a roda da lua - julio verne

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Ficção

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  • DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com oobjetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudos acadmicos, bem comoo simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.

    expressamente proibida e totalmente repudivel a venda, aluguel, ou quaisquer usocomercial do presente contedo

    Sobre ns:

    O Le Livros e seus parceiros disponibilizam contedo de dominio publico e propriedadeintelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educao devemser acessveis e livres a toda e qualquer pessoa. Voc pode encontrar mais obras em nossosite: LeLivros.link ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.

    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • Jlio Verne

    EM VOLTA DA LUATtulo original: Autour de la Lune (1869)

    Traduo: Henrique de Macedo (1843-1910)2013 Centaur Editions

    [email protected]

  • ndice CAPTULO PRELIMINAR QUE RESUME A PRIMEIRA PARTE DESTA OBRA E SERVE DE

    PREFCIO SEGUNDACAPTULO 1 DAS DEZ HORAS E VINTE AT S DEZ HORAS E QUARENTA E SETE MINUTOS DA

    NOITECAPTULO 2 A PRIMEIRA MEIA HORACAPTULO 3 INSTALAOCAPTULO 4 UM BOCADINHO DE LGEBRACAPTULO 5 OS FRIOS DO ESPAOCAPTULO 6 PERGUNTAS E RESPOSTASCAPTULO 7 UM MOMENTO DE EMBRIAGUEZCAPTULO 8 A SETENTA E OITO MIL CENTO E CATORZE LGUASCAPTULO 9 CONSEQUNCIAS DE UM DESVIOCAPTULO 10 OS OBSERVADORES DA LUACAPTULO 11 FANTASIA E REALISMOCAPTULO 12 PORMENORES OROGRFICOSCAPTULO 13 PAISAGENS LUNARESCAPTULO 14 A NOITE DE TREZENTAS E CINQUENTA E QUATRO HORASCAPTULO 15 HIPRBOLE OU PARBOLACAPTULO 16 O HEMISFRIO MERIDIONALCAPTULO 17 TICHOCAPTULO 18 PROBLEMAS GRAVESCAPTULO 19 LUTA CONTRA O IMPOSSVELCAPTULO 20 AS SONDAGENS DA SUSQUEHANNACAPTULO 21 J.-T. MASTON SALVOCAPTULO 22 SALVAO DE VIDASCAPTULO 23 PARA CONCLUIRNOTAS

  • Captulo Preliminar Que Resume a Primeira Parte Desta Obra eServe de Prefcio Segunda

    No decurso do ano de 186... comoveu singularmente o mundo inteiro uma tentativa

    cientfica sem precedentes nos anais da cincia. Os scios do Gun-Club, associao deartilheiros fundada em Baltimore depois da guerra da Amrica, tiveram o pensamento deestabelecer comunicao com a lua sim, com a lua , atirando-lhe uma bala. O presidentedo clube, Barbicane, promotor do empreendimento, depois de consultar acerca de tal assuntoos astrnomos do Observatrio de Cambridge, tomou todas as medidas necessrias para obom xito da extraordinria tentativa, reputada realizvel pela maioria das pessoascompetentes. Depois de abrir uma subscrio pblica, que produziu cerca de trinta milhes defrancos, deu o presidente comeo aos seus gigantescos trabalhos.

    Segundo a nota redigida pelo pessoal tcnico do Observatrio, o canho destinado aarremessar o projtil devia ser colocado em regio situada entre 0 e 28 de latitude norte ousul, para que fizesse pontaria lua quando no znite. A bala devia ir impelida com velocidadeinicial de doze mil jardas por segundo. Arremessada no 1. de Dezembro s onze horas menostreze minutos e vinte segundos da noite, havia de encontrar a lua quatro dias depois da partida,no dia 5 de dezembro, meia-noite em ponto, no instante mesmo em que o astro estava noperigeu, isto , sua mnima distncia da Terra, que exatamente de oitenta e seis milquatrocentas e dez lguas.

    Os scios principais do Gun-Club, presidente Barbicane, major Elphiston, o secretrio J.-T. Maston e muitos outros homens de cincia, celebraram repetidas reunies, em que sediscutiram a forma e composio do projtil, a disposio e a natureza do canho e aqualidade e quantidade de plvora que se havia de usar. Decidiu-se: 1., que o projtil deviaser um obus de alumnio de cento e oito polegadas de dimetro e de doze polegadas deespessura de parede, cujo peso montaria a dezanove mil duzentas e cinquenta libras; 2., que ocanho havia de ser uma columbada de ferro fundido de novecentos ps de comprimento eque devia realizar-se a fundio diretamente no solo; 3., que na carga se haviam de consumirquatrocentas mil libras de algodo-plvora, que, desenvolvendo seis milhes de litros degases sob o projtil, o arremessariam facilmente at ao astro da noite.

    Resolvidos que foram estes problemas, o presidente Barbicane, com o auxlio doengenheiro Murchison, tratou de escolher na Florida um stio colocado a 27 7 de latitude

  • norte e 5 7 de longitude oeste. Foi naquele lugar que, depois de maravilhosos trabalhos, foifundida a Columbiad com perfeito bom xito. E estavam as coisas nesta altura quandosobreveio um incidente que centuplicou o interesse inerente a to grande empreendimento.

    Um francs, um parisiense estouvado e fantasioso, um artista to engraado como audaz,pediu que o deixassem ir dentro da bala, para ir lua, e realizar assim um reconhecimento dosatlite terrestre. Esse intrpido aventureiro chamava-se Michel Ardan. Chegou Amrica,onde foi recebido com entusiasmo, celebrou meetings, levaram-no em triunfo, reconciliou opresidente Barbicane com o seu inimigo figadal capito Nicholl e decidiu-os a ambos, comopenhor da reconciliao, a embarcarem com ele no projtil.

    E, como fosse aceita a proposta, modificou-se a forma da bala, que fizeramcilindrocnica. Colocaram naquela espcie de vago areo possantes molas elsticas etabiques frgeis que, segundo se cria, haviam de amortecer a repercusso do tiro partida,fizeram proviso de vveres para um ano, de gua para alguns meses e de gs para alguns dias.O ar necessrio para a respirao dos trs viajantes devia ser fabricado e fornecido por umaparelho automtico. Pelo mesmo tempo fazia o Gun-Club construir numa das mais altascumeadas das Montanhas Rochosas um telescpio gigantesco, que permitiria seguir com avista o projtil durante a viagem atravs do espao. Estava tudo pronto.

    A 1 de dezembro, hora marcada, no meio de extraordinria afluncia de espectadores,realizou-se a partida, e, pela primeira vez, trs seres humanos largaram do globo terrestrepara os espaos interplanetrios, com a certeza quase absoluta de chegarem ao alvo quetinham mirado. Os ousados viajantes, Michel Ardan, o presidente Barbicane e o capitoNicholl, deviam efetuar a viagem em noventa e sete horas, treze minutos e vinte segundos.Por consequncia, a chegada dos viajantes superfcie do disco lunar no podia verificar-seseno a 5 de dezembro, meia-noite, exatamente no momento em que a lua entrava noplenilnio, e no no dia 4, como o tinham propalado alguns jornais mal informados.

    Porm, circunstncia inesperada, a detonao da columbada teve como consequnciaimediata toldar a atmosfera terrestre, acumulando nela enorme quantidade de vapores.Fenmeno foi este que excitou a geral indignao, porque a lua permaneceu, durante grandenmero de noites, escondida das vistas dos seus contempladores.

    O digno J.-T. Maston, o mais seguro amigo dos trs viajantes, partiu para as MontanhasRochosas na companhia do honorable J. Belfast, diretor do Observatrio de Cambridge, echegou estao de Longs-Peak, onde se erguia o telescpio que representava a lua a duaslguas de distncia. Queria o honorable secretrio do Gun-Club observar por seus prpriosolhos o veculo areo dos seus ousados amigos.

  • A acumulao de nuvens na atmosfera obstou a que se fizesse qualquer observao nosdias 5, 6, 7, 8, 9 e 10 de dezembro. Chegou-se mesmo a crer que as observaes teriam de seradiadas para 3 de janeiro do ano seguinte, porque a lua, que entrava no minguante no dia 11,no podia desde ento mostrar visvel seno uma poro decrescente do seu disco,insuficiente para poder observar-se sobre ela o rasto do projtil.

    Mas afinal, e com geral satisfao, na noite de 11 para 12 de dezembro violentatempestade veio limpar a atmosfera e a lua destacou-se semi-iluminada no fundo negro docu.

    Naquela mesma noite expediram J.-T. Maston e Belfast, de Longs-Peak, um telegrama aosilustres membros do pessoal tcnico do Observatrio de Cambridge.

    Que anunciava aquele telegrama?Anunciava que a 11 de dezembro, s oito horas e quarenta e sete minutos da tarde, o

    projtil arremessado pela columbada de Stones-Hill tinha sido visto pelos senhores Belfast eJ.-T. Maston; que a bala, desviada por motivo ignorado, no dera no alvo, mas que passarabastante prximo dele, para ficar retida pela atrao lunar; que o movimento retilneo doprojtil se transformara em movimento circular, pelo que, nestas circunstncias, o projtil,arrastado segundo uma rbita elptica em torno do astro da noite, se convertera em satlitedeste.

    Acrescentava o telegrama que ainda no tinham podido calcular-se os elementos do novoastro. Efetivamente, necessrio observar um astro em trs posies diferentes para que taiselementos se possam deduzir.

    Alm disto, o telegrama indicava que a distncia que havia entre o projtil e a superfcielunar podia avaliar-se em duas mil oitocentas e trinta milhas aproximadamente, ou, o quevale o mesmo, em quatro mil e quinhentas lguas.

    Conclua finalmente o telegrama com a emisso das duas seguintes hipteses: ou a atraoda lua chega a ser dominante, e os viajantes vo direitos ao seu destino; ou o projtil, mantidoem rbita imutvel, gravita em torno do disco lunar at ao final dos sculos.

    Nestas diferentes alternativas, que havia de ser dos viajantes? Vveres, tinham-nos paracerto tempo, verdade. Porm, dado mesmo que a temerria empresa tivesse feliz xito, como que haviam de voltar? E acaso poderiam regressar numa poca qualquer? Porventura haviamde receber-se notcias deles? Estas questes, que foram debatidas pelos espritos maisilustrados da poca, excitaram o interesse pblico.

    Convm registar aqui um fato que deve ser meditado pelos observadores em demasiaprecipitados.

  • Quando um homem de cincia anuncia ao pblico qualquer descoberta puramenteespeculativa, toda a prudncia da parte do anunciante pouca. Ningum obrigado adescobrir planetas, cometas ou satlites e quem em tais assuntos se engana fica com justofundamento exposto s chufas da multido. Por consequncia mais vale esperar; e o quedeveria ter feito o impaciente J.-T. Maston antes de largar a correr mundo aquele telegramaque, na sua opinio, dizia a ltima palavra acerca da empresa.

    Efetivamente, o telegrama continha erros de duas espcies, como depois se verificou. 1.,erros de observao, no que dizia respeito distncia do projtil superfcie da lua, porquena data de 11 de dezembro era impossvel v-lo, pois o que J.-T. Maston vira, ou julgara ver,no podia ser a bala da columbada; 2., erros de teoria com respeito sorte que o futuroreservava ao projtil, porque fazer dele um satlite da lua era colocar-se em absolutacontradio com as leis da mecnica racional.

    S uma das duas hipteses dos observadores de Longs-Peak podia realizar-se: era a queprevia o caso de combinarem os viajantes se que ainda existiam os prprios esforoscom a atrao lunar, por forma que chegassem superfcie do disco.

