a religiosidade de moradores de rua da cidade de …livros01.livrosgratis.com.br/cp144348.pdf ·...

187
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Psicologia A RELIGIOSIDADE DE MORADORES DE RUA DA CIDADE DE BELO HORIZONTE: UMA VIA DE SUBJETIVAÇÃO Aluizio Geraldo de Carvalho Guimarães Belo Horizonte 2010

Upload: phamdung

Post on 09-Feb-2019

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

A RELIGIOSIDADE DE MORADORES DE RUA DA CIDADE

DE BELO HORIZONTE: UMA VIA DE SUBJETIVAÇÃO

Aluizio Geraldo de Carvalho Guimarães

Belo Horizonte

2010

Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

Milhares de livros grátis para download.

Aluizio Geraldo de Carvalho Guimarães

A RELIGIOSIDADE DE MORADORES DE RUA DA CIDADE

DE BELO HORIZONTE: UMA VIA DE SUBJETIVAÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação ∕

Mestrado em Psicologia da Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais como requisito parcial à

obtenção do título de Mestre em Psicologia, sob a

orientação da Professora Dra. Jacqueline de Oliveira

Moreira.

Belo Horizonte

2010

FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Guimarães, Aluizio Geraldo de Carvalho

G963r A religiosidade de moradores de rua da cidade de Belo Horizonte: uma via de

subjetivação / Aluizio Geraldo de Carvalho Guimarães. Belo Horizonte, 2010.

182f.

Orientador: Jacqueline de Oliveira Moreira

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Psicologia.

1. Subjetividade. 2. Religiosidade. 3. Pessoas desabrigadas – Belo Horizonte. I. Moreira,

Jacqueline de Oliveira. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de

Pós-Graduação em Psicologia. III. Título.

CDU: 159.922.764

Aluizio Geraldo de Carvalho Guimarães

A RELIGIOSIDADE DE MORADORES DE RUA DA CIDADE

DE BELO HORIZONTE: UMA VIA DE SUBJETIVAÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação ∕

Mestrado em Psicologia da Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais como requisito parcial à

obtenção do título de Mestre em Psicologia, sob a

orientação da Professora Dra. Jacqueline de Oliveira

Moreira.

__________________________________________________________________________

Profa. Dra. Jacqueline de Oliveira Moreira – Orientadora – PUC Minas (Pontifícia Universidade Católica

de Minas Gerais)

__________________________________________________________________________

Prof. Dr. José Paulo Giovanetti – FAJE (Faculdade Jesuíta)

__________________________________________________________________________

Prof. Dr. Miguel Mahfoud – UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais)

Belo Horizonte, 02 de Setembro de 2010

A Deus e a vida. Também a todas as pessoas que fazem parte de

minha vida e me permitem fazer parte de suas vidas, parceiros nessa

existência.

AGRADECIMENTOS:

Primeiramente, agradeço a Deus, fonte de sentido, força que nutre e orienta frente aos

desafios da existência. Obrigado por me permitir mais esta realização em minha vida.

A minha mãe Luiza e meu pai Antônio por tudo: Pelo carinho, o amor incondicional e o

exemplo de dignidade e persistência. Obrigado por nunca terem medido esforços para garantir

minha formação educacional e enquanto pessoa. Se hoje consigo essa formação é porque

antes houve, por parte de vocês, um esforço enorme para que eu pudesse dar os passos

anteriores. Obrigado.

A minha esposa, Gildeane, por um ano de convívio e companheirismo. Obrigado pelo carinho

e incentivo e por ter entendido minhas ausências neste tempo.

Aos meus irmãos, Antônio e Nilmara, pelo companheirismo que nunca se perderá, pelo

exemplo e pelo incentivo. Também ao meu sobrinho Luiz Felipe e minha cunhada Josie, por

alargarem meus horizontes de laços importantes.

Ao (Programa de Lideranças Católicas) PROLIC, pela concessão da bolsa de estudos, sem a

qual este mestrado não seria possível.

Ao amigo Pe. Jaldemir Vitório, por todos os anos de amizade sincera, pelo apoio e incentivo.

Obrigado por interceder junto à PROLIC e por ter me ajudado a tornar este sonho uma

realidade.

Ao companheiro, amigo e terapeuta Hélcio José Gomes, por ser sempre um refúgio de

amizade e de incentivo. Obrigado pelos livros emprestados, pelos ouvidos, braços e coração

abertos.

A todos os funcionários e amigos do Centro de Referência da População de Rua, pelo carinho

e pelo convívio afetuoso e também por me apoiarem, cada um ao seu modo. Agradeço ao

André, David, Guilherme, Heliomar, João Bosco, Lúcio, Luisa e Silene que me

acompanharam mais de perto nestes dois anos e todos os demais. Também aos amigos que já

passaram pelo Centro e deixaram suas marcas, em especial, a Anamélia.

Ao amigo Gustavo pelo incentivo e carinho de sempre.

A amiga Célia Barbosa, por todo incentivo, pelas dicas e por todas as leituras realizadas dos

meus textos, seguidas de fartos elogios.

Ao amigo Jadir de Assis, pela sinceridade, presença sempre marcante e pelos ensinamentos

proporcionados ao longo de nossa convivência. Obrigado, pelo tempo em que se manteve meu

coordenador, por ter negociado todos os horários possíveis para que eu pudesse trabalhar e

estudar.

À Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social (SMAAS), em especial, ao Gerente da

Abordagem Social nas Ruas, Warlley Silva.

A minha orientadora, Profa. Dra. Jacqueline de Oliveira Moreira, por ter aceitado me orientar

já no ―meio do caminho‖ apontando novas direções. Obrigado pela atenção, disponibilidade e

profissionalismo com o qual conduziu todo esse processo.

Aos professores componentes da banca de qualificação e defesa, Prof. Dr. José Paulo

Giovanetti e Prof. Dr. Miguel Mahfoud. Obrigado pelo interesse e disponibilidade.

A todos os seres humanos moradores de rua, com os quais tenho tido a oportunidade de

conviver nesses anos de trabalho, permitindo o meu sustento e, para além disso, conhecer o

humano em seus dilemas, me conhecer e buscar me aperfeiçoar enquanto pessoa.

Como tudo, como nada / Como leito o chão, como teto a imensidão /

Como remédio, cachaça / como consolo, saudade / Como afeto, o

incerto / relento como moradia / Sofrimento como companhia / como

amor a solidão, as tristezas, as angústias / esmolas como ganha-pão /

Amigos? Quem lhe estende a mão / Como tudo, como nada.

Maria Elizabeth Lima Mota, moradora e sofredora de rua em São

Paulo

RESUMO

GUIMARÃES, A. G. C. (2010). A religiosidade de moradores de rua da cidade de Belo

Horizonte: Uma via de subjetivação. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais.

A discussão em torno da questão social da população de rua vem ganhando destaque no

cenário nacional devido ao aumento contínuo de pessoas que passam a fazer da rua seu espaço

de morada. Esse é um fenômeno comum, especialmente nos grandes centros urbanos

brasileiros. Também a questão da religiosidade continua a ser um tema de relevante interesse

quando se busca compreender o humano e seus modos de vida. Neste trabalho, objetivou-se

investigar a influência da religiosidade como uma via de subjetivação em pessoas que vivem

nas ruas da cidade de Belo Horizonte. Pela complexidade da temática da população de rua e a

riqueza do encontro existencial com os moradores de rua através de entrevista orientada pelo

método fenomenológico, estendeu-se também à análise de outros fatores relevantes que

podem ser considerados vias de subjetivação nessas pessoas. De modo a aprofundar nessas

temáticas centrais, partiu-se primeiramente de uma descrição sobre o homem e sua existência

dentro de uma concepção da Psicologia Existencial, lançando mão da contribuição de

diferentes autores, destacando a concepção de Viktor Frankl, que vê o homem como um ser

que, fundamentalmente, irá buscar encontrar um sentido para sua existência. Aprofunda-se

também na espiritualidade como um caminho nessa busca pelo sentido, fazendo distinções

com a religiosidade e entre a vivência e experiência. Foram trazidas também diferentes

contribuições de autores da Psicologia e de outras redes conceituais sobre a temática da

religiosidade. No capítulo que trata exclusivamente sobre a população de rua, procurou-se

conhecer a realidade social desse público, buscando uma possível definição do mesmo. A

partir de uma prática profissional junto a esse público, destacou-se, também, a presença de

elementos da religiosidade na vida dessas pessoas. Dentro da descrição dos processos

metodológicos, dá-se ênfase à Fenomenologia como o método de pesquisa, que se mostrou

adequado na proposta de compreender as vivências e experiências das pessoas em situação de

rua por permitir ver, como os mesmos vêem suas questões relacionadas à religiosidade e a

outros elementos que contribuem para subjetivações na vida nas ruas. A partir da análise, à

luz do método Fenomenológico, de duas entrevistas feitas com moradores de rua da cidade de

Belo Horizonte, procurou-se destacar as vivências dos mesmos em sua experiência cotidiana

de viver nas ruas. A conclusão seguiu o método proposto por Forghieri (1993), analisando,

pontos comuns nos relatos dos dois entrevistados, destacando os mesmos como elementos

importantes na subjetivação destas pessoas. Dá-se ênfase na religiosidade como importante

elemento, como uma via de subjetivação. A religiosidade opera como fonte de sentido e de

sustento para os moradores de rua, apontando um caminho transcendente.

Palavras-chave: Subjetivação, Religiosidade, População de rua.

ABSTRACT

Guimarães, A. G. C. (2010). The religiosity of homeless people in the city of Belo Horizonte:

a way of subjectivity. Dissertation, Catholic University of Minas Gerais.

The discussion concerning the social issue of homelessness has been gaining emphasis on the

national scenario due to the continuous flow of people which make streets their own home.

This is a common phenomenon, especially on Brazilian big urban centers. The religious issue

is also of relevant interest in the search for comprehending humans and their way of life. In

this work, it was meant to search the religious influence as a way of subjectivation for people

who live in the streets of Belo Horizonte city. For the homelessness theme complexity as well

as the richness of the existential contact with homeless people through phenomenological

oriented inquiry, was conducted the analysis of other relevant factors which may be

considered as ways of subjectivation by these people. In order to deepen on these central

themes, the text starts with a description of men and their existence inside a conception of

Existential Psychology, reckoning with the contribution of different authors, stressing Viktor

Frankl’s conception which states that man is a being who fundamentally searches for a sense

for his existence. Furthermore, it is discussed the issue of spirituality as a way on this search

for senses, and distinctions are made between religiousness, the living and the experiencing.

Were brought, as well, different contributions of authors from psychology and from other

religious themed conceptual networks. In the chapter which deals exclusively with homeless

people, it was intended to know their social reality, seeking to know its possible definition.

Starting from a professional experience with this group, was pointed the presence of religious

elements on the life of those people. Inside the description of methodological processes,

emphasis is given to the Phenomenology as a research method, which was revealed adequate

in the propose of comprehending the lifestyle and experience of homeless people for allowing

to see how they see their own questions as to religiosity and other elements which contribute

to subjectivations on homeless life. From the analysis of queries made with two homeless

people from Belo Horizonte, based on Phenomenological method, were sought their

experience of everyday life on the streets. The conclusion followed the method suggested by

Forghieri (1993), and were analyzed common points on the two inquiries, being these points

important elements for their subjectivation. Religiosity plays the role of source of sense and

support to homeless population, pointing to a transcendent path.

Keywords: Subjectivation, religiosity, homeless population

SUMÁRIO:

1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................12

2 O HOMEM E O SENTIDO.............................................................................................17

2.1 O homem como um ser buscador de sentido..................................................................17

2.2 Espiritualidade e Religiosidade: distinções.....................................................................25

2.3 As diferenças implícitas entre vivência e experiência....................................................30

3 DIFERENTES VISÕES SOBRE O FENÔMENO RELIGIOSO...................................36

3.1 Contribuições Freudianas para a análise do fenômeno religioso.................................36

3.2 Contribuições de Viktor Frankl para a análise do fenômeno religioso.......................43

3.2.1 Um Psicólogo no campo de concentração....................................................................43

3.2.2 Princípios teóricos da Logoterapia.................................................................................45

3.2.3 A Essência e a autotranscendência da existência humana...........................................48

3.3 Religião na Pós-Modernidade..........................................................................................51

3.4 Contribuições da Sociologia para a análise da religião.................................................54

3.5 Campo religioso Brasileiro e novas formas de religiosidade.........................................56

4 O MORADOR DE RUA.....................................................................................................59

4.1 O morador de rua: uma possível definição.....................................................................59

4.2 O morador de rua: vítima da exclusão............................................................................62

4.3 A visão do morador de rua pela sociedade....................................................................68

4.4 A situação dos moradores de rua na cidade de Belo Horizonte: dilemas e

conquistas.................................................................................................................................70

4.4.1 Segundo Censo da População de Rua e Análise Qualitativa da Situação dessa

População em Belo Horizonte.................................................................................................71

4.4.2 Dilemas e avanços da população de rua em Belo Horizonte........................................73

4.5 A religiosidade presente na vida de moradores de rua da cidade de Belo

Horizonte..................................................................................................................................79

5 METODOLOGIA................................................................................................................87

5.1 Objetivos: ..........................................................................................................................87

5.2 Justificativa........................................................................................................................88

5.3 Procedimentos Metodológicos..........................................................................................89

5.3.1 Campo de Pesquisa.........................................................................................................90

5.3.2 Pesquisas Preliminares..................................................................................................90

5.3.3 Entrevistas......................................................................................................................91

5.3.4 Definição dos sujeitos de pesquisa................................................................................91

5.3.5 Análise das entrevistas...................................................................................................94

6 A PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA NA PESQUISA...........................................95

6.1 O método fenomenológico de pesquisa............................................................................95

6.2 Processos de subjetivação em uma perspectiva Fenomenológica existencial..............97

6.3 Algumas noções sobre a Fenomenologia.........................................................................99

6.4 Fenomenologia e Religião...............................................................................................104

7 ENTREVISTAS.................................................................................................................108

7.1 Análise de entrevista I: Marcelo....................................................................................108

Síntese das vivências expressadas por Marcelo em sua entrevista...................................122

7.2 Análise de entrevista II: Paulo.......................................................................................123

Síntese das vivências expressadas por Paulo em sua entrevista.......................................141

8 CONCLUSÃO....................................................................................................................143

8.1 Concluindo a partir dos objetivos.................................................................................147

8.1.1 A religiosidade como via de subjetivação.....................................................................147

8.1.2 A questão do sentido nos moradores de rua.................................................................155

8.2 O novo do encontro: outros temas vividos como vias de subjetivação.......................159

8.2.1 A visão do morador de rua pela sociedade e a sua autovisão......................................159

8.2.2 Sobre álcool e drogas....................................................................................................162

8.2.3 O corpo marcado pelas ruas: A violência....................................................................165

8.2.4 Doações..........................................................................................................................170

8.2.5 Serviços públicos...........................................................................................................172

REFERÊNCIAS ...................................................................................................................174

ANEXO A..............................................................................................................................179

ANEXO B...............................................................................................................................182

12

1 INTRODUÇÃO

A presente dissertação versa sobre a religiosidade e suas influências na subjetivação de

pessoas que vivem na condição de moradores de rua, na cidade de Belo Horizonte. Seu

objetivo maior é investigar como a vivência ou a experiência religiosa pode influenciar nos

processos de subjetivação e nos modos de vida destas pessoas. Por se tratar de tema de

relevante interesse social e também de difícil compreensão, dada a sua especificidade,

interessa também aprofundar o conhecimento a respeito da religiosidade e suas implicações

psicológicas naqueles que vivenciam uma experiência desse contexto. É necessário também

que se contextualize a população de rua, buscando conhecer suas especificidades e sua

realidade, e através da fala de alguns moradores analisar qual sentido é atribuído por eles à

religiosidade, de modo a apreender e aprofundar nos temas.

Ao buscar compreender e analisar determinado assunto de um ponto de vista

científico, é necessário que se avance em relação ao senso comum e se procure ver os temas

estudados com um olhar diferenciado. O primeiro passo é fazer uma revisão bibliográfica e

buscar os estudos atuais sobre as diferentes categorias que atravessam o tema em questão.

É preciso salientar, desde já, que o método de interpretação que será utilizado na

presente pesquisa é o método Fenomenológico. Ao longo da dissertação, serão feitas maiores

considerações com relação a esta corrente do pensamento, porém, cabe antecipar que um dos

pressupostos da Fenomenologia está não em negar a realidade dos fatos, mas analisá-los em

suas especificidades, como se mostram. Assim, reconhecer motivações e inclinações pessoais

é algo importante, sendo necessário na seqüência fazer uma suspensão desse lugar e dessas

motivações para ver o fenômeno como ele se mostra.

Busquei resgatar assim as minhas motivações para pesquisar o tema em questão e as

discussões satélites. Meu contato com a população de rua iniciou-se no ano de 2000, quando

cursava a Faculdade de Psicologia em uma instituição de ensino superior em Belo Horizonte.

Na época cursava o sexto período e fui selecionado para uma vaga de estágio no Centro de

Referência da População de Rua. Iniciava ali um contato com uma realidade diferente da que

já havia tido a oportunidade de estabelecer ao longo do curso e da vida. O primeiro dia de

trabalho neste serviço provocou em mim um sentimento de estranheza, com toques de medo,

curiosidade e ansiedade pelo que viria a partir dali.

13

Ao longo dos dias e dos meses que se seguiram a esse estágio, tive a oportunidade de

conhecer diferentes histórias de vida e inúmeras realidades de pessoas que conviviam com um

mínimo de bens e uma rotina marcada pela ausência de domicílio fixo e outras realidades

sociais, como trabalho e estudo. Na minha ânsia em empregar o que estudava no curso de

Psicologia ao meu dia-a-dia de estagiário, buscava contribuir para a organização daquelas

pessoas muitas vezes com o atropelo de meu próprio desejo. Pude então com essa convivência

perceber algo muito falado no curso de Psicologia que se fazia presente ao longo de minha

atuação. Era necessário entender e respeitar o tempo de cada pessoa; tempo de tomada de

consciência, tempo de mudança, tempo de despertar. Conhecer aquelas pessoas, a realidade na

qual estavam inseridas, seus dilemas, suas gírias, era um desafio e um mundo novo que ia se

abrindo.

A necessidade de maior ganho financeiro fez com que eu me desligasse desse estágio

após um período de um ano e oito meses. A essa época meu olhar para com a população de

rua era outro, entendendo que havia ali pessoas para as quais a sociedade havia destinado uma

parcela ínfima com relação às condições socioeconômicas, mas, também, a presença de

escolhas frente a esses modos de vida.

Após a conclusão da graduação e vivendo outra experiência profissional, surgiu então

a possibilidade de um retorno ao mesmo serviço, o Centro de Referência da População de

Rua, para atuar no papel de Educador Social, realizando um trabalho de escuta e

acompanhamento aos moradores de rua. Essa experiência de trabalho será mais bem detalhada

ao longo da dissertação.

Esse retorno, agora com uma formação em Psicologia concretizada, novamente me

traz a oportunidade de um contato com um rico conjunto de pessoas, inúmeras falas e ao

contato com grandes dilemas do ser humano, como a solidão, os vícios, a loucura, mas

também a superação, a mudança de uma realidade, o resgate de laços, entre outros.

Ao longo de quase oito anos nesse contato com a população de rua, passou a me

chamar a atenção a freqüência com a qual temas e passagens de cunho religioso aparecem na

fala de pessoas que estão vivendo nas ruas. Para além de expressões rotineiras como ―se Deus

quiser‖, ―vai com Deus‖ ou ―Nossa Senhora‖, as pessoas trazem a religião como algo que faz

uma ligação com um passado ou como algo que lhes oferece uma sustentação frente à difícil

condição de viver nas ruas. Ainda que o tema não seja incitado e mantendo sempre uma

postura de imparcialidade frente às crenças e às falas de cada morador de rua, o tema da

religiosidade sempre aparece.

14

Analisar a religiosidade e seus efeitos psicológicos se tornou ao longo de minha

formação profissional um tema de relevante interesse. Sempre se fizeram presente também em

minha prática clínica, coincidentemente desde os tempos de graduação, elementos da

religiosidade na fala e na vida das pessoas. Ao realizar um curso de especialização em

Psicologia Clínica Fenomenológico-Existencial, procurei então tratar dessa temática na

monografia de conclusão de curso.

Ao me dar conta disso, de minhas inclinações pessoais, refleti se minha escuta não

estava contaminada, fazendo com que eu ouvisse dos moradores de rua aquilo que eu poderia

querer escutar. Procurei então socializar minhas impressões a outros colegas de trabalho e tive

assertivas por parte dos mesmos, que me fizeram perceber que realmente há, nas falas dessas

pessoas, recorrentes elementos de cunho religioso.

Avançando nessa análise, pude perceber também que o morador de rua é alvo dos

mais variados sentimentos e juízos por parte das demais pessoas. No âmbito da religiosidade,

é fato notório que pessoas de diferentes religiões e um grande número de grupos ou

instituições ligadas à religião se interessam de maneira especial pelo morador de rua e seus

dilemas. Procuram dar assistência de diferentes formas, se tornam parceiras em suas lutas e

dilemas, reforçam ou procuram tirar do lugar em que se encontram, enfim, estabelecem

inúmeras formas de se ligarem aos moradores de rua.

A partir de então, procuro investigar aqui essa ligação de moradores de rua com a

religiosidade, perceber qual o sentido que os mesmos atribuem a ela, e como a religiosidade

opera na vida dessas pessoas. A presente dissertação se torna então uma tentativa de

responder a tais perguntas, acreditando que possa favorecer à compreensão de ambos os

fenômenos: o morador de rua e a religiosidade.

Além disso, busco também investigar outros elementos importantes da subjetivação de

pessoas que vivem nas ruas, acreditando que o produto dessa pesquisa pode tornar-se então

elemento que venha a contribuir para o maior conhecimento desse público e o avanço das

políticas públicas para o mesmo.

No primeiro capítulo teórico, item número dois do sumário, procuro tecer

considerações sobre o homem e sua existência dentro de uma concepção da Psicologia

Existencial. Nessa concepção, o homem é visto como um ser que, fundamentalmente, irá

buscar encontrar um sentido para sua existência. O que caracteriza o humano fazendo-o

diferenciar-se de outras espécies é justamente essa capacidade de refletir sobre sua existência

e buscar um sentido que oriente a mesma; é assim o ser o humano um ser buscador de sentido.

15

Na seqüência deste capítulo, procuro fazer distinções entre o que se pode entender por

espiritualidade, diferenciando-a da religiosidade. A espiritualidade se liga a essa busca de

sentido, sendo a religiosidade um dos caminhos possíveis. Diferencio também o que vem a ser

uma vivência e suas distinções com a experiência.

No segundo capítulo, item número três do sumário, procuro descrever a partir da

leitura de dois autores de relevante importância na Psicologia as suas visões acerca da religião

e suas influências nas pessoas. Busco assim em Freud uma leitura que vê a religião como algo

negativo e que se presta a afastar o homem de um verdadeiro encontro consigo e com sua

condição frente à natureza. A partir da leitura de Viktor Frankl, mostro outra possibilidade de

leitura da religião e da ligação do humano a uma existência dada como transcendente. É uma

leitura positiva da experiência religiosa que é vista como fonte de sentido e algo que pode

aproximar o homem de seus projetos e da superação de seus dilemas existenciais. Finalmente,

lanço mão das contribuições de outros teóricos que procuram apreender a questão da religião

e da religiosidade por redes conceituais distintas da Psicologia.

O terceiro capítulo, item número quatro, é uma descrição e uma tentativa de definição

de quem é o morador de rua; do que é a população de rua. A partir de pesquisas bibliográficas

e de contribuições da minha prática profissional com esse público, procuro elaborar uma visão

social e psicológica do morador de rua. Saliento dilemas e avanços da situação da população

de rua na cidade de Belo Horizonte e a presença de propostas relevantes do ponto de vista da

política pública para esse público. Mostro também a presença marcante de ONG`s e

instituições ligadas a denominações religiosas que se prestam a acompanhar pessoas em

situação de rua desenvolvendo algumas práticas sociais com os mesmos. O término desse

capítulo é uma tentativa de mostrar como a religiosidade se faz presente no discurso e nas

vidas de pessoas em situação de rua, sendo elemento de grande importância em sua

subjetivação.

Descrevo então no capítulo sobre a metodologia os procedimentos metodológicos

utilizados na realização da pesquisa, enfatizando aspectos importantes, como a definição do

campo de pesquisa, o recorte na amostra dentro de um horizonte maior de pessoas que

poderiam ser entrevistadas, a escolha dos entrevistados e o processo de análise das entrevistas.

No capítulo seguinte, procuro expor o eixo teórico que serviu de base e orientação

para o processo de coleta dos dados nas entrevistas e na análise das mesmas. Contextualizo

como a Fenomenologia se mostrou a partir de um aporte teórico e de uma escolha pessoal, ser

o melhor caminho a seguir na construção dessa pesquisa. Descrevo também como se pode

16

pensar a construção de subjetivações em uma teoria de base fenomenológica existencial, uma

teoria que não pensa a subjetividade como algo fechado e constituído a priori e, portanto,

aberta às influências da vida social.

Apresento na seqüência a análise das entrevistas realizadas, procurando identificar as

vivências contidas nas falas dos entrevistados e, finalmente, as conclusões, nas quais procuro

dialogar com as propostas teóricas utilizadas ao longo da pesquisa, levando em conta os

pontos comuns e relevantes na fala dos entrevistados, apontando os mesmos como pontos

relevantes na subjetivação de pessoas em situação de rua. A religiosidade é enfatizada como

componente importante da subjetividade de pessoas em situação de rua em Belo Horizonte.

A presente dissertação não tem como objetivo apresentar resultados finais e

conclusivos que esgotem essas questões dos moradores de rua e sua relação com a

religiosidade, mas ser um trabalho que favoreça uma maior compreensão desse público em

suas especificidades e um olhar psicológico sobre a questão da religiosidade e o que a mesma

pode representar para essas pessoas. Constitui-se assim como um trabalho que pode servir de

base a outros estudos que envolvam os temas propostos e também uma intervenção social,

haja vista que este estudo possibilita à sociedade uma maior compreensão desse público,

relevante questão social para a vida pós-moderna e a sociedade atual.

17

2 O HOMEM E O SENTIDO

A proposta deste trabalho é pensar como a religiosidade influencia o processo de

subjetivação de pessoas que moram nas ruas na cidade de Belo Horizonte. Tal tarefa traz

implicitamente um grau de dificuldade, dada a complexidade das temáticas envolvidas: a

religiosidade; moradores de rua; subjetivação, cidade, situação social e políticas públicas,

entre outros temas que poderão se apresentar ao longo do percurso. Por onde iniciar?

Primeiramente pensou-se na tentativa de definir o que vem a ser a religião e a

religiosidade, e suas implicações psicológicas para o ser humano, para aquele que crê.

Contudo, ao buscar essa definição de termos como religião e religiosidade, diferentes

apontamentos e reflexões foram surgindo, bem como diversos autores e diferentes ciências

que buscam apreender e definir a religião e a questão da religiosidade no ser humano. Isso foi

fazendo com que o trabalho se tornasse mais complexo e as definições mais vastas. A partir

de então, uma nova questão foi surgindo.

Mais que buscar definir o que é a religiosidade e a religião, é necessário que se busque

compreender o que elas representam; o que elas buscam responder em qualquer ser humano,

independente da situação ou realidade social em que vivem. Já que existe essa ligação do ser

humano com algo transcendente, ela expressa, na verdade, a tentativa de responder a algo

anterior; é uma busca que é movida por um princípio.

Há um princípio unificador que opera toda essa busca do homem; a religiosidade pode

ser, na verdade, já um caminho; uma tentativa de dar resposta a esse questionamento primeiro.

Esse princípio unificador do qual parte esse questionamento é a pergunta fundamental pelo

sentido da vida, da existência.

Frente a isso, antes de refletir sobre religiosidade e população de rua, faz-se necessário

buscar compreender essa questão do humano: a busca do sentido em sua existência.

2.1 O homem como um ser buscador de sentido

Ao nascer, o ser humano é lançado em sua existência. Diferente de outros filhotes, o

bebê humano traz consigo uma incapacidade de se cuidar que irá durar longo tempo. Caso não

18

encontre ambiente afetivo, cuidados e alimentos adequados, fatalmente, o pequeno humano,

devido à sua fragilidade, irá morrer. O grande desafio da vida humana é justamente crescer e

se desenvolver em suas capacidades e aptidões sempre tendo a morte como possibilidade. Do

bebê que nasce a tornar-se o adulto ou o idoso, há um longo caminho de dilemas, escolhas,

perdas e ganhos. É a vida, a existência.

Ao longo da vida aparecerão características específicas que farão com que o ser

humano vá se diferenciando de todas as outras espécies. Características como a razão; a

autoconsciência de sua existência, a capacidade de pensar sobre sua vida e fazer escolhas.

Não impera sobre o homem o determinismo biológico como em outras espécies.

Essas capacidades, além de diferenciarem o humano de outras espécies, concedem a

cada homem e a cada mulher a consciência de serem únicos. Apesar de ser imerso no mundo

da cultura sendo por ele influenciado, há algo que fará de cada humano único. É a partir dessa

unicidade que cada ser é chamado então a responder por sua vida e por sua existência. Aqui

surgem então as questões de sentido.

A dor de ser faz parte da nossa natureza. Não agüentamos apenas ser, temos de ser

nós mesmos. Não queremos repetir ninguém nem que ninguém nos copie. Também

não nos basta que os outros aprovem nossa vida. É preciso que ela faça sentido para

nós mesmos. Essa dor sentida é, no entanto, apenas uma face da moeda; a outra, em

que mal reparamos, é a dor de uma bem aventurança. Se podemos sentir a dor de nos

ter perdido de nós mesmos, é porque temos o poder de nos encontrar novamente. O

que nos angustia e nos deixa aturdidos nessa história é que, para esse indivíduo

exclusivo que somos e para o sentido pessoal de nossas vidas, não há nenhuma

referência possível. Os modelos culturais e as pessoas com quem convivemos

podem nos inspirar, mas apenas isso. O resto é conosco. (CRITELLI, 2002, p. 4)

Viver para o humano é ter consciência de que se existe, de que se deseja e que se pode

morrer. Entre o emaranhado de possibilidades que a vida oferece, é preciso escolher e buscar

se tornar o humano que se deseja. A existência é algo que se constitui e que se pode reler,

reorganizar e escolher novamente. Há, então, uma inquietação com relação à vida que invade

o ser humano e pergunta pelo sentido do existir. Mais do que existir deve haver um por que

existir. Esse porquê existir é que poderá dar base e sustentação para que se suporte a vida em

suas incertezas.

É a partir dessa característica do ser humano que se pode conceber o mesmo, então,

como um ser espiritual. O termo espiritual aqui não se dirige a algo da sacralidade ou ligado à

religiosidade. O espiritual é aquilo que dá ao homem essa capacidade de unicidade e de busca

de sentido. Além do biológico, do psíquico e do sociológico, há no humano essa dimensão do

espiritual. Em todo o ser humano, religioso ou não, há a presença de uma espiritualidade.

19

Homem e animais são constituídos por uma dimensão biológica, uma dimensão

psicológica e uma dimensão social, contudo o homem se difere deles porque faz

parte de seu ser a dimensão noética. Em nenhum momento o homem deixa as

demais dimensões, mas a essência de sua existência está na dimensão espiritual.

Assim, a existência propriamente humana é existência espiritual. (MAHFOUD;

COELHO, 2001, p. 2)

Frankl (2007) ressalta a dimensão espiritual no humano apontando para a sua condição

de liberdade e responsabilidade que se contrapõe a condicionamentos da facticidade

psicofísica de cada pessoa. A responsabilidade para o autor manifesta-se na capacidade de

responder; é a liberdade de se posicionar no momento em que a existência coloca algo à sua

frente. A liberdade é então essa possibilidade de escolher, tornando-se, naquele momento e

em determinada situação, algo único. Para Frankl, a dimensão espiritual se resume então em

ser livre e ser consciente da responsabilidade das escolhas.

Para Frankl (2007), essa dimensão espiritual é superior às demais dimensões, sendo,

portanto, essencialmente humana. Ela representa essa busca de sentido que caracteriza o

humano. O sentido da existência para Frankl está fora do ser humano, podendo ser encontrado

em três fontes: o trabalho, o amor e o sofrimento.

Frankl (2007) afirma que a dimensão espiritual do ser humano é obrigatoriamente

inconsciente e inteiramente pertencente ao eu. Há uma profundeza inconsciente na qual são

tomadas as grandes decisões existencialmente autênticas. Assim, o autor afirma que, além de

uma responsabilidade consciente, há uma responsabilidade inconsciente. Outra característica

desse inconsciente espiritual é a sua autotranscendência, ou seja, a intencionalidade presente

no homem é algo que o lança para fora, para algo além de si mesmo. Assim, a essência do

humano para Frankl não pode estar na racionalidade.

A partir dessas considerações sobre o inconsciente espiritual Frankl (2007) afirma que

há também no ser humano uma religiosidade inconsciente.

Ademais, numa terceira etapa de desenvolvimento, a análise existencial descobriu,

dentro da espiritualidade inconsciente do ser humano, algo como uma religiosidade

inconsciente no sentido de um relacionamento inconsciente com Deus, de uma

relação com o transcendente que, pelo visto, é imanente no ser humano, embora

muitas vezes permaneça latente. (...) Essa fé inconsciente da pessoa, que aqui nos

revela e está incluída no conceito de seu inconsciente transcendente, significaria

então que sempre houve em nós uma tendência inconsciente em direção a Deus, que

sempre tivemos uma ligação intencional, embora inconsciente, com Deus.

(FRANKL, 2007, p. 58)

Entendendo a dimensão espiritual da existência humana é que se pode entender como

surgem as questões religiosas e o que elas buscam responder. Na verdade, a religiosidade se

liga às questões de sentido buscando responder ao sentido maior da existência e extrapolando

20

a realidade presente, mirando uma realidade transcendente. Não é algo que se liga à religião,

mas, essencialmente, à busca de uma resposta.

Frankl (2007) ressalta ainda que deve ser evitado acreditar que a relação inconsciente

impulsione ou force um contato do homem com Deus. Afirma que esse foi o erro de Jung, ao

dizer que a religiosidade se localizava no inconsciente e de que, portanto, não era o eu quem

decidia por crer em Deus. Ele era impulsionado inconscientemente a isso. Para Frankl, viver a

religiosidade passa pelo âmbito da decisão de cada ser humano.

A relação com a transcendência pode ser apreendida pelo sujeito, no vivo da

experiência, como um diálogo no qual o transcendente é considerado como um

―Tu‖. Ao homem que vive essa possibilidade, Frankl o chama de homo religiosus.

Contudo, esse relacionamento com o Tu também pode estar oculto para nós,

inconsciente ou reprimido, mas, todo homem está sujeito a ele enquanto

possibilidade humana. (MAHFOUD; COELHO, 2001, p. 4)

Com relação à fonte das questões religiosas, vê-se que diferentes autores podem trazer

contribuições. Cabe ressaltar que é fato notório que essas diferentes contribuições caminham

em uma mesma direção.

Para Massimi e Mahfoud (1999), o senso religioso é a exigência de significado da vida

e de todas as coisas. As perguntas que surgem ao homem pelo sentido das coisas e da própria

vida pedem contato com algo que seja totalizante, fundante da experiência de si, experiência

de ser. São, portanto, ainda que não confessadas, perguntas religiosas. A experiência religiosa

pode ser encarada então como a experiência de uma resposta transcendente a essa exigência

propriamente humana. É necessário considerar a experiência religiosa para conhecer a

experiência propriamente humana, e vice-versa.

No mesmo sentido Giussani (1998) aponta a ligação entre a dimensão do sentido no

humano e o senso religioso. O senso religioso, surgindo através de perguntas que questionam

o sentido da vida e das coisas, se liga à dimensão espiritual do humano.

O fator religioso representa a natureza de nosso eu enquanto se exprime em certas

perguntas: qual é o significado último da existência? Por que existem a dor, a morte?

Por que, no fundo, vale a pena viver? Ou, a partir de outro ponto de vista: de que e

para que é feita a realidade? O senso religioso situa-se dentro da realidade do nosso

eu ao nível destas perguntas: coincide com o compromisso radical de nosso eu com

a vida, que se mostra nestas perguntas. (GIUSSANI, 1998, p. 69)

Giussani identifica o senso religioso como algo que oferece o empenho para que o

humano se engate existencialmente na vida.

A condição para poder surpreender em nós a existência e a natureza de um fator

sustentador e decisivo como o senso religioso é o empenho com a vida inteira, na

21

qual tudo está compreendido: amor, estudo, política, dinheiro, até a alimentação e o

repouso, sem esquecer nada – nem a amizade, nem a esperança, nem o perdão, nem

a raiva, nem a paciência. De fato, dentro de cada gesto está o passo em direção ao

próprio destino. (GIUSSANI, 1998, p. 59)

No mesmo caminho Giussani (1998) procura mostrar que a existência humana é

permeada por realidades distintas uma da outra. Há uma dupla realidade: de um lado, há uma

realidade mensurável e material, de outro lado, fenômenos cujo conteúdo de realidade não é

mensurável e divisível, sendo assim, por exemplo, a idéia, o juízo e a decisão. Assim, essas

duas realidades são denominadas de diferentes maneiras como matéria e espírito; corpo e

alma. Cabe ressaltar que uma realidade é irredutível a outra.

Amatuzzi (2001) também afirma que há no ser humano uma religiosidade latente ou

um senso religioso que é algo que está na base de nossas questões de sentido. Se o ser

humano, usando sua capacidade de abstração que é algo que o diferencia dos demais seres

vivos, for se questionando pelo sentido das coisas, da vida, acabará se perguntando pelo

sentido último, mais radical, ou seja, um questionamento que ultrapassa o limite do

conhecido, do apreensível. O que dá fundamento a esse questionamento é o senso religioso

O campo religioso não é inicialmente o campo das indagações sobre os deuses, mas

sim das indagações sobre tudo o que acontece, tudo o que existe e nos acontece.

Trilhando esse caminho, desembocamos nas questões do sentido último e tocamos

na questão do transcendente, pois é como se nos déssemos conta da totalidade dos

horizontes, sem que isso aquietasse aquelas indagações. (AMATUZZI, 1999, p. 127)

Esse senso religioso, na sua ânsia de respostas, pode desembocar em uma forma

religiosa. Caso isso aconteça, essa forma religiosa será entendida como uma tomada de

posição frente ao senso religioso; uma tentativa de dar resposta às questões que ele traz.

O que se pode notar é que as afirmações anteriores procuram ressaltar o aspecto da

dimensão espiritual como característica essencial do humano. A religiosidade aparece então

como um caminho dentro dessa dimensão maior que é a procura de sentido. Nesse aspecto ela

se faz presente ainda cedo no desenvolvimento de cada pessoa para além das orientações

religiosas culturalmente estabelecidas.

Em sua obra O ciclo de vida completo, Erikson (1998) propõe que a vida humana se

desenvolva em ciclos. Cada ciclo da vida traz implícito um conflito que pede a sua solução. A

solução que cada ser consegue construir frente a esses conflitos ou crises psicossociais

originará uma força básica ou também uma patologia central. Ou seja, antes que se passe à

outra fase de desenvolvimento na vida, deve-se dar uma solução para a fase anterior, e essa

solução irá influenciar os outros ciclos que se iniciarão.

22

O primeiro estágio citado por Erikson (1998) é o que o mesmo chama de Período e

abarca a fase em que se é apenas um bebê. A crise psicossocial que se instaura é a da

Confiança básica versus a Desconfiança básica. A partir da relação com os primeiros

cuidadores, a criança fará a experiência de adquirir ou não a confiança básica para viver.

Desde o início nós somos abençoados com a confiança básica. Sem ela a vida é

impossível, e com ela nós persistimos. Como uma força permanente, ela nos

acompanhou e sustentou com esperança. Sejam quais forem as fontes específicas da

nossa confiança básica, e independentemente de quão seriamente a esperança foi

desafiada, ela nunca nos abandonou completamente. A vida sem ela é simplesmente

impensável. Se ainda sentimos plenamente a intensidade de existir e esperar por

novas graças e esclarecimentos, então temos razão para viver. (ERIKSON, 1998, p.

95)

Ou seja, a força básica que deve surgir para a criança é a esperança, a força que servirá

como motor para a vida futura. Caso não haja essa condição de se acessar a esperança, o

resultado desse primeiro ciclo, a patologia central que surgirá, será o retraimento. É de suma

importância assim essa força básica para a manutenção e o crescimento do ser humano.

Vê-se assim que para Erikson (1998) a esperança é a primeira força que nasce no ser

humano e o impulsiona a viver e buscar se realizar. Sem a esperança não há muito o que se

fazer. Ela age como uma força no sentido de apontar para algo maior, algo que virá, algo que,

por tudo isso, aponta para a transcendência. A transcendência aqui pode ser entendida como a

possibilidade de uma realidade diferente, de algo diferente que poderá surgir.

O que Erikson (1998) denomina de esperança guarda muitas semelhanças com a

espiritualidade e o chamado senso religioso, com essa capacidade humana de buscar

responder por sua vida. Erikson (1998) afirma que a esperança pode ser encarada como a

forma inicial daquilo que podemos chamar no futuro de fé.

E, realmente, seja em que língua for, esperança conota a qualidade mais básica da

condição do ―Eu‖, sem a qual a vida não poderia começar ou terminar de forma

significativa. E, conforme ascendemos (...) precisamos de uma palavra para a última

forma possível de esperança, uma forma amadurecida (...) para isso, certamente,

sugere-se a palavra fé. (ERIKSON, 1998, p. 56)

Amatuzzi (2001) propõe uma teoria do desenvolvimento religioso, em partes apoioado

em Erikson, afirmando que o ser humano vai se desenvolvendo ao longo da vida, passando a

níveis cada vez mais complexos. Assim, em cada fase da vida, o indivíduo se depara com um

desafio central do ponto de vista psicológico e existencial. Quando a pessoa responde a esse

desafio, permite que surja outro e então passa para uma outra etapa de sua vida. À medida que

23

se avança na vida, que se responde a esses desafios, o sujeito muda a sua concepção de eu,

que é a idéia que o sujeito tem de si próprio.

O autor parte desse esclarecimento para afirmar que a concepção de eu e a posição

religiosa de uma pessoa estão intimamente ligadas, já que o sentido de eu é consistente com o

sentido de tudo mais. A questão que se aponta é que, caso o desafio central que é colocado em

cada fase não seja respondido, solucionado, esse movimento de crescimento e evolução do eu

pode ser quebrado ou deixar marcas negativas posteriores.

No caso do desenvolvimento religioso, uma não solução desse desafio central pode

levar o homem a uma relação não sadia com o ser transcendente e com sua própria vida. Ao

invés de levar o homem a um autoconhecimento e a assumir uma posição libertadora que

envolva a ética e o cuidado, o diálogo, entre outros, a religiosidade pode ser encarada como

uma forma de barganha e Deus como um ser punitivo e regulador. A religião, muitas vezes,

acaba sendo usada como uma forma de desresponsabilização da própria vida.

A presença do religioso, psicologicamente falando, é passível de efeitos pessoais

contraditórios: ela pode ser promotora ou bloqueadora de desenvolvimento humano.

Isso dependerá tanto da qualidade desse religioso como da função psicológica com a

qual ele surge. Supõe-se aqui que o religioso mais autêntico seja promotor do

humano (tanto em geral como naquele aspecto a ser preservado em termos do todo

nesse momento de desenvolvimento para essa pessoa e sua comunidade). Mas isso

significa também que existe a possibilidade de um trabalho pessoal em direção a

uma autenticidade maior da vivência religiosa. (AMATUZZI, 2001, p. 50).

Para Amatuzzi (1999) existem adultos que têm uma concepção religiosa infantil e

outros que têm uma concepção mais bem desenvolvida. Afirma também que é possível que

uma concepção religiosa bem desenvolvida exista numa pessoa que não desenvolveu uma

experiência propriamente religiosa; assim, o que se pode afirmar é que há uma diferença entre

concepção e experiência religiosa, podendo ambas caminhar separadamente.

Quanto à religião, Amatuzzi (1999) afirma que é o campo da experiência no qual se

cresce ou se deixa de crescer. Difere do campo religioso, que é o campo das indagações

últimas, aquelas indagações pelo sentido das coisas. Assim, o campo religioso é algo

necessariamente mais vasto que a religião abarcando a mesma. As religiões se constituem

como sistemas de crenças e ritos sociais de asseguramento, que, muitas vezes, acabam por

eliminar o mistério, podendo se transformar em ideologias apenas.

A religião declarada ou mesmo praticada pode estar mais ou menos separada da fé.

A fé é realmente aquilo que dá sentido à vida de uma pessoa, é sua confiança básica,

é simplesmente a forma de sua energia de viver. Ora, isso nem sempre coincide com

uma religião declarada. A superação dessas dicotomias (entre concepção humana

amadurecida e concepção religiosa infantil, e entre religião declarada e fé) só pode

24

se dar por um retorno à experiência (no campo humano e religioso) e seus

desdobramentos, o que quer dizer por um retorno à fé básica e seus

desenvolvimentos. (AMATUZZI, 1999, p. 125)

Após se avançar um pouco compreendendo que há no homem a dimensão espiritual e

uma religiosidade que lhe é inerente (Frankl, 2007), pode-se entender melhor uma possível

distinção com a religião, que é, por sua vez, uma construção social que permeia esse caminho

do sentido. Contudo, por ser uma construção, a religião fará a apreensão dessa religiosidade;

do sentido, de formas diferentes, dependendo de cada orientação, da cultura da mesma. É

necessário ressaltar que nunca o sentido será totalmente apreendido; ele é inacessível.

Sendo uma construção, a religião pode caminhar por caminhos distintos. A alienação

surge da separação entre o sistema religioso e a experiência. É a percepção da religião como

algo fora da pessoa quando, na verdade, ela não é. O sentido humano da religião é assim

desvirtuado. Quando a religião é completamente arrancada da vida da pessoa, talvez pela

mesma não concordar com algo dessa determinada religião, essa ausência pode causar uma

certa anestesia das questões de sentido.

Cria-se assim a religião como alienação. Quer dizer, a religião usada para abafar as

questões que trazemos dentro de nós, e portanto usada para impedir ações na direção

de soluções. O que acontece então com a pessoa? Ela pode rejeitar essa religião para

retornar à sua experiência original, ou então pode usá-la para se proteger de sua

própria experiência original sentida como ameaçadora. A primeira das duas

alternativas parece ser a mais saudável. (AMATUZZI, 1999, p. 128)

Cada religião possuirá aspectos que lhe são inerentes e que podem representar uma

dessemelhança com aquilo que a pessoa sente ou busca. Pode-se citar como exemplo o fato de

que cada religião possui uma doutrina. Ao membro dessa religião é imputado o dever de

seguir essa doutrina como o melhor caminho para o acesso a Deus ou o livramento de algo

ruim. Além disso, a doutrina aponta um caminho previamente determinado para o acesso a

Deus, a melhor forma de o fazê-lo.

Essa doutrina da religião, de certa forma, vai contra a possibilidade que cada ser

possui de encontrar a religiosidade primária e o acesso às questões de sentido, como

colocadas por Frankl (2007). Ela representa algo que passa mais por um viés institucional que

pelo cultivo de uma interioridade e uma busca única, pelo menos nas formas religiosas mais

difundidas no Ocidente.

Cada religião acaba por produzir em seus fiéis uma determinada subjetividade que se

implica de forma direta à sua doutrina. Pode ser estabelecido assim certo aprisionamento da

vivência religiosa; da busca de sentido que a mesma representa.

25

Não há dúvida que essa nossa concepção de religião tem muito pouco a ver com

estreiteza confessional e sua conseqüência, ou seja, a miopia religiosa que parece ver

em Deus um ser que basicamente só pretende uma coisa: que o maior número

possível de pessoas creia nele e ainda bem do jeito prescrito por uma denominação

determinada. Simplesmente não consigo imaginar que Deus seja tão mesquinho.

Igualmente acho inconcebível uma igreja exigir de mim que eu creia. Afinal não

posso querer crer – assim como não posso querer amar, isto é, forçar-me a amar, da

mesma maneira como também não me posso forçar a ter esperança quando tudo

evidencia o contrário. (FRANKL, 2007, p. 78)

Com relação a essa afirmação, Amatuzzi (1999) afirma que a pesquisa

fenomenológica da experiência religiosa pode ser entendida como um esforço de retorno à

experiência básica para além de suas sistematizações. É como um esforço de dizer sempre de

novo da pureza original dessa experiência e de seus desdobramentos.

Frankl (2007) relata que, ao ser interrogado, se a tendência era do ser humano se

afastar da religião, afirmou que a tendência era as pessoas se afastarem das denominações

religiosas que procuram apenas combater entre si. Sendo perguntado novamente se haverá

então uma religião universal, respondeu que a humanidade está caminhando para uma

religiosidade pessoal e profundamente personalizada. Cada um encontrará sua linguagem

muitíssimo pessoal, sua linguagem própria e originalmente sua ao se voltar para Deus.

Mahfoud e Coelho (2001) salientam que a experiência religiosa se insere então na

caminhada para uma vida plena de sentido. O homem explora a força da sua dimensão

espiritual, permitindo-se ser conduzido por Tu, sendo advertido na dinâmica própria da

consciência.

2.2 Espiritualidade e Religiosidade: distinções

Durante longo tempo, a ciência, em seus distintos saberes, manteve-se longe das

questões relacionadas à religiosidade e à espiritualidade. Como principais alicerces do método

científico podemos citar o uso da razão, a experimentação e o controle das variáveis. A

ciência busca a imparcialidade em todas as suas ações, considerando então inverdades todas

as outras manifestações que escapem a essa possibilidade de verificação e mensuração.

O advento científico e a disseminação do seu método acabaram por trazer influências

também na forma de se fazer Psicologia. A Psicologia surge como a ciência que busca tratar

da alma e dos eventos a ela relacionados. Alma aqui deve ser entendida como a dimensão

26

psicológica e subjetiva do ser humano. Alicerçada e influenciada na Filosofia, a Psicologia

seria uma ciência voltada para o pensamento e a reflexão das vivências humanas.

Contudo, influenciada pelo método científico positivista, como ressaltado

anteriormente, alicerçado na razão e na repetição, a própria Psicologia foi, em determinado

momento, se distanciando dos seus ideais, deixando de lado uma dimensão importante do ser

humano, justamente aquela que deve ser sua por excelência, a dimensão do sentido; do

espiritual. Freud, iniciador da Psicanálise, buscou criar um método de acesso e trato das

questões inconscientes pautado em grande parte por esses ideais científicos racionais.

Como conseqüência desse distanciamento e da busca pela racionalidade e

objetividade, os próprios psicólogos foram se fechando com relação a temas que trouxessem

aspectos ligados à religiosidade e à espiritualidade. Luczinski (2005) afirma que, na prática

clínica, muitos profissionais assumem ter certas dificuldades para lidar com o tema da

religiosidade, quando este tema aparece.

Contudo, pode-se afirmar que nos últimos anos tem havido um crescente interesse, por

parte da Psicologia e de outras ciências, a temas relacionados à espiritualidade e à

religiosidade. Não se pode negar a influência da religiosidade em um número considerável de

pessoas e mesmo sua influência na cultura. Também não se pode fechar os olhos para uma

contra-resposta à cultura pós-moderna, que busca ressaltar a espiritualidade e a busca da

transcendência. Frente a isso, não pode a Psicologia deixar de dar suas contribuições e

auxiliar o humano em sua busca existencial.

Para avançar na proposta deste trabalho de analisar a religiosidade em pessoas que

moram nas ruas e como a mesma as influencia em seus processos de subjetivação, torna-se

necessário fazer algumas distinções e também alguns aprofundamentos sobre a espiritualidade

e a religiosidade. Ao referir à religiosidade, torna-se necessário também buscar uma definição

do que se entende por religião.

Giovanetti (2005) nos chama a atenção para a distinção entre o termo religiosidade e o

termo espiritualidade. Segundo ele, o termo religiosidade refere-se a uma relação do ser

humano com um ser superior, transcendente. O termo espiritualidade não necessariamente se

refere a essa ligação. Ele designa uma vivência que pode produzir mudanças no homem e

levá-lo a uma maior integração com outros seres.

Aqui há uma primeira distinção que já abre espaço para um primeiro questionamento.

Pode-se ter espiritualidade sem se ter religiosidade, já que a espiritualidade não

27

necessariamente concebe uma ligação com um ser transcendente. Mas é possível ter

religiosidade sem se ter espiritualidade?

Na verdade, como tentou-se descrever no tópico anterior, a espiritualidade é

característica essencial do ser humano, fazendo-o distinguir-se de todas as demais espécies.

Todo ser humano possui espiritualidade. Espiritualidade é essa dimensão da busca de sentido;

envolve a dimensão da escolha e da responsabilidade. É ligada à capacidade do ser humano de

refletir sobre sua própria existência.

A espiritualidade no ser humano aponta para a dimensão da transcendência, de poder

acessar a uma realidade diferente da realidade imediata e apreensível. Ela não se liga de

imediato a qualquer tema ou assunto religioso, porém, como fonte originária do sentido, ela

abarca essa dimensão da religiosidade e do ser transcendente. Espiritualidade é o conjunto de

todas as emoções e convicções de natureza não material; ela supõe que há mais no viver do

que o que pode ser compreendido e percebido.

Assim, a espiritualidade é uma atividade do nosso espírito, e não necessariamente

implica a fé em algum ser transcendente, característica necessária na vivência da

religiosidade. (...) O termo espiritualidade designa toda vivência que pode produzir

mudança profunda no interior do homem e o leva à integração pessoal e à integração

com outros homens. (GIOVANETTI, 2005, p. 137)

A espiritualidade se dá no humano de uma forma independente, no sentido de não ter a

obrigatoriedade de se ligar a nada, contudo, uma conseqüência de se viver a espiritualidade é

ser levado a um movimento de integração pessoal e com outros homens, outras dimensões.

Segundo Giovanetti (2005), o sentido da vida é o elemento central da vida humana,

sendo ele quem define a especificidade do ser humano. A espiritualidade é o cultivo desse

aspecto da vida. É o cultivo do sentido da existência.

Ela favorece a integração pessoal e leva aquele que vivencia a espiritualidade a se

reconhecer como um ser único e, ao mesmo tempo, todo. Único porque não pode haver outro

que seja igual a ele, e, além disso, somente ele pode vivenciar sua vida e suas experiências.

Convida também a ser todo porque a vivência da espiritualidade é capaz de superar a

estratificação do ser humano que tem feito a cultura pós-moderna e muitas vezes a própria

ciência.

Hoje o ser humano é multifacetado em aspectos biológicos, psicológicos e sociais, o

que leva muitos a não se reconhecerem como um todo. Além disso, a dimensão espiritual

torna-se muitas vezes esquecida devido à cultura do imediatismo e do materialismo.

Cultivar a espiritualidade traz a possibilidade do humano se reconhecer de maneira

diferente, como um todo uno, com suas especificidades. O outro movimento que a vivência

28

da espiritualidade pode proporcionar é a condição de integração com os demais seres

humanos e com a vida humana. Pode o ser humano reconhecer-se como integrante de um

plano maior; de algo mais importante, como, por exemplo, a vida em comum. Por isso pode-

se afirmar que a conseqüência da vivência da espiritualidade é abrir-se ao todo.

À medida que aprofundo o encontro comigo mesmo, com o meu centro, vou

percebendo que a característica mais específica do ser humano é a abertura ao outro,

diferentemente da dimensão psicológica, que é o centramento nas ressonâncias

(sejam emoções ou sentimentos). Só quem cultiva a dimensão do espírito,

vivenciando a espiritualidade, é capaz de descobrir que a vida não é um fechamento

em si mesmo, mas uma abertura para o outro. (GIOVANETTI, 2005, p. 139)

A partir desses primeiros aprofundamentos sobre o que é a espiritualidade pode-se

tentar aprofundar um pouco sobre o que vem a ser a religiosidade. Porém, torna-se necessário

distinguir também o que se pode entender por religião.

Buscando explicar a origem do termo Religião, Ribeiro (2004) aponta que a palavra

religião tem sua origem remetida a dois termos: afirma-se que deriva do verbo latino relegere

(re-ler) ou do verbo religare (re-ligar). Essas diferentes origens acabam por apontar

concepções distintas de religião.

No primeiro termo, relegere, a religião pode ser vista como uma atitude de re-ler a

realidade; envolve o diálogo com o diferente num constante desvelar das coisas e dos seres.

Remete à união de vários indivíduos, na busca de se fazer o rito religioso. Aponta para duas

funções: unir as pessoas e auxiliar as mesmas na busca da transcendência.

O termo religare, por sua vez, traz consigo a noção de um retorno a uma realidade que

fora perdida e deve ser reencontrada. Nesse sentido aponta para práticas que garantem a

salvação ao homem frente a uma realidade desconhecida. Aponta para uma subordinação,

uma vinculação à divindade; é a busca de estar religado a Deus. Aponta também para uma

dependência envolvendo fenômenos, como o temor, tremor e a fascinação. Pode se relacionar

também a intuição de valores estimados superiores e levar o fiel a reconhecer racionalmente

uma relação entre o homem e Deus.

Cabe ressaltar que a forma como essa relação vai ocorrer dependerá da realidade na

qual o homem está inserido. Essa realidade diz de algo externo, mas, ao mesmo tempo, diz

também da realidade na qual se encontra o próprio homem internamente. Levando-se em

conta o público-alvo dessa pesquisa, a população de rua, cabe-nos indagar, se em havendo a

presença de manifestações religiosas, quais são os sentidos atribuídos a essa religiosidade.

Vivendo num contexto marcado pela esfera da necessidade e da realidade das ruas, a

religiosidade aponta para uma transcendência ou para uma conformação?

29

A religião pode ser entendida como uma instituição; uma construção social que,

através de ritos e de normas, pretende conduzir o homem ao caminho da espiritualidade, da

transcendência. Interessa-nos aqui apenas fazer essa ressalva, sendo que, no decorrer do texto,

pretende-se aprofundar um pouco mais sobre a religião, lançando mão de outros saberes além

da Psicologia.

Com relação à religião, em nível psicológico, Valle (2005) ressalta que o homem não

está diante dela de uma forma passiva, mas interagindo com ela.

... as religiões são uma realidade culturalmente construída ante a qual seres dotados

de consciência reagem, mas nelas entra em jogo interativo e proativo o homem todo

(com seu inconsciente também) com todos e cada um dos componentes constitutivos

de seu ser (o biológico, o afetivo, o cognitivo e o interpessoal). É dessa complexa

síntese que emerge o homo religiosus, cuja experiência culminante é sempre uma

experiência espiritual única que o põe ante o Absoluto, seja qual for a definição que

se dê a este último. (VALLE, 2005, p. 92)

Por religiosidade pode-se entender então um caminho; uma via de acesso, dentre

outras possíveis, para se chegar à espiritualidade e ao sentido da existência. Talvez caiba

ressaltar que a religiosidade tem-se constituído, ao longo do tempo, como a forma mais aceita

e mais praticada de se fomentar a espiritualidade, contudo, espiritualidade se refere a algo

mais complexo e mais abrangente que a religiosidade.

Nesse ponto, de busca de sentido, podemos fazer uma aproximação entre

espiritualidade e religião, interrogando-nos sobre a especificidade de cada uma delas

na estruturação do sentido. Como característica comum, podemos dizer que tanto

uma como outra buscam a afirmação do sentido. O que distinguiria as duas

vivências, isto é, a vivência da espiritualidade e a vivência da religiosidade, seria a

maneira diferente de se construir o sentido. Enquanto na espiritualidade é possível se

construir o sentido por meio da reflexão sem a ligação com um ser superior, na

religiosidade o caminho de construção de sentido parte de uma ligação com uma

entidade superior, dizendo de outra maneira, por meio da fé, da vivência de uma

crença. (GIOVANETTI, 2005, p. 139/140)

A religiosidade vai se distinguir da espiritualidade porque aponta necessariamente para

uma ligação com o ser superior. Toda religiosidade apontará como meta final o encontro com

o transcendente, com Deus.

Valle (2005), ao buscar definir o que vem a ser a religiosidade, também ressalta que a

mesma possui uma característica de ser algo inerente à experiência subjetiva do transcendente

por parte do ser humano. O autor diferencia também a religiosidade da religião.

Para falar de religiosidade torna-se necessária uma linguagem mais fenomenológica.

Sendo algo inerente à experiência subjetiva do transcendente, ela é mais do que uma

mera soma dos componentes normalmente considerados pela psicologia. Eu uso a

palavra em um sentido não muito distante do senso comum. A religiosidade se

30

refere, para mim, à experiência individualizada do transcendente e deve ser

distinguida da religião, que é sua matriz instituída. (VALLE, 2005, p. 93)

A religiosidade pode guardar a característica de ser uma ligação entre pessoas da

mesma crença, mas, ao mesmo tempo, permite uma vivência única e individual do

transcendente.

Não se trata de uma busca ou construção qualquer, pois é por seu intermédio que o

mundo adquire um significado último para alguém que simultaneamente é

consciente de sua finitude e de sua pertença a algo maior, a Alguém. Esse sentido

(mais que sentimento) comunal de pertença se radica em uma experiência partilhada

de fé. Por essa razão, a religiosidade é ao mesmo tempo produto de um processo de

socialização, conjugado segundo os termos de uma cultura concreta, e é uma

experiência única: mística, apofática e poética. (VALLE, 2005, p. 95)

Segundo Boff (2000), de forma inicial, a dimensão da transcendência, da

espiritualidade, não tem nada a ver com as religiões, embora procurem monopolizar a

transcendência, como se a mesma só fosse possível através da religião.

Após essas distinções, ao buscar responder o questionamento que se fez no início do

texto, pode-se afirmar que há espiritualidade sem religiosidade. A espiritualidade pode ser

fomentada em vivências distintas que não se ligam a um ser transcendente, por técnicas de

meditação, em atos, entre outras possibilidades. Contudo, não se pode pensar a religiosidade

sem a espiritualidade.

Uma religiosidade que não tenha espiritualidade será uma religiosidade superficial e

alienante, pois a religiosidade é envolvida pela espiritualidade. Ela é uma tentativa de

responder às questões de sentido, porém, cabe ressaltar que não é o único.

Boff (2000) vê como corajosa a postura das religiões de apontarem Deus como o

objeto de desejo do homem frente à transcendência e à espiritualidade. Contudo, o autor

ressalta que Deus só tem sentido existencial se for a resposta à busca radical do ser humano

por luz e por caminho, a partir de sua experiência humana de errância e de escuridão.

Assim, cabe ressaltar que a religiosidade que não permite ao ser humano entrar em

contato com aspectos inerentes à espiritualidade, como a responsabilidade, as escolhas e a

abertura para o todo; pode ser uma forma religiosa alienante que se presta a diminuir os

espaços existenciais do ser humano.

2.3 As diferenças implícitas entre vivência e experiência

31

Sendo um fenômeno tão presente na cultura, na mídia e nos diversos âmbitos sociais,

levando-se em conta também o relevante número de pessoas que professam alguma crença

religiosa, é possível afirmar que a religiosidade exerce também uma marca importante no

plano psicológico. Sendo o ser humano influenciado, entre outros, pelo meio social, ele não

está fechado às influências religiosas que se fazem presentes. Assim, cabe à Psicologia o

papel de buscar investigar quais as influências religiosas no âmbito psicológico das

existências.

A proposta que se faz agora é que se diferencie o que vem a ser uma vivência daquilo

que se pode chamar de experiência. Pensando especificamente no tema da religiosidade,

podemos traçar distinções entre o que pode ser chamado de uma vivência religiosa e o que

vem a ser uma experiência religiosa.

A religiosidade é um componente importante da subjetividade de muitas pessoas.

Atualmente, o acesso ao sagrado é algo que se faz em diferentes instâncias e de diferentes

maneiras. Ao desenvolver uma religiosidade, o ser humano pode experimentar diferentes

sensações e também reagir de diferentes formas. Como foi visto anteriormente, a

espiritualidade é algo presente em todo ser humano, porém, em alguns, a religiosidade, como

componente dessa espiritualidade, poderá exercer maior fascínio, determinada forma de

ligação. Essa ligação pode se dar no campo das vivências ou avançar para uma experiência.

Giovanneti (2004) enfatiza a diferença existente entre vivência e experiência,

afirmando que a vivência possui uma conotação fortemente psicológica que implica um

registro de uma ressonância na afetividade. Ou seja, a partir de um fato, de uma relação, ou

um determinado acontecimento, o sujeito dá um significado especial a isso. Há uma

mobilização que deixa uma marca em sua individualidade. Assim, ao se falar de vivência,

está-se falando sempre de um fenômeno que possui um significado subjetivo.

Lersch, citado por Giovanetti (2004), fala do círculo funcional da vivência. Para ele,

toda vivência se constrói a partir de quatro passos, que, articulados, provocam o fenômeno

psíquico denominado vivência. Primeiramente, segundo esse autor, há no homem uma

tendência, já que ele não se encontra frente ao mundo de forma passiva. O homem se

entrelaça ao mundo, dialogando com ele através de impulsos e necessidades. A percepção

seria o segundo passo: refere-se ao dar-se conta, é o que orienta o homem em seu ambiente.

Por afetação, o terceiro passo entende a forma como essa percepção ressoa na interioridade do

ser humano. Finalizando, ele fala da conduta ativa como o quarto e último passo, que é uma

32

ação guiada pelos estados subjetivos até ser dirigida por planos preconcebidos e pela vontade

consciente.

Em suma, a vivência vai constituir-se em algo com um significado subjetivo. Se o

homem for comparado aos animais, vê-se que esses últimos estabelecem uma interação com o

meio em que vivem, mas, basicamente, respondem a estímulos, sem que haja um

questionamento ou uma problematização. Já o ser humano está imerso no meio ambiente de

uma forma diferente. O ser humano não só responde a estímulos, mas interage, é capaz de

vislumbrar diferentes alternativas frente a uma mesma questão. Além disso, uma diferença

crucial diz respeito ao fato de que há uma ressonância no ser humano de tudo aquilo que ele

vive.

Esse é um ponto importante, já que é essa ressonância que possibilitará ao ser humano

fazer uma compreensão daquilo que vive. A vivência é aquela experiência que traz uma

ressonância e, portanto, um sentido, um significado subjetivo.

No caso da vivência religiosa, segundo Giovanetti (2004), há uma mobilização

desencadeada pelo registro de um sentimento provocado pelo contato com uma realidade

reconhecida como transcendente, como algo divino. A transcendência aponta para uma

relação com uma realidade concebida como superior.

Esse sentimento, que é o registro da ressonância de nosso contato com a realidade

transcendente, exprime a relação que o ser humano tem com o Divino, concebido

como o elemento absoluto. É um sentimento mobilizador, isto é, provoca em quem o

experimenta um vigor, uma concentração de energia que o engaja existencialmente

na vida, a qual passa a ser iluminada por esse sentimento que possui a força de

buscar sempre a concretização do ideal proposto por esse ser transcendente ao

homem. (GIOVANETTI, 2004, p. 121).

Dependendo da forma como é encarada, de como ressoa para cada um, a vivência

religiosa pode aproximar o homem de si, dos seus projetos. Nesse caso é uma vivência

libertadora e que possibilita ao homem a transcendência, a abertura a novas realidades.

Contudo, ela pode também prestar-se a afastar o homem de um encontro verdadeiro consigo.

Pode-se aproximar as contribuições de outros autores ao que se está entendendo por

vivência. Otto (1985) chama a atenção para a noção do termo sagrado, afirmando que ele

compreende um elemento de qualidade absolutamente especial e que se subtrai a tudo aquilo

que se relaciona com o racional. Esse sagrado, segundo o autor, aparece como um elemento

vivo em todas as religiões, constituindo sua parte mais íntima, e sem o qual ela perderia suas

características. Voltando às origens do termo, ele afirma que sagrado pode ser entendido

como a idéia de bem, um bem absoluto.

33

Tentando encontrar um termo que possa designar essas qualidades do sagrado,

entendendo que esse muitas vezes é confundido e empregado em outras áreas do saber, o

autor emprega o termo Numinoso. Afirma ele que esse numinoso não é algo racional e não

pode ser desenvolvido em conceitos. Assim, é a tonalidade dessa emoção, a sua ressonância

que se pode avaliar e falar, ou seja, a vivência que o humano tem do mesmo.

As sensações que esse sentimento provoca na pessoa o autor chama de misterium

tremendum ou Tremendo. Afirma ele que:

O sentimento que ele provoca pode se espalhar na alma como um calafrio. É a onda

de quietude de um profundo recolhimento espiritual. Esse sentimento pode

transformar-se também num estado de alma constantemente fluído, semelhante a

uma ressonância que se prolonga por muito tempo, mas que termina por se apagar

na alma que volta ao seu estado profano. (OTTO, 1985, p. 17-18).

Nesse mesmo caminho, Tillich (1980) busca explicar o termo fé. Fé, segundo ele, é

como estar possuído por algo que nos toca incondicionalmente. Salienta que, para além das

necessidades fisiológicas, há no homem preocupações espirituais, algo que se relaciona com

as chamadas necessidades superiores. Muitas pessoas buscam a religião e realizam uma

sujeição incondicional. Nesse caso, essa sujeição está ligada à promessa de uma realização

suprema, que é esperada por esse ato de fé. Aponta também um outro aspecto da fé que é a fé

como um ato da pessoa inteira.

Fé como estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente é um ato da

pessoa como um todo. Ele se realiza no centro da vida pessoal e todos os elementos

desta dele participam. Fé é o ato mais íntimo e global do espírito humano. Ela não é

um processo que se dá numa seção parcial da pessoa nem uma função especial da

vivência humana. Todas as funções do homem estão conjugadas no ato de fé. A fé,

no entanto, é apenas a soma das funções individuais. Ela ultrapassa cada uma das

áreas da vida humana ao mesmo tempo em que se faz sentir em cada uma delas.

(TILLICH, 1980, p. 7/8).

A fé, entendida nesses termos como colocada por Tillich (1980), pode ser entendida

como uma vivência, que se dá de maneira intensa e ressoa internamente no sujeito trazendo-

lhe algo.

Segundo Giovanetti (1999), a vivência se liga a uma ressonância interna do contato do

indivíduo com a realidade que o cerca. A vivência é descrita e compreendida a partir das

sensações que provocam no indivíduo. Somente a posteriori é que pode a compreensão da

vivência separar o que é experimentado no ato. Aqui pode-se começar a entender o que é a

experiência. Experiência tem a ver assim com compreensão; já há a participação de uma

função intelectual, algo que é ausente na vivência. A experiência estabelece uma relação com

o pensamento.

34

Tem-se assim que a vivência está mais ligada a uma ressonância no campo

psicológico. Já a experiência envolve uma maior reflexão sobre o vivido e implica uma

atitude que passa a ser a ação no campo concreto da existência.

Em uma concepção semelhante, Amatuzzi (1999), ao procurar definir o que se pode

chamar de experiência, ressalta que a mesma implica tomar-se consciência de algo. Sem a

experiência existem apenas os fatos. A partir do momento em que o humano apreende esse

fato abarcando o mesmo com sua consciência, já há uma experiência.

Para nós, seres humanos, fazer a experiência não é simplesmente ter passado

materialmente pela situação. A experiência implica um grau mínimo de consciência.

Sem ela o que existe são fatos, objetivos talvez, mas não ainda uma experiência

vivida. É claro que o termo experiência não se refere a um pensamento sobre o que

aconteceu, mas justamente aquele vivido que existe antes do pensamento.

Experiência não é ainda elaboração de conceitos, mas sim um contato com uma

realidade. A interpretação que dou depois pode variar. Mas o contato em si mesmo

já é da ordem da consciência. Existe uma inscrição mínima do fato na consciência, e

isso pode ser até emocionalmente muito forte, e mais ou menos impactante.

(AMATUZZI, 1999, p. 126)

Amatuzzi (1999) ressalta também que uma experiência não é necessariamente a

conclusão de algo que se viveu e se pensou muito sobre o mesmo, mas é aquela vivência

sobre a qual se tomou consciência. Tomar consciência depende de fatores diversos, e não

apenas do raciocínio.

O grau de elaboração da experiência se refere, então, à consciência que temos da

realidade, do que acontece. Uma experiência plena, elaborada, é uma experiência

plenamente consciente, o que não significa dizer que é uma experiência sobre a qual

eu pensei bastante, raciocinei, tirei conseqüências. (AMATUZZI, 1999, p. 127)

A experiência, na verdade, se realiza a partir da articulação de dois pólos. De um lado

está o objeto, e do outro o sujeito. Do lado do sujeito está a consciência. Contudo, essa relação

se faz nos dois sentidos, não havendo a sobreposição do objeto sobre o sujeito ou vice-versa.

Há sim uma relação ativa entre consciência e fenômeno.

Amatuzzi (2001) emprega o termo experiência religiosa afirmando que, num sentido

mais específico, essa experiência pode ser considerada como acontecimentos marcantes que

são assumidos com esse significado e relacionados com a ultimidade de sentido.

Nessa acepção mais específica, uma determinada experiência religiosa é algo vivido

como um encontro pessoal com outra dimensão da realidade de onde decorre a

compreensão mais radical de todas as coisas, e que é, em geral, referida a um pólo

transcendente do sentido, denominado Deus. (AMATUZZI, 2001, p. 29)

35

Crespi (1999) afirma que, ao se referir à experiência religiosa, ele tem em mente algo

diferente do simples fenômeno do retorno que hoje acontece a formas tradicionais de religião

do tipo institucional. Tais formas consideram o conteúdo da fé como verdades absolutas e

fontes de certezas. A religião acaba por desenvolver uma função de compensação dos males

da existência e de garantia de algo.

O retorno à religião institucional é visto, nesse sentido, como um fenômeno periódico

que visa utilizar a religião em função de exigências de natureza social. Em contraposição a

essa concepção, Crespi (1999) entende que a experiência religiosa só pode se dar em outras

possibilidades:

Tais possibilidades, de fato, se abrem somente quando a dimensão religiosa é

procurada fora da lógica de compensação e de segurança que orienta a busca de

formas de identidade e pertença social, ou seja, quando renunciado à absolutização

do tipo idolátrico, assume-se o risco de uma indagação fundamental em torno do

sentido da existência. Só então a busca não é mais ditada pelo desejo de preencher

uma carência, mas é sobretudo uma disposição para a escuta. (CRESPI, 1999, p. 10)

O que se pode concluir é que ao referir a uma vivência está-se designando algo do

campo das ressonâncias, do psicológico. Uma vivência é algo que afeta o humano. Já a

experiência traz algo da consciência desse vivido, algo que sobre o qual o humano volta a sua

capacidade de pensar, apreender e atuar na realidade.

A vivência religiosa pode ser exemplificada assim como as ressonâncias que trazem o

contato com idéias ou ritos e que provocam algo naquele que vivencia. A experiência

religiosa seria assumir esses sentimentos como algo que se direciona para uma ligação com

um ser superior; ela pode caminhar para o questionamento pelo sentido das coisas e da vida.

36

3 DIFERENTES VISÕES SOBRE O FENÔMENO RELIGIOSO

No presente capítulo será analisada a contribuição de autores da Psicologia sobre o

tema da religião, tentando extrair das contribuições dos mesmos qual a idéia sobre a religião e

sobre a influência da mesma nas pessoas. Serão trazidas também concepções da religião e da

religiosidade apoiados em autores ligados a outras ciências.

Analisar a religião e a religiosidade a partir dos construtos teóricos da Psicologia

aponta posições diferentes ou mesmo contrárias, dependendo do autor em que se referencia. É

fato notório que importantes autores que compõem o corpo teórico da Psicologia procuraram

se debruçar sobre a questão religiosa e suas implicações psicológicas, porém, alguns

identificam a religião como algo positivo, que leva a uma superação de uma situação, à

transcendência ou à liberdade, enquanto outros mostram a mesma como um fator negativo,

como algo que limita o horizonte do humano ou como fator de alienação.

Serão abordados então dois importantes autores da ciência Psicológica, mostrando o

que representa o pensamento de cada um a respeito da religião. Como forma de confirmar o

exposto acima, procurarei trazer um autor que mostra a religião como algo negativo e outro

que a aponta como fator positivo.

Ao final dessas primeiras explanações, lançarei mão da contribuição de outros autores

ligados a outras ciências que trazem contribuições para se pensar a questão da religiosidade.

3.1 Contribuições Freudianas para a análise do fenômeno religioso

Inúmeras são as contribuições que a Psicanálise traz para a compreensão do homem e

dos fenômenos culturais. Freud iniciou o percurso teórico da Psicanálise e outros autores

deram continuidade. As teorias e as formulações do chamado ―pai da Psicanálise‖ constituem

um importante parâmetro teórico para se pensar questões relativas ao humano, em seus

aspectos psicológicos.

Pode-se afirmar que dentro da Obra Freudiana a religião teve seu lugar, pois

encontramos importantes trabalhos nos quais Freud voltou seu olhar para a questão religiosa.

37

Como exemplo de alguns desses trabalhos podemos citar Totem e tabu, escrito em 1912, O

futuro de uma ilusão, escrito em 1927, O mal estar na civilização, de 1930, entre outros.

Procurando fazer um recorte dentro da obra de Freud, será focado o texto O futuro de

uma Ilusão, acreditando que ele oferece ampla possibilidade de análise e problematização,

além de ser um trabalho de reconhecido valor dentro do conjunto da obra Freudiana. Esse

texto se insere dentro de um conjunto de textos nos quais o próprio autor afirma que voltou

seu pensamento para as questões culturais. Dentre estas chamadas questões culturais, inclui-

se, certamente, o sentimento religioso.

Ao iniciar o texto, Freud afirma que quando já se viveu por muito tempo em uma

civilização específica, que já se tentou descobrir suas origens e ao longo de que caminho ela

se desenvolveu, fica-se tentado também a indagar qual é o destino dessa civilização e quais as

transformações que ela irá experimentar. Pode-se afirmar que esse primeiro questionamento

se faz atual e, na verdade, tem estado muito presente em nossa sociedade na qual inúmeras

mudanças, de forma cada vez mais rápida, se apresentam no quadro social, dos

relacionamentos e da própria natureza.

Freud procura contextualizar primeiramente aquilo que ele chama de civilização.

Responde então que por civilização humana entende-se tudo aquilo em que a vida humana se

elevou acima de sua condição animal, podendo ser definida a partir de duas características

principais: Envolve todo conhecimento e capacidade que o homem adquiriu com o fim de

controlar a natureza e extrair a riqueza desta para satisfazer suas necessidades; e todos os

regulamentos necessários para ajustar as relações entre os homens, em especial, a distribuição

da riqueza. Afirma ele também que, embora se suponha que a civilização constitui um objeto

de interesse humano universal, todo indivíduo é virtualmente inimigo da civilização.

As imperfeições das formas culturais que até agora se desenvolveram acabam por

reforçar esse descontentamento de muitos com a civilização. Como afirma Freud (1976), fica

a impressão de que a civilização é algo que foi imposto a uma maioria por uma minoria que

compreendeu como obter a posse dos meios de poder e coerção. Embora a sociedade tenha

avançado a passos largos no desenvolvimento científico, pode-se afirmar que o mesmo não

aconteceu no trato com o humano. Assim vê-se atualmente aumentar o número de pessoas

pobres e que têm que conviver com um mínimo, enquanto uma minoria continua

enriquecendo e tomando posse dos bens de consumo e de produção.

Considerando as características do público-alvo da presente pesquisa, a população de

rua, cabe interrogar qual a percepção que essas pessoas têm da civilização. Excluídas que

38

estão de muitas possibilidades de acesso social é de se esperar que haja um descontentamento

para com a civilização e suas instituições. Tentará se verificar essa questão ao longo do

presente trabalho.

Para Freud (1976) foi lento e demorado o tempo necessário para que se chegasse à

estrutura atual da civilização. Para ele o ser humano é movido por uma força chamada pulsão.

O fim da pulsão é sempre buscar a satisfação, o que proporciona bem-estar àquele que busca

esse fim. A partir do momento em que se vive de forma coletiva, obrigatoriamente há que

existir um quantum de renúncia pulsional, pois, se todos buscassem satisfazer de forma

imediata e obrigatória seus desejos, o caos se estabeleceria.

Há no ser humano uma forte presença de instintos destrutivos e a civilização, portanto,

exige inúmeros sacrifícios dos homens. Essas idéias são trabalhadas por Freud de uma

maneira mais detalhada no seu texto O mal-estar na civilização. Ao contrário do que outras

correntes de pensamento colocam, para Freud o homem não é bom por natureza. Para que se

torne possível a vida em sociedade, é necessário que os homens esbarrem em limites impostos

de dentro ou de fora.

Parece, antes, que toda civilização tem de se erigir sobre a coerção e a renúncia ao

instinto; sequer parece certo se, caso cessasse a coerção, a maioria dos seres

humanos estaria preparada para empreender o trabalho necessário à aquisição de

novas riquezas. Acho que se tem de levar em conta o fato de estarem presentes em

todos os homens tendências destrutivas e, portanto, anti-sociais e anticulturais, e

que, num grande número de pessoas, essas tendências são suficientemente fortes

para determinar o comportamento delas na sociedade humana. (FREUD, 1976, p. 3)

Conclui Freud que não é de forma natural e bem-vinda que o homem adere à vida em

sociedade, além disso, as dificuldades no avanço do trato com o humano certamente abrem a

possibilidade de que muitos se sintam descontentes com a vida comunitária. Quantos são

felizes nessa estrutura social em que vivemos?

Freud procura estabelecer uma linha de condições que leva a impossibilitar o homem

de satisfazer sua pulsão na vida em sociedade. Por frustração entende-se o fato de a pulsão

não poder ser satisfeita. Como o fim da pulsão é sempre buscar satisfação, quando isso não

ocorre, há uma frustração. A proibição é o conjunto de normas e regras que fazem essa

frustração se estabelecer. Isso tudo leva a uma situação de privação; é a condição que é

construída, ou seja, o estado de não realizar o desejo pulsional.

Freud (1976) procura então distinguir duas classes de privações: aquelas que afetam a

todos os seres humanos e privações que não afetam a todos, mas apenas a alguns indivíduos

ou grupos. Afirma o autor que aquelas privações que afetam a todos os seres humanos são

39

mais antigas e começaram a separar o homem de sua condição animal primordial; cita então o

canibalismo, o incesto e a vontade de matar. Essas três proibições são marcadamente

presentes em praticamente todas as formas culturais. Contudo, esses três desejos, como todos

os outros possíveis, conforme Freud (1976), nascem de novo em cada criança, em cada novo

membro da raça humana. Para que essas primeiras renúncias se operem já se encontra

envolvido um fator psicológico igualmente importante para todas as outras renúncias

pulsionais. Entra em cena o superego:

Não é verdade que a mente humana não tenha passado por qualquer

desenvolvimento desde os tempos primitivos e que, em contraste com os avanços da

ciência e da tecnologia, seja hoje a mesma que era nos primórdios da história.

Podemos assinalar de imediato um desses progressos mentais. Acha-se em

consonância com o curso do desenvolvimento humano que a coerção externa se

torne gradativamente internalizada, pois um agente mental especial, o superego do

homem, a assume e a inclui entre seus mandamentos. (FREUD, 1976, p. 5)

Esse processo de transformação, a internalização da coerção externa, vai sendo aos

poucos realizado na vida da criança, à medida que a mesma é inserida no mundo da

linguagem, no mundo simbólico. Essa internalização estrutura-se como superego. É apenas

por essa dinâmica individual que a criança pode se tornar um ser moral e social. É a partir

então do superego que o homem aceita as condições de viver em sociedade; o superego está

assim a serviço da civilização.

Qual seria a principal missão da civilização? Para Freud a principal missão da

civilização e suas instituições, a sua razão de ser, é defender o homem contra a força da

natureza, força essa que é amplamente superior ao homem, pois, frente às catástrofes que a

natureza impõe ao homem, vê-se quão desamparado ele está. É o que Freud chama de

primazia da natureza. Para ele, a condição do homem frente à natureza se assemelha à

condição da criança frente a seus pais.

A criança, por sua estrutura franzina, possui muitos medos e encontra nos pais a

segurança necessária para continuar a se desenvolver, porém, é uma relação ambivalente, já

que os pais, fonte de segurança, representam também medo e punição. Freud faz essa

colocação para afirmar que aqui é que se pode identificar o surgimento das idéias religiosas.

A crença em Deus se ampara em protótipos infantis.

Porque essa situação não é nova. Possui um protótipo infantil, de que, na realidade, é

somente a continuação. Já uma vez antes, nos encontramos em semelhante estado de

desamparo: como crianças de tenra idade, em relação a nossos pais. Tínhamos

razões para temê-los, especialmente nosso pai; contudo, estávamos certos de sua

proteção contra os perigos que conhecíamos. Assim, foi natural assemelhar as duas

situações. Aqui, também, o desejar desempenhou seu papel, tal como faz na vida

40

onírica. [...] Do mesmo modo, um homem transforma as forças da natureza não

simplesmente em pessoas com quem pode associar-se como com seus iguais — pois

isso não faria justiça à impressão esmagadora que essas forças causam nele —, mas

lhes concede o caráter de um pai. Transforma-as em deuses, seguindo nisso, como já

tentei demonstrar, não apenas um protótipo infantil, mas um protótipo filogenético.

(FREUD, 1976, p. 9)

Em seguida Freud se pergunta em que reside o valor das idéias religiosas. Aponta ele

novamente o fato de que a vida em sociedade exige uma quantidade de renúncia pulsional às

pessoas, justamente com o fim de preservar a ordem das coisas e um convívio mais amistoso

entre os seres humanos. Se, por acaso, se suspendessem essas proibições, provavelmente a

sociedade viveria em um estado de caos. A partir do momento em que alguns dos mistérios da

natureza e da vida humana foram desvendados pelo avanço das ciências, os deuses deixaram

de ser a força que determinaria todas as coisas, não sendo então a única fonte de saber e

explicação do mundo e dos fenômenos. A questão é que, a partir de um deslocamento, as

idéias religiosas passaram a ter uma função marcadamente moral. Se em épocas anteriores as

idéias religiosas e os deuses controlavam todo o funcionamento do universo, a partir do

momento que certos segredos se tornam explicados pela ciência, as idéias religiosas perdem

esse caráter de verdade absoluta em todos os campos e se deslocam para o campo da

moralidade, de regulação das pessoas na vida em sociedade.

Ficou sendo então tarefa dos deuses nivelar os defeitos e os males da civilização,

assistir os sofrimentos que os homens infligem uns aos outros em sua vida em

conjunto e vigiar o cumprimento dos preceitos da civilização, a que os homens

obedecem de modo tão imperfeito. Esses próprios preceitos foram creditados com

uma origem divina; foram elevados além da sociedade humana e estendidos à

natureza e ao universo. (FREUD, 1976, p. 10)

O que são essas idéias religiosas à luz da Psicanálise? Freud se pergunta isso e afirma

que as idéias religiosas teriam duas origens principais: originam-se a partir do sentimento de

desamparo que o homem experimenta com relação às forças esmagadoramente superiores da

natureza que apontam sempre para o fim da vida do homem e também a partir da deficiência

presente na civilização e em quase a totalidade de formas culturais até hoje presentes, nas

quais há marcadamente atuando formas de desigualdades sociais, econômicas e culturais. A

religião aparece como uma força externa que procura moldar o comportamento dos homens,

levando-os a não cometer atos ilícitos e aceitar determinadas situações sociais ou econômicas

como vontade de Deus.

41

O que acontece com relação às idéias religiosas é que o homem personifica as forças

da natureza seguindo um modelo infantil. Repete-se a situação de desamparo do humano e a

procura por um pai protetor. Esse pai se torna concreto a partir da concepção de Deus.

Freud coloca que as idéias religiosas se apóiam necessariamente em crenças;

obrigatoriamente, há a necessidade de uma crença, que se relaciona diretamente ao que o

autor chama de ilusão. É após fazer uma análise da civilização e de como surgem as idéias

religiosas que Freud insere o conceito de ilusão que figura no título do texto.

Pode-se assim afirmar que para Freud (1976) as idéias religiosas se constituem ilusões,

pelo fato de serem proclamadas como ensinamentos, mas não se constituírem precipitados de

experiências ou como resultados finais de pensamento, ou seja, não estarem amparadas na

razão ou na experimentação. Estão as idéias religiosas na verdade alicerçadas em desejos da

humanidade, desejos de mudança ou de uma vida futura melhor. A religião é ilusão porque

ilude o homem a que será amparado frente a sua condição de finito, de subordinado às forças

superiores da natureza. Freud procura esclarecer que o que torna uma crença uma ilusão é

necessariamente a atuação do desejo, afirmando, deste modo, que uma ilusão não precisa

necessariamente ser falsa ou estar em contradição com a realidade, como acontecem nos erros

ou nos delírios. O mesmo procura ressaltar a diferença existente entre erro e ilusão:

O que é característico das ilusões é o fato de derivarem de desejos humanos. Com

respeito a isso, aproximam-se dos delírios psiquiátricos, mas deles diferem também,

à parte a estrutura mais complicada dos delírios. No caso destes, enfatizamos como

essencial o fato de eles se acharem em contradição com a realidade. As ilusões não

precisam ser necessariamente falsas, ou seja, irrealizáveis ou em contradição com a

realidade.(...) Podemos, portanto, chamar uma crença de ilusão quando uma

realização de desejo constitui fator proeminente em sua motivação e, assim

procedendo, desprezamos suas relações com a realidade, tal como a própria ilusão

não dá valor à verificação. (FREUD, 1976, p. 17)

Após explicar todo o mecanismo que funda as idéias religiosas e o valor que elas têm,

Freud, como um homem da ciência, aposta que o futuro da religião jaz na ascendência da

ciência. Para ele, a ciência é a grande parceira do homem no sentido de que ela é o caminho

para o conhecimento tanto da realidade externa quanto da realidade interna.

Mas o trabalho científico constitui a única estrada capaz de levar a um conhecimento

da realidade externa a nós mesmos. É, mais uma vez, simplesmente uma ilusão

esperar qualquer coisa da intuição e da introspecção; elas nada nos podem dar, a não

ser detalhes da nossa própria vida mental, detalhes difíceis de interpretar, nunca

qualquer informação sobre as perguntas que a doutrina religiosa acha tão fácil

responder. (FREUD, 1976, p. 17)

42

A partir do momento em que os homens puderem usar do conhecimento para

identificarem e aceitarem sua condição na vida e no mundo como um todo, estará preparado o

terreno para que as idéias religiosas possam ser desacreditadas e novas formas de pensamento

e novos arranjos sociais possam se concretizar. A religião, para Freud, se assemelha à

estrutura da neurose obsessiva. Sendo assim, a partir de um processo de crescimento, como o

que é proporcionado por uma análise, é possível que se saia desse quadro.

Assim, a religião seria a neurose obsessiva universal da humanidade; tal como a

neurose obsessiva das crianças, ela surgiu do complexo de Édipo, do relacionamento

com o pai. A ser correta essa conceituação, o afastamento da religião está fadado a

ocorrer com a fatal inevitabilidade de um processo de crescimento, e nos

encontramos exatamente nessa junção, no meio dessa fase de desenvolvimento.

Nosso comportamento, portanto, deveria modelar-se no de um professor sensato que

não se opõe a um novo desenvolvimento iminente, mas que procura facilitar-lhe o

caminho e mitigar a violência de sua irrupção. (FREUD, 1976, p. 24)

É assim que Freud procura finalizar o texto, apostando que a civilização humana, a

partir de um processo de amadurecimento proporcionado pela primazia do intelecto, poderá

encontrar novos caminhos que prescindam das idéias religiosas. Em certos momentos do texto

o próprio Freud reconhece alguns valores dessas idéias, mas não deixa de acreditar que sem

elas novas formas de educação que não restrinjam tanto o homem poderão ser criadas.

Há certamente uma crítica ao que os ensinamentos religiosos têm feito ao longo do

tempo com as pessoas na civilização. Aliando a culpa às proibições as religiões podem

acabar, algumas vezes, por reproduzir um padrão semelhante ao da estrutura neurótica,

limitando a liberdade do sujeito e impedindo seu crescimento. Sem se esquecer de que a igreja

e suas instituições muitas vezes se colocaram ao lado de poderes dominantes reproduzindo

suas regras.

Como um homem da ciência e defensor da mesma, Freud aposta no homem e na

civilização e, certamente, ele acreditava que a Psicanálise poderia ser uma parceira nesse

movimento dos homens de se descobrirem em seu desamparo e buscar novas formas de

organização.

Finalizando esse tópico, pode-se afirmar que a perspectiva da religião em Freud é uma

perspectiva negativa. Primeiramente ela é negativa porque se origina no nível da necessidade.

É a partir da necessidade de um consolo frente à realidade cruel da natureza que o homem

procura criar as idéias religiosas. Além disso, é negativa também por manter, segundo Freud,

uma ilusão de algo que não se pode dar caráter de validade: a vontade dos deuses e a salvação

futura, a continuidade da vida, característica presente em quase todas as formas religiosas.

43

Quando coloca que as idéias religiosas são ilusões e que seu fim está marcado a partir da

ascendência da ciência e de novas formas de arranjo da sociedade, Freud coloca a religião

como uma dimensão menor do homem.

A seguir será destacada a contribuição de outro autor da Psicologia que traga uma

leitura diferente da religião.

3.2 As contribuições de Viktor Frankl para a análise do fenômeno religioso

Será destacada agora a contribuição do pensamento e da obra de Viktor E. Frankl para

a análise do fenômeno religioso na vida das pessoas. Como dito anteriormente, se pode-se

dividir entre os autores da Psicologia aqueles que vêem a religião como fator positivo e outros

que a vêem como negativo, certamente Frankl está entre os autores que encaram o religioso

como algo positivo e que pode levar o ser humano a uma transcendência.

Para se entender e explicar o corpo teórico da Logoterapia, ciência fundada por Frankl,

torna-se necessário, antes de tudo, conhecer, ainda que minimamente, a história de vida do

autor. Os principais conceitos da Logoterapia são fundamentados em práticas e observações

do autor, mas também em suas vivências, em sua história de vida.

3.2.1 Um Psicólogo no campo de concentração

Frankl nasceu em 26 de março de 1905, em Viena. Graduou-se médico pela

Universidade dessa cidade se qualificando mais tarde no ramo de neuropsiquiatria. Teve uma

longa experiência no tratamento de mulheres que haviam tentado suicídio. Provavelmente foi

a partir dessas experiências que sua atenção foi se voltando para a questão do sentido da vida

e da vida sem significado.

Foi discípulo de Freud e, posteriormente, aderiu à corrente dissidente, fundada por

Alfred Adler. A partir de suas elaborações ele começa a escrever um livro intitulado O médico

e a alma. O próprio Frankl denominava esse manuscrito como a obra de sua vida, porém, ele

foi impedido de terminá-la nesse primeiro momento.

44

Em meados de 1942, Frankl estava desenvolvendo sua condição profissional e também

se desenvolvendo em seu campo pessoal. Havia se casado em dezembro de 1941 e sua esposa

estava grávida; nessa mesma época, era encarregado do departamento de neurologia do

Hospital de Viena. Tinha em mãos também um visto para ir estudar nos Estados Unidos.

Contudo, desde 1933, Hitler havia iniciado uma série de hostilidades para com os judeus. Por

ser judeu, Frankl se vê mergulhado nessa situação. Faz a opção de não ir embora e acaba

sendo vítima do nazismo.

O fato que impediria a conclusão do livro de Frankl nesse momento adiaria alguns de

seus planos e colocaria fim a outros: a sua prisão por parte dos nazistas e seu envio para o

campo de concentração. Além de Frankl, seus pais, um irmão e a esposa vivem essa mesma

situação.

O autor vive então por cerca de três anos como prisioneiro em diferentes campos de

concentração. Nesse mesmo período seus familiares mais próximos são mortos em outros

campos de concentração, inclusive sua esposa estando essa grávida.

Toda essa situação marcaria profundamente a vida e a obra de Frankl. O mesmo

sobrevive ao campo de concentração e, apoiado em suas experiências e formulações

anteriores e também nessa vivência de três anos, cria uma nova teoria, que ganharia o nome

de Logoterapia.

Frankl procurou descrever suas vivências e de outras pessoas que viveram essa

situação no campo de concentração. No início do livro em que retrata essas passagens, Em

busca de Sentido, o mesmo ressalta que não queria, a princípio, se identificar por não buscar

um reconhecimento por ter vivido essa situação do campo de concentração. O seu desejo era

simplesmente de dar o seu relato a partir do seu número, o mesmo número com o qual fora

identificado no campo de concentração. Não havia ali o Psicólogo Viktor Frankl, mas sim o

prisioneiro número 119.104. Porém, ele é convencido que deveria colocar seu nome antes do

lançamento desse livro, até mesmo para que houvesse maior credibilidade para aqueles que o

lessem.

Inúmeras são as situações que Frankl narra da experiência no campo de concentração.

Essas situações, como já se sabe, narram passagens nas quais inúmeros seres humanos

passaram por humilhações, privações e sofrimentos. O objetivo de narrar tudo isso tem a ver

com o pensamento e a teoria de Frankl, quando o mesmo afirma que só conseguiram

sobreviver ao campo de concentração aqueles que ainda eram movidos por algum sentido,

aqueles que tinham algum sentido para saírem dali.

45

O próprio Frankl relata que em seus dias de campo de concentração teve muitas vezes

a possibilidade de experimentar essa condição de buscar algo que não o fizesse desistir e se

entregar como o fizeram tantos prisioneiros.

Segundo Frankl (2008), mesmo na condição de se ser prisioneiro em um campo de

concentração, uma situação de coação aparentemente absoluta tanto exteriormente quanto

interiormente, ainda há um resquício de liberdade do espírito humano, de atitude livre do eu

frente ao meio ambiente. ―No campo de concentração se pode privar a pessoa de tudo, menos

da liberdade última de assumir uma atitude alternativa frente às condições dadas‖ (FRANKL,

2008, p. 89)

Frankl distingue, entre os inúmeros fatos acontecidos nos tempos de privações dos

campos de concentração, pelo menos dois tipos de pessoas: aquelas que desistiram e

acabaram morrendo e aquelas que fizeram uma outra escolha: a de acreditar em algo que lhes

desse sustento para sobreviver e sair dali.

Aquilo que sucede interiormente com a pessoa, aquilo em que o campo de

concentração parece transformá-la, revela ser o resultado de uma decisão interior.

Em princípio, portanto, toda pessoa, mesmo sob aquelas circunstâncias, pode decidir

de alguma maneira no que ela acabará sendo, em sentido espiritual: um típico

prisioneiro de campo de concentração, ou então uma pessoa, que também ali

permanece sendo ser humano e conserva sua dignidade. (FRANKL, 2008, p. 89)

Para esse segundo grupo houve a construção de outra possibilidade, de um sentido.

Afirma Frankl (2008) que a liberdade espiritual do ser humano é algo que não lhe pode ser

retirada. Se apoiando nas formulações de Nietzsche, Frankl coloca que quem tem porquê

viver; supera quase todo como viver.

3.2.2 Princípios teóricos da Logoterapia

A Logoterapia, teoria elaborada por Frankl, é considerada a Terceira Escola Vieniense

de Psicoterapia, se distinguindo da Psicanálise Freudiana e da Psicologia Individual de Alfred

Adler. A origem do termo Logoterapia vem do grego. Logos significa sentido; assim, a

Logoterapia centra-se no sentido da existência humana, bem como na busca da pessoa por

esse sentido.

Segundo Frankl (2008), a prática da Logoterapia irá se focar mais no futuro, nos

sentidos a serem realizados pelo paciente em seu futuro. Busca tirar do foco de atenção as

46

formações do tipo círculo vicioso e mecanismos retroalimentadores que desempenham

importante papel na criação das neuroses. Assim é quebrado o autocentrismo comum nas

neuroses.

A vontade de sentido é, certamente, um dos principais pressupostos teóricos da

Logoterapia. É considerada por Frankl como a motivação primária do ser humano. Frankl

contrapõe essa construção àquela formulada por Freud na qual o homem é movido pelo

princípio de prazer, ou seja, toda sua conduta e existência serão movidas pela busca de

satisfação pulsional. Para Frankl, o que orienta a existência e toda a vida do ser humano é, na

verdade, a possibilidade de dotar essa vida de sentido. A todo o momento, o ser humano é

chamado a responder pelo sentido de suas experiências e daquilo que está vivendo.

Embora a Logoterapia não negue a escola psicanalítica ou freudiana, onde o homem

procura essencialmente o prazer, a partir de um inconsciente psicobiológico que o

impulsiona na direção da realização do poder para compensar um ―complexo de

inferioridade‖, igualmente de ordem inconsciente, ela afirma que o sentido da

existência, o real significado da missão única e singular que cada pessoa tem para

realizar, tem uma prioridade e dá a verdadeira motivação para viver. Faltando o

sentido da vida, o homem perde seu entusiasmo pela sociedade, pelo amor e pelo

trabalho e fica reduzido a um ser ―vegetativo‖, onde impera o que é chamado de

―vazio existencial‖, uma situação de não realização de valores em nenhuma área da

vida, de esterilidade e de insatisfação vital, a qual grassa como uma epidemia em um

grande número de países do mundo civilizado. (MOREIRA, 2004, p. 137)

Pode-se afirmar assim que a vontade de sentido é o grande impulsionador da

existência humana. É algo que traz em si a possibilidade inclusive de definir o que vem a ser o

humano, pois somente o humano é quem pode singularizar e dotar a sua existência de sentido.

Contudo, a falta de sentido para uma existência traz consigo a frustração e o vazio.

Aqui há outros dois termos que Frankl traz como fundamentos teóricos da Logoterapia. A

frustração existencial acontece quando ocorre a frustração da vontade de sentido, que

frustrada pode acabar se transformando em formas distorcidas de sentido como a vontade de

poder. Essa vontade de poder pode aparecer na forma de busca desenfreada pelo dinheiro ou

pelo prazer.

Já o vazio existencial é um fenômeno exclusivamente humano. Como afirma Moreira

(2004), o vazio existencial impera nas situações em que há a falta de sentido e a não

realização de valores em nenhuma área da vida. Isso faz remeter ao público-alvo da pesquisa:

a população de rua. É de se supor que a condição de privação material, ausência de

realizações no campo pessoal e profissional e a própria invisibilidade social à qual esse

público está sujeito pode levar o mesmo a se deparar com o vazio existencial e a frustração da

vontade de sentido.

47

Ao se referir à perda de sentido da existência, Frankl lança mão de passagens do

campo de concentração nas quais a pessoa simplesmente se deitava e não mais levantava.

Lançava mão de um cigarro e, segundo Frankl, era comum nas próximas 48 horas esse

prisioneiro morrer. Outros prisioneiros do campo lançavam mão também do álcool, trocando-

o inclusive por seus últimos pertences, como maneira de suportar a situação. Frankl compara

então essa situação à dos jovens em escala mundial, segundo ele, nos dias atuais. Aponta que

o consumo de drogas tão presente entre esses jovens tem como base a mesma perda de sentido

e o vazio existencial.

Novamente pode-se trazer a questão da população de rua, pois pesquisas apontam que

tem crescido de forma muito acentuada o consumo de drogas entre esse público,

principalmente o uso de crack, droga que traz em si características como o baixo preço e

enorme potencial alucinógeno. Já o uso de álcool é considerado entre os moradores de rua

uma forma de sustento nessa situação vivida; muitos afirmam não ser possível sobrevier nas

ruas sem o uso de álcool.

Na verdade, o consumo de drogas é apenas um aspecto de um fenômeno de massa

mais geral, a saber, o sentimento de falta de sentido que resulta de uma frustração

das nossas necessidades existenciais – o que, por sua vez, se transformou num

fenômeno universal das nossas sociedades industriais. (FRANKL, 2008, p. 163)

Segundo Frankl, o vazio existencial é fenômeno muito presente no século XX, o que,

segundo ele, se torna compreensível por dois fatores, duas perdas sofridas pelo ser humano,

desde que se tornou verdadeiramente humano. A partir do momento em que o ser humano

perde seus instintos deixa de ter a segurança de ser guiado pelos mesmos e passa a ter que

fazer opções. As tradições seriam uma outra possibilidade de orientação da conduta humana,

porém, elas também têm caído em descrédito. O homem se vê desprotegido dos instintos e

das tradições. Muitos não sabem então o que fazer. Alguns fazem o que os outros fazem

surgindo assim o conformismo, ou fazem o que os outros querem que ele faça surgindo aqui

uma forma travestida de totalitarismo.

Assim, o homem pós-moderno se vê na condição de quem deve fazer escolhas; deve

arcar com a própria vida e com a sua busca de sentido. O vazio existencial manifesta-se

através do tédio. Fenômenos como a agressão, a depressão e o vício possuem também o vazio

existencial a eles subjacente.

Não são poucos os casos de suicídio que podem ser atribuídos a esse vazio

existencial. Fenômenos tão difundidos como depressão, agressão e vício não podem

ser entendidos se não reconhecemos o vazio existencial subjacente a eles. O mesmo

é valido também para crises de aposentados e idosos. (FRANKL, 2008, p. 132)

48

Frankl (2008) designa um tipo específico de neurose que surge então frente a essa

vivência de falta de sentido: as neuroses noogênicas, que surgem de problemas existenciais e

estão ligadas à frustração da vontade de sentido. Diferem-se daquelas neuroses chamadas de

Psicogênicas, que são geralmente originadas de conflitos psicológicos entre impulsos e

instintos. A noodinâmica, para Frankl, é a dinâmica existencial do ser humano que se

estabelece num campo polarizado de tensão no qual um pólo representa o sentido a ser

realizado e o outro pólo representa a pessoa que deve realizá-lo.

Pode-se ver, assim, que a saúde mental está baseada em certo grau de tensão, tensão

entre aquilo que já se alcançou e aquilo que ainda se deveria alcançar, ou o hiato

entre o que se é e o que se deveria vir a ser. Essa tensão é inerente ao ser humano e

por isso indispensável ao bem-estar mental. (FRANKL, 2008, p. 129, 130)

Assim, certo grau de conflito é algo positivo para o ser humano representando sua

busca essencial por realizar aquilo que está em sua mente e o mesmo deseja tornar real,

estando, do lado oposto, a representação de si mesmo como o autor fundamental dessa meta.

O grande risco é se perder nesse caminho que vai do pensamento e do desejo para a ação e a

concretização na vida dos projetos, do sentