prof. Dr. ____________________________________________________________

    Instituio: ________________________ Assinatura: ________________________

    Prof. Dr. ____________________________________________________________

    Instituio: ________________________ Assinatura: ________________________

    Prof. Dr. ____________________________________________________________

    Instituio: ________________________ Assinatura: ________________________

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    memria de Jos Marcos Galery,Antnio Marra e Orville Alves.

    presena de Beatriz Galery, Ana Greine Eunice Galery

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo Prof. Dr. Maria Ins Fernandes, pela orientao cuidadosa, que

    consegue ser, ao mesmo tempo, exigente e respeitosa, rigorosa nos conceitos eatenciosa nas emoes.

    Ao Prof. Dr. Jos Newton Arajo, que est sempre presente, mesmo quando longe,auxiliando meu percurso acadmico e oferecendo sua amizade.

    Ao Prof. Dr. Paulo de Salles Oliveira, por proporcionar uma reflexo profunda dasteorias e do campo em minha pesquisa.

    Ao Dr. Robson Colosio, que sempre me recebeu de portas abertas no Lapso, paracompartilhar angstias, dvidas e conceitos. Tambm doce Dr. Eliane Costa e

    demais amigos do Lapso, pela acolhida na USP. Dr. Miriam Hermeto, que me guiou pelas trilhas da Histria Oral e cuja amizaderemonta a eras quase primevas...

    querida Natlia Alves, companheira de percurso, amiga incondicional.

    A todos os meus familiares, em especial a meus sobrinhos Lorena, Pedro, Felipe eJulia, cujas conquistas me enchem de orgulho.

    Aos sempre presentes mesmo quando distantes amigos Bel Bechara e SandroSerpa; Edson Barbero, Lilian e Rafael; Mauro Frysman, Rose e Esther; Raquel

    Madanelo e Fred Selvagem; e San Magalhaes.

    Ao Instituto Rodrigo Mendes e toda sua equipe - Adauto, Aline, Andrea, Daniela,Deda, Evellyn, Fatima, Fran, Guilherme, Joice, Luiz Henrique, Lula, Regina eTabata, com um agradecimento especial a Rodrigo Mendes.

    Ao Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia daUniversidade de So Paulo, com especial carinho a Nalva Gil e Rosngela Segaki.

    Rosangela Santos, que cuida de ns.

    Ruth Levisky, Cia Ramos e Graa Cunha, pelo caminhar.

    Ana Paula Lopes, que me apresentou s organizaes estudadas.

    Meus agradecimentos mais do que especiais a Dmerson Dias pelocompanheirismo.

    Agradeo, por fim, Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior(CAPES), pela concesso de bolsa de doutorado e apoio financeiro para arealizao do presente trabalho.

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    RESUMO

    Galery, A. D. (2014). A trama de vnculos na histria de um representante sindical.

    Tese de doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, SoPaulo.

    Apresentamos a hiptese de que o modelo democrtico representativo, quandoaplicado a grupos e organizaes, pode cumprir a funo psquica de intermedirioentre o desejo dos membros de evitar o estabelecimento de um vnculo tirnico como lder e, ao mesmo tempo, evitar os conflitos da convivncia. Para abordar o tema,

    utilizamos o mtodo de entrevista de histria de vida, tendo como sujeito de pesquisaum sindicalista que, por 20 anos seguidos, atuou em um sindicato ligado justiafederal do estado de So Paulo. A presente pesquisa tinha como objetivo refletir sobreo lugar do representante no grupo, em oposio ao lugar de lder. A partir dos dadosobtidos, foi possvel levantar a hiptese de que, enquanto o lder est investido emseu Eu Narcsico e onipotente, o representante identifica seu Ideal do Eu com os ideaisdo grupo, podendo postergar a satisfao de seus ideais em troca de ser reconhecidopelo grupo. Assim, o lder, ao receber uma transferncia narcsica do grupo, podepretender retomar o lugar do Pai da horda e, atravs da violncia ou da seduo, exigirpara si uma parcela quase total de poder. O representante, por outro lado, assume

    um lugar de tabu, recebendo uma transferncia de poder para exercer funes tpicasdo papel de intermedirio, mas, nesse caso, o grupo mantm o poder de destitui-lo deseu papel e massacr-lo (mesmo que simbolicamente). No caso estudado, pudemosobservar o sindicalista entrevistado exercendo esse papel de representante, a partirde posies que se repetiram ao longo de sua vida. Ocupou, a nosso ver, o papel deintermedirio entre as presses do momento democrtico que o pas viveu em1988/1989 e os ideais autocrticos dos partidos de esquerda, que aqui representaramo grupo que buscava um vnculo tirnico em relao categoria. O entrevistado viu-se enredado em uma trama de vnculos e na repetio de rituais que terminaram em

    uma crise que levou sua ruptura com o grupo. Tal ruptura o levou a uma posio deostracismo e lhe causou um intenso sofrimento, que o levou a uma depresso.

    Palavras-chave: vnculo, representante, sindicato, Ren Kas, Eugne Enriquez

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    ABSTRACT

    Galery, A. D. (2014). The web of bonds in the history of a Trade Union representative.

    Tese de doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, SoPaulo.

    We present the hypothesis that the representative democratic model, when applied togroups and organizations, can meet the psychic role of intermediary between thedesire of members to avoid the establishment of a tyrannical relationship with theleader and, at the same time, avoid conflicts of coexistence. To address this issue, weused the method of life history interview, and as a research subject, a union traderepresentative that for 20 straight years, worked in a union linked to the federal courtsof the state of So Paulo. This research aimed to reflect on the place of therepresentative in the group, as opposed to the place of leader. From the data obtained,it was possible to hypothesize that while the leader is invested in his narcissistic andomnipotent ego, the representative identifies his Ideal Ego with the ideals of the group,may postpone the fulfillment of his ideals in exchange for being recognized by thegroup. Thus, the leader receives a narcissistic transference from the group; he maywant to regain the place of the Father of the horde, through violence or seduction,demanding for himself an almost total share of power. The representative , on the otherhand, assumes a place of taboo , receiving a transfer of power to perform typicalfunctions of an intermediary role , but in this case , the group has the power to deposehim from his paper and slay him (even symbolically) . In our case, we observed therespondent exercising this role, from positions that were repeated throughout his life.He occupied, in our point of view, the role of intermediary between the pressures ofdemocratic moment that the country experienced in 1988/1989 and the autocraticideals of the Left parties, which represented here the group that seeks a tyrannical linkwith the category. The respondent found himself entangled in a web of bonds and therepetition of rituals that ended in a crisis that led to his departure from the group. Thisrupture led him to a position of ostracism and caused him intense suffering, which ledto a depression.

    Keywords: bond, representative, Union Trade, Ren Kas, Eugne Enriquez

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    RSUM

    Galery, A. D. (2014). La trame des liens dans lhistoire dun reprsentant syndical.

    Tese de doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, SoPaulo.

    On part de lhypothseque le modle dmocratique reprsentatif, quand il est appliqu des groupes et des organisations, peut accomplir la fonction psychiquedintermdiaire entrele dsir des membres dviter ltablissement dun lien tiranniqueavec le leader et, la fois, dviter les conflits de la convivialit. Pour approcher cesujet, on a employ la mthode de linterview sur lhistoire de vie, ayant comme sujetde recherche un syndicaliste qui, pendant 20 ans de suite, a agi dans un syndicat li la justice fdrale de lEtat de So Paulo. Cette recherche avait pour but de reflchirsur la place du reprsentant dans le groupe, en opposition la place de leader. A partirdes donnes recueillies, il a t possible de dresser lhypothse selon laquelle, tandisque le leaderest investi dans son Moi Narcisique et tout-puisssant, le reprsentantidentifie son Idal du Moi avec les idaux du groupe, pouvant mme ajourner lasatisfaction de ses idaux en change dtre reconnu par le groupe. Ainsi, le leader,en recevant un transfert narcisique du groupe, peut vouloir reprendre la place du Prede la horde et, travers la violence ou la sduction, exiger pour lui-mme une parcellequasi totale de pouvoir. Dun autre ct, le reprsentant assume une place de tabou,en recevant un transfert de pouvoir pour exercer les fonctions typiques du rledintermdiaire, mais, dans ce cas-l, le groupe maintient le pouvoir de le destituer deson rle et de le massacrer (mme symboliquement). Dans le cas tudi, on a puobserver le syndicaliste interview en exerant ce rle de reprsentant, partir depositions qui se sont rptes le long de sa vie. A notre avis, il a occup le rledintermdiaire entre les pressios du moment dmocratique que le pays a vcu entre1988/1989 et les idaux autocratiques des partis de gauche, qui ont reprsent, ici, legroupe qui cherchait un lien tyrannique par rapport la catgorie. Linterview sest vupris dans une trame de lien et dans la rptitions de rituels qui ont fini par une crisequi a provoqu sa rupture avec le groupe. Pourtant, cette rupture la men uneposition dostracisme qui lui a provoqu une telle souffrance quil en a fait unedpression.

    Mot-cls : lien, reprsentant, syndicat, Ren Kas, Eugne Enriquez

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    SUMRIO

    Apresentao............................................................................................................. 9

    CAPTULO I.Uma hiptese sobre a Democracia Representativa ........................ 14

    A. Protossociedades ........................................................................................... 15

    B. Sobre o vnculo grupal na perspectiva psicossociolgica ............................... 23

    C. Psicossociologia e democracia ....................................................................... 31

    D. O lugar do sujeito singular, o lugar do representante, o lugar do grupo ......... 39

    E. Uma distino entre lder e representante ...................................................... 51

    CAPTULO II. Sindicatos e representao poltica ............................................... 53

    A. As instncias de anlise de E. Enriquez ......................................................... 53

    CAPTULO III. Um representante sindical: entrevista de histria de vida .......... 87

    A. Histria oral e entrevista de histria de vida ................................................... 88

    B. A histria do representante ............................................................................. 96

    CAPTULO IV.Consideraes finais .................................................................... 149

    A. Sobre o contexto .......................................................................................... 154

    B. Sobre as entrevistas ..................................................................................... 159

    Bibliografia ............................................................................................................ 165

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    Apresentao

    As relaes entre a constituio dos vnculos grupais e as redes de poder,

    dentro de grupos organizados, nos parecem resultantes de tramas complexas. Opoder um lugar1atravessado por mitos, crenas, ideologias, pela histria dos grupos

    e pelo contexto poltico e social que os envolve. Para Barus-Michel e Enriquez, o

    poder, como o amor ou o prazer, parece indefinvel, a despeito, ou por causa, do uso

    que cada um faz dele na vida cotidiana (Barus-Michel & Enriquez, Pouvoir, 2002, p.