    Ora aqueles homens, to inteligentes como ousados, tinham sobrevivido terrvelrepercusso do tiro partida e a viagem deles dentro do vago-bala que vamos relatar,com os mais dramticos e tambm os mais singulares pormenores. Esta narrao desfartalvez muitas iluses e muitas previses, mas h de dar exata ideia das peripcias sucedidasao longo do ousado empreendimento, tornando bem salientes os instintos cientficos deBarbicane, os recursos do industrioso Nicholl e a humorstica audcia de Michel Ardan.

    Alm de tudo isto, h de provar que perdia o tempo o digno J.-T. Maston, amigo dosnavegadores, quando, debruado para o interior do gigantesco telescpio, observava a marchada lua atravs dos espaos estelares.

  • Captulo 1 Das Dez Horas e Vinte At s Dez Horas e Quarenta eSete Minutos da Noite

    No momento em que soavam as dez horas, Michel Ardan, Barbicane e Nicholl fizeram as

    suas despedidas aos numerosos amigos que deixavam sobre a Terra. Os dois ces destinados aaclimar a raa canina nos continentes lunares j estavam encerrados dentro do projtil. Os trsviajantes aproximaram-se do orifcio do enorme tubo de ferro fundido, pelo interior do qualdesceram at ao chapu cnico da bala por meio de um guindaste volante.

    Na cpula do projtil, uma abertura que fora reservada para esse fim deu-lhes entrada novago de alumnio. Iados os cadernais do guindaste para a parte exterior, ficaraminstantaneamente desembaraadas as fauces da columbada de qualquer aparelho ou andaime.Nicholl, logo que entrou com os companheiros no projtil, tratou de lhe fechar a abertura pormeio de uma forte chapa que se segurava pelo lado de dentro com possantes parafusos depresso. Outras chapas, solidamente adaptadas, cobriram os olhos-de-boi de vidro lenticulardas vigias. Os viajantes, hermeticamente fechados na sua priso de metal, estavam imersos emprofundssima obscuridade.

    E agora, caros companheiros disse Michel Ardan , faam de conta que estamosem nossa casa. Eu c sou homem de interior, e muito sabido em arranjos domsticos. O quetemos de fazer tirar o melhor partido possvel do nosso novo alojamento, procurando acharnele os nossos cmodos habituais. Primeiro que tudo, tratemos de ver alguma coisa! O gs nose inventou para as toupeiras!

    E, ao passo que isto dizia, o descuidado rapaz acendeu um fsforo por frico na sola dabota; em seguida aproximou-o do bico cravado no recipiente em que se armazenara, debaixode alta presso, hidrognio carbonado em quantidade bastante para iluminar e aquecer oprojtil por espao de cento e quarenta e quatro horas, ou, o que vale o mesmo, seis dias eseis noites.

    O gs inflamou-se, e o projtil, assim iluminado, apareceu qual quarto confortvel, deparedes estofadas e acolchoadas, mobilado de divs circulares, e com o teto arredondado emforma de cpula.

    Todos os objetos que continha, armas, instrumentos e utenslios, solidamente ligados ssalincias arredondadas do estofo basteado, deviam aguentar impunemente o choque dapartida. Tinham-se tomado todas as precaues humanamente possveis para tirar resultado

  • satisfatrio de to cara e temerria tentativa.Michel Ardan tudo examinou e declarou-se extremamente satisfeito com a instalao. uma priso disse , mas priso que viaja; se me outorgassem o direito de deitar

    o nariz fora da janela, tomava-a de arrendamento por cem anos! Sorriste-te, Barbicane? Isso pensamento que nos queres ocultar? Pensas acaso que esta priso pode muito bem ser o nossotmulo? Pois seja embora tmulo, que no o trocava pelo de Maom, que flutua no espao,mas no anda!

    Enquanto Michel Ardan assim falava, iam Barbicane e Nicholl fazendo os preparativosque lhes faltavam.

    O cronmetro de Barbicane, que fora regulado com uma diferena inferior a um dcimo desegundo pelo do engenheiro Murchison, indicava dez horas e vinte minutos da noite na ocasioem que os trs viajantes se entaiparam definitivamente na bala. Barbicane viu as horas e disse:

    Meus amigos, so dez horas e vinte. s dez e quarenta e sete h de Murchison lanar afasca eltrica pelo fio que comunica com a carga da columbada. Nesse mesmo instantehavemos de deixar o nosso esferoide. Temos, portanto, ainda vinte e sete minutos depermanncia na Terra.

    Vinte e seis minutos e treze segundos corrigiu o metdico Nicholl. Pois bem! exclamou Michel Ardan com intonao de bom humor , em vinte e seis

    minutos faz-se muita coisa! Podem discutir-se e at resolver-se as mais graves questes demoral e de poltica! Vinte e seis minutos, bem empregados, valem mais que vinte e seis anosem que nada se faz! Alguns segundos de um Pascal ou de um Newton so mais preciosos que aexistncia inteira da indigesta multido dos imbecis...

    E que concluis tu da, eterno falador? Concluo que s nos faltam vinte e seis minutos respondeu Ardan. S vinte e quatro emendou Nicholl. Pois vinte e quatro, se isto te d prazer, meu estimvel capito admitiu Ardan ;

    vinte e quatro minutos no decurso dos quais se poderiam profundar... Michel disse Barbicane , durante a viagem havemos de ter tempo de sobra para

    aprofundar os mais rduos assuntos. Agora tratemos da partida. Pois no estamos prontos? Certamente. Porm, temos de tomar ainda algumas precaues para atenuar quanto

    possvel o primeiro choque! Pois no temos as camadas de gua dispostas entre os tabiques quebradios cuja

    elasticidade nos h de proteger suficientemente?

  • Assim o espero, Michel respondeu severamente Barbicane , mas no estou bemseguro do caso!

    Olha o velhaco! exclamou Michel Ardan. Tem esperana! No est seguro docaso!... E guarda-se para fazer-nos esta deplorvel confisso no momento em que j estamosembarrilados! Mas eu que peo que me deixem ir embora!

    E por que meio? inquiriu Barbicane. verdade disse Michel Ardan , a coisa difcil. Estamos no comboio e o

    assobio do condutor no tarda vinte e quatro minutos... Vinte precisou Nicholl.Por espao de alguns instantes olharam-se mutuamente os trs viajantes. Em seguida

    examinaram os objetos que iam encerrados com eles. Est tudo no seu lugar declarou Barbicane. Trata-se agora de decidir por que

    maneira nos havemos de colocar melhor para aguentar o choque da partida. No indiferentea posio que escolhermos; devemos, tanto quanto for possvel, evitar que nos aflua comextrema violncia o sangue cabea.

    exato aprovou Nicholl. Nesse caso observou Michel Ardan, pronto para juntar a ao s palavras

    viremo-nos de cabea para o cho e ps para o ar, como os palhaos do Great-Circus. Nada disse Barbicane , deitemo-nos de lado. Por esta forma havemos de resistir

    melhor ao choque. Notai que, no instante em que a bala partir, quase que o mesmo estardentro como diante dela.

    Se s quase fico mais descansado replicou Michel Ardan. Aprovais a minha ideia, Nicholl? perguntou Barbicane. Completamente respondeu o capito. Faltam ainda treze minutos e meio. Este Nicholl no homem exclamou Michel , um cronmetro de segundos, de

    escapo, com oito pedras...Mas os companheiros j no o escutavam: tratavam de tomar as ltimas disposies com

    inimaginvel presena de esprito. Tinham toda a aparncia de dois viajantes metdicos que,metidos num vago, procuravam acomodar-se com o maior conforto possvel. De que massasero feitos esses coraes de americanos, a que nem a aproximao do perigo maishorroroso acrescenta uma s pulsao!? o que dava vontade de perguntar!

    Tinham-se colocado no projtil trs caminhas fofas e solidamente acondicionadas. Nicholle Barbicane trouxeram-nas para o centro do disco mvel que servia de sobrado. Ali que sehaviam de deitar os trs viajantes alguns momentos antes da partida.

  • Entretanto, Ardan, que no podia estar sossegado, andava roda da estreita priso, qualfera na jaula, conversando com os amigos, falando com os ces, Diana e Satlite, aos quais,como se v, j h tempo pusera aqueles nomes significativos.

    Eh! Diana! Eh! Satlite! exclamava, excitando-os. Ides ento ensinar aos cescelestes as bonitas maneiras dos ces c da Terra? caso que h de dar honra raa canina!Por Deus! Se alguma vez voltarmos c abaixo, tenho vontade de trazer um tipo cruzado demoon-dogs, que h de fazer furor!

    Se que h ces na lua objetou Barbicane. Decerto que h afirmou Michel Ardan , assim como h cavalos, vacas, burros,

    galinhas. Aposto que encontramos l galinhas! Cem dlares em como no as havemos de encontrar apostou Nicholl. Est apostado, meu capito respondeu Ardan, apertando a mo de Nicholl. Mas,

    a propsito, tu j perdeste trs apostas com o nosso presidente, visto terem-se arranjado osfundos necessrios para a empresa, ter tido feliz xito a operao da fundio e, finalmente,ter-se carregado a columbada sem desastre: so seis mil dlares.

    verdade admitiu Nicholl. So dez horas, trinta e sete minutos e seis segundos. Ficamos cientes, capito. Pois bem, antes que se passe um quarto de hora, hs de ter de

    largar para o presidente mais nove mil dlares, quatro mil por no ter rebentado a columbadae cinco mil porque a bala h de ter subido ao ar a mais de seis milhas.

    Os dlares c esto respondeu Nicholl, batendo na algibeira do casaco ; e o queeu mais desejo ter de pagar.

    Vamos, Nicholl, vejo que s homem de ordem, coisa que eu nunca consegui ser; mas,em suma, hs de permitir-me que te diga que fizeste uma srie de apostas em que poucavantagem podes lograr.

    Ento porqu? perguntou Nicholl. Porque se ganhares a primeira, porque rebentou a columbada, e a bala de companhia,

    e nesse caso j no h Barbicane para te reembolsar os teus dlares. O valor da aposta depositei-o eu no Banco Baltimore respondeu com simplicidade

    Barbicane ; na falta de Nicholl, reverte para os herdeiros dele! Ah! Homens prticos exclamou Michel Ardan , espritos positivos! Admiro-vos

    tanto mais que nem sequer vos compreendo. Dez horas e quarenta e dois! anunciou Nicholl. S faltam cinco minutos! afirmou Barbicane. Sim! cinco minutinhos! replicou Michel Ardan. E estamos fechados numa bala,

  • no fundo de um canho de novecentos ps! E por baixo desta bala esto amontoadasquatrocentas mil libras de algodo-plvora que equivalem a um milho e seiscentas mil librasde plvora ordinria! E o amigo Murchison est de cronmetro na mo, com o olho fixo noponteiro e o dedo em cima do aparelho eltrico a contar os segundos, e vai arrojar-nos aosespaos interplanetrios!

    Basta! Michel, basta! recomendou Barbicane com voz grave. Preparemo-nos.Alguns instantes apenas nos separam do momento supremo. Um aperto de mo, meus amigos.

    Sim! exclamou Michel Ardan, mais comovido do que queria parec-lo.E os trs atrevidos companheiros apertaram-se num estreito e ltimo abrao. Deus nos tenha na sua santa guarda! disse o religioso Barbicane.Michel Ardan e Nicholl deitaram-se nas camas colocadas no centro do disco.Ainda vinte segundos! Barbicane apagou imediatamente o gs e deitou-se ao lado dos

    amigos.O silncio era profundo e apenas interrompido pelas pancadas do cronmetro que batia

    segundos.Subitamente, houve um choque medonho e o projtil, sob o impulso de dezasseis

    milhares de milhes de litros de gases desenvolvidos pela deflagrao do pirxilo, foiarrojado ao espao.

