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XI ECOMIG Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais Faculdade de Comunicação - Universidade Federal de Juiz de Fora | 18 e 19 de outubro de 2018 A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO NOS QUADRINHOS DE MARCELO D’SALETE 1 Douglas Edson Fernandes 2 Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Resumo O presente artigo tem como proposta discutir a representação do negro por meio da mediação construída nas obras em quadrinhos de Marcelo D’Salete: Encruzilhada (2016), Angola Janga (2017) e Cumbe (2018). Para tanto, pretende-se analisar seus recursos linguísticos visuais e textuais, na articulação entre desenho e texto, na construção de uma imagem mais complexa e abrangente dos negros tanto no período da escravidão (séculos XVI e XVII) e também em narrativas contemporâneas. Adotando a definição de mediação proposta por Silverstone, o artigo irá abordar a estruturação desse processo mediático e como esse hibridismo linguístico resulta em um dispositivo de visibilidade, como proposto por Rancière, suas características e desdobramentos. Palavras-chave: Mediações. Quadrinhos. Representação. Negros. Alteridade Abstract This article aims to discuss the representation of the black through mediation constructed in Marcelo D'Salete's comic books: Encruzilhada (2016), Angola Janga (2017) and Cumbe (2018). In order to do so, it aims to analyze its visual and textual linguistic resources, in the articulation between drawing and text, in the construction of a more complex and comprehensive image of blacks both in the period of slavery (16th and 17th centuries) and also in contemporary narratives. Adopting the definition of mediation proposed by Silverstone, the article will address the structuring of this mediatic process and how this linguistic hybridism results in a visibility device, as proposed by Rancière, its characteristics and unfolding. Keywords: Mediations. Comics. Representation. Black. Otherness Introdução A proposta desse artigo é analisar as obras em quadrinhos de Marcelo D’Salete e em como se dá a representação do negro, personagem característico que perpassa todo o trabalho do autor, que inicia com Encruzilhadas (2016), seguindo para Angola Janga (2017) e finalizando com Cumbe (2018), obra premiada com um Eisner, considerado o Oscar das hqs. Para tanto, D’Salete começa, na obra de 2016, apresentando uma coletânea das mais variadas 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Linguagens e Narrativas, do XI Encontro dos Programas de Pós- Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018. 2 Mestrando, PUC Minas; [email protected].

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Page 1: A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO NOS QUADRINHOS DE MARCELO … · 2019. 3. 10. · A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO . NOS QUADRINHOS DE MARCELO D’SALETE . 1. Douglas Edson Fernandes 2. Pontifícia

XI ECOMIG – Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais Faculdade de Comunicação - Universidade Federal de Juiz de Fora | 18 e 19 de outubro de 2018

A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO NOS QUADRINHOS DE MARCELO D’SALETE 1

Douglas Edson Fernandes 2

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Resumo

O presente artigo tem como proposta discutir a representação do negro por meio da mediação construída nas obras em quadrinhos de Marcelo D’Salete: Encruzilhada (2016), Angola Janga (2017) e Cumbe (2018). Para tanto, pretende-se analisar seus recursos linguísticos visuais e textuais, na articulação entre desenho e texto, na construção de uma imagem mais complexa e abrangente dos negros tanto no período da escravidão (séculos XVI e XVII) e também em narrativas contemporâneas. Adotando a definição de mediação proposta por Silverstone, o artigo irá abordar a estruturação desse processo mediático e como esse hibridismo linguístico resulta em um dispositivo de visibilidade, como proposto por Rancière, suas características e desdobramentos.

Palavras-chave: Mediações. Quadrinhos. Representação. Negros. Alteridade

Abstract

This article aims to discuss the representation of the black through mediation constructed in Marcelo D'Salete's comic books: Encruzilhada (2016), Angola Janga (2017) and Cumbe (2018). In order to do so, it aims to analyze its visual and textual linguistic resources, in the articulation between drawing and text, in the construction of a more complex and comprehensive image of blacks both in the period of slavery (16th and 17th centuries) and also in contemporary narratives. Adopting the definition of mediation proposed by Silverstone, the article will address the structuring of this mediatic process and how this linguistic hybridism results in a visibility device, as proposed by Rancière, its characteristics and unfolding.

Keywords: Mediations. Comics. Representation. Black. Otherness

Introdução

A proposta desse artigo é analisar as obras em quadrinhos de Marcelo D’Salete e em

como se dá a representação do negro, personagem característico que perpassa todo o trabalho

do autor, que inicia com Encruzilhadas (2016), seguindo para Angola Janga (2017) e

finalizando com Cumbe (2018), obra premiada com um Eisner, considerado o Oscar das hqs.

Para tanto, D’Salete começa, na obra de 2016, apresentando uma coletânea das mais variadas

1Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Linguagens e Narrativas, do XI Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais, 18 e 19 de outubro de 2018. 2 Mestrando, PUC Minas; [email protected].