    212). Tais autores tratam do poder como a capacidade de impor sua vontade a outro

    (p. 212). Ainda de acordo com eles, como a deteno do poder exalta o narcisismo e

    oferece privilgios e benefcios psicolgicos e materiais, bem alm de suanecessidade funcional, natural [ao homem] evitar ser desapropriado e de conserv-

    lo por todos os meios (p. 213). possvel concluir dessa fala, portanto, que o poder

    ser uma potencial fonte de conflitos dentro do grupo.

    Ao tratarmos do poder, podemos pensar em termos macropolticos, como as

    constituies das sociedades, os pactos e contratos sociais que fundam os Estados e

    regimes. No entanto, certo afirmar que as microestruturas, como as organizaes

    empresariais, comunitrias e sindicais, tambm esto sujeitas a relaes de poder.

    Para Barus-Michel e Enriquez, o [poder] que ilustrado nas sociedades, encontrado

    em grupos e organizaes, colocando, no entanto, problemas especficos (p. 215).

    Se acreditarmos que o poder atravessa as relaes grupais, possvel

    entend-las como parte do vnculo que se estabelece entre seus membros. O grupo,

    portanto, cria formas de constituir o poder, sustent-lo & lutar contra a dominao,

    deixar-se seduzir ou us-lo como lei, mito etc., dando apoio, estabilidade, estrutura.

    O presente estudo deseja focar-se em um modelo de resoluo da questo do

    poder dentro dos grupos: a democracia representativa. Tal modelo mtico de criao

    e institucionalizao dos grupos, que elegem seus representantes para mandatos de

    tempo fixo, se afigura como um campo interessante para auxiliar na reflexo sobre os

    modos de convivncia entre seus membros e de transferncia de poder. Queremos

    1Apesar de reconhecer que alguns autores diferenciam os conceitos de lugar e papel, no iremos nosaprofundar nessa questo, no presente trabalho; consideraremos, de forma simplria, que os papis soassumidos pelos sujeitos do grupo, enquanto que os lugares so criados pelo grupo para serem ocupados.

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    entender as implicaes do uso desse sistema sobre e a partir do vnculo grupal e

    quais as especificidades dos lugares de poder numa organizao que tenha escolhido

    tal paradigma. Queremos tambm ir alm das consequncias concretas da

    democracia representativa para refletir sobre as implicaes intersubjetivas de tal

    sistema.

    A partir de nossas experincias em pesquisas e intervenes anteriores, tanto

    em organizaes sindicais quanto pblicas, formamos uma primeira noo de que

    existem diferenas entre o sujeito que busca a manuteno do poder que exalta o

    narcisismo e oferece privilgios e benefcios psicolgicos e materiais (como vimos

    acima) e aquele que, dentro de uma instituio democrtica, busca representar seuseleitores. Este foi o nosso interesse na presente pesquisa: refletir sobre o

    representante eleito.

    Para tanto, escolhemos como campo terico, dentro da rea da psicologia

    social, o estudo dos vnculos, campo que tem, entre seus principais tericos, E.

    Pichon-Riviere, W. R. Bion e outros. Apesar da importncia desses e de outros autores

    que tratam o assunto, proporemos um recorte para estudar o vnculo a partir da

    perspectiva de dois autores: Eugne Enriquez e Ren Kas.

    Enriquez trata o conceito de vnculo grupal, dentro de sua obra, como uma

    instncia para a anlise das organizaes. O tema central sua obra que busca unir

    sociologia as teses da psicanlise. Ele afirma: as cincias sociais e a psicanlise

    tem o mesmo objeto de estudo: a criao e a evoluo do vnculo social (Enriquez,

    1997, p. 17). especialmente interessante, para o presente trabalho, as relaes que

    Enriquez tece entre a instituio do vnculo grupal e a luta pelo poder, elemento que

    tambm aparece como essencial sua teoria (Enriquez, 1997, p. 57).

    J Kas trar um novo elemento para tratar do vnculo: a ideia de alianas

    inconscientes, cuja trama compe os vnculos intersubjetivos. Impacto importante

    para nosso trabalho, esse autor defender (assim como outros) a ideia de que no h

    sujeito fora do grupo, o que significa que o lder, ao contrrio do que possa aparentar

    uma primeira leitura da obra freudiana, ocupa um lugar nos pactos e alianas que

    garantido pelo grupo. Dessa forma, possvel pensar nos fenmenos de poder dentro

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    de uma lgica intersubjetiva. Nesse sentido, estudar o lder e o representante

    estudar uma trama de vnculos que garante esse espao e o legitima.

    Para o caso que nos dispusemos a estudar, as relaes entre o mitodemocrtico e a rede de vnculos se torna bastante importante. A democracia nos

    grupos um campo que j foi abordado por diversos autores (com destaque para os

    trabalhos de dinmica de grupo de K. Lewin), mas privilegiamos aqui a viso de S.

    Freud, E. Enriquez, J. Barus-Michel e R. Kas para explor-lo, deciso que considerou

    a congruncia terica, j que os trs ltimos autores propem-se a trabalhar

    considerando a hiptese do primeiro.

    medida em que aprofundamos nossa leitura nas teorias propostas e a

    comparamos histria de vida de nosso entrevistado, nosso objetivo

    consequentemente se guiou para diferenciar o lugar do lder e o do representante.

    Freud se preocupava com o fenmeno da liderana dentro de um contexto continental

    em que as liberdades eram ameaadas e os Estados guerreavam. Se, no texto de

    1913, ele ainda se apresenta otimista com a vitria dos irmos que abriria a

    possibilidade de uma sociedade sem pai, as duas grandes guerras que se seguiriam

    fariam seu interesse se guiar para um determinado tipo de lder, capaz de mover as

    massas como que hipnotizadas. Atualmente, parece-nos necessrio voltar nosso

    olhar para as organizaes democrticas, onde os grupos que as constituem buscam

    criar mecanismos para impedir que seja tiranizado por um indivduo ou pequeno

    grupo. Como esse grupo lidar com a transferncia de poder e como o depositrio

    desse poder lidar com o grupo so questes que nos colocamos.

    Para estudar tal fenmeno, optamos por realizar uma entrevista de histria de

    vida com um sujeito que, durante 20 anos, ocupou cargos como representante eleito

    em entidades sindicais ligadas justia federal. Seu depoimento fortaleceu nossa

    hiptese de que o lder freudiano e esse representante ocupam lugares diferentes

    dentro da trama vincular mtica, institucional e scio-histrica que compe a

    organizao estudada.

    A partir da, pudemos definir nosso objetivo como:

    Estudar o lugar do representante na trama vincular de um grupo organizado

    democraticamente, a partir da histria de vida de um coordenador sindical.

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    Como objetivos especficos, tambm buscamos:

    Refletir teoricamente sobre o lugar de representante frente aos mitos de

    formao do vnculo, a partir do contexto das entrevistas;

    Refletir sobre como o contexto scio-histrico influenciou a viso do

    entrevistado em relao s organizaes das quais fez parte e a seu papel

    nelas;

    Refletir sobre as relaes que o entrevistado fez entre sua posio de

    representante e seu sofrimento psquico.

    A discusso terica do prximo captulo do presente trabalho se centrar na

    hiptese de que a democracia representativa pode cumprir esse lugar de evitar a

    investida autoritria dos lderes, ao mesmo tempo em que opera uma transferncia de

    poder que possibilite aos membros negar as angstias e conflitos impostos pela

    convivncia humana. Essa organizao exigir um novo tipo de depositrio do poder,

    a que chamamos de representante2democrtico. Exploraremos tais diferenas aorefletir sobre os conceitos de vnculo grupal, poder, intermedirio e alianas

    inconscientes.

    Em seguida, no captulo II, discutiremos o contexto mtico, institucional, scio-

    histrico das organizaes onde o entrevistado atuou, de forma a criar um pano de

    fundo que influenciou o posicionamento do sujeito, buscando explorar os conflitos e

    contradies com as quais o grupo precisava lidar. Para tanto, baseamo-nos

    especialmente nas teorias de E. Enriquez, J. Barus-Michel, A. Lvy e R. Kas e em

    anlises que tem como tema os sindicatos, seja no campo terico (atravs de autores

    socialistas como K. Marx, V. I. Lenin, L. Stalin e a leitura de R. Antunes sobre tais

    autores), seja no campo das organizaes (atravs da anlise documental das

    organizaes estudadas).

    2Gostaramos de alertar, desde j, que utilizaremos representante, no presente trabalho, especificamente paradesignar o lugar do sujeito no qual depositado um tipo especfico de poder, pelos membros do grupo, para queele ocupe o lugar entre os representados e o poder institudo (voltaremos a esse tema no prximo captulo). Noestaremos tratando do representante na concepo freudiana (como representante psquico ou de pulso).

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    A anlise do depoimento do entrevistado compe o captulo III, onde buscamos

    relacionar o seu discurso com as teorias apresentadas anteriormente. No ltimo

    captulo, nossa inteno a de sintetizar nossas principais reflexes, fechando o

    trabalho.

    Pensamos que o presente trabalho se justifica por buscar refletir sobre as

    especificidades e dificuldades das formaes grupais democrticas. Para tanto,

    lembramos que Enriquez acredita que a dificuldade da democracia a prpria

    dificuldade que afeta todo o vnculo social (Enriquez, 1997, p. 265).

    Antes de passarmos ao texto, gostaramos de fazer uma ltima observao:

    acreditamos ter realizado, no presente estudo, uma anlise particular, pertinente aos

    autores escolhidos. Para ns, os fenmenos que observamos mostraram-se

    extremamente complexos e, por vezes, contraditrios, aceitando diversas

    interpretaes que no se excluem, mas se complementam. O estudo buscou,

    portanto, a possibilidade de abrir perspectivas, e no de esgot-las.

    Por essa mesma razo, durante o texto, optamos muitas vezes por usar o

    smbolo & para tratar de posies ou binmios, ao invs de /, sendo este segundo

    utilizado para dar ideia de oposio e dicotomia, enquanto o primeiro deve ser

    pensado em termos de complementaridade, mesmo que de aparncia antagnica.

    Utilizamos o & por acreditar que as dinmicas grupais no tem apenas um

    significado. Devem ser vistos por diversos ngulos. No esto disposio de apenas

    um desejo, processo psquico ou ideal, mas condensam diversos desses.

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    CAPTULO I. Uma hiptese sobre a Democracia Representativa

    O propsito desse captulo pensar sobre o lugar do sujeito eleito

    democraticamente para representar um determinado grupo. Buscaremos indicaralguns princpios tericos dentro das teorias que elegemos como foco, de E. Enriquez

    e R. Kas (ambas apoiadas nos estudos psicanalticos de S. Freud), para refletir sobre

    o mecanismo psquico que permitiria a assuno do representante como aquele que

    , ao mesmo tempo, igual e destacado, no grupo. Para isso, partiremos da metfora

    freudiana da horda primeva (e sua comparao com outra protossociedade, a de

    Hobbes); em seguida, revisaremos o conceito de vnculo social na perspectiva de E.

    Enriquez e os de intermedirio e aliana inconsciente em R. Kas com intuito dedemarcar o quadro terico que utilizaremos para a anlise que realizaremos em

    seguida. Por fim, buscaremos montar uma hiptese sobre as diferenas entre os

    lugares de lder e representante.

    Nosso objetivo, neste captulo, marcar as seguintes hipteses:

    1. Que a psicanlise construiu uma teoria de vnculo grupal que possibilita

    pensar uma teoria da democracia, vista como uma organizao socialfraterna que busca impedir a onipotncia de um sujeito sobre os outros;

    2. Que o representante pode ser pensado como um conceito diferente do de

    lder, ao se refletir sobre o Eu Narcsico, o Ideal de Eu e o Eu Ideal;

    3. Que o grupo fraterno assim constitudo ir frequentemente optar por eleger

    representantes ao invs de lderes, garantindo, assim, poder sobre estes e

    a garantia da diviso do poder e da possibilidade de assassinato simblicodo lder, caso necessrio;

    4. Que possvel pensar numa dinmica de papis onde o representante pode

    desejar ocupar o papel de lder, o que levar a uma resposta do grupo;

    5. Que o representante eleito poder ocupar uma funo de objeto

    intermedirio nas alianas inconscientes mantidas pelo grupo, por ocupar o

    lugar de tabu.

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    A. Protossociedades

    H 100 anos atrs, Sigmund Freud props um mito de gnese do pacto social

    que possibilitaria a constituio da sociedade. Em seu texto Totem e Tabu (Freud,1913-2012)3, ele defendeu a ideia de um Estado primitivo, autoritrio, governado por

    um pai dspota que reinava sobre todos da tribo. A caracterizao desse Estado

    social primevo chamada por Freud de horda primeva4como um regime dspota

    segue aqui a teoria de Tocqueville, que entende essa forma de organizao social

    como aquela em que no existem foras organizadas o suficiente para resistir ao

    dspota (Tocqueville, 2005, p. 109). Podemos entender, a partir desse autor, que na

    horda primeva no havia vnculo social5

    entre os membros, tornando impossvel aorganizao dos sujeitos para combater a tirania6.

    a partir dessa horda primeva que Freud construir seu mito. Mas talvez seja

    interessante refletir rapidamente sobre algumas questes anteriores: posto que os

    desejos no unem os homens, mas os dividem (Freud, 1913-2012, p. 104), por que

    os indivduos se uniriam nessa horda primeva? Por que viveriam sob a gide desse

    tirano, ao invs de isolados? Que tipo de ligao estabeleciam, ento, entre eles, se

    no era um vnculo?

    Em O mal-estar na cultura, Freud expe que o ser humano est sujeito a duas

    fontes de sofrimento no ligadas questo social: o poder superior da natureza e a

    fragilidade do corpo. Jamais dominaremos a natureza completamente, e nosso

    organismo, ele prprio uma parte dessa natureza, ser sempre uma formao

    transitria, limitada em sua adaptao e em sua operao (1930-2010, p. 80). A

    primeira funo social , portanto, a de proteo contra as concretas ameaas do

    ambiente.

    3 Existem, hoje, diversas tradues disponveis da obra de Freud em portugus. Utilizamos, para o presentetrabalho, o lanamento mais recente dos livros consultados que tnhamos disponveis, dando preferncia stradues feitas diretamente do alemo. Em relao obra freudiana, tentaremos apontar sempre, nas referncias,o ano de lanamento da primeira edio em alemo, alm do ano da verso traduzida, pois acreditamos haveruma construo histrica do conceito de vnculo social, em sua obra.

    4A partir da hiptese darwiniana de horda (Freud, 1913-2012, p. 90).

    5 Estamos entendendo vnculo, aqui, na perspectiva de E. Enriquez (2001b). Mas Kas tambm levantar a

    hiptese que, no caso especfico da Horda Primeva, no haveria o estabelecimento de vnculo (Kas, 2009a, p.78).

    6Como resistir tirania num pas em que cada indivduo fraco e em que os indivduos no esto unidos pornenhum interesse comum?, perguntaria Tocqueville (2005, p. 109).

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    Depois que o homem primitivo descobriu que estava em suas mos literalmente falandomelhorar o seu destino na Terra por meio do trabalho, no lhepde ser indiferente o fato de que outro trabalhasse com ele ou contra ele. O outroadquiriu para ele o valor de colaborador, com quem era til conviver. Antes ainda, em

    seu passado simiesco, o homem adotou o hbito de formar famlias; os membros dafamlia foram provavelmente os seus primeiros ajudantes. Pode-se presumir que afundao da famlia esteve ligada ao fato de que a necessidade de satisfao genitalno se apresentou mais como um visitante que surge subitamente e, depois de suapartida, no d mais notcias por longo tempo, mas que ela se alojou no indivduocomo um inquilino permanente. Isso deu ao macho motivo para manter consigo amulher, ou, dito de um modo mais geral, os objetos sexuais; alm disso, as fmeas,que no queriam se separar de seus filhotes desamparados, tinham de ficar, nointeresse deles, com o macho mais forte (Freud, 1930-2010, pp. 103-104)

    Essa necessidade de melhorar seu destino na terra que levar s primeiras

    comunidades. Mas no um arranjo perfeito. Nesse momento ser imposta umaterceira forma de sofrimento ao homem: a proveniente da convivncia social: a

    deficincia das disposies que regulam os relacionamentos dos seres humanos na

    famlia, no Estado e na sociedade (Freud, 1930-2010, p. 80). Esse sofrimento reside

    na contraposio entre a liberdade individual e a cultura, que exige o sacrifcio das

    pulses, entre a pretenso liberdade individual contra a vontade da massa (Freud,

    1930-2010, p. 99). Para Freud,

    Uma boa parte da luta da humanidade se concentra em torno da tarefa deencontrar um equilbrio conveniente, ou seja, capaz de proporcionar felicidade, entreessas exigncias individuais e as reivindicaes culturais das massas, e um dosproblemas cruciais da humanidade saber se esse equilbrio alcanvel atravs deuma determinada conformao da cultura ou se tal conflito irreconcilivel. (Freud,1930-2010, p. 99).

    Em termos psicanalticos, podemos definir essa constante luta como a

    oposio entre os impulsos7 do eu e os impulsos libidinais do amor, dirigidos ao

    objeto (Freud, 1930-2010, p. 134). E se podemos considerar que a cultura umprocesso a servio do Eros, que deseja reunir indivduos humanos isolados [...] em

    uma grande unidade, a humanidade (Freud, 1930-2010, p. 141), necessrio

    tambm que ela lide com o natural impulso agressivo do homem, a hostilidade de

    cada um contra todos e de todos contra cada um (Freud, 1930-2010, pp. 141-142).

    Freud resume:

    E agora, creio, o sentido do desenvolvimento cultural no nos mais obscuro.

    Ele tem de nos mostrar a luta entre Eros e a morte, entre o impulso de vida e o impulso7Na verso que utilizamos deste texto de Freud, o termo pulso foi traduzido como impulso (Zwick, 2010, pp.189-191). Assim, estamos falando aqui das pulses do Eu e libidinais.

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    destrutivo [...] e por isso o desenvolvimento cultural pode ser caracterizadosucintamente como a luta da espcie humana pela vida. (Idem, p. 142)

    Hobbes (1642-1998, p. 3) levanta a hiptese semelhante freudiana ao propor

    que o homem um deus para o homem, e que o homem lobo do homem 8. Este

    autor tambm parte de uma espcie de psicologia da natureza humana (Kayser,

    2005) que postula que a discrdia nasce da comparao entre as vontades (Hobbes,

    1642-1998, p. 30) e do apetite que muitos tm pelas mesmas coisas (p. 30). O autor

    advoga que, em primeiro lugar, o ser humano busca e tem direito a se defender e ao

    livre arbtrio e, para garantir esse direito, mostra uma propenso natural a ferir o

    outro. Para Hobbes, portanto, a protossociedade era o permanente estado de guerra

    de todos contra todos. No entanto, temos a um paradoxo no qual o direito a defender

    a vida (tanto em relao ao prprio corpo quanto em relao aos recursos naturais)

    leva guerra de todos contra todos, mas essa mesma guerra contrria

    manuteno da vida. Para Hobbes, h duas resolues para esse paradoxo: 1) a

    submisso ao mais forte, situao em que o vencedor tem direito de forar o vencido,

    ou o forte o mais fraco [...] a dar-lhe garantias de que no futuro lhe obedecer(p. 35)

    ou 2) o contrato social.