  • Captulo 2 A Primeira Meia Hora

    Que teria sucedido? Que efeito teria produzido aquele pavoroso abalo? Porventura teria

    conseguido o engenho dos construtores do projtil resultado feliz? E o choque fora acasoamortecido pelas molas, pelos quatro chapuzes, pelas almofadas, pelos tabiques quebradios?Acaso teriam dominado a temerosa impulso daquela velocidade inicial de onze mil metros,que seria bastante para atravessar Paris ou Nova Iorque num segundo? Evidentemente, era estaa interrogao que a si mesmas faziam as mil testemunhas daquela cena comovedora. Esqueciaa todos o fim da viagem para se lembrarem s dos viajantes!

    Se algum de entre os presentes J.-T. Maston, por exemplo pudera lanar um olharpara o interior do projtil, que teria visto? Naquela ocasio nada. Reinava profundaobscuridade dentro da bala. Mas, acima de tudo, as paredes cilindrocnicas tinham resistidoquanto era de esperar. Nem um buraco, nem uma flexo, nem uma deformao. O admirvelprojtil nem sequer sofrera alterao com a intensa deflagrao da plvora, nem se tinhatransformado, como alguns temiam, em chuva lquida de alumnio.

    No interior, por fim de contas, pouca era a desordem. Alguns objetos tinham sidoviolentamente arremessados de encontro cpula. Mas os de maior importncia parecia queno tinham sofrido com o choque. As prises que os seguravam estavam intactas.

    Sobre o disco mvel, que descera at culatra, depois de partidos os tabiques e de tersado a gua, jaziam sem movimento trs corpos. Respirariam ainda Barbicane, Nicholl eMichel Ardan? No seria aquele projtil um atade de metal que levava trs cadveresatravs do espao?...

    Minutos depois da partida da bala, um dos trs corpos fez um movimento; agitou osbraos, ergueu a cabea e conseguiu pr-se de joelhos. Era Michel Ardan. Apalpou-se, soltouum bem sonoro e disse:

    Michel Ardan, completo. Vejamos os outros!O corajoso francs quis levantar-se, mas no podia ter-se de p. Andava-lhe a cabea

    roda, o sangue, violentamente injetado, toldava-lhe a vista, estava como um homem brio. Brr! A coisa produz-me o mesmo efeito que duas garrafas de Corton. No entanto,

    sempre ser menos agradvel de engolir!Em seguida, passando repetidas vezes a mo pela testa e esfregando as fontes, gritou com

    voz firme:

  • Nicholl! Barbicane!E esperou com ansiedade. Nada de resposta. Nem ao menos um suspiro que indicasse que

    ainda batia o corao dos companheiros de Ardan. Repetiu a chamada, mas respondeu-lhe omesmo silncio.

    Diabo! disse. Parece que caram de cabea de um quinto andar. Ora! acrescentou com aquela confiana imperturbvel que nada podia reprimir , se um francsconseguiu pr-se de joelhos, dois americanos no ho de ter grande dificuldade para se poremde p. Mas, antes de tudo, esclareamos a situao.

    Ardan sentia que lhe voltava a vida em vagalhes. Acalmava-se-lhe o sangue, queretomava a habitual circulao. Com grande esforo conseguiu equilibrar-se e levantar-se,tirou da algibeira um fsforo e acendeu-o. Em seguida aproximou-o do bico de gs, que seacendeu tambm. No recipiente no houve desastre. O gs no se tinha espalhado. Demais, setal houvesse acontecido, t-lo-ia dado a conhecer o cheiro, e nem Michel Ardan teria podidoandar impunemente de fsforo aceso na mo naquele ambiente cheio de hidrognio. O gs,combinado com o ar, teria produzido um misto detonante, e a exploso teria acabado o que oabalo talvez comeara.

    Logo que se acendeu o bico do gs, Ardan inclinou-se sobre os corpos dos companheiros.Os dois corpos estavam um por cima do outro, como massas inertes. Nicholl por cima,Barbicane por baixo.

    Ardan levantou o capito, encostou-o a um div e deu-lhe vigorosas frices. Estaoperao, realizada com inteligncia, reanimou Nicholl, que abriu os olhos, recobrouimediatamente o sangue-frio e agarrou na mo de Ardan. Em seguida, olhando em volta de si,perguntou:

    E Barbicane? Cada um por sua vez respondeu placidamente Michel Ardan. Comecei por ti,

    Nicholl, porque estavas por cima. Vamos agora a Barbicane.Dito isto, Ardan e Nicholl levantaram em peso o presidente do Gun-Club e deitaram-no no

    div. Barbicane parecia ter sofrido mais do que os companheiros. Corria-lhe sangue do corpo,mas Nicholl tranquilizou-se verificando que a hemorragia provinha apenas de um ligeiroferimento no ombro. Uma simples esfoladela, que comprimiu com todos os cuidados.

    Apesar disto, Barbicane tardou um tanto em voltar a si, com o que se assustaram os doisamigos, que no lhe poupavam frices.

    Todavia, respira ainda disse Nicholl, aproximando o ouvido do peito do ferido. Sim respondeu Ardan , respira como um homem que tem um certo hbito dessa

  • operao quotidiana. Friccionemos, Nicholl, friccionemos com fora.E os dois improvisados cirurgies tantas e to boas frices lhe deram que Barbicane

    recobrou o uso dos sentidos. Abriu os olhos, levantou-se, agarrou na mo dos dois amigos e aprimeira coisa que disse foi:

    Nicholl, estamos a andar?Nicholl e Ardan olharam-se mutuamente. Nem tinham ainda pensado no projtil. A

    primeira preocupao deles fora pelos viajantes, no pelo projtil. verdade, estaremos ns a andar? repetiu Michel Ardan. Ou repousaremos sossegadamente no solo da Florida? perguntou Nicholl. Ou no fundo do golfo do Mxico? acrescentou Michel Ardan. Essa no est m! exclamou Barbicane.A dupla hiptese sugerida pelos companheiros produziu em Barbicane um efeito imediato.

    Voltou logo de todo a si.Caso era que naquele momento nada se podia ajuizar definitivamente acerca da situao

    da bala. A sua aparente imobilidade, a falta de comunicao com o exterior, no deixavamresolver o problema. Talvez que naquele momento o projtil galgasse a sua trajetria atravsdo espao. Talvez, depois de curta ascenso, tivesse cado em terra ou mesmo no golfo doMxico, fato que a pouca largura da pennsula floridense tornava possvel.

    O caso era grave, o problema interessante. Fora era resolv-lo depressa. Barbicane,sobre-excitado e triunfando pela energia moral da fraqueza fsica, levantou-se. Escutou.

    No exterior reinava profundo silncio. Mas a espessura do estofo basteado era bastantepara interceptar todos os rudos da Terra. A temperatura dentro do projtil estavanotavelmente alta. O presidente tirou um termmetro da caixa em que se continha e consultou-o. O instrumento marcava quarenta e cinco graus centgrados.

    Sim! exclamou ento. Sim! Vamos a andar! Este calor de abafar filtra-se atravsdas paredes do projtil; resultado do atrito das camadas atmosfricas. Em breve vaidiminuir, que j vogamos no vcuo. Depois de estarmos quase a sufocar havemos de sofrerfrios intensos.

    O qu? perguntou Michel Ardan. Ento, na tua opinio, Barbicane, estamos jfora dos limites da atmosfera terrestre?

    Sem dvida alguma, Michel. Ouve-me. So dez horas e cinquenta e cinco minutos.Partimos h oito minutos, pouco mais ou menos. Ora, se a nossa velocidade inicial nodecrescesse com o atrito, ter-nos-iam bastado seis segundos para transpor as dezasseis lguasde atmosfera que envolve o esferoide.

  • exato concordou Nicholl , porm, em que propores reputais ter-se realizadoesse decrescimento de velocidade por causa do atrito?

    Na proporo de um para trs, Nicholl respondeu Barbicane. uma diminuioconsidervel, mas exatamente o que resulta dos meus clculos. Por consequncia, se tivemosuma velocidade inicial de onze mil metros, sada da atmosfera estaria essa velocidadereduzida a sete mil trezentos e trinta e dois metros. Seja l como for, o certo que jtranspusemos esse intervalo, e...

    E nesse caso recordou Michel Ardan o amigo Nicholl perdeu mais duas apostas:quatro mil dlares por no ter rebentado a columbada e cinco mil dlares porque o projtilsubiu a mais de seis milhas de altura. Anda, Nicholl, vai pagando.

    Verifiquemos primeiro respondeu o capito e depois pagaremos. muitopossvel que os raciocnios de Barbicane sejam exatos e que eu tenha perdido os meus novemil dlares. Mas ocorre-me ao esprito uma hiptese nova que anularia o jogo.

    Qual ela? perguntou com vivacidade Barbicane. que, por uma razo qualquer, no tenha pegado fogo na plvora e ns no tenhamos

    partido. Essa no m, capito exclamou Michel Ardan. A hiptese digna da minha

    cabea! Isso no srio! Pois ns no ficamos meio esmagados pelo abalo? Pois eu no te fizvoltar vida? Pois o ombro do presidente no est ainda a deitar sangue da ferida que lhe feza repercusso?

    De acordo, Michel volveu Nicholl , mas uma pergunta s. Diz l, capito. Ouviste a detonao, que por certo havia de ser formidvel? No respondeu Ardan, em extremo surpreendido. Com efeito, no ouvi a

    detonao. E vs, Barbicane? Nem eu to-pouco. E ento? disse Nicholl. verdade murmurou o presidente , porque no ouviria nenhum de ns a

    detonao?Os trs amigos olharam-se com ar de confuso. Apresentava-se-lhes um fenmeno

    inexplicvel. E, todavia, o projtil partira: por consequncia, a detonao devia ter-seproduzido.

    Vejamos primeiramente em que altura estamos props Barbicane. Portinholas

  • abaixo!Esta operao, em extremo simples, executou-se imediatamente. As porcas que apertavam

    os parafusos contra as chapas exteriores da viga do lado direito cederam presso de umachave inglesa. Empurraram-se para fora os parafusos, tapando os buracos por onde passavamcom obturadores guarnecidos de cauchu. Seguidamente girou, descaindo em torno da respetivacharneira, qual portinhola, a chapa exterior, e apareceu o vidro lenticular que fechava a vigia.Abrira-se outra vigia idntica na espessura da parede da outra face do projtil, outra nacpula que o terminava e outra, enfim, no centro da culatra inferior. Podiam, pois, fazerobservaes em quatro direes diferentes do firmamento pelos olhos-de-boi laterais e maisdiretamente da Terra ou da lua pelas aberturas superior e inferior da bala.

    Barbicane e os dois companheiros tinham-se precipitado imediatamente sobre o vidrodescoberto. Nem um s raio de luz por ele penetrava.

    O projtil estava envolvido em profundas trevas. Apesar disso, Barbicane exclamou: No, meus amigos, no camos em terra! No, no ficamos imersos nas profundas do

    golfo do Mxico. Sim, elevamo-nos no espao! Vede essas estrelas que brilham no escuro danoite e a impenetrvel massa de trevas que se acumula entre ns e a Terra!

    Hurra! Hurra! exclamaram simultaneamente Michel Ardan e Nicholl.Na verdade, aquelas trevas compactas provavam que o projtil deixara a Terra, porque o

    solo, ento vivamente iluminado pela claridade lunar, devia tornar-se visvel aos viajantes seestivessem em repouso sobre a sua superfcie. Aquela obscuridade demonstrava tambm que oprojtil transpusera a camada atmosfrica, porque, se assim no fora, a luz difusa espalhadano ar havia de produzir nas paredes metlicas um refluxo que no existia. Essa luz havia deiluminar o olho-de-boi da vigia e o vidro estava escuro. J no era permitido duvidar. Osviajantes tinham largado a Terra.