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histórias do cotidiano urbano, mas que tem como semelhança, a presença de personagens

negros. Já as obras seguintes tratam da luta dos negros durante o período da escravidão no

Brasil: em Angola Janga, o autor apresenta um enredo mais robusto ao contar a história dos

personagens ligados à Palmares e Zumbi, enquanto em Cumbe, ele faz uma mescla das obras

anteriores, estabelecendo uma antologia de contos sobre a vida dos escravos brasileiros. A

hipótese apresentada nesse artigo é a de que a mediação do Outro nas representações dos negros

propostas por D’Salete, são construídas de maneira porosa, com lacunas intencionais, que

evitem reduções e estereótipos, para que o leitor possa inserir ali suas percepções/mediações

próprias.

A mediação (SILVERSTONE, 2002) é um processo contínuo de circulação de sentidos,

envolvendo tanto tecnologias quanto relações sociais. Ela é também assimétrica na relação de

poder, já que nem todos podem fazer uso dela da mesma maneira. Tal característica se apresenta

pela capacidade da mediação feita pelas mídias dominantes de apresentar significados

determinantes/cristalizados, que refletem na reprodução de estereótipos sobre aqueles que não

têm as mesmas condições de projetar, midiaticamente, suas próprias imagens. Entretanto, como

um processo contínuo, a mediação não se resume à escala dominante e se adequa às táticas

adotadas por esses outros para produzir novas circulações de significados e produções de

sentido.

Nesse sentido, D’Salete busca justamente uma representação de um personagem negro

que não se limite aos estereótipos, ainda que passe por eles, mas vai além, tecendo um cenário

mais amplo e complexo na busca de uma alteridade em relação à essa imagem de um Outro

negro. Talvez, por justamente ter sido relegada à marginalidade (VERGUEIRO, 2013), os

quadrinhos sirvam como plataforma para a estruturação de discursos que vão além daqueles

apresentados pelas mídias ditas dominantes. Nesse sentido, Dyer (2002), vai justamente tratar

desse assunto, ao dizer que seria possível conceber que o entretenimento também tem a

capacidade de ativação crítica, justamente na relação que há no ato de transitar entre o real e o

mundo da ficção, ou a realidade imediata e as outras.

Sendo assim, tomando como norte a proposta deste artigo, que as obras de D’Salete

criam processos de mediação opacos, que reforçam o questionamento acerca da

transparência das representações, seria possível propor que essas obras se estruturam como

os dispositivos de visibilidade (RANCIÉRE, 2008), construindo seus discursos a partir de uma

concepção diferente do rotineiro, do comum, oferecendo uma forma de regular a visibilidade

das pessoas e contextos que apresenta

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Quadrinho documental

A linguagem das histórias em quadrinhos, que daria origem à mídia no formato como é

conhecida atualmente, tem seus primeiros registros modernos datados do início do século XIX,

com destaque para Les Amours de monsieur Vieux Bois, de Rodolphe Töpffer, de 1827, tipo de

publicação que, à época, ficou conhecida como literatura em gravuras ou histórias em gravuras.

Nos anos seguintes, essa linguagem que mescla texto e imagem, passou a ser utilizada

mais frequentemente, ganhando espaço principalmente em jornais, seja com charges e

caricaturas (que, de certa forma já remetiam a uma relação dos quadrinhos com o factual, mas

seguindo uma vertente mais cômica), como também as tiras ou tirinhas com abordagens

diversas. Durante o período do Segundo Reinado no Brasil (1840 a 1889), por exemplo, o artista

ítalo-brasileiro Angelo Agostini ficou conhecido justamente pelas inúmeras charges e

caricaturas de figuras políticas da época. Outro exemplo são as tiras do personagem Yellow

Kid, que começam a ser publicadas em 1895 no jornal New York World, considerada a primeira

publicação em quadrinhos a fazer o uso dos balões como forma de expressão verbal.

Já entre as décadas de 1930 a 1950, o uso dos linguagem dos quadrinhos se dá na

produção de cartilhas didáticas (como as que o próprio Will Eisner chegou a fazer para o

exército americano) e também na construção de narrativas de super-heróis, com destaque para

a criação do Super-homem em 1938. “O sucesso serviu para consolidar o formato comic book

e inaugurar um novo gênero: os quadrinhos de super-herói. Mas foi algo tão forte que acabou

fundindo o formato com o gênero. E comic book passou a ser sinônimo de super-heróis”

(CAMPOS, 2000, p. 8).

Na década de 1950 surge a CMAA - Comics Magazine Association of America ou

Associação Americana de Revistas em Quadrinhos, em resposta a uma recomendação do

Congresso e ao clamor moralista insuflado pelo livro Sedução dos Inocentes3. A organização

tinha por dever verificar quais publicações seguiam as observâncias do "Código dos

Quadrinhos" (Comic Code Authority), com conteúdo considerados mais adequados para jovens

e crianças. A ação da CMAA vai atingir praticamente todos os quadrinhos, desde a vertente dos

super-heróis até as abordagens mais alternativas da época.

Talvez devido a criação de uma espécie de quadrinho mainstream com os comic books

de super-heróis, somado à censura velada da CMAA e principalmente ao momento cultural,

3 De autoria do psiquiatra Fredric Wertham, a obra defendia que as histórias em quadrinhos eram uma forma ruim de literatura e capaz de influenciar a delinquência juvenil.

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artístico, social e político da América do Norte (em especial, nos Estados Unidos) nas décadas

de 1960 e 1970, surge então uma divisão no quadrinho norte-americano, mantendo o

establishment do mercado editorial dos quadrinhos de um lado e, do outro, o movimento

underground comix ou, como ficou conhecido no Brasil, quadrinhos underground, que

abordavam temas que até então, não eram abordados nos quadrinhos.

Uma das referências nesse gênero, Robert Crumb consegue produzir por conta própria

a primeira edição da Zap Comix em 1967 e passa, então, ele mesmo a vender suas publicações,

não tendo vínculos com as grandes editoras. Em 1970 surge a revista Punk, com referência

direta ao estilo musical, com entrevistas quadrinizadas e defendendo o slogan “do it yourself”

(faça você mesmo). Então, assim como qualquer um podia ter sua própria banda, qualquer um

podia produzir seu próprio quadrinho, o que leva à avalanche de zines em quadrinhos no mundo

inteiro. E outra característica interessante é que assim como essas novas bandas não precisavam

ter, necessariamente, habilidades musicais excelentes, os quadrinistas também não precisavam

ser excelentes desenhistas, o que se torna o marco no traço do quadrinho underground, pois os

personagens costumavam não guardar quaisquer referências anatômicas, com membros

desproporcionais, cabeças grandes e feições caricaturadas. Já em 1976, Harvey Pekar,

juntamente com Crumb e uma série de outros cartunistas (já que Pekar não conseguia desenhar),

começa a publicar American Splendor, uma série de histórias em quadrinhos que retratavam

fatos cotidianos na vida do autor.

Ainda seguindo a abordagem de obras em quadrinhos que não se enquadram no comic

book norte americano, é na década de 1980 que surgem, de forma mais sistemática, as primeiras

publicações mais robustas de histórias em quadrinhos que tratavam de temas factuais,

relacionados a conteúdos factuais e jornalísticos. Art Spiegelman publica a primeira edição de

Maus entre 1980 e 1991. A obra é vencedora do prêmio especial Pulitzer4, retratando os relatos

do pai do autor, um sobrevivente do holocausto nazista. Já em 1996, o jornalista maltês Joe

Sacco publica Palestina, fruto de dois anos de viagem do autor à zona de conflito entre árabes

e palestinos, obra considerada precursora no debate sobre uma definição para quadrinhos que

lidem com o factual. Sacco ainda é autor de Área de Segurança: Gorazde (2000), Uma História

de Sarajevo (2005), Notas sobre Gaza (2010), Reportagens (2016), entre outras.

A partir do quadrinho underground, e das produções de Sacco e Spiegelman, outros

autores ao redor do mundo começam, então, a publicar histórias em quadrinhos seguindo essa

4 O Prêmio Pulitzer, dado pela Universidade de Columbia, foi criado em 1917 e é um importante prêmio norte-americano, outorgado àqueles que realizam trabalhos de destaque na área do jornalismo, literatura e composição musical.

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mesma vertente ou abordagens similares, como é o caso das obras de D’Salete. Mas antes de

aprofundar sobre o trabalho do autor brasileiro, faz-se necessário traçar uma definição que possa

dar conta desse tipo de obras em quadrinhos. Mais do que um preciosismo, a busca por esse

significado pode permitir identificar elementos tanto articuladores como tensionadores dessa

narrativa, assim como pode propor alguns caminhos analíticos.

As primeiras críticas e estudos acadêmicos que trataram de Palestina (1996) cunharam

definições como “jornalismo em quadrinhos”, “quadrinhos jornalísticos” ou “reportagem em

quadrinhos”, como sinônimos para definir tão somente, nesse primeiro momento, quaisquer

produções que envolvessem a linguagem dos quadrinhos e temas factuais.

Equivocadamente, contudo, talvez por influência do New Journalism e por este não ter sido de fato absorvido pela grande estrutura das grandes empresas jornalísticas, todos os relatos autorreferentes em quadrinhos têm sido genericamente chamados de quadrinho jornalístico. Esse generalismo talvez ocorra pela mudança que começou a acontecer no próprio jornalismo […] É inegável que há uma influência enorme do jornalismo e de suas técnicas no trabalho de alguns quadrinistas contemporâneos, mas colocar a todos sob o manto do jornalismo redunda em exagero. (MUANIS, 2013, p. 47).

Cirne (2002) e Muanis (2013) adotam a expressão quadrinho documentário, fazendo um

questionamento sobre o quadrinho jornalístico que nos é útil neste debate: a relação de um

suporte midiático voltado para ficção e o entretenimento e um conteúdo considerado, a

princípio, de não entretenimento, por tratar de temas importantes, como economia, política e

saúde, ou fatos históricos, por exemplo. É possível perceber então que nem todas as produções

que envolvam quadrinhos e abordagens factuais se dão da mesma maneira, algumas com

elementos identificáveis como jornalísticos (como o processo de apuração em campo ou o uso

de fotografias como recurso de prova) e outras são de viés mais biográfico, baseado em relatos

autorais ou de terceiros. É possível pensar ainda em quadrinhos que buscam retomar narrativas

de fatos históricos, excluindo a característica biográfica, como é o caso de Angola Janga (2017)

e Cumbe (2018), por exemplo, ambas de autoria do brasileiro Marcelo D’Salete e que tratam

da vida dos negros durante o período de escravidão no país, entre os séculos XVI e XVII.

Várias outras expressões surgem, então, com a definição Quadrinhos Jornalísticos, para

tentar nomear a diversidade de relações estabelecidas entre hq e não ficção, termo este também

um tanto ou quanto genérico, utilizado para abarcar uma pletora de textos. Segundo D’Agata

(2015), a expressão não ficção teria surgido entre os bibliotecários ingleses no início do século

20 como uma forma de identificar um conjunto de textos a ser valorizado em oposição à ficção

e seu caráter lúdico. A mentalidade da época dava conta de que a não ficção teria um cunho

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educativo, formador, enquanto a ficção, ainda que esta possa apresentar valores positivos, seria

menos relevante. Contudo, o que se percebe é que o conjunto da não ficção é por demais

abrangente:

Todas as formas literárias englobadas nessa generalização – “ciência, arte, viagens, biografia, história, filosofia, ensaio e similares” – têm sua própria história de origem, bem como uma complexa história estética, cuja evolução durou séculos, o que torna praticamente impossível fundir entre si com sensatez quaisquer gêneros dessa lista. (D’AGATA, 2015, p. 163).

Entretanto, ainda que D’Agata reforce a inexatidão do termo não ficção, ele acabou por

eclipsar “meia dúzia de outros termos literários para se tornar de fato a bandeira que tremula

sobre tudo o que se estende do jornalismo à memória, impondo as mesmas normas estéticas ao

que está à sua sombra.” (D’AGATA, 2015, p. 163).

Logo, a expressão “quadrinho documental” (por vezes, também identificado como

quadrinho reflexivo) serviria como uma espécie de guarda-chuva, abarcando em si todas as

demais definições de quadrinhos de não ficção, como o quadrinho jornalístico.

A produção do quadrinho documental, pela sua variedade e por deter essas características e demandas, reunindo palavra e imagem, parece adequada para veicular tais discursos e apresentar pontos de vista variados, documentais, metalinguísticos e autorreflexivos, aparentemente mais meticulosos para expressar o cotidiano, o que não é a tendência da grande imprensa. (MUANIS, 2013, p. 51).

Portanto, o viés documental, proposto por Cirne (2002) e Muanis (2013), funciona bem

como uma definição mais generalista de um quadrinho de não ficção, porém esse entendimento

seria por demais abrangente, pois possui abertura e amplitude, generalidade muito próxima da

não ficção. Assim, o quadrinho documental pode abranger tanto a narrativa de viagem, o

biográfico e autobiográfico, o historiográfico, o jornalístico, etc. A definição documental se

adequa bem na proposta de abarcar as hqs factuais, mas para a análise que se pretende neste

artigo, é preciso pensar o documental com suas subcategorias, suas vertentes que oferecem

especificidades que permitam compreensões mais assertivas a respeito dos modos de produção

dessas hqs. Logo, ao propor uma análise das obras de D’Salete somente pelo viés do

documental, pode funcionar, mas é preciso buscar além disso, um refinamento que possa

detalhar como se dá esse documental, talvez propondo a adoção de definições mais precisas,

como o quadrinho documental histórico, traçando uma terminologia que remeta à um quadrinho

de não ficção e que tenha como estrutura, a narrativa de fatos históricos por meio de pesquisas

e entrevistas.

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Tensões entre a não ficção e o entretenimento

Compreendendo o que seriam, então, os quadrinhos documentais históricos, é preciso

retomar as definições desse gênero voltado ao factual. Essa terminologia permite lidar com o

hibridismo entre a linguagem das hqs e o não factual, mas assumir essa definição é, porém,

assumir também suas limitações e características, pois há uma tensão entre uma mídia

considerada exclusivamente de ficção e um conteúdo dado como não ficção. Tal hibridismo

pode parecer impossível de se realizar, mas novamente, retomando D’Agata (2015), mesmo na

não ficção há uma carga de ficção.

As histórias em quadrinhos, como mídia, fazem menção, em sua origem, ao hilário, ao

cômico (daí o termo original estadunidense, comics), sendo relegadas na maioria das vezes

somente ao entretenimento, visto como algo infantil ou supérfluo. Segundo Dyer (2002), o

entretenimento moderno pode ser definido como um artefato ou performance, orientado

comercialmente, que se dá diante de uma audiência generalizada com o objetivo consciente de

produzir, de forma imediata e sem ambiguidades, um tipo de prazer relacionado a aspectos de

uma sensibilidade utópica. Essa sensibilidade se refere a realidades que não podem ser

alcançadas de forma plena na realidade imediata, remetendo ao imaginário.

Para nossa sociedade, o entretenimento passou a ser identificado como aquilo que não

é arte, que não é sério nem refinado. Essa definição é danosa. Primeiramente, porque o

entretenimento possui uma função social e cultural relevante, como o lugar de experimentação

de identidades e contextos. Nesse mesmo entendimento, retomando Dyer, seria possível

conceber que o entretenimento também tenha a capacidade de ativação crítica, justamente na

relação que há no ato de transitar entre o real e o mundo da ficção, ou a realidade imediata e as

outras.

Ao tratar das relações entre reality shows e documentários, gêneros culturalmente

inscritos em campos diversos, Murray (2004) desenvolve uma reflexão sobre “peso social” que

pode ser útil neste estudo. Ela mostra como a distinção entre os diferentes tipos de produção é

muitas vezes retórica. Os documentários, segundo a autora, seriam aqueles vistos pela

sociedade como produções de viés educacional, informativo, ético, socialmente engajadas e que

atendem ao interesse público, enquanto os reality shows seriam comerciais, populares, de

entretenimento e com grande potencial para exploração ou manipulação. O ponto de distinção

entre eles estaria fundamentado na noção de peso social, presente no documentário e ausente

no reality show. No entanto, como ela discute,

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Peso social não é algo que possa ser empiricamente mensurado, nem é necessariamente uma característica textual inerente. Ao contrário, é uma postura retórica que pode ser mobilizada em um esforço para endossar ou autenticar um determinado texto de televisão e atrair uma audiência que preze noções liberais de responsabilidade social ou serviço público. (MURRAY, 2004, p. 44, tradução nossa). 5

Murray (2004) avança, então, em suas análises e propõe que, na verdade, documentários

e reality shows não seriam categorias excludentes, podendo existir produções tanto sensacionais

quanto educacionais, utilizando recursos de linguagem e estratégias de ambas em uma nova

produção.

Essa questão poderia muito bem ser aplicada na relação entre quadrinhos e obras de não

ficção, desconstruindo a noção de que o primeiro teria mais peso social que o segundo. Logo,

ainda que os quadrinhos entretenham, isso não significa que, automaticamente, eles deixam de

ter relevância social, ou melhor, que eles percam seu “peso social”.

A emergência de um gênero cultural

Ao adotar, portanto, a terminologia quadrinho documental histórico, reforça-se então a

a existência de tensões desse gênero, em especial a relação entre a função social da não ficção

(no caso, a história) e o entretenimento. E a despeito dessas características (por vezes,

entendidas como problemas), o quadrinho documental tem se afirmado e estruturado na

sociedade contemporânea, na proposta de buscar desempenhar um papel, uma função social

específica em relação às outras mídias. Nesse sentido, retomando suas origens no quadrinho

underground, no chamado comix norte americano, como já explicado aqui, é possível então

propor que esse tipo de produção se apresenta como mídias alternativas, de embate, contra-

hegemônicas, construindo seus discursos a partir de uma concepção diferente do rotineiro, do

comum e oferecendo uma forma de regular a visibilidade das pessoas e contextos que apresenta,

como os dispositivos de visibilidade propostos por Rancière (2008). Assim, seria possível

propor que os quadrinhos documentais, em especial os jornalísticos, teriam condições de regular

uma outra representação dos sujeitos e provocar rupturas no senso comum.

5 Do original: Social weight is not something that can be empirically measured, nor is it necessarilly a inherente

textual characteristic. Rather, it is a rhetorical stance that can be mobilized in an effort to endorse or authenticate a particular television text and attract an audience who cherishes liberal notions of social responsibility or public service

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Logos, as obras que se enquadrem como quadrinhos documentais podem ser pensadas

a partir dos estudos de Martin-Barbero (2006) sobre a questão do gênero cultural. Para o autor,

o gênero é mais do que um processo de categorização; é uma estratégia que vincula a produção

e o consumo dos textos midiáticos. O autor defende que o gênero é uma estratégia de

comunicação e, ainda mais, uma estratégia ligada aos vários universos culturais. “O gênero é

um estratagema da comunicação, completamente enraizado nas diferentes culturas, por isso,

geralmente, não podemos entender o sentido dos gêneros senão em termos de sua relação com

as transformações culturais na história” (MARTÍN-BARBERO, 1985, p. 65). Os gêneros

fornecem, então, formas de percepção e reconhecimento, funcionando como uma espécie de

dispositivo de leitura, de entendimento do mundo, servindo como referência para a indústria da

mídia.