    O contrato social em Hobbes

    Para se conservar e, ao mesmo tempo, no ter que se submeter fora, o

    homem precisaria buscar a paz sempre que possvel. Hobbes ir sugerir que, para

    obter essa paz, a primeira lei especial da natureza que no devemos conservar

    nosso direito a todas as coisas(p. 38). necessrio abdicar de seu direito natural em

    prol de uma ordem social comum. Para tanto, um poder coercitivo requisito para

    dar-nos segurana (p. 103), assegurando um castigo a quem quebrar a ordem. E

    8As relaes entre a obra de Hobbes (1651-1981) e a teoria freudiana da gnese social esto estabelecidas pordiversos autores. Enriquez (2003, p. 28) ressalta que Freud traz de Hobbes o homo homini lupus ao conceituara pulso de morte. Tragtenberg (2003) escreve que o pensamento de Freud em Totem e Tabu era marcada porum evolucionismo linear e historicista que vai sendo abandonado no curso de sua obra, afastando o seupensamento do hobbesiano, em que o contrato social poderia dominar em sua totalidade os instintos agressivos

    humanos, atravs da interveno do Estado, como tambm sugere Rgo (1995). Por fim, Arajo (2001, pp. 22-23)tambm compara os textos dos dois autores para concluir que o tirano pai ser destitudo em prol do estadosoberano agregador, que impe sua lei a todos, assegurando a ordem e a paz. Os cidados estaro assim, atravsdesse desigual, ligados entre si por um contrato, por um pacto social.

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    a nica maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defend-los dasinvases dos estrangeiros e das injrias uns dos outros, garantindo-lhes assim umasegurana suficiente para que, mediante seu prprio labor e graas aos frutos da terra,possam alimentar-se e viver satisfeitos, conferir toda sua fora e poder a um homem,

    ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, porpluralidade de votos, a uma s vontade. (Hobbes, 1651-1981, p. 61).

    um contrato que se estabelece entre cada homem de uma determinada

    sociedade: cada um abrir mo do poder de se autogovernar em prol de um ente (um

    indivduo ou uma assembleia), desde que todos os outros o faam.

    esta a gerao daquele grande Leviat, ou antes (para falar em termos maisreverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossapaz e defesa. Pois graas a esta autoridade que lhe dada por cada indivduo no

    Estado, -lhe conferido o uso de tamanho poder e fora que o terror assim inspirado otorna capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu prpriopas, e pela ajuda mtua contra os inimigos estrangeiros. (Hobbes, 1651-1981, p. 61)

    H, portanto, um movimento de submisso ao soberano e de transmisso de

    poder.

    Hobbes diferencia os Estados onde as pessoas transmitem o poder de maneira

    pactuada daqueles nos quais o soberano se impe pela fora, chamando os primeiros

    de Estado por Instituio e os ltimos de Estado por Aquisio9. Para o autor, h

    apenas 3 tipos de Estado por instituio: a monarquia (quando o poder transmitido

    para apenas um homem), a democracia (quando o poder transmitido a uma

    assembleia que a todos representa) e a aristocracia (quando a assembleia representa

    apenas parte dos sditos). J na segunda forma, por Aquisio, caracteriza-se um

    domnio paterno e desptico(Hobbes, 1651-1981, p. 69).

    Mas, pode-se notar, para Hobbes, o pacto ser sempre baseado no medo. O

    que diferencia as duas formas que, no Estado por Instituio, os homens submetem-

    se por medo uns dos outros enquanto que, no por Aquisio, o medo dirigido ao

    soberano.

    Assim, em sntese, Hobbes prope uma evoluo social, de um momento

    primitivoa guerra de todos contra todospara um momento submissoo Estado

    formado a partir do medo.

    9Ele tambm fala da possibilidade da anarquia, que seria a ausncia do Estado.

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    Poderamos imaginar a hiptese Freudiana como partindo da proposta de

    Estado por Aquisio hobbesiano, na qual um dspota reina inquestionvel. Freud, no

    entanto, propor uma nova forma de Estado como resultante da dinmica social

    estabelecida pelos excludos.

    O mito sociognico em Freud

    Retomemos o mito sociognico: Freud comeou a construir sua teoria, em

    Totem e Tabu, buscando razes antropolgicas para estudar a questo. Seu primeiro

    passo foi analisar os totens e tabus das tribos mais atrasadas e miserveis" (Freud,

    1913-2012, p. 7), onde a organizao social arcaica dos cls totmicos se relaciona

    intimamente com as proibies sexuais impostas a seus membros.

    Ele apresentou o conceito de totem como um smbolo mtico para os cls, que

    serve de vnculo entre seus membros (pois se acredita que seja seu antepassado

    comum), impondo uma srie de restries tanto em relao ao seu smbolo

    (geralmente um animal) quanto aos membros que dele comungam (Freud, 1913-2012,

    p. 7). A principal preocupao do autor, nesse primeiro momento, vincular o totemaos desejos incestuosos e sua interdio.

    J o tabu definido por Freud como um elemento dicotmico entre o sagrado

    e o proibido ou perigoso (p. 9), resultando em interdies e, ao mesmo tempo, em

    santificao desse elemento. Assim, o tabu tem a funo mtica de proteger, precaver

    o mal e salvaguardar o desenvolver da vida10, atravs da violenta punio queles

    que o transgredirem. Freud salienta que no h uma relao direta entre o real

    circunstncias exteriores ameaadorase o tabu. Ele aparece como uma construo

    social e psicolgica.

    A ambivalncia do tabu, entretanto, no reside apenas em seu carter

    santificado/proibido, mas tambm no fato de que sua transgresso desejada por

    cada um dos indivduos que o compartilham: o fundamento do tabu uma ao

    proibida, para a qual h um forte pendor no inconsciente (p. 20). O tabu , portanto,

    10Freud utiliza a definio para tabu elaborada por N. W. Thomas e publicada na Encyclopaedia Britannica, naedio de 1910-1911 (Freud, 1913-2012, p. 10)

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    a interdio que forma os vnculos entre os membros de uma determinada

    comunidade, cada um abrindo mo de seus desejos. Tal pacto em torno do tabu se

    estabelece porque todos temem a dissoluo social que surgiria a partir de um efeito

    de contgio, em que todos buscam a satisfao do prprio desejo, despertado pelo

    satisfao obtida por um outro. Para que tais sentimentos no sejam despertados,

    necessrio punir aquele que obtm satisfao.

    Freud resume:

    O tabu uma proibio primeva foradamente imposta (por alguma autoridade)de fora, e dirigida contra os anseios mais poderosos a que esto sujeitos os sereshumanos. O desejo de viol-lo persiste no inconsciente; aqueles que obedecem ao

    tabu tm uma atitude ambivalente quanto ao que o tabu probe. (p. 55)

    O autor prope que o totemismo a construo mtica que busca salvaguardar

    as duas proibies essenciais do tabu (no matar, no ter relaes sexuais com a

    me). Os conceitos de totem e tabu, as ntimas relaes que guardam entre si e, em

    especial, o poder que tm de controlar os desejos inconscientes de morte e incesto

    foram utilizados por Freud para construir um mito sociognico11. Freud lanou mo da

    hiptese de C. Darwin para descrever que o homem viveu originalmente em

    pequenas hordas (p. 90) onde um pai violento e ciumento [...] reserva todas as

    fmeas para si e expulsa os filhos quando crescem (p. 103).

    Para Enriquez, o poder desse pai dspota sobre a horda, exprimindo-se diretamente

    pelo poder fsico e pelo poder sexual [...], faz-se acompanhar igualmente pelo poder

    da palavra, que aparece como a nica que o grupo deve considerar(1990, p. 42).

    De acordo com Freud,

    Certo dia, os irmos expulsos se juntaram, abateram e devoraram o pai, assimterminando com a horda primeva. Unidos, ousaram fazer o que no seria possvelindividualmente. [...] O fato de haverem tambm devorado o morto no surpreende,tratando-se de canibais. Sem dvida, o violento pai primevo era o modelo temido einvejado de cada um dos irmos. No ato de devor-lo eles realizavam a identificaocom ele, e cada um apropriava-se de parte de sua fora. A refeio totmica, talvez aprimeira festa da humanidade, seria a repetio e a celebrao desse ato memorvel

    11Aceitando a interpretao de Levi-Strauss (1982) sobre Totem e Tabu, onde os atos perpetrados pelos irmosno correspondem a nenhum fato, mas traduzem, talvez, em forma simblica, um sonho ao mesmo tempoduradouro e antigo (pp. 531-532).

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    e criminoso, com o qual teve incio tanta coisa: as organizaes sociais, as restriesmorais, a religio. (Freud, 1913-2012, p. 103).

    Tal banquete tem efeito catrtico no grupo, liberando a energia do dio que

    sentiam pelo pai e, em seguida, assimilando suas caractersticas de forma

    identificatria. O que surge aps tal festejo um avassalador remorso de alcance

    grupal. Para lidar com essa culpa, transformam o pai em totem e o assassinato e o

    incesto em tabus.

    Nesse ponto, Freud foca sua anlise na construo do pacto social que fundar

    a possibilidade de convivncia entre os homens. De acordo com ele, instalou-se a

    necessidade de um pacto que impedisse algum de assumir o lugar do dspota.

    Os irmos haviam se aliado para vencer o pai, mas eram rivais uns dos outrosno tocante s mulheres. Cada um desejaria, como o pai, t-las todas para si, e na lutade todos contra todos a nova organizao sucumbiria. [...] Assim, os irmos notiveram alternativa, querendo viver juntos, seno talvez aps superarem gravesincidentes instituir a proibio do incesto, com que renunciavam simultaneamentes mulheres que desejavam, pelas quais haviam, antes de tudo, eliminado o pai.Assim salvaram a organizao, que os havia fortalecido. (Freud, 1913-2012, p. 104)

    Nesse sentido, o lugar do pai torna-se tabu e impede a guerra de todos contra

    todos. O pacto que se ergue aquele em que os homens abriram mo da violncia e

    do desejo em prol da convivncia. um pacto denegativo idenficatrio, como sugere

    Kas (1993, p. 32)12. Esse autor marcar que Totem e Tabu a obra de Freud que

    expe, pela primeira vez, como se efetua a passagem da pluralidade dos indivduos

    isolados ao grupo (Kas, 1993, p. 31)13.

    H um paralelo entre a teoria freudiana e a teoria hobbesiana para o qual

    gostaramos de chamar a ateno. Ambos os autores partem do pressuposto de que

    a violncia antecede a cultura (Arajo, 2006, p. 161).