    Perdi declarou Nicholl. Dou-te os meus parabns! disse Ardan. Aqui esto nove mil dlares afirmou o capito, tirando do bolso um mao de notas. Quereis recibo? perguntou Barbicane, agarrando nas notas. Se no vos d incmodo respondeu Nicholl. Sempre mais regular.E o presidente Barbicane, com toda a seriedade e fleuma, como se estivera no seu gabinete

    de trabalho, arrancou uma folha de papel branco do seu bloco-notas, redigiu a lpis um reciboem forma, datou-o, assinou-o, rubricou-o e entregou-o ao capito, que o meteu com todo ocuidado na carteira.

    Michel Ardan tirou o barrete que lhe cobria a cabea e inclinou-se sem dizer palavra

  • diante dos dois companheiros. Tanta formalidade em circunstncias tais deslumbrava-o eemudecia-o. Nunca vira caso to americano.

    Barbicane e Nicholl, terminada a operao, voltaram a colocar-se junto do vidro econtemplavam as constelaes. As estrelas destacavam-se como pontos salientes no fundovigoroso do cu. Mas daquele lado no podia ver-se o astro da noite, que, caminhando deleste para oeste, se erguia a pouco e pouco para o znite.

    E a lua? disse. Se lhe desse agora para faltar ao nosso rendez-vous? Est descansado respondeu Barbicane. O nosso futuro esferoide h de estar no

    seu posto, mas ns que no podemos v-lo deste lado. Vamos abrir a outra vigia lateral.No momento em que Barbicane ia afastar-se do vidro para destapar a vigia do lado

    oposto, chamou-lhe a ateno a apario de um objeto brilhante. Era um enorme disco, cujasdimenses, por colossais, nem podiam apreciar-se. A face que voltava para a Terra estavavivamente iluminada. Dir-se-ia uma lua mais pequena que refletia a luz da maior.Aproximava-se com prodigiosa velocidade e parecia descrever em volta da Terra uma rbitaque cortava a trajetria do projtil. O movimento de translao deste mvel completava-secom um movimento de rotao sobre si mesmo. Movia-se, portanto, como todos os corposcelestes isolados no espao.

    Eh! exclamou Michel Ardan. Que isto? Ser outro projtil?Barbicane no respondeu. A apario daquele enorme corpo causava-lhe tanta surpresa

    como inquietao. O encontro das duas massas no era impossvel e as consequnciashaveriam de ser deplorveis, quer o fato se reduzisse a um desvio na trajetria do projtil,quer se verificasse um choque que, aniquilando a velocidade adquirida, arrojasse a bala nadireo da Terra, quer enfim a fora atrativa do asteroide fosse bastante para que o projtilpor ela se visse irresistivelmente arrastado.

    O presidente Barbicane percebera rapidamente todas as consequncias possveis das trshipteses, que de uma ou de outra maneira traziam como resultado fatal o mau xito datentativa. Os companheiros olhavam silenciosos atravs do espao. O objeto crescia devolume com prodigiosa rapidez enquanto se ia aproximando, mas, por iluso de tica, pareciaque era o projtil que lhe corria ao encontro.

    Com mil deuses! gritou Michel Ardan. Vo-se encontrar os dois comboios!Os viajantes recuaram instintivamente, tomados de imenso terror, mas que pouco durou

    apenas alguns segundos. O asteroide passou distncia de alguns centos de metros do projtile desapareceu, no tanto por virtude da prpria velocidade, mas porque a face que olhavapara a lua se confundiu subitamente com a obscuridade absoluta do espao.

  • Boa viagem! exclamou Michel Ardan, soltando um suspiro de satisfao. Mas,pergunto, no ser o infinito ainda bastante grande para que uma pobre balazita possa por cpassar sem medo! Ora esta! Afinal, que globo ser esse que ia topando connosco?

    Eu sei o que declarou Barbicane. Forte admirao! Sabes tudo. simplesmente uma blide explicou Barbicane , mas uma blide enorme que a

    atrao da Terra reduziu condio de satlite. possvel! exclamou Michel Ardan. Tem ento a Terra dois satlites, como

    Neptuno? verdade, amigo, tem duas Luas, ainda que geralmente passa por ter uma s. Porm,

    esta segunda lua to pequena e to grande a sua velocidade que os habitantes da Terra no apodem ver. Um astrnomo francs, senhor Petit, foi quem conseguiu demonstrar a existnciadeste segundo satlite da Terra e determinar-lhe os elementos, mas foi metendo em linha deconta nos seus clculos certas perturbaes. Segundo as observaes deste astrnomo, ablide realiza a sua revoluo em volta da Terra em trs horas e vinte minutos somente, o quepressupe uma velocidade prodigiosa.

    E os astrnomos perguntou Nicholl admitem todos a existncia desse satlite? No respondeu Barbicane , mas se se tivessem encontrado com ele, como ns, j

    no poderiam duvidar. verdade, foi bom lembrar, essa blide, que nos havia de incomodarse chocasse com o projtil, fornece-nos meio para determinar com preciso a nossa situaono espao.

    Mas como? inquiriu Ardan. Pela sua distncia Terra, que conhecida. No ponto em que a encontramos estvamos

    exatamente a oito mil cento e quarenta quilmetros do globo terrestre. Mais de duas mil lguas! exclamou Michel Ardan. Isso que de enterrar todos

    os comboios expressos desse msero globo que se chama Terra! Pudera no respondeu Nicholl, consultando o cronmetro. So onze horas e h

    apenas treze minutos que largamos do continente americano. S treze minutos? disse Barbicane. Sim respondeu Nicholl , e se a nossa velocidade inicial de onze quilmetros no

    tiver diminudo, havemos de andar perto de dez mil milhas por hora! Tudo isto muito bom, meus amigos admitiu o presidente , mas sempre temos um

    problema insolvel. Porque seria que ns no ouvimos a detonao da columbada?Cessou a conversao por falta de resposta, e Barbicane, ainda a refletir no caso, tratou de

  • baixar a portinhola da segunda vigia lateral. A lua, entrando pelo vidro destapado, iluminoucom brilhantes raios todo o interior do projtil. Nicholl, como homem econmico que era,apagou o gs que se tornara intil e que, alm disso, prejudicava com a luz brilhante aobservao dos espaos interplanetrios.

    O disco lunar brilhava ento com incomparvel pureza. Os raios da luz lunar, que j novinham coados pela atmosfera vaporosa do globo terrestre, filtravam-se atravs do olho-de-boi e saturavam o ambiente interior do projtil de reflexos argnteos. O negro vu dofirmamento duplicava, na verdade, o resplandecente claro da lua, que, naquele vcuo do ter,imprprio para a difuso da luz, no eclipsava as estrelas prximas.

    O cu, assim visto, apresentava um aspeto inteiramente novo, que o olho humano nopodia suspeitar. Concebe-se bem com que interesse aqueles temerrios contemplariam o astroda noite, supremo objetivo da sua viagem.

    O satlite da Terra, seguindo o seu movimento de translao, ia-se aproximandoinsensivelmente do znite, ponto matemtico a que deveria chegar proximamente noventa eseis horas depois. As montanhas, as plancies, enfim, todo o relevo do astro, no sedestacavam com mais preciso aos olhos dos viajantes do que se os contemplassem dequalquer ponto da Terra; porm, a luz lunar atravs do vcuo desenvolvia-se comincompreensvel intensidade. O disco resplandecia qual espelho de platina. Da Terra, que lhesfugia debaixo dos ps, que os viajantes tinham j de todo perdido a recordao.

    O capito Nicholl foi o primeiro que fez volver a ateno para o globo que tinham perdidode vista.

    verdade! disse Michel Ardan , no devemos ser-lhe ingratos. J queabandonamos a ptria, sejam para ela os nossos ltimos olhares. Quero tornar a ver a Terraantes que de todo se eclipse!

    Barbicane, para satisfazer os desejos do companheiro, comeou a desentulhar o postigo dofundo do projtil, por onde se podia observar diretamente a Terra. Desarmou-se, com algumtrabalho, o disco mvel que a fora da projeo levara at culatra. Os bocados deste, que searrumaram com cuidado encostados s paredes, podiam servir ainda, em caso de necessidade.Feito isto, apareceu um vo circular, de cinquenta centmetros de dimetro, vazado na parededo fundo da bala, fechado por meio de um olho-de-boi de quinze centmetros de espessura ereforado por um caixilho de cobre. Adaptava-se-lhe pela parte de baixo uma chapa dealumnio segura por parafusos. Desatarraxadas as porcas e tirados os parafusos, caiu a chapa,e ficou estabelecida a comunicao entre o interior e o exterior.

    Michel ajoelhara por cima da vidraa. Estava escura, como se fora opaca.

  • E ento?! exclamou. E a Terra? A Terra disse Barbicane est ali. O qu?! estranhou Ardan. aquela orla estreitinha, aquele crescente prateado? Certamente, Michel. Dentro de quatro dias, quando a lua entrar no plenilnio, mesmo

    no momento em que l chegarmos, entrar a Terra na fase de Terra nova; ento, h deaparecer-nos sob a forma de um crescente delgado, que no tardar em desaparecer, e da emdiante h de ficar, pelo espao de alguns dias, imersa em sombras impenetrveis.

    Aquilo?! A Terra?! repetiu Michel Ardan, abrindo quanto podia os olhos paracontemplar exclusivamente aquela estreita talhada do planeta natal.

    A explicao dada pelo presidente Barbicane era exata. A Terra achava-se, em relao aoprojtil, na ltima fase. Estava no minguante e s dela era visvel um crescente estreitodesenhado com preciso no fundo negro do cu. A luz terrestre, azulada pela espessura dacamada atmosfrica, aparentava menor intensidade que a luz do crescente lunar. O crescenteterrestre apresentava-se com dimenses considerveis. Dir-se-ia que era um arco enormeestendido por sobre o firmamento. Revelavam a existncia de altas montanhas, principalmentena parte cncava do arco, alguns pontos vivamente iluminados; porm, ocultavam-nos porvezes escuras manchas, como nunca se veem na superfcie do disco lunar. Estas manchas eramanis de nuvens concentricamente colocadas em volta do esferoide terrestre.

    Contudo, em virtude dum fenmeno natural, idntico ao que se verifica na lua quando estno primeiro e ltimo quartel, era possvel distinguir o contorno completo do globo terrestre. Odisco inteiro deste estava ento bastante visvel em virtude de um efeito de uma luz cendrada,menos aprecivel que a luz cendrada da lua. E a razo desta menor intensidade fcil decompreender. Este reflexo, quando se realiza superfcie da lua, devido aos raios solaresque a Terra reflete na direo do seu satlite. No caso presente, por inversa causa, era devidoaos raios solares refletidos na lua em direo Terra. Ora a luz terrestre proximamente trezevezes mais intensa que a luz lunar, fato que depende da diferena de volume dos dois corpos.Da vem como consequncia que, no fenmeno da luz cendrada, a parte obscura do disco daTerra se destaca com menor preciso que a do disco da lua, porquanto a intensidade dofenmeno proporcional ao poder iluminante dos dois astros. Necessrio acrescentartambm que o crescente terrestre parecia formar uma curva mais alongada que a do discocompleto. Efeito de irradiao, nada mais.

    Enquanto os viajantes buscavam penetrar as profundas trevas do espao, volveu-se-lhesante os olhos um cintilante ramalhete de estrelas cadentes. Centenas de blides, inflamadaspelo contacto da atmosfera, sulcavam as trevas de esteiras luminosas, listrando com seus

  • lumes a parte cendrada do disco terrestre. Naquela poca estava a Terra no perilio, e o msde dezembro por tal forma propcio apario das estrelas cadentes que os astrnomos tmpor vezes chegado a contar vinte e quatro mil por hora. Michel Ardan, porm, que pouco casofazia dos raciocnios cientficos, preferiu acreditar que era a Terra que saudava com os seusmais brilhantes fogos de artifcio a partida de trs dos seus filhos.