Ao se pensar o quadrinho documental como um gênero cultural, talvez uma das suas

principais características seja se estruturar como um dispositivo de visibilidade (RANCIÈRE,

2008), porque oferece visibilidade àqueles que não a possuem ou tem dificuldades em alcança-

la, fornecendo novas maneiras de entender determinadas complexidades do cotidiano.

Faz-se necessário, então, avançar no debate sobre a mediação, que, na definição

proposta por Silverstone (2002b), é a circulação contínua de sentidos, com as tecnologias e os

meios de comunicação assumindo papel fundamental nesse processo. As mídias quase sempre

adotam o uso de representações redutoras, que fornecem recursos para que os sujeitos consigam

lidar com a complexidade do cotidiano. No entanto, como propõe Silverstone (2002a), é preciso

desafiar essas mediações, pois o Outro, como na concepção de Lévinas (1980), não deve ser

aniquilado (domesticado ou eliminado, como inimigo), mas tratado em uma relação ética, não

alérgica em relação às diferenças. Essas questões éticas de reconhecimento no processo de

mediação e representação do Outro, remetem à alteridade, entendida como uma diferença

radical, que não pode ser igualada. É o estar para o Outro, mas sem assumir a autoridade sobre

ele.

Funcionando como dispositivos de visibilidade, os quadrinhos documentais adotam a

proposta de lidar com essas diferenças e também reconhecimentos, lidando com a representação

de um Outro que evite ser reducionista e estereotipada. Dessa forma, as mediações midiáticas

abrangem o campo ético, pois suas formas de representação devem apresentar movimentos de

aproximação, mas também de distanciamento em relação ao Outro.

Narrativas e mediações

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As narrativas tendem sempre a construção de um Outro, sejam essas narrativas reais,

documentais, históricas ou mesmo fictícias. Toda narrativa é um processo comunicacional e,

por conseguinte, uma mediação. Então, há a necessidade de se pensar em uma ética no processo

de mediação (SERELLE, 2016), ao tratar com o Outro, reconhecendo suas diferenças e

mantendo um “distanciamento” do eu moral. Mas tal procedimento, ainda segundo o autor, se

apresenta como um dilema, porque ao tentar representar o Outro, o autor da narrativa pode

simplesmente reprimi-lo, retirando sua autoridade.

Esse “distanciamento” se mostra uma tentativa falha, pois o processo narrativo assume

que em determinado momento o autor narre o Outro, assumindo a sua responsabilidade,

sobrepondo sua autonomia.

O outro é refundido como minha criação; agindo com o melhor dos impulsos, eu roubei a autoridade do Outro. Sou eu agora quem diz o que o comando comanda. Eu tornei-me o plenipotenciário do Outro, embora tenha eu próprio assinado o poder de procurador em nome do Outro. (BAUMAN, 1997, p. 131).

Fica claro que a mídia dominante, normalmente, não se atenta para as questões morais

no processo de representação do Outro. A assimetria na mediação (SILVERSTONE, 2002b)

constrói sua própria realidade, num processo se assemelha muito à tradução. A identidade do

Outro é apropriada, agredida e restituída em um Outro diferente de seu original, em uma

realidade diferente, por vezes, referindo-se quase que exclusivamente de estereótipos. Por

vezes, pode-se observar que a produção midiática (re) produz representações estereotipadas e

essas mesmas representações, sejam elas imagens ou textos, podem oferecer subsídios para que

esse Outro lide com a complexidade do cotidiano, principalmente se esse Outro for aquele

invisível, que vive às margens, ou distante e encontra alternativas em outras formas de

mediação, numa tentativa de desconstruir suas representações estereotipadas.

Silverstone (2002b) aponta justamente essas falhas na mídia dominante, destacando que

ela retrata o Outro como uma ameaça pelas suas diferenças ou tenta domesticá-lo, evitando, ou

mesmo, negando as diferenças. Levinas (1980) reforça que a diferença com o Outro é inegável

e que não pode ser aniquilada, ainda que em um primeiro contato, seja essa a intenção. Nesse

sentido, a diferença é o lugar da alteridade.

O absolutamente Outro é Outrem; não faz número comigo. A coletividade em que eu digo tu ou nós não é um plural de eu. Eu, tu, não são indivíduos de um conceito comum. Nem a posse, nem a unidade no número, nem a unidade do conceito me ligam a outrem. Ausência de pátria comum que faz do Outro – o Estrangeiro; o Estrangeiro que perturba o em sua casa. (LEVINAS, 1980, p. 26).

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Entretanto, mesmo considerando esses problemas na representação midíatica do Outro,

Silverstone (2002b) trata a mídia como fundamental em um processo que estabelece interações

(mediações) e, por conseguinte, a responsabilidade em relação ao Outro. Somente por meio da

comunicação seria possível, ainda segundo autor, pensar em uma ética do cotidiano, adotando

que toda comunicação é uma mediação, um processo no qual o significado e o valor das coisas

podem ser construídos.