    Para Hobbes, "se no h um poder construdo ou grande o suficiente para

    nossa segurana, cada homem ir e poder legitimamente confiar em sua prpria

    12Retomaremos o tema do pacto denegativo identificatrio ao discutir as alianas inconscientes, abaixo.

    13Traduo nossa.

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    fora e percia, para se acautelar contra todos os outros homens14 (1651-1981, p.

    103). Arajo (2006, p. 164), ao citar a obra De Cive, de Hobbes, nota que a luta dos

    homens se d por desejar o mesmo objeto sendo que, em sua obra, o objeto de desejo

    essencialmente o poder (p. 164). Se na obra freudiana o desejo tem cunho sexual,

    a questo do poder j aparece claramente no desejo dos filhos (Freud, 1913-2012, p.

    103). Enriquez, ao analisar o texto freudiano, tambm bem claro em relacionar a

    questo da horda primeva questo do poder (Enriquez, 1990). Assim, os dois

    autores esto propondo mitos da gnese da sociedade baseados na interdio do

    desejo e em abrir mo da violncia entre seus membros. Mas h uma diferena

    essencial entre esses dois textos:

    Hobbes buscava entender porque os cidados abririam mo de sua vontade e

    se submeteriam tirania. Sua teoria de contrato social, que coloca o Estado na funo

    de vigia e carrasco do desejo, quer explicar porque abrir mo da violncia e se deixar

    ser governado. , data vnia, uma teoria da centralizao do poder, que considera o

    fato dos cidados abrirem mo de seus desejos e de seu poder em prol de um (ou de

    um pequeno grupo) como sistema racional para a constituio do Estado. Hobbes ir

    buscar resgatar o mito sociognico dessa forma de governo em sua teoria.

    Diferentemente da teoria hobbesiana, o Homo Homini Lupusde Freud um ser

    dicotmico, atormentado pela culpa. A tendncia violncia e o desejo de

    assassinato, aqui, no sero considerados estratgias legitimas que devem ser

    contidas pela violncia maior do Estado, como em Hobbes, mas como pulso

    psquica. Tais pulses levaro, mais tarde, ao sentimento de culpa e arrependimento

    experimentado pelos irmos. Alm disso, Freud vai notar que a morte do Pai tambm

    torna clara a necessidade do compartilhamento do poder entre os membros da horda,para garantir a continuidade do arranjo que havia permitido vencer o Pai-tirano. Nesse

    sentido, o assassinato do dspota , tambm, o princpio da democracia, como

    defende Barus-Michel (2001). Diviso de poder significa abrir mo do desejo, mas no

    o extingue. Como bem nota a autora, a democracia , por isso, repleta de paradoxos.

    As decises so sempre tomadas em um cenrio de conflitos, de contradies, de

    ambivalncias (Barus-Michel, A democracia ou a sociedade sem pai, 2001, p. 33).

    14Traduo nossa

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    Como sntese, sugeriramos que, em seu mito, Freud trata da democracia como

    possibilidade de vnculo, enquanto Hobbes discute o pacto social atravs da violncia

    do Estado.

    Trs tipos de relaes chamam a ateno quando refletimos sobre o que

    expomos desses dois autores, at aqui, e que parecem permear a composio do

    social: relaes de luta, de submisso e fraternas.

    Se acreditarmos que essas duas metforasa do Leviat e a da horda primeva

    nos do pistas sobre a gnese das formas de governar, podemos tambm imagin-

    las como parte de uma constante tenso entre governantes e governados, fazendo

    um movimento cclico de revolues, guerras, submisses e Estados fraternos,

    reeditadas interminavelmente por uma compulso repetio que Freud reconhece

    em todas as pessoas (no apenas nas neurticas) e exemplifica, ao perceber a

    existncia de sujeitos que repetidamente, no curso da vida, elevam outra pessoa

    condio de grande autoridade para si mesmos ou para a opinio pblica, e aps um

    certo tempo derrubam eles prprios essa autoridade, para substitu-la por uma nova

    (Freud, 1918-2010, p. 182).

    A ideia de que, aps a derrubada do dspota, pode haver uma guerra de todos

    contra todos aparece, por exemplo, na teoria da paranoia dos grupos minoritrios

    proposta por E. Enriquez (2001b). Esse autor tem uma importante contribuio para a

    atualizao do mito sociognico de Freud, ao propor sua teoria de vnculo grupal.

    B. Sobre o vnculo grupal na perspectiva psicossociolgica

    E. Enriquez, autor que nos ofereceu o ponto de partida para o presente

    trabalho, apresentar, em sua teoria psicossociolgica, um conceito de vnculo grupal.

    Ele parte do fato de que a compreenso de que o Outro sujeito de seu prprio

    desejo, e no objeto de satisfao, que, em primeiro lugar, ir levar percepo de

    que o semelhante, o irmo, um adversrio em potencial, s vezes at mesmo um

    inimigo cruel (Enriquez, 1990, p. 158). No entanto, a violncia da funo paterna

    no existem irmos sem que seja colocada primeiro a funo paterna (Enriquez,

    1990, p. 161)e a violncia que essa funo gera em resposta o que vai possibilitar

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    a constituio de laos de amor entre os irmos. O vnculo se estabeleceria quando

    os membros de um grupo voltam sua violncia para um mesmo objeto, ao invs de

    lutar entre si.

    A interveno psicossociolgica desenvolvida por Enriquez tem como pilar

    terico sua viso sobre a complementaridade das cincias sociais e da psicanlise,

    inspirada na afirmao de Freud, em Psicologia das Massas e Anlise do Eu15, de que

    toda psicologia individual tambm social. Afirma Enriquez: Temos portanto o direito

    de afirmar quesalvo os processos narcsicos revelados pela psicanlise e que so

    irredutveis aos mecanismos sociaisas cincias sociais e a psicanlise tm o mesmo

    objeto de estudo: a criao e a evoluo do vnculo social (Enriquez, 1997, p. 17).Como mtodo, a interveno psicossociolgica pode ser caracterizada como uma

    atividade de anlise da demanda atravs da criao de espaos de circulao da

    palavra. Visa a passagem do papel de indivduo heternomo, alienado de seus

    processos subjetivos, reprodutores do funcionamento sociala sujeitoaquele que

    tenta sair tanto da clausura social quanto da clausura psquica, bem como da

    tranquilizao narcsica, para se abrir ao mundo e para tentar transform-lo

    (Enriquez, 2001a, p. 34).

    Enriquez dirige sua ateno, na instncia grupal, a entender o surgimento do

    vnculo grupal num senso estrito. Ao buscar analisar o nascimento dos grupos,

    Enriquez prope que trs elementos sero essenciais ligao de seus membros: 1)

    o projeto comum; 2) a luta pelo poder por parte do grupo minoritrio; e 3) o

    reconhecimento do desejo e o desejo de reconhecimento (Enriquez, 2001b).

    Para Enriquez, um grupo s se constitui em torno de uma ao a realizar, de

    um projeto ou de uma tarefa a cumprir(p. 61)16. Trata-se de sentir coletivamente, de

    experimentar a mesma necessidade de transformar um sonho ou uma fantasia em

    realidade cotidiana e de se munir dos meios adequados para conseguir isso (p. 62).

    Para que isso seja possvel, faz-se necessrio que o grupo tenha um sistema de

    valores suficientemente bem compartilhado e interiorizado por seus membros,

    15 A psicologia individual tambm, desde o incio, psicologia social, num sentido ampliado, mas inteiramentejustificado. (Freud, 1921-2011, p. 10)

    16Colocao que aproxima sua teoria da dos grupos operativos de E. Pichon-Rivire (2009).

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    apoiado em um imaginrio social comum, em uma representao coletiva com

    componentes cognitivos e afetivos (p. 62).

    O projeto comum tem como base, portanto, uma idealizao de que a realidadepode se tornar excepcional para o grupo, atuando simultaneamente sobre o Ideal do

    Eu e sobre o Eu Ideal. Esses dois conceitos sero importantes para discutirmos a

    questo do lder e do representante. Assim, iremos nos deter brevemente no assunto.

    Ideal de Eu e Eu Ideal

    O Ideal do Eu uma expresso cunhada por Freud para caracterizar a

    instncia da personalidade resultante da convergncia do narcisismo (idealizao do

    ego) e das identificaes com os pais, com os seus substitutos e com os ideais

    coletivos (Laplanche & Pontalis, 1992, p. 222). , portanto, uma referncia externa

    construda pelo sujeito do inconsciente que serve de modelo ao qual o sujeito busca

    conformar-se. Para Freud, ele teria a funo de:

    Auto-observao, conscincia moral, censura do sonho e principal influnciana represso. Dissemos que [essa instncia, o Ideal do Eu] a herdeira do narcisismooriginal, em que o Eu infantil bastava a si mesmo. Gradualmente ela acolhe, dasinfluncias do meio, as exigncias que este coloca ao Eu, as quais o Eu nem sempre capaz de cumprir, de modo que o indivduo, quando no pode estar satisfeito comseu Eu em si, poderia encontrar satisfao no ideal do Eu que se diferenciou do Eu.(Freud, 1921-2011, p. 37)

    O Ideal do Eu central para o processo de identificao entre os membros de

    um grupo: Uma massa primria desse tipo uma quantidade de indivduos que

    puseram um nico objeto no lugar de seu Ideal do Eu e, em consequncia,

    identificaram-se uns com os outros em seu Eu (Freud, 1921-2011, p. 42).

    O Ideal do Eu acrescenta a ordem do potencial (aquilo que pode se tornar)

    iluso do projeto comum. O Ideal ento se dirige para o futuro, para um vir a ser

    (Fernandes, 1989, p. 69). Ao mesmo tempo, liga esse potencial ao outro.

    Para Freud, possvel que um terceiro seja colocado no lugar de Ideal do Eu,

    o que explicaria a submisso ao lder, como exposto em Psicologia das Massas e

    Anlise do Eu, onde Freud afirma: O pai primevo o ideal da massa, que domina o

    Eu no lugar do Ideal do Eu (1921-2011, p. 51).