    Em suma, o que deixamos dito era tudo quanto viam daquele esferoide perdido por entreas sombras, astro inferior do mundo solar, que para os grandes planetas nasce e se pe qualsimples estrela da manh ou da tardei Ponto imperceptvel do espao, aquele globo ondetinham deixado quanto lhes era caro, era nesse momento apenas um crescente fugitivo!

    Por largo espao estiveram em contemplao os trs amigos, silenciosos, mas ligados pelacomunidade do que sentiam no corao, enquanto o projtil se afastava com velocidadeuniformemente decrescente. Por fim invadiu-lhes o crebro uma sonolncia irresistvel. Seriacansao de corpo e de esprito? No havia que duvidar, porque, depois da sobre-excitaodas ltimas horas passadas na Terra, a reao era inevitvel.

    Pois bem disse Michel Ardan , se no h remdio seno dormir, durma-se.E os trs homens, depois de se terem estendido nas respetivas camas, prontamente

    mergulharam em profundo sono.Mal teriam pegado a sopitar havia um quarto de hora, quando Barbicane se levantou

    subitamente e acordou os companheiros, exclamando com voz formidvel: Achei! E que achaste tu? perguntou Michel Ardan, saltando fora da cama. A razo por que no ouvimos a detonao da columbada! E ?... disse Nicholl. Porque o projtil andava mais depressa que o som!

  • Captulo 3 Instalao

    Mal foi dada esta curiosa, mas por certo exata explicao do fenmeno, os trs amigos

    mergulharam de novo em profundo sono. E, na verdade, onde poderiam encontrar lugar maissossegado, ambiente mais tranquilo para dormir? Na Terra, as casas da cidade ou as cabanasdo campo todas elas se ressentem de qualquer abalo que se comunique crusta do globo. Nomar, o navio batido pelas ondas, todo ele choque e movimento. No ar, o balo oscila semcessar por sobre as camadas fluidas de diferentes densidades. S aquele projtil, que flutuavano vcuo absoluto e no meio de profundo silncio, permitia aos seus hspedes o maiorrepouso.

    Em consequncia, ter-se-ia talvez prolongado indefinidamente o sono dos trs viajantes seno fossem acordados por um rudo inesperado por volta das sete horas da manh do dia 2 dedezembro, oito horas depois da partida.

    Este rudo era um latido perfeitamente caracterizado. Os ces! So os ces! exclamou Michel Ardan, levantando-se de pronto. Tm fome disse Nicholl. E no admira observou Michel ; tnhamo-nos esquecido deles. E onde esto? perguntou Barbicane.Procuraram e conseguiram achar um dos animais agachado debaixo do div. Aterrado,

    aniquilado pelo choque inicial, tinha ficado metido naquele canto at que lhe voltou a voz como sentimento da fome.

    Era a amvel Diana, ainda toda encolhida, que foi saindo do canto em que se refugiara, fora de a chamarem. Michel Ardan tratava de a animar com palavras extremamentecarinhosas.

    Vem c, Diana dizia , vem, filha minha! Tu, cujos destinos ho de assinalar-se nosanais cinegticos! Tu, a quem os pagos teriam dado por companheira ao deus Anbis e oscristos por amigo a S. Roque! Tu, que eras digna de ser modelada em bronze pelo rei dosinfernos como esse tot que Jpiter cedeu bela Europa em troca de um beijo! Tu, cujacelebridade h de eclipsar a dos heris de Montargis e do monte S. Bernardo! Tu, que,arrojando-te aos espaos interplanetrios, virs talvez a ser a Eva dos ces selenitas! Tu, quehs de justificar l em cima estas palavras de Toussenel: No princpio criou Deus o homeme, vendo-o to fraco, deu-lhe o co! Vem c, Diana!, aqui!

  • Diana, quer ficasse lisonjeada, quer no, ia-se aproximando a pouco e pouco e soltavagemidos de queixa.

    Bom! disse Barbicane. A Eva vejo eu, agora falta-nos o Ado. Ado! respondeu Michel , Ado no pode estar longe! Est por a metido nalgum

    canto! Chama-se! Satlite! Aqui, Satlite.Mas Satlite no dava sinal de si. Diana continuava a gemer. Verificando que no estava

    ferida, logo lhe deram apetitosa papana, que lhe fez calar os queixumes. Satlite queningum lograva achar. Mas tanto buscaram at que o encontraram num dos repartimentossuperiores do projtil, para onde uma repercusso, difcil de explicar, o tinha violentamentearremessado. O pobre animal estava num msero estado.

    Diabo! A aclimao que tnhamos projetado est muito comprometida.Tiraram para baixo, com precauo, o infeliz co. A cabea tinha-se-lhe esmagado de

    encontro cpula e difcil parecia que o animal pudesse voltar vida depois de semelhantepancada. Apesar disso, deitaram-no com todos os cuidados possveis em cima de umaalmofada. Logo que o deitaram, deixou escapar um gemido.

    Havemos de tratar de ti prometeu Michel. Ns que somos responsveis pela tuaexistncia. Antes queria perder um brao do que uma pata do meu pobre Satlite!

    E, dizendo isto, ofereceu alguns goles de gua ao infeliz animal, que os bebeu com avidez.Prestados os primeiros cuidados a Satlite, comearam os viajantes a observar de novo

    com ateno a Terra e a lua. A Terra apresentava-se-lhes agora como um disco cendrado,apenas orlado, em um dos lados, por um crescente ainda mais delgado do que na vspera; maso volume do globo terrqueo ainda parecia enorme em comparao com o da lua que cada vezmais se aproximava aa forma do crculo perfeito.

    Ora esta! observou ento Michel Ardan , tenho realmente pena de que notivssemos partido no momento da Terra cheia, quer dizer, no momento em que o nosso globoestava em oposio com o sol.

    Porqu? perguntou Nicholl. Porque havamos de ter visto sob um aspeto diferente os continentes e os mares

    terrestres, estes resplandecentes pela reflexo dos raios solares, aqueles mais escuros, taiscomo vm reproduzidos em alguns mapa-mndis! Desejara ter visto esses plos da Terra emcima dos quais ainda no logrou fixar-se a vista de um homem!

    E com razo concordou Barbicane. Porm, se a Terra estivesse em Terra cheia,estaria a lua em lua nova, isto , invisvel, por causa da irradiao do sol. E o caso que maisvale ver o alvo a que pretendemos chegar do que o ponto de partida.

  • Barbicane tem razo apoiou Nicholl ; e demais, depois de chegarmos lua, h desobejar-nos tempo, durante as compridas noites lunares, para contemplarmos maisdemoradamente esse globo que est coberto dos nossos semelhantes!

    Nossos semelhantes! exclamou Michel Ardan. Agora j so tanto nossossemelhantes como os Selenitas. Ns habitamos um mundo novo, s por ns povoado, que oprojtil! Meu semelhante Barbicane, o semelhante de Barbicane Nicholl. Para alm de ns,fora de ns, tem fim a humanidade; ns que somos as populaes nicas deste microcosmo,at o momento em que nos tornemos simples Selenitas!

    O que suceder dentro de oitenta e oito horas pouco mais ou menos replicou ocapito.

    Queres com isso dizer?... perguntou Michel Ardan. Que so oito e meia respondeu Nicholl. Pois, nesse caso volveu Michel , no me possvel encontrar sombra sequer de

    razo para que no almocemos neste mesmo instante.E, na verdade, os habitantes do novo astro no podiam l viver sem comer; o estmago

    comeava a lembra-lhes as leis imperiosas da fome.Michel Ardan, na sua qualidade de francs, declarou-se cozinheiro-mor, emprego cujas

    importantes funes lhe no suscitaram concorrentes.Forneceu o gs os graus de calor suficientes para os preparativos culinrios e a caixa dos

    mantimentos dispensou os elementos deste primeiro festim.Comeou o almoo por trs xcaras de excelente caldo, obtido pela liquefao em gua

    quente das preciosas pastilhas de Liebig, preparadas com os melhores bocados dos ruminantesdos Pampas. Seguiram-se ao caldo de vaca algumas fatias de beefsteak comprimido pelaprensa hidrulica, to tenras e suculentas como se sassem naquele instante das cozinhas doCaf Anglais. Michel, que era homem de imaginao, at sustentou que ainda estavam emsangue.

    Ao prato de carne seguiram-se legumes de conserva mais frescos do que na horta,segundo disse tambm o amvel Michel; tudo acompanhado de algumas chvenas de ch efatias de po com manteiga moda da Amrica. O ch, que todos declararam saboroso, erauma infuso de folhas de primeira classe; fora o imperador da Rssia que presenteara osviajantes com algumas caixas.

    Finalmente, e para rematar com honra aquela refeio, Ardan desencantou uma excelentegarrafa de Nuits, que se encontrou por acaso no repartimento dos viveres. Os trs amigosbeberam unio da Terra com o seu satlite.

  • E o sol, como se no julgara bastante para o caso aquele vinho generoso que destilara nosvinhedos de Borgonha, quis, por si prprio, associar-se ao repasto.

    O projtil saa naquele momento do cone de sombra projetado pelo globo terrestre e osraios do astro radiante bateram diretamente no disco inferior da bala, em virtude do nguloque a rbita da lua faz com a Terra.

    o sol exclamou Michel Ardan. Certamente confirmou Barbicane. J o esperava. Contudo disse Michel , o cone de sombra que a Terra deixa atrs de si no espao

    vai alm da lua? Muito alm, se no atendermos refrao atmosfrica explicou Barbicane.

    Porm, quando a lua est envolvida nessa sombra, porque os centros dos trs astros, sol,Terra e lua, esto em linha reta. Nessa ocasio coincidem os nodos com as fases da lua cheia eh eclipse. Se tivssemos partido em ocasio de eclipse da lua, teramos feito toda a viagemdentro da sombra, o que seria pouco agradvel.

    E porqu? Porque, apesar de navegarmos no vcuo, o nosso projtil, imerso nos raios solares, h

    de aproveitar-lhes a luz e o calor. Por consequncia, economia de gs, economia por todos osrespeitos preciosa.

    Na realidade, sob a ao daqueles raios dos quais atmosfera alguma mitigava o ardor e obrilho, o projtil aquecia-se e iluminava-se, como se de sbito passasse do inverno ao estio.

    Por baixo e por cima inundavam-no de calor e luz os flamejantes fachos da lua e do sol. Est-se aqui agradavelmente declarou Nicholl. Forte dvida! exclamou Michel Ardan. Se tivssemos no nosso planeta de

    alumnio uma poro de terra vegetal e semessemos ervilhas, nasciam em vinte e quatrohoras. S tenho medo de uma coisa: que as paredes do projtil se derretam!

    Podes estar descansado, digno amigo respondeu Barbicane. O projtil jaguentou uma temperatura sem comparao mais elevada quando passou atravs das camadasatmosfricas. Nem me admirarei nada se ele tiver aparecido aos habitantes da Florida sob oaspeto de uma blide inflamada.

    Mas, ento, deve J.-T. Maston pensar que ficamos assados. O que me admira redarguiu Barbicane que o no ficssemos. Esse era um

    perigo que no tnhamos previsto. Temia-o eu afirmou simplesmente Nicholl. E no nos disseste nada, sublime capito! exclamou Michel Ardan, apertando a mo

  • do companheiro.Entretanto, Barbicane tratava de se instalar no projtil, como se houvesse de fazer dele

    habitao perptua. No ficou por certo esquecido que o vago areo tinha na base umasuperfcie de cinquenta e quatro ps quadrados e de altura doze ps at ao ponto mais alto dacpula; que fora habilmente repartido e arrumado no interior; que nele ocupavam poucoespao os instrumentos e utenslios de viagem, cada um dos quais tinha o seu lugar especial, oque permitia aos seus trs habitantes certa liberdade de movimentos.