A definição de mediação adotada e que servirá de embasamento para o debate nesse

artigo é de Silverstone (2002b), ampliada por Serelle (2016): um processo contínuo de

circulação de sentidos, envolvendo tanto tecnologias quanto relações sociais. Ela é também

assimétrica na relação de poder, já que nem todos podem fazer uso dela da mesma maneira. Tal

característica se apresenta pela capacidade da mediação feita pelas mídias dominantes de

apresentar significados determinantes/cristalizados, que refletem na reprodução de estereótipos

sobre aqueles que não têm as mesmas condições de projetar, midiaticamente, suas próprias

imagens. Entretanto, como um processo contínuo, a mediação não se resume à escala dominante

e se adequa às táticas adotadas por esses Outros para produzir novas circulações de significados

e produções de sentido.

A hipótese proposta nesse artigo é analisar como se dá a mediação do Outro, nesse caso,

a representação do negro nas obras de D’Salete. A metodologia que será adotada para realizar

a análise da hipótese é a leitura de três obras mais recentes do autor (Encruzilhada, Angola

Janga e Cumbe) e a convocação de autores para estruturar a parte teórica.

A representação do negro em D’Salete

Marcelo D'Salete é um quadrinista, ilustrador e professor brasileiro, mestre em história

da arte pela Universidade de São Paulo. Durante a adolescência, fez curso de design gráfico no

colégio Carlos de Campos e trabalhou como ilustrador para editoras. Estreou como quadrinista

em 2001, publicando nas revistas Quadreca e Front. Em 2011 publicou a primeira edição de

Encruzilhadas, uma coletânea de narrativas contemporâneas onde o autor vai tratar de

personagens negros e sua relação com a sociedade atual. Talvez entre as obras de D’Salete até

aqui, essa seja a primeira em que ele começa a abordar narrativas ficcionais, mas que tenham

peso social (MURRAY, 2004).

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Nessa obra, republicada em 2014, em cada história que compõe a antologia, sempre há

personagens negros e as narrativas se estruturam em torno deles. Interessante destacar que como

os traços do autor são em preto e branco, a referência à raça dos personagens se dá por meio de

características físicas já enraizadas na cultura brasileira, como cabelo afro ou o formato do

nariz. Mas retomando Encruzilhadas, D’Salete busca criar uma representação de personagens

que fujam de estereótipo tradicional do negro no Brasil, em especial, em comunidades de baixa

renda, porque aqui eles não são os marginais, mas como vítimas da sociedade que histórica e

culturalmente os oprime ou por situações do cotidiano, em que eles não são nem bandidos nem

mocinhos, apenas pessoas como outra qualquer.

93079482 é uma das histórias que fazem parte da obra e relata a dificuldade na vida

cotidiana da personagem Dora, seus sacrifícios para adquirir um celular (daí o motivo do nome

da história) e em como ela se torna vítima das ações de seu primo Ney, um viciado em drogas.

Aqui, os papeis sociais comumente relacionados à raça se invertem, e não é o negro que se

apresenta como marginal, mas o branco que faz do negro sua vítima. Essa inversão oferece uma

percepção diferente, uma representação do negro que normalmente não condiz com outras

representações midiáticas, como filmes ou novelas.

Outra história é Corrente, possui pouquíssimos recursos textuais, como os balões, e se

atem em especial na narrativa imagética dos personagens que vivem em uma espécie de

condômino ou prédio e em como suas vidas se cruzam de maneiras inesperadas. D’Salete

apresenta aqui o que se pode chamar de narrativa do cotidiano, sem grandes personagens ou

tramas mirabolantes, apenas a rotina e em como simples, ela revela traços interessantes do

comportamento humano.

Diante desses exemplos, é possível perceber que Encruzilhada não se propõe a narrar

fatos históricos e, possivelmente, por esse motivo, não possa ser tratada como um quadrinho

documental histórico. Entretanto, ainda que suas narrativas sejam ficções, ou somente baseadas

em fatos reais, sua relevância social não pode ser negada. Aqui, é fácil retomar os debates já

propostos por Dyer (2002), D’Agata (2015) e Murray (2004) e reconhecer como ficções no

estilo dessa obra oferecem percepções diferentes sobre os personagens que abordam; nesse

caso, os negros. É uma forma de buscar uma representação de um Outro segundo Silverstone

(2002a), desafiando as mediações já apresentas, pois esse Outro, como na concepção de Lévinas

(1980), buscando lhe dar a voz, mas sem falar por ele. Talvez, justamente por esse motivo,

D’Salete cria uma miríade de personagens sem buscar reduzi-los ou trata-los somente como

arquétipos, mas oferecendo ao leitor várias possibilidades de aproximação, reconhecimento,

diferenciação e distanciamento.

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Por esse motivo, essa análise de Encruzilhada se faz relevante pois é a premissa que

D’Salete vai utilizar ao produzir suas duas obras seguintes: Angola Janga e Cumbe. Ambas se

estruturam em narrativas sobre os negros escravos brasileiros, entre os séculos XVI e XVII, e

tem sua origem no interesse do autor, ainda jovem, sobre as histórias dos negros relacionados

com os quilombos, em especial, Palmares. Assim, diferente da primeira, essas obras são fruto

de pesquisas em livros e outros registos históricos sobre o período da escravidão em solo

brasileiro, seus personagens e acontecimentos.

Novamente o autor faz uso de inúmeros personagens, principalmente negros (fugidos

ou escravos), mas também de brancos, para lidar com a busca de uma representação deles que

não seja simplista e reducionista.

Cumbe vai seguir a linha de Encruzilhada e se apresenta como uma coletânea de

histórias sobre a escravidão, mas sempre buscando não se ater a imagem padronizada pela

cultura brasileira do negro revolto, fugitivo das senzalas, herói do seu povo. D’Salete tenta

aprofundar nessa mediação de um Outro não só distante fisicamente, mas também,

temporalmente, e com base em suas pesquisas, apresentar personagens verossímeis com a

realidade vivida à época. O preciosismo do autor na qualidade da obra, levou a sua publicação

no exterior (Portugal e Estados Unidos) e em 2018 ela foi premiada com um Eisner, assim como

Maus.

Mas é em Angola Janga que D’Salete vai realmente se debruçar ao buscar reconstruir a

narrativa dos escravos em um quadrinho documental histórico robusto. A obra, com mais de

430 páginas gira em torno do quilombo de Palmares, Zumbi e aqueles que de alguma forma,

tiveram relevância nesse período histórico. Não há uma antologia aqui, diferente de suas

predecessoras, mas uma costura de narrativas criando uma macro narrativa, oferecendo um

início e um final, ainda que não definitivo, já que se trata de recorte de um cenário mais amplo.

Ao invés, então, de tentar recriar uma narrativa limitada ao negro herói ou com micro

histórias em forma de antologia, D’Salete vai, na verdade, contar a parte da história do Brasil

sob a ótica daqueles que não tiveram oportunidade de serem ouvidos, ou tiveram poucas

oportunidades, que são os escravos. Para isso, o autor buscar construir personagens mais

complexos, dúbios e menos estereotipados. Os negros, nos quadrinhos de D’Salete são mais

humanos, porque não se resumem ao marginal armado ou à vítima indefesa, mas circulam entre

esses extremos. Novamente, a questão da alteridade se mostra relevante, na busca de uma

mediação mais complexa dos personagens, como propõem Levinas (1980) e Silverstone (2002).

Para reforçar ainda mais a pesquisa histórica na produção de Angola Janga e, talvez,

numa tentativa de validar o discurso da usa narrativa, D’Salete vai inserir antes de cada um dos

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11 capítulos da obra, trechos retirados de cartas, livros ou outras referências feitas sobre a

situação da escravidão vivida à época, além de inserir um glossário dos termos linguísticos da

cultura negra e portuguesa da época, mapas sobre as picadas e também sobre a localização dos

quilombos, cronologia dos principais acontecimentos nos anos mais próximos, uma listagem

dos personagens e suas participações na história real, uma bibliografia dos textos que serviram

de referência para a pesquisa da obra, além de um texto de autoria do próprio D’Salete sobre

sua relação e interesse com a escravidão brasileira desde pequeno. Num paralelo com a

linguagem jornalística, esses recursos utilizados pelo autor podem ser comparados à fotografia,

no sentido de servirem como uma comprovação de que o conteúdo escrito é verdadeiro, é real.

Assim, D’Salete trabalha e reforça a questão de veracidade do quadrinho documental histórico

e mesmo que ele romanceie as narrativas apresentadas ou utilize um traço mais próximo da arte

urbana dos grafites, o peso social da obra não é perdido.

Apontamentos finais

A proposta aqui não é realizar uma ode à linguagem dos quadrinhos como superior às

outras, mas uma análise em relação à suas características e em como elas podem afetar (e

afetam) a mediação do Outro. Seria possível ponderar que por ter sido considerada por anos

como um meio de expressão inferior, os quadrinhos tomaram para si a personificação de

defensores daqueles que vivem à margem.

As obras de D’Salete estruturam narrativas poderosas, pois seus relatos imagéticos nos

chamados quadrinhos documentais jornalísticos, se desdobram no registro de comportamentos

culturais, costumes sociais e a realidade de um Outro distante, que parece já não tão distante

assim, mesmo que mantenha suas diferenças.

Tratar de mediações é compreender a comunicação num ambiente midiatizado e

complexo. Essa cultura midiatizada e mediada, permeia os comportamentos sociais, suas

lógicas e também os processos de codificação e decodificação da própria comunicação,

impactando de alguma maneira na representação e no reconhecimento do Outro. A alteridade e

a mediação do Outro são um processo não só complexo, mas relevante e também preocupante,

diante do cenário das mídias dominantes. As implicações éticas do uso e reprodução massiva

de estereótipos repercute em uma alienação social, pois cria uma realidade distante e diferente

da realidade em que o Outro está inserido e acarreta num processo simplista do uso desses

estereótipos para a compreensão de uma realidade muito mais complexa.

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