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    Em relao ao Eu Ideal, Laplanche e Pontalis apontam que uma formao

    intrapsquica precoce de carter narcsico. Embora existam algumas divergnciastericas relacionadas ao papel do terceiro17na constituio do Eu Ideal, os autores

    concluem que ele est relacionado ao objetivo de reconquistar o chamado estado de

    onipotncia do narcisismo infantil (Laplanche & Pontalis, 1992, p. 139).

    O Eu Ideal tambm garantiria a identificao com o ser onipotente atravs da

    identificao heroica (identificao com personagens excepcionais e prestigiosos)

    (pp. 130, citando D. Lagache). Laplanche e Pontalis citam que possvel que o Eu

    Ideal participe do mecanismo de defesa da identificao com o agressor, onde um

    sujeito, diante de uma ameaa externa, ir se identificar com seu agressor e mesmo

    imitar seus comportamentos ou adotar seus smbolos (p. 230).

    Para Fernandes, o Eu Ideal relaciona-se com duas transformaes: uma

    metamorfose da libido, que deixar de ser narcsica para se voltar para o exterior, e a

    construo do Ideal. [Compreendeu-se a] evoluo do Ego consistindo num

    progressivo afastamento do narcisismo primrio, afastamento este que se daria pormeio de um deslocamento da libido para um Ego Ideal, imposto de fora. A satisfao,

    da para a frente, seria alcanada pelo cumprimento do Ideal. (Fernandes, 1989, p.

    64).

    O projeto comum, conforme proposto por Enriquez, como desejo de

    onipotncia, liga-se ao Eu Ideal, e, ao mesmo tempo, substitui o (ou se introduz no)

    Ideal do Eu: O indivduo renuncia ao seu Ideal do Eu e o troca pelo ideal da massa

    corporificado no lder (Freud, 1921-2011, p. 50).

    A metamorfose da libido, retirada do Eu narcsico e deslocada para o Eu Ideal,

    permite que o sujeito singular idealize o objeto (Fernandes, 1989, p. 65). A idealizao

    cria assim uma realidade a ser alcanada e a percepo, por esse sujeito, de que o

    grupo pode alcan-la. Para que tal idealizao seja mantida, necessrio negar toda

    interrogao e permitir a canalizao dos desejos, o que o grupo obtm atravs do

    17Enquanto alguns autores defendem que o Eu Ideal uma unio do Eu com o Id (e, portanto, formao puramenteintrapsquica), outros afirmam que compreende uma identificao com um outro onipotente (a me) (Laplanche &Pontalis, 1992, p. 139)

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    dispositivo simblico da iluso grupal. Por meio da atuao da iluso, o projeto comum

    ser investido de um carter sacro e inatacvel, suspendendo, por fim, toda dvida na

    sua validade ou nos processos para sua realizao. Assim, da iluso crena, a

    passagem rpida, afirma Enriquez (p. 62). Esses trs elementos idealizao,

    iluso e crena levam-nos noo da causa a defender (p. 63), da misso a

    cumprir e pela qual os membros esto dispostos a se sacrificar. Se pensarmos no mito

    freudiano da horda primeva, o projeto comum seria a luta contra o pai dspota. o

    processo de idealizao, iluso e crena que suspenderia o questionamento tico de

    assassinar o prprio pai, questionamento que s retornar aps o ato consumado.

    O projeto comum, o grupo minoritrio e o poder

    O projeto comum leva o grupo a se identificar com uma minoria atuante, na luta

    contra uma maioria que encarna a ordem estabelecida (e opressora). O grupo

    minoritrio tem, assim, a tarefa de professar a nova mensagem. Segundo Enriquez,

    toda minoria tem, pois, vocao majoritria (p. 64). Para atingir esse grau de

    comprometimento, necessrio buscar uma coeso interna que permite aos

    indivduos se sentirem, antes de tudo e contra tudo, membros do grupo (p. 64),

    arremetendo contra o institudo, buscando transgredi-lo e, eventualmente, substitui-lo.

    Vemos aparecer aqui o sentimento que une os irmos em Totem e Tabu. Como afirma

    o prprio Enriquez:

    Assim, o grupo vai tentar destruir as instituies. Como essas representam aordem paterna, o falo triunfante ou a me arcaica devoradora, o grupo s pode lhesopor a ordem fraterna e igualitria (Enriquez, 2001b, p. 65).

    possvel concluir, da, que o grupo minoritrio um grupo em busca de poder,

    sendo sua essncia a luta violenta para obt-lo:

    No se ataca a antiga ordem com um debate corts, mas pela luta. [...] Se nemtodo grupo tem que matar o pai da horda, todo grupo, no obstante, deve criar umacontecimento irreversvel, mediado por uma violncia que substituir a violnciainstituda e insuportvel aos novos irmos, violncia fundadora de um novo mundo,permitindo-lhes formar entre si uma verdadeira comunidade. (Enriquez, 2001b, pp. 65-66).

    Para o autor, o conceito de poder atravessado pela experincia primitiva da

    relao entre o filho e seu pai. este ltimo que define os objetos bons e maus, os

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    atos permitidos e proibidos, que recompensa e que sanciona. Ele a lei, ele traa os

    limites (Enriquez, 1991, p. 9). Se por um lado a lei do pai pode se tornar a lei da

    prpria criana, por outro, essa s v esperana de vida na morte daquele 18. Mas a

    possvel morte do pai encher de culpa o filho, levando-o a apropriao das

    qualidades desse pai, de sua lei e de seus interditos.

    A partir dessa imagem, Enriquez postula que um dos elementos essenciais do

    poder o consentimento, que pode ser de dois tipos: 1) algum se submete regra

    pelo medo e pelas tendncias repressivas do sujeito19ou 2) algum integra a lei ao

    seu Eu e se identifica com a pessoa que a porta. Nessa mecnica, transmite-se a lei,

    instituda, interiorizada, possibilidade de acesso ao mundo dos homens.

    Temos ento uma dicotomia entre o poder-limite que permite entrar na

    sociedade (e se ver como irmo das outras pessoas, evitando a ascenso da

    barbrie) e o poder-pulso de morte, exercido pelo pai destrutivo que no quer abrir

    mo de sua posio e impede a criao de um mundo fraternal(Enriquez, 1991, p.

    13).

    Gostaramos de ressaltar alguns dos elementos essenciais que Enriquez atribuiao poder (Enriquez, 1991, pp. 19; 65-66):

    1) O poder necessita do consentimento;

    2) O poder quer ser considerado legtimo;

    3) O poder totalitrio;

    4) O poder est ligado transgresso; negar a transgresso confirm-lo;

    transgredi-lo criar uma nova ordem;

    5) Cada ser deseja o poder e luta por conquist-lo; esta luta perigosa, pode

    levar derrota, o que gera ansiedade; h trs formas de lidar com tal

    ansiedade:

    a. A manifestao de um poder fraterno, que suprime a luta;

    b. A caricaturizao da luta (atravs de justificaes ou negaes);

    c. A limitao racional do poder.

    18Enriquez afirma ser essa a mensagem de Freud em Totem e Tabu (cf Enriquez, 1991, p. 9).

    19E, nesse ponto, sua teoria se aproxima da teoria hobbesiana.

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    O grupo minoritrio deseja, portanto, alcanar esse poder, ser majoritrio, fazer

    com que o ideal de seu projeto se torne realidade e verdade. Essa luta pelo poder est

    no cerne da teoria enriqueziana: Por isso no coloco no centro de meus trabalhos a

    noo de classe, mas a de luta pelo poder, pela supremacia, pela dominao

    (Enriquez, 1997, p. 57).

    O projeto comum e a sensao de ser minoria ligam os membros do grupo a

    seu Eu Ideal, mas Enriquez introduz uma terceira caracterstica do vnculo grupal, que

    liga os membros entre si: a identificao (ou desejo de reconhecimento) e o

    reconhecimento do desejo.

    A identificao descrita como o desejo de ser reconhecido como parte do

    grupo, eliminando as diferenas ao colocar o mesmo objeto (o ideal do projeto comum)

    no lugar de seu Ideal do Eu. Assim, eles tornar-se-o semelhantes, formaro um

    verdadeiro corpo social e no um conglomerado de indivduos (Enriquez, 1997, pp.

    95-96), irmos lutando contra o mesmo pai tirano (e, nesse sentido, mesmo aquele

    membro que se destaca no ser mais que um grande irmo mais velho e mais

    experiente). O desejo de reconhecimento, no entanto, estar sempre em conflito, no

    nvel particular, com o reconhecimento do desejo. Conforme Enriquez, no grupo de

    pertena que

    cada pessoa procura exprimir seus desejos, fazer com que seja percebidapelos outros [...]. Se faz parte do grupo, no apenas porque quer concretizar umprojeto coletivo, tambm, e sobretudo, sem dvida, porque ela pensa que comessas pessoas e no com outras, graas a esse imaginrio comum e no graas aoutro, que ela poder chegar a tornar reconhecvel seu desejo na sua originalidade eespecificidade, a fazer seus sonhos passarem realidade, a se fazer aceita na suadiferena irredutvel, em seu ser insubstituvel. Cada pessoa ir ento tentar prender

    os outros nas redes de seus prprios desejos, manifestar no real seus fantasmas deonipotncia e negar a castrao, vivida num tal caso como ameaa real e no comoelemento da ordem simblica (Enriquez, 1997, p. 95).

    A luta entre o reconhecimento do desejo e o desejo de reconhecimento mostra,

    a nosso ver, que a busca por poder se associa batalha entre o Ideal do Eu e o Eu

    Ideal. Enriquez se interessa, ento, por um tipo especfico de grupo: aquele que busca

    a realizao de seus desejos tanto no nvel social, atravs da luta pelo projeto comum,

    quanto no individual, buscando o reconhecimento de seus prprios desejos pelos

    outros membros do grupo.

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    Se o mecanismo psquico que leva ao grupo minoritrio comum a todo ser

    humano, podemos pensar que a demanda do grupo tambm depende da forma com

    que seus membros introjetaram a lei na passagem pelo dipo20. possvel postular

    ento que essa demanda pode ser baseada nas necessidades de modificao das

    condies e da estrutura das organizaes, ou na necessidade de reconhecimento

    dos desejos daquele grupo ou, ainda, que a demanda ter como pilar desejos

    primitivos de poder pleno e tirnico da funo narcsica, surgidos da dificuldade dos

    membros em lidar com os limites impostos pela convivncia humana.