    A espessa vidraa que fechava a escavao central da culatra podia aguentar sem riscoconsidervel peso. Portanto, Barbicane e os companheiros andavam por cima dela como sefora slido sobrado; mas o sol, cujos raios nela incidiam diretamente, iluminando pela partede baixo o interior do projtil, produzia singulares efeitos de luz.

    Comearam por inspecionar o estado do depsito de gua e do depsito de vveres. Estesrecipientes, graas s precaues tomadas para neutralizar o choque, nada tinham sofrido.

    Os mantimentos eram abundantes e podiam alimentar os trs viajantes por espao de umano. Barbicane quisera prevenir-se para o caso em que o projtil abordasse a alguma regioda lua completamente estril. A respeito de gua e da reserva de aguardente, que andava porcinquenta gales, apenas chegaria para dois meses. Mas, dando crdito s ltimasobservaes dos astrnomos, tinha a lua uma atmosfera baixa, densa, espessa, pelo menos nosvales profundos; portanto, no podiam deixar de existir ali fontes e ribeiros. Porconsequncia, no deviam os atrevidos exploradores sofrer de fome nem de sede durante aviagem, nem ainda no decurso do primeiro ano depois de estarem instalados no continentelunar.

    Restava somente a questo do ar no interior do projtil.O aparelho Reiset e Regnault, destinado a produzir oxignio, estava abastecido de clorato

    de potssio para dois meses. Verdade que o prprio aparelho produtor do oxignio consumiauma certa quantidade de gs de iluminao, porque tinha de manter a matria produtora aquatrocentos graus de temperatura. A respeito, porm, de gs de iluminao, esse havia desobra.

    O funcionamento do aparelho no exigia seno alguma vigilncia, porque era automtico.A temperatura elevada que mencionamos, o clorato de potssio abandonava, transformando-seem cloreto de potssio, todo o oxignio que nele se continha. Vejamos agora que quantidadedeste gs produziam dezoito libras de clorato de potssio: exatamente as sete libras deoxignio necessrias para o consumo quotidiano dos habitantes do projtil.

    Contudo, no era bastante renovar o oxignio consumido; era necessrio tambm absorver

  • o cido carbnico produzido pela expirao, e no espao de doze horas a atmosfera dointerior do projtil tinha-se carregado desse gs absolutamente deletrio, produto final dacombusto dos elementos do sangue pelo oxignio inspirado. Nicholl reconheceu que era esteo estado do ambiente vendo que Diana respirava com grande dificuldade. Com efeito, o cidocarbnico em virtude de fenmeno idntico quele que se observa na famosa Gruta do Co acumulava-se na parte inferior do projtil por fora da prpria densidade.

    A pobre Diana, que estava com a cabea baixa, devia sofrer, portanto, antes dos seusdonos, os efeitos da presena do cido carbnico.

    Apressou-se, porm, o capito Nicholl em resolver imediatamente aquele estado decoisas.

    Colocou no fundo do projtil grande nmero de recipientes com potassa custica, queagitou por espao de algum tempo; esta substncia, que extremamente vida do cidocarbnico, absorveu-o completamente, purificando assim a atmosfera interna.

    Comearam ento a fazer o inventrio dos instrumentos. Termmetros e barmetros, todostinham resistido, excetuado um termmetro de mnima, cujo reservatrio se quebrara.Penduraram na parede um timo aneroide, tirado do estojo almofadado em que repousava.Como era natural, as indicaes deste instrumento referiam-se unicamente presso que sobreele exercia a atmosfera interna do projtil, cujo ndice hidromtrico tambm indicava.Naquele momento oscilava o ponteiro do aneroide entre 765 e 760 milmetros, o que queriadizer, portanto, bom tempo.

    Barbicane levara tambm consigo grande nmero de bssolas, que acharam intactas. fcil de compreender que naquelas condies a agulha da bssola estava louca, isto , semdireo fixa. Porque, na verdade, o plo magntico no podia exercer sobre o instrumentoao sensvel, visto a distncia a que o projtil estava da Terra. Mas era possvel que aquelasmesmas bssolas, transportadas para o disco lunar, l servissem para verificar fenmenos alipeculiares. Em todo o caso, no deixaria de ser interessante observar se o satlite da Terraestava como esta submetido influncia magntica.

    Passou-se tambm minuciosa inspeo, e com bom resultado, apesar da violncia do abaloinicial, a todos os instrumentos seguintes: um hipsmetro, para medir a altitude das montanhaslunares; um sextante, destinado a apreciar a altura do sol; um teodolito, instrumento geodsicoque serve para levantar plantas e reduzir ngulos ao horizonte, e vrios culos de alcance,cujo emprego devia ser muito apreciado e til nas proximidades da lua.

    A respeito de utenslios picaretas, alvies e ferramenta vria de que Nicholl fizeraproviso especial e escolhida; a respeito de sacos de sementes diversas e de arbustos, que

  • Michel Ardan tencionava transplantar para as terras selenitas, estava tudo nos seus respetivoslugares, nos repartimentos da parte superior do projtil, onde se escavara uma espcie desto, atulhado de objetos vrios que o prdigo francs ali havia amontoado. Que espcie deobjetos eram esses, ningum o sabia, nem o alegre moo dava explicaes a tal respeito. Devez em quando trepava pelos espiges de ferro rebatidos nas paredes at quele cafarnaum,cuja inspeo reservara para si prprio. Arranjava, arrumava, metia, rpida, a mo em certascaixas misteriosas, cantando com o mais extraordinrio falsete alguma velha canoneta deFrana que amenizava a tarefa.

    Barbicane viu com satisfao que os foguetes e demais fogos artificiais no tinhamsofrido alterao. Aqueles importantes maquinismos, possantemente carregados, tinham deservir para afrouxar a queda do projtil, quando este, solicitado pela atrao lunar e depois deter transposto o ponto de atrao neutra, viesse a cair sobre a superfcie da lua. Queda que,alis, havia de ser seis vezes menos rpida do que se se realizasse superfcie da Terra, emvirtude da diferena da massa dos dois astros.

    Terminou a inspeo com geral satisfao. Seguidamente voltaram todos a observar oespao pelas janelas laterais ou pela vidraa inferior.

    O espetculo continuava como antes. Por toda a extenso da esfera celeste era umformigueiro de estrelas e constelaes de maravilhosa pureza, capaz de enlouquecer qualquerastrnomo. Por um lado, o sol, qual boca de forno em brasa, disco deslumbrante e semaurola, destacando-se no fundo negro do cu; por outro lado, a lua, como se estivesse imvelno centro do mundo estelar, devolvendo-lhe pela reflexo os luminosos fachos. Mais embaixo, uma ndoa bem escura, que parecia abrir no firmamento um buraco ainda semiorladopor estreita faixa de prata: era a Terra. Aqui e acol, nebulosas acumuladas como grandesfrocos de neve sideral, e, desde o znite at ao nadir, um imenso anel formado de impalpvelpoeira de astros, a Via Lctea, no meio da qual o sol apenas considerado como estrela dequarta grandeza.

    Os observadores no podiam despregar os olhos daquele espetculo to novo, do qualnenhuma espcie de descrio poderia dar ideia. Que reflexes no lhes sugeriu! Quedesconhecidas emoes no lhes despertou na alma! Barbicane quis comear a narrao daviagem debaixo da ao daquelas impresses. Tomou, hora por hora, nota de todos osacontecimentos que assinalavam o comeo da tentativa, escrevendo pausadamente, com a sualetra grande e quadrada, e em estilo um tanto comercial.

    Neste entretanto, o calculador Nicholl passava revista s suas frmulas de trajetrias,manejando os algarismos com destreza sem igual. Michel Ardan dava conversa ora a

  • Barbicane, que mal lhe respondia, ora a Nicholl, que nem o ouvia, ora ento a Diana, quenada percebia das suas teorias, ou, enfim, a si mesmo formulando perguntas e dando a simesmo respostas, andando de c para l, tratando de mil mincias, ora inclinado por cima davidraa inferior, ora empoleirado nas alturas do projtil mas sempre cantarolando. Naquelemicrocosmo era ele o representante da agitao e loquacidade francesas, e pode dar-se comocerto que estavam ambas perfeitamente representadas.

    O dia, ou, para melhor dizer porque a expresso no exata , o intervalo de dozehoras que na Terra perfaz o dia, terminou por uma ceia copiosa e delicadamente preparada.Nenhum incidente ocorrera at ento capaz de abalar a confiana dos viajantes.

    Por conseguinte, adormeceram sossegadamente, cheios de esperana, e j seguros de bomxito, ao passo que o projtil transpunha os caminhos do cu com velocidade uniformementedecrescente.

  • Captulo 4 Um Bocadinho de lgebra

    Passou-se a noite sem ocorrncia digna de meno. Para falar verdade, a palavra noite

    pouco apropriada.A posio do projtil, em relao ao sol, no variara. Astronomicamente falando, era dia

    na parte inferior da bala e noite na parte superior.Por consequncia, sempre que numa narrao forem empregadas as palavras dia e

    noite, exprimem o intervalo de tempo que decorre entre o nascimento e o ocaso do sol naTerra.

    O sono dos viajantes foi perfeitamente sossegado, apesar da excessiva velocidade doprojtil, porque este parecia em relao a eles absolutamente imvel. Nenhum movimento lhesdenunciava a marcha da bala atravs do espao. O deslocamento, por muito rpido que seja,no pode produzir efeito sensvel sobre o organismo quando se realiza no vcuo ou, ainda,quando a massa ambiente circula com o mvel.

    Qual o habitante da Terra que lhe percebe a velocidade, alis de noventa mil quilmetrospor hora?

    O movimento em tais condies sente-se tanto como o repouso e por isso todos oscorpos lhe so indiferentes. Um corpo que est em repouso h de permanecer assim at queuma qualquer fora exterior o desloque. Um corpo que est em movimento no para at que umobstculo qualquer venha tolher-lhe a marcha. Esta indiferena para o movimento e para orepouso a inrcia.

    Barbicane e os companheiros podiam, portanto, julgar-se em absoluta imobilidade,encerrados como estavam dentro do projtil. E o mesmo seria tambm o efeito se estivessemcolocados no exterior dele. Se no fora a lua, que por cima dos viajantes ia sucessivamenteaumentando de volume, haviam de jurar que flutuavam em completa estagnao.

    Naquela manh, dia 3 de dezembro, foram os viajantes acordados por um rudo alegre masinesperado. Era o canto do galo que ressoava no interior do vago.

    Michel Ardan, que era sempre o primeiro a levantar-se da cama, trepou ao cume doprojtil e, fechando um caixote entreaberto, disse com voz sumida:

    Fazes favor de te calar? Ento o animalejo no ia frustrando as minhas combinaes!Entretanto, Nicholl e Barbicane tinham acordado. Um galo? exclamara Nicholl.

  • Nada, no, amigos respondeu com vivacidade Michel , fui eu que vos quisdespertar com este garganteado campestre!

    E, dizendo isto, soltou um cocoroc esplndido, que teria honrado ainda o mais orgulhosodos galinceos.

    Os dois americanos no puderam conter o riso. Bonita habilidade disse Nicholl, olhando para o companheiro com ar suspeitoso. verdade concordou Michel , uma brincadeira da minha terra. Muito gaulesa.

    Imita-se l o canto do galo at nas sociedades mais escolhidas!E, mudando logo de conversa, disse: Sabes em que pensei toda a noite, Barbicane? No respondeu o presidente. Nos nossos amigos de Cambridge. J havias de notar, por certo, que sou

    admiravelmente ignorante em assuntos de matemticas. Por conseguinte, no posso de modoalgum adivinhar como foi que os sbios do Observatrio poderiam calcular a velocidadeinicial que o projtil deveria ter ao largar a columbada, para poder chegar lua.

    Queres tu dizer replicou Barbicane , para poder chegar ao ponto neutro em que seequilibram as atraes terrestres e lunar, porque a partir deste ponto, situado a cerca de novedcimos de caminho, h de o projtil cair para a lua, em virtude somente da prpriagravidade.

    Seja respondeu Michel , mas, apesar disso, volto minha pergunta: comopuderam eles calcular a velocidade inicial?

    Nada mais fcil respondeu Barbicane. E tu sabias fazer o clculo? perguntou Michel Ardan. Perfeitamente. Nicholl e eu t-lo-amos feito se a nota do Observatrio nos no tivesse

    livrado desse trabalho. Pois quanto a mim, meu velho Barbicane, era mais fcil cortarem-me a cabea,

    comeando pelos ps, do que obrigarem-me a resolver semelhante problema! porque no sabes lgebra replicou sossegadamente Barbicane. Hum! So todos da mesma raa estes papa-xx! Em dizendo lgebra est dito tudo,

    no admitem rplica. Olha l, Michel: pensas que seria possvel forjar sem martelo ou lavrar sem arado? Havia de ser difcil. Pois bem, a lgebra uma ferramenta, como o arado ou o martelo, e ser to til quanto

    melhor dela nos soubermos servir.

  • Srio? Serssimo! E s capaz de manejar essa ferramenta diante de mim? Se isso te agradvel. E de ensinar-me como que calcularam a velocidade inicial do nosso projtil? Sou, meu digno amigo. Atendendo a todos os dados do problema, distncia do centro

    da Terra ao centro da lua, raio da Terra, massa da Terra e massa da lua, posso deduzirexatamente, por uma simples frmula, o valor que devia ter a velocidade inicial do projtil.

    Vejamos a frmula. J a vais ver. Mas nota que no vou apresentar-te a curva realmente descrita pela bala

    da Terra lua, metendo em conta o movimento de translao em volta do sol. No. No clculoque vamos fazer havemos de considerar os dois astros como se estivessem imveis; quantobasta.

    E porqu? Porque proceder de outra maneira equivaleria a pretender achar a soluo do problema

    intitulado problema dos trs corpos e o clculo integral no est ainda suficientementeadiantado para o resolver.

    E esta! disse Michel Ardan com ar de fingida seriedade ; com que ento nem asmatemticas podem considerar-se cincias completas.

    Decerto que no respondeu Barbicane. Bem! Os Selenitas talvez tenham dado maior adiantamento ao clculo integral do que

    os habitantes da Terra! Mas, a propsito, isso de clculo integral que ? um clculo inverso do clculo diferencial esclareceu Barbicane, muito srio. Se me no ds outras explicaes, fico-te muito obrigado. Por outra, um clculo por via do qual se buscam as quantidades finitas, sendo

    conhecidas as respetivas diferenciais. Isso ao menos tem o mrito de ser claro declarou Michel, com ar de completa

    satisfao. D-me agora um papel e um lpis, que em menos de meia hora te vou achar a frmula

    que desejamos.Dito isto, Barbicane engolfou-se na sua obra, ao passo que Nicholl ia observando o

    espao, deixando ambos ao cuidado do companheiro os preparativos do almoo.Nem meia hora teria ainda decorrido e j Barbicane, levantando a cabea, mostrava a

    Michel Ardan uma pgina coberta de sinais algbricos, no meio dos quais sobressaa a

  • seguinte frmula geral:

    E isso que quer dizer? perguntou Michel. Quer dizer respondeu Nicholl que: a metade de v ao quadrado menos v zero ao

    quadrado igual a gr que multiplica r sobre x menos um, mais m linha sobre m que multiplicar sobre d menos x, menos r sobre d menos r...

    X sobre y montado em z e a cavalo em p exclamou Michel Ardan, desatando sgargalhadas. Pois tu compreendes isso, capito?

    No h coisa mais clara. Pois no! disse Michel. At se me est a meter pelos olhos! To claro , que

    dispenso mais explicaes. Sempiterno mangador! replicou Barbicane. J que quiseste lgebra hs de ficar

    farto de lgebra at aos olhos! melhor enforcarem-me! E na verdade respondeu Nicholl, que estava a examinar a frmula como sabedor

    a coisa parece-me bem achada, Barbicane. a integral da equao das foras vivas; no tenhoa menor dvida de que nos dar o resultado procurado.

    Mas eu tambm queria entender! exclamou Michel. Dava at dez anos da vida deNicholl para entender!

    Ento ouve continuou Barbicane. A metade de v dois ao quadrado menos v zeroao quadrado a frmula que nos d a meia variao da fora viva.

    Bem, e Nicholl sabe o que isso quer dizer? Decerto, Michel afirmou o capito. Esses sinais todos, que te parecem

    cabalsticos, so, contudo, para quem sabe l-los, a mais clara, a mais precisa e a mais lgicade todas as linguagens.

    E queres tu convencer-me, Nicholl disse Michel , de que por meio desseshierglifos, mais incompreensveis do que os bis do Egito, hs de conseguir achar o valor davelocidade inicial que se devia imprimir no projtil?

    E sem rplica assegurou Nicholl. Por meio desta frmula at te posso sempredizer qual a velocidade do projtil em qualquer ponto do caminho.

  • Palavra? Palavra. Ento, sempre tu s to esperto como o nosso presidente? No, Michel. Difcil foi o que Barbicane fez: deduzir uma equao em que se atende a

    todas as condies do problema. O mais apenas uma questo de aritmtica, que no exigemaior conhecimento do que o das quatro operaes.

    E j no pouco! respondeu Michel Ardan, que nunca, em dias de sua vida, tinhaconseguido acertar uma soma, e que definia esta operao pela seguinte frase: Joguinho depacincia chins, por meio do qual se obtm resultados indefinidamente vrios.

    Entretanto, Barbicane assegurava que Nicholl, se se aplicasse ao caso, decerto tambmteria achado a frmula.

    No digo que sim nem que no dizia Nicholl ; quanto mais a estudo maismaravilhosamente deduzida me parece.

    Ouve l agora disse Barbicane ao camarada ignorante e vers como todas asletras tm significao.

    C estou ouvindo declarou Michel Ardan, com ares de resignao. d comeou Barbicane a distncia do centro da Terra ao centro da lua, porque os

    centros que se devem tomar para calcular as atraes. At a chego eu. r o raio da Terra. r, raio. Admitido. m a massa da Terra; m linha, a massa da lua. Efetivamente, necessrio atender s

    massas dos dois corpos atraentes, visto que a atrao proporcional s massas. Est entendido. g representa a gravidade, isto , a velocidade adquirida por um corpo que cai

    superfcie da Terra no espao de um segundo. No claro isto? Clarssimo!... respondeu Michel. Representemos agora por um x a distncia varivel que medeia entre o projtil e o

    centro da Terra e por v a velocidade que tem esse projtil distncia x. Bem. Finalmente, v zero, que entra na equao, a velocidade que possui a bala sada da

    atmosfera. E neste ponto disse Nicholl que devemos calcular a velocidade, visto sabermos

    j que a velocidade partida exatamente igual a trs meios da velocidade sada da

  • atmosfera. Agora que no percebo pitada! confessou Michel. Pois bem simples disse Barbicane. Mais simples sou eu replicou Michel. Quer isto dizer que, quando o nosso projtil chegou ao limite da atmosfera, j tinha

    perdido a tera parte da velocidade inicial. Oh!, mas isso muito... verdade, amigo, e somente devido ao atrito com as camadas atmosfricas. Bem deves

    compreender que, quanto mais depressa andava o projtil, maior resistncia encontrava no ar. Isso admito eu, e chego at a perceb-lo, apesar dos teus v zero dois ao quadrado e dos

    teus v zero ao quadrado me andarem a danar dentro da cabea como pregos em alforge! So os primeiros efeitos da lgebra retorquiu Barbicane. E agora, para te dar o

    ltimo golpe, vamos introduzir na frmula os dados numricos do problema, isto , reduzir-lheo valor a nmeros.

    Pois venha l esse ltimo golpe! disse Michel. Das diferentes expresses que entram na frmula, umas so conhecidas e outras temos

    de as calcular. Das ltimas me encarrego eu declarou Nicholl. Vejamos r prosseguiu Barbicane , r o raio da Terra que, na latitude da Florida, o

    nosso ponto de partida, igual a seis milhes trezentos e setenta mil metros; d, como j disse,a distncia do centro da Terra ao centro da lua, equivale a cinquenta e seis raios terrestres, oque d...

    Nicholl calculou rapidamente e acrescentou: ...trezentos e cinquenta e seis milhes setecentos e vinte mil metros, no momento em

    que a lua est no perigeu, isto , a mais curta das suas distncias Terra. Bem continuou Barbicane , m linha sobre m, ou seja, a relao da massa da lua

    para a da Terra, igual a um oitenta e um avos. Perfeitamente disse Michel. g, que representa a gravidade, na Florida de nove metros e oitenta e um centmetros.

    Donde resulta que gr igual... ...a sessenta e dois milhes quatrocentos e vinte e seis mil metros quadrados

    concluiu Nicholl. Agora que esto reduzidas a nmeros as diferentes expresses prosseguiu Barbicane

    , vou procurar a velocidade v zero, quer dizer, a velocidade que o projtil deve ter ao sair

  • da atmosfera para poder alcanar o ponto de igual atrao com velocidade nula. E, visto quenesse momento a velocidade h de ser nula, ponhamos que igual a zero e que x, distncia aque est o ponto neutro, h de ser representada pelos nove dcimos de d, isto , da distnciaque medeia entre os dois centros.

    Tenho uma vaga ideia de que deve ser isso... declarou Michel. Por consequncia, teremos nessa hiptese: x igual a nove dcimos de d e v igual a zero,

    pelo que a minha frmula se transforma em...Barbicane escreveu com rapidez num papel:

    Nicholl leu com avidez. isso, isso mesmo! exclamou. Pois no claro? perguntou Barbicane. Est escrito em letras de fogo! afirmou Nicholl. Pobres diabos! murmurou Michel. Entendeste afinal? interrogou Barbicane. Se entendi! exclamou Michel Ardan. Se lhes disser que me parece que a cabea

    me vai pelos ares! Consequentemente continuou Barbicane , v zero ao quadrado igual a dois gr que

    multiplica por um menos dez r sobre nove d, menos um oitenta e um avos, que multiplica pordez r sobre d menos r sobre d menos r.

    Agora declarou Nicholl , para obter a velocidade da bala sada da atmosfera, s fazer o clculo.

    O capito, como prtico habituado a vencer dificuldades, ps-se a escrevinhar com umarapidez de meter medo. Surdiam-lhe divises e multiplicaes debaixo dos dedos. A pginabranca salpicava-se de algarismos. Barbicane seguia-lhe o trabalho com os olhos, enquantoMichel Ardan apertava a cabea com as mos ambas para acudir a uma hemicrania quecomeava a assalt-lo.

    E ento? perguntou Barbicane, passados poucos minutos de silncio. Ento, feitos todos os clculos respondeu Nicholl , v zero ao quadrado, isto , a

    velocidade do projtil ao sair da atmosfera, para poder alcanar o ponto de igual atrao

  • devia ser de... ...de?... fez Barbicane. ...de onze mil e cinquenta e um metros no primeiro segundo. Hum! exclamou Barbicane, dando um pulo. Que dizes!? Onze mil e cinquenta e um metros. Maldio! bradou o presidente, fazendo um gesto de desespero. Que tens? perguntou Michel Ardan, cheio de surpresa. Que tenho! Tenho que, se naquele ponto a velocidade j estava diminuda em uma tera

    parte pelo atrito, deveria a velocidade inicial ter sido... ...de dezasseis mil quinhentos e setenta e seis metros! respondeu Nicholl. Bonito servio o do Observatrio de Cambridge, que dizia que onze mil metros

    partida era suficiente!... E a nossa bala que foi disparada com essa velocidade apenas! E ento? inquiriu Nicholl. E ento? Ento que a velocidade no suficiente! Mau. E no chegaremos ao ponto neutro! Com trezentos milhares de diabos! Nem a meio caminho! Com mil bombas! exclamou Michel Ardan, dando um pulo como se o projtil

    estivesse j a ponto de topar com a esfera terrestre. E voltaremos a cair na Terra!

  • Captulo 5 Os Frios do Espao

    A revelao produzira em todos o efeito de um raio. Barbicane no queria dar crdito aos

    clculos de Nicholl, mas Nicholl verificou-os e achou-os exatos. Da exatido da frmula, quelhe tinha servido de base, nem permitido era duvidar, e, renovados por ela os clculos,verificou-se que era necessria uma velocidade inicial de dezasseis mil quinhentos e setenta eseis metros no primeiro segundo para poder chegar ao ponto neutro.

    Os trs amigos contemplavam-se mudos. Ningum pensou mais em almoar. Barbicane,com os dentes apertados, as sobrancelhas carregadas e os punhos convulsivamente cerrados,observava pela vidraa do fundo. Nicholl cruzara os braos e examinava os clculos. MichelArdan dizia entre dentes:

    Aqui est o que so os sbios! Fazem-nas sempre frescas! Eu c dava de boa vontadevinte libras para ir cair em cima do Observatrio de Cambridge e esmag-lo com todos ostcnicos de clculos que l esto metidos.

    De repente o capito fez em voz alta uma reflexo, que penetrou logo no esprito deBarbicane.

    Ol! disse ele. So j sete horas da manh: partimos, por consequncia, h maisde trinta e duas horas, pelo que j andamos mais de meio caminho, e, que eu saiba, ainda novamos a cair!

    Barbicane no deu resposta. Mas aps ter trocado um rpido olhar com o capito, pegounuma agulha que lhe servia para medir a distncia angular do globo terrestre e fezseguidamente, atravs da vidraa inferior, uma observao extremamente exata em virtude daimobilidade aparente do projtil. Levantando-se depois e limpando a testa onde rolavamcamarinhas de suor, escreveu ordenadamente alguns algarismos numa folha de papel. Nicholl,que percebia que o presidente pretendia deduzir da medida do dimetro terrestre a distnciada bala Terra, olhava-o com grande ansiedade.

    No! exclamou Barbicane, passados instantes. No, no vamos cair! Estamos j amais de cinquenta mil lguas da Terra! J passamos para aqum do ponto em que o projtilhavia de ter parado se a velocidade partida fosse s de onze mil metros. Continuamos asubir!

    evidente concordou Nicholl. E o que se deve concluir da que a nossavelocidade inicial, devida impulso das quatrocentas mil libras de algodo-plvora,

  • excedeu os onze mil metros pedidos. Por essa maneira tem para mim cabal explicao o fatode termos encontrado, passados apenas treze minutos, o segundo satlite da Terra, que gravitaa mais de duas mil lguas de distncia.

    A veracidade dessa explicao muito aceitvel acrescentou Barbicane , vistoque o projtil ficou aliviado de parte considervel do peso quando expeliu a gua contidaentre os tabiques.

    exato disse Nicholl. Ah, caro Nicholl exclamou Barbicane , desta escapamos ns. Ento concluiu sossegadamente Michel Ardan , visto que escapamos desta, vamos

    almoar.Na realidade, Nicholl no se enganava. A velocidade inicial fora, por fortuna, superior

    velocidade indicada pelo Observatrio de Cambridge, mas nem por isso deixara to doutainstituio de se enganar.

    Os viajantes, j restabelecidos do infundado susto, sentaram-se mesa e almoaramalegremente. Falaram muito, mas no se comeu menos.

    A confiana era ainda maior que antes do incidente da lgebra. E por que razo no havemos ns de lograr o desejado fim? repetia Michel Ardan.

    Porque no havemos de l chegar? A caminho j ns vamos. Obstculos ningum os vdiante de ns. Pedras no as h no trajeto. A estrada est franca, mais franca do que a do navioque combate com as ondas, mais franca que a do balo que luta com os ventos! E se o naviovai aonde quer, se o balo sobe at onde lhe apraz, porque no h de o nosso projtil chegarao alvo que mirou?

    L h de chegar disse Barbicane. Quando por outra razo no fora, por honra do povo americano acrescentou Michel

    Ardan , nico povo que era capaz de levar a porto de salvamento a empresa, nico tambma quem era dado produzir um presidente Barbicane! verdade! Agora me lembra: no tendons j inquietaes nem cuidados, em que nos havemos de entreter? Vamo-nos aborrecer demorte!

    Barbicane e Nicholl fizeram gestos de negao. Bem fiz eu que preveni o caso, amigos prosseguiu Michel Ardan. pedir por

    boca. Tenho ao vosso dispor xadrez, damas, baralhos de cartas e domins! S me falta umbilhar!

    O qu!? perguntou Barbicane, pois trouxeste semelhantes frivolidades? Certamente... respondeu Michel. E trouxe-as no s para nossa distrao, mas

  • tambm com a louvvel inteno de introduzir o uso destes jogos nas lojas de bebidasselenitas.

    Caro amigo observou Barbicane. Se a lua habitada, os primeiros habitantesdela viram a luz do mundo alguns milhares de anos antes que os houvesse na Terra, porque no possvel duvidar-se de que a lua seja mais velha que o nosso globo. Portanto, existindo osSelenitas h centenas de milhares de anos, e tendo eles o crebro organizado como o crebrodos humanos, ho de ter j inventado tudo quanto ns inventamos, e at mesmo o que ns aindahavemos de inventar no decorrer dos sculos. No ho de ter nada que aprender de ns; ns que havemos de ter que aprender deles tudo.

    Qu?! objetou Michel. Acreditas ento que tiveram l artistas iguais a Fdias,Michel ngelo ou Rafael?

    Acredito. E poetas como Homero, Virglio, Milton, Lamartine e Hugo? Estou certo de que sim. E filsofos como Plato, Aristteles, Descartes e Kant? No me oferece dvida. E sbios como Arquimedes, Euclides, Pascal e Newton? Era capaz de o jurar. E cmicos como Arnal, e fotgrafos como... como Nadar? Estou certo que sim. Se assim , amigo Barbicane, se os Selenitas so to civilizados como ns, e at mais,

    porque que no tm tentado estabelecer comunicaes com a Terra? Porque que no tmarremessado um projtil lunar at s regies terrestres?

    E quem te diz a ti que no o fizeram? volveu com seriedade Barbicane. Efetivamente acrescentou Nicholl , a eles era-lhes a coisa mais fcil do que a ns,

    e por duas razes: a primeira, porque a atrao na superfcie da lua seis vezes menor do quena superfcie da Terra, o que d azo a que qualquer projtil suba ali com maior facilidade;segunda, porque era bastante arremessar esse projtil a oito mil lguas apenas (em vez deoitenta mil), para o que somente seria necessria uma fora de projeo dez vezes menor.

    Pois por isso mesmo, torno a dizer: porque que o no tm feito? E eu replicou Barbicane tambm te repetirei: quem te diz a ti que no o fizeram? Mas quando? H milhares de anos, antes da apario do homem sobre a Terra. E o projtil? Onde est o projtil? Sempre gostava que mo mostrassem...

  • Caro amigo respondeu Barbicane , cinco sextas partes do globo terrestre estocobertas pelas guas do mar, fato este que fornece outras tantas razes slidas em favor dasuposio que afirme que o projtil lunar, se que o arremessaram de l, jaz hoje imerso nofundo do Atlntico ou do Pacfico. A no ser que se enterrasse por alguma fenda dentro, napoca em que a crusta terrestre no estava ainda suficientemente solidificada.

    Meu velho Barbicane replicou Michel , para tudo tens resposta; curvo-mevencido diante da tua profunda cincia. H, contudo, uma hiptese que tudo explica, e que mequadra mais do que qualquer outra; vem a ser que, sendo os Selenitas mais antigos do que ns,so tambm mais sensatos, razes pelas quais talvez nunca se deram a inventar a plvora!

    Naquele momento, Diana meteu-se na conversa com um sonoro latido. Era a sua maneirade pedir que lhe dessem de almoar.

    E esta! disse Michel. Com a discusso esquecamo-nos de Diana e de Satlite!Trataram imediatamente de dar uma suculenta refeio cadela, que a devorou com boa

    gana. Vs, Barbicane gracejou Michel , o que ns devamos ter feito era transformar

    este projtil em arca de No e levar connosco para a lua um casal de todas as espcies deanimais domsticos.

    No digo que no admitiu Barbicane ; espao que havia de faltar. Ora essa! retorquiu Michel. Apertando-se a gente um pouco... O fato respondeu Nicholl que boi, vaca, touro, cavalo, paquidermes ou

    ruminantes, todos nos haviam de ser de grande utilidade no continente lunar. Infelizmente, nose podia fazer deste vago cavalaria nem curral.

    Mas ao menos podamos ter trazido um burro, um burrico s e mais nada, corajoso epaciente animal que o velho Sileno tanto gostava de cavalgar! Gosto eu bastante deles, dospobres burros! So na verdade os animais menos favorecidos da criao! No se contenta ohomem com tos-los em vida, ainda lhes bate depois de mortos.

    Como se entende isso? perguntou Barbicane. No tem que ver explicou Michel , pois se lhe fazem da pele tambor!Ouvindo semelhante reflexo, to estapafrdia, Barbicane e Nicholl no puderam conter o

    riso. Cortou-lho, porm, uma exclamao do alegre companheiro, que se curvara para o coiode Satlite e que naquele momento se levantou dizendo:

    Bem, Satlite j no est doente! No!? disse Nicholl. No volveu Michel , porque j morreu. E o caso acrescentou com intonao de

  • lstima , o caso para dar que fazer. Agora que eu te digo, minha pobre Diana, quedecerto no servirs de estirpe nas regies lunares!

    Efetivamente, o pobre Satlite no pudera sobreviver aos ferimentos. Estava morto e maisque morto. Michel Ardan ficou a olhar para os amigos, com cara de quem no sabia que fazer.

    necessrio tomar uma resoluo observou Barbicane. O que ns no podemos conservar connosco o cadver dum co ainda por espao de quarenta e oito horas.

    No, decerto apoiou Nicholl ; mas como os olhos-de-boi das vigias estoseguros, as charneiras podem-se abrir. Abre-se, portanto, uma delas, e deita-se o corpo do copara o espao.

    O presidente esteve refletindo durante alguns instantes, e disse: Sim, assim que se h de proceder, mas guardando as mais minuciosas cautelas. Porqu? perguntou Michel. Por duas razes, que decerto hs de compreender volveu Barbicane. A primeira,

    relativa ao ar que est contido dentro do projtil e do qual no devemos deixar perder seno omenos possvel.

    Mas ns no refazemos esse ar? Em parte, somente. O que ns refazemos s oxignio, meu caro Michel, e, a propsito

    disso, preciso ter muito cuidado em que o aparelho no fornea o oxignio em quantidadedemasiada, porque esse excesso havi