    A metfora freudiana da horda primeva, uma das bases da teoria de vnculo de

    Enriquez, deixa clara a sensao de onipotncia que se instala no grupo minoritrio,que passa a se sentir capaz de enfrentar o mundo, desde que mantenha a unidade.

    Tal sensao, obtida atravs da idealizao, originada da sensao de que h um

    desequilbrio de poder, onde o grupo percebe uma tentativa de subjugo por aquele

    (ou aquela ideia) que ocupa o lugar do lder. necessrio levantar a hiptese, por

    outro lado, de que o grupo, ao querer tomar o poder, esteja investindo nos desejos de

    onipotncia de seu Eu Ideal para escapar dos limites impostos pela convivncia social.

    Afirma Freud que a revolta contra essa instncia censria[o Ideal do Eu, que] vem

    de que a pessoa [...] quer se livrar de todas essas influncias, comeando pela dos

    pais [...]. A sua conscincia moral lhe aparece ento, em forma regressiva, como hostil

    interferncia de fora (Freud, 1914-2010, p. 43).

    Em relao evoluo do grupo, Enriquez percebe duas direes possveis:

    a) O desejo de reconhecimento se fortalece e o grupo refora o comportamento

    de no tolerar a diversidade, o que acarreta a degradao da reflexo e da

    inventividade, o predomnio das imagens arcaicas e dos comportamentos pr-

    20Uma breve digresso: de certa forma, o mito da horda primeva se aproxima bastante, na teoria freudiana, docomplexo de dipo. Em Histria de uma neurose infantil (Freud, 1918-2010, p. 116), o autor sugere que seuanalisando primeiro substitui o pai pelo animal totmico (o lobo) e depois o coloca no lugar de um Deus cruel como qual lutava [...], que deixa os homens se tornarem culpados para depois castiga-los, que sacrifica seu prpriofilho, ou seja, que teme o pai castrador, e afirma que tal processo oferece uma confirmao inequvoca do queafirmei em Totem e tabu[...]. O totem seria o primeiro substituto do pai, mas o deus, um substituto posterior, emque o pai readquire forma humana. O mesmo encontramos em nosso paciente. (pp. 150-151). Freud acreditava

    que o retorno das fantasias so derivadas de cenas reais (por exemplo, que a fantasia de renascimento derivadada cena primria) (p. 137), razo, talvez, que o leve a defender o mito como uma situao real. De qualquer forma,o vnculo entre o complexo de dipo e o pai primevo estabelecem uma conexo entre a histria familiar e a histriasocial, em termos das fantasias de violncia e culpa (Enriquez, 1991, pp. 9-12).

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    edipianos, a emergncia de fantasmas e angstias, o abandono da identidade

    pessoal e a expulso das diferenas. O grupo se torna, assim, institudo.

    Enriquez chama essa formao de massa;

    b) O grupo passa a reconhecer o desejo de seus membros e seu projeto comum

    torna-se mais flexvel, abrindo espao para a tolerncia e a cooperao como

    consequncia dos conflitos internos. O grupo corre o risco de centrar-se em si

    mesmo e perder o contexto de seu projeto comum, mas tambm pode se tornar

    democrtico, a partir da eleio de um lder que lhe permitir se tornar um

    grupo edipiano, em que a referncia ao novo pai e aos seus ideais se

    converter no elemento essencial, permitindo a identificao mtua e a coesodo conjunto. O que, no domnio psicossociolgico, conotado pelo termo

    liderana encontra aqui sua razo de ser e seu campo de aplicao

    (Enriquez, 1997, p. 98).

    C. Psicossociologia e democracia

    A teoria do vnculo grupal em Enriquez retoma a lgica freudiana de uma

    comunidade de irmos em anttese ao regime totalitrio hobbesiano. A questo do

    Estado assume, na psicossociologia, um lugar de destaque.

    J em Da horda ao Estado (Enriquez, 1990, pp. 264-290), o autor dedica um

    captulo discusso de como a dominao do Estado buscar a legitimao do poder.

    Nesse sentido, o Estado transcender o modelo previsto por Hobbes e utilizar de

    estratgias de dominao e seduo, se apresentando como um corpo indispensvel sociedade. Enriquez define:

    O Estado moderno deve dar ao grupo-povo uma imagem dele mesmo na qualeste ltimo possa se reconhecer e qual ele possa aderir. Ele vai ser obrigado, ento,a assumir o controleda atividade do conjunto de seus membros (contrariamente aosEstados anteriores Revoluo Francesa), e penetrar em toda a densidade do social(p. 264)

    Enriquez est fazendo, aqui, uma teoria sociolgica do Estado, e no

    pretendemos reduzi-lo a uma condio psicolgica. Mas arriscaremos dizer que cadauma das formas de Estado possvel impe uma lgica intersubjetiva prpria, produz

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    um tipo de subjetividade e , tambm influenciado pelas malhas psicossociais &

    transgeracionais de seus participantes. Tambm iremos supor que possvel transpor

    algo da teoria dos Estados para grupos menores. o caso da democracia

    representativa, vista como modo de organizao que representa a vontade de seus

    participantes. Se, como sistema de governo, possvel pens-la de forma universal,

    tambm se pode perceber que o sistema de eleio de representantes uma

    instituio presente nos mais diversos grupos e organizaes.

    Gostaramos de extrapolar algumas teorias psicossociolgicas aplicadas

    democracia representativa como sistema de governo para aplic-la num grupo restrito,

    a saber, a estrutura sindical.

    Vejamos, anteriormente, como a psicossociologia trata o representante eleito

    numa democracia representativa. Para isso, necessrio retomar Freud. Aps Totem

    e tabu, no qual imagina uma sociedade de iguais, sem Pai, sem lder, sem vnculos

    verticais (Arajo, 2001), portanto uma democracia direta e no-representativa, Freud

    publicar pelo menos dois textos nos quais reintroduz a presena do lder e sua

    inevitabilidade: Psicologia das massas e anlise do eu (1921-2011) e Moiss e o

    monotesmo(1939-1997).

    O caminhar da liderana em Freud

    Em Totem e Tabu (Freud, 1913-2012), ensaio antropolgico a que Freud se

    prope, o autor dedica uma seo ao tabu dos soberanos (Freud, 1913-2012, pp.

    27-35). Ele vai explicitar que, ao governante das sociedades que aborda no texto, so

    atribudas caractersticas fantsticas (como o dom de cura), mas que ele tambm ser

    alvo de punies severas e estar sujeito a uma etiqueta cerimoniosa que lhe custar

    o conforto, a liberdade e tornar sua vida um fardo. Conclui Freud: Elas [as

    cerimnias dos tabus] no apenas distinguem os reis e os elevam acima de todos os

    comuns mortais, como lhes tornam a vida um sofrimento e um fardo insuportvel, e

    os obrigam a uma servido muito pior que a de seus sditos(p. 35).

    A teoria presente em Totem e Tabu (Freud, 1913-2012, pp. 102-106) traz,ainda, uma reflexo sobre os diferentes lugares destinados ao lder e aos liderados.

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    Ela parte do mito do assassinato do pai, um mito que ser transmitido atravs das

    geraes e que tem como consequncia tornar tabu o lugar de lder, de forma a

    permitir o vnculo entre os membros. Nesse sentido, a proibio ao lugar de lder

    aparece como princpio de realidade. Como Freud ir definir em Alm do princpio do

    prazer, o princpio da realidade sem abandonar a inteno de obter afinal o prazer,

    exige e consegue o adiamento da satisfao, a renncia a vrias possibilidades desta

    e a temporria aceitao do desprazer, num longo rodeio para chegar ao prazer

    (Freud, 1920-2010, p. 165).

    Ao soberano, ento, cabe um lugar de poder, que deve passar por punies

    reiteradas vezes porquanto no deve despertar o desejo dos membros em assumir talposio. um poder submetido, parcial, que garante privilgios mas corre o risco de

    ser arrancado a qualquer momento, em virtude de qualquer deslize, por seus

    seguidores, sempre atentos. Diferente do poder do pai tirano, o lder & tabu, para

    usufruir desse poder, precisa abrir mo de parte de seus desejos, em especial os

    relacionados ao narcisismo, para representar o Ideal do Eu do grupo. Nesse sentido,

    destacar-se no grupo supe se colocar em um contnuo estado de perigo.

    O lugar de tabu do lder essencial para que o indivduo comum (no-lder)

    fique a salvo da tentao de se tornar lder. Ao perceber o esforo, sacrifcio e

    sofrimento que a liderana requerer daquele disposto a ocupar tal lugar, o membro

    do grupo no o buscar. Como, ento, justificar aquele que se presta ao lugar de tabu,

    se estamos sob a gide do princpio do prazer? A questo da satisfao do desejo

    aparece como resposta bvia. H um anseio em cada um dos irmos de se tornar o

    pai detentor da palavra e da sexualidade, como formula Enriquez (1990, p. 30).

    H, ainda, uma segunda possibilidade, fundada na ideia de que o lder tem mais

    poder de deciso sobre a prpria vida do que o liderado, como conclui Freud em

    Psicologia das massas e anlise do eu, ao afirmar que o pai da horda era livre

    (Freud, 1921-2011). A ideia de sair de uma situao passiva para assumir um papel

    ativo, por mais desprazeroso que seja, pode ser vista como uma espcie de acordo

    entre o Eu e o Ideal do Eu.

    possvel entender que Freud v a liderana como um processo que buscauma continuidade entre a psicologia de massa e a individual. Ele afirma: Deve haver

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    a possibilidade de transformar a psicologia da massa em psicologia individual, deve-

    se achar uma condio em que uma transformao tal ocorra facilmente (Freud,

    1921-2011, p. 47). A psicologia individual qual o autor se refere so os processos

    intrapsquicos do lder. Freud afirma, em Psicologia das massas e anlise do Eu, que

    o lder, na horda primeva, era o super-homemnietzschiano:

    O pai da horda primeva era livre. Seus atos intelectuais eram fortes eindependentes mesmo no isolamento, sua vontade no carecia do reforo dos demais.[...] Ainda hoje os indivduos da massa carecem da iluso de serem amadosigualmente e justamente pelo lder, mas este no precisa amar ningum mais, -lhefacultado ser de natureza senhorial, absolutamente narcisista, mas seguro de si eindependente. (p. 47).

    Mas o lder s poder se colocar nesse lugar senhorial se existir, no grupo, tal

    espao, o que significa dizer que o grupo admite a existncia do lder e a ele transfere

    sua prpria potncia. O processo concreto de transferncia de poder acompanhada

    por uma transferncia intersubjetiva, atravs da idealizao do lder, assim como

    acontece no enamoramento. Freud escreve:

    Percebemos que o objeto tratado como o prprio Eu, que ento, noenamoramento, uma medida maior de libid o narcsica trans bo rda para o objet o.

    Em no poucas formas da escolha amorosa torna-se mesmo evidente que o objetoserve para substituir um ideal no alcanado do prprio Eu. Ele amado pelasperfeies a que o indivduo aspirou para o prprio Eu, e que atravs desse rodeioprocura obter, para satisfao de seu narcisismo. (Freud, 1921-2011, p. 39)21.

    Ao retomar a ideia da horda primeva, nesse texto, Freud exemplifica o papel do

    lder como aquele que ocupa, ao mesmo tempo, uma posio igual e diferente:

    Ainda Moiss tem de atuar como intermedirio entre seu povo e Jeov, j queo povo no suportaria a viso de Deus, e quando ele retorna da presena de Deus seu

    rosto brilha, uma parte do man transferiu-se para ele, como sucede com ointermedirio nos povos primitivos. (1921-2011, p. 49).

    Moiss e o monotesmo(Freud, 1939-1997) dedicado a semelhante debate,

    mas do ponto de vista contrrio: diante da hiptese de Freud de que Moiss era, na

    verdade, um egpcio, o autor tentar explicar porque necessrio aos judeus

    transform-lo em um dos seus, igual, irmo, representante do seu povo. Moiss

    consegue a proeza de tornar-se lder sugerindo um sistema de crenas inabalvel:

    Descobrimos que o homem Moiss imprimiu nesse povo [os judeus] esse carter

    21Grifo nosso na citao.

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    dando-lhes uma religio que aumentou tanto sua autoestima que ele se julgou

    superior a todos os outros povos (p. 79). Se Moiss foi hbil em se colocar no lugar

    de superior, foi necessrio ao povo judeu convert-lo em irmo para permitir a

    manuteno do vnculo fraterno.

    At agora, ao refletirmos sobre as teorias de Freud e Enriquez, notamos que o

    grupo pode designar lugares diferentes em relao liderana: 1) o lugar do lder

    desptico, e aqui incluiremos o lder sedutor que usa a distribuio do amor como

    forma de tirania, como sugerido em Psicologia das massas e anlise do eu(Freud,

    1921-2011); 2) o lugar que Enriquez denominou de grande irmo mais velho e mais

    experiente (Enriquez, 1997, p. 96), que ocupa a dupla posio de Moiss (ser parte

    do grupo, emanar poder divino), que chamaremos no presente trabalho de

    representante; e 3) a ausncia de lugar para lderes, na qual se encontra o grupo de

    irmos logo aps o assassinato do pai.

    Sugeriremos, para o presente trabalho, a hiptese de que esses so

    possibilidades fluidas do grupo, mais do que papis estticos. Como vimos acima, ogrupo de irmos, ao escolher um novo lder para sair da posio anrquica, investe

    nele energia libidinal e narcsica, idealizando-o como num movimento de paixo. Em

    uma hiptese econmica, podemos imaginar que este investimento narcsico do

    grupo no lder esvazia de poder cada membro do grupo, separadamente, e infla o

    narcisismo do lder, que acreditar ser o cerne do grupo, assim como Sua-majestade-

    o-beb cr estar no centro do mundo. O lder poder, progressivamente, acreditar-se

    divino, medida que o grupo no questiona suas ordens e desejos e lhe concede

    permisses e favores especiais. Aos poucos, sua libido se deslocar do Ideal do Eu

    para os desejos narcsicos. No entanto, ele s permanecer nesse lugar enquanto

    corresponder idealizao do grupo lembramos a o sofrimento dos escolhidos

    descrito por Freud em O tabu dos soberanos (Freud, 1913-2012, pp. 27-35). Para

    tornar-se um lder onipotente, ele ter que usar estratgias como a violncia ou a

    seduo, de forma a manter em si o investimento de cada membro do grupo e ocupar

    o lugar de Ideal do Eu.

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    Tambm arriscamos afirmar que, provavelmente, h, em toda situao de

    poder socialmente definida por mais democrtica que seja um grupo minoritrio

    que no enxergar este lder como ideal e estar em luta para tomar o poder. Para

    Barus-Michel, este um dos paradoxos importantes da democracia:

    Se a soberania pertence ao povo, isto , ao conjunto de cidados, esseconjunto incapaz de unanimidade, ele se sustenta na diversidade de suas partes, ouseja, nas incontveis singularidades que representam tantas diferenas edivergncias. As decises so sempre tomadas em um cenrio de conflitos, decontradies, de ambivalncias. (Barus-Michel, 2001, p. 33).

    A democracia requer, portanto, esforo do lder para se manter no papel de

    ideal dos membros do grupo. Ainda assim, pelas contradies internas do grupo, a

    qualquer momento, ele poder ser deposto.

    Gostaramos de ilustrar com um exemplo possvel do que estamos chamando

    de caminhar do lder. Poderamos, por exemplo, sair de um grupo com lder dspota22.

    Nessa situao, os irmos se identificariam entre si e se tornariam um grupo

    minoritrio que busca exterminar este lder. Se obtm xito em assassin-lo (mesmo

    que simbolicamente), vai se tornar, num primeiro momento, um grupo sem lder (onde

    prevalece o ideal, para recuperarmos a teoria de Enriquez). No entanto, paraconseguir se organizar e evitar o risco da guerra de todos contra todos, o grupo

    identificar um irmo mais velho (tambm nas palavras de Enriquez), um

    representante, que possibilitaria ao grupo investir em seu projeto comum. O grupo

    investir nele sua libido narcsica, diferenciando-o e o destacando do grupo. medida

    em que recebe a potncia do grupo, o representante pode caminhar para se tornar

    um lder dspota. Ou o prprio grupo pode colocar o representante no lugar do tirano,

    a partir do momento em que falhe em ocupar o lugar de ideal do grupo. O ciclo, ento,recomearia.

    Obviamente, cada uma dessas etapas propostas pode durar diferentes tempos,

    o ciclo pode nunca se completar e estacionar em determinados arranjos: por exemplo,

    um representante pode ser hbil em manter-se no lugar de Ideal todo o tempo, ou o

    grupo pode no se acreditar forte o suficiente para combater o lder dspota, ou ainda,

    o grupo pode propor um acordo democrtico, em que o lder ser constantemente

    22Partiremos desse ponto apenas para conservar a cronologia proposta por Freud em Totem e tabu.

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    substitudo por um novo. So inmeras as possibilidades e nossa inteno aqui no

    a de classificar as formas de liderana. O que gostaramos de chamar a ateno, ao

    propor o presente modelo, 1) que o papel do lder dependente da transferncia de

    poder que o grupo faz para ele; e 2) que esse papel destacado em relao ao grupo

    no esttico: um representante democrtico pode tornar-se um lder sedutor ou

    dspota, e esse papel depende tanto do desejo do lder quanto do desejo do grupo.

    O modelo democrtico representativo uma forma de organizao poltica

    interessante dentro da lgica apresentada at aqui. Ele garante, concretamente, que

    o lder possa ser destitudo de seu papel sem o risco de uma luta violenta pelo poder.

    Ao se eleger um lder por tempo determinado, o grupo o coloca numa posio tal queprecisar (ao menos na poca da eleio) exercer o papel do ideal do grupo, seja de

    forma real ou atravs da seduo.

    O modelo democrtico e o tabu dos soberanos

    Para Barus-Michel, um dos aspectos psicossociolgicos importantes da

    democracia assegurar o direito de acesso ao poder e palavra, igual para todos osmembros da cidade, isto , de um grupo definido por uma iden tidade, circunscrito a

    um territrio e compartilhando instituies de referncia comuns(Barus-Michel, 2001,

    p. 32). Significa, em tese, que qualquer um poder ser o lder ou, ao menos, escolher

    o lder que melhor o represente, com quem mais se identifique.

    preciso tambm garantir a mudana, de forma a possibilitar a troca dos

    governantes no caso de no mais atenderem aos requisitos de representantes dos

    membros do grupo. Para tanto, cria-se o mecanismo da eleio, com a dupla funo

    de permitir ao governante tempo para fazer seu trabalho e garantir sua sada do poder.

    Barus-Michel lembra que este outro paradoxo da democracia (garantir a mudana e a

    estabilidade do governo) responsvel por uma eterna discusso sobre o tamanho

    do mandato (Barus-Michel, 2001, p. 33). Outra questo sempre polmica ao se pensar

    esse paradoxo se devemos ou no aceitar a reeleio dos governantes,

    acrescentaramos.

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    Gostaramos de notar um outro mecanismo utilizado para que o governante no

    se torne um tirano, numa sociedade democrtica: a presena das leis (concretamente)

    e instituies (subjetivamente) aos quais todos esto, de igual forma, submetidos, seja

    governante, seja cidado.

    Assim, uma sociedade ou grupo podem criar, atravs da democracia,

    mecanismos para assegurar uma vigilncia sobre o lder, impedindo-o de ocupar o

    papel de tirano. Tais mecanismos permitiro o que Barus-Michel denominar de

    sociedade sem pai: a repblica [democrtica] no a nova figura do pai, mas a

    representao metafrica da associao dos cidados (Barus-Michel, 2001, p. 37).

    Mas notemos que, ainda assim, o fenmeno de transmisso narcsica e de

    poder se mantm, mesmo que encarcerados pelos mecanismos de proteo que

    impedem a tirania. Queremos com isso dizer que, ao ser colocado no papel de

    representante, dada uma carta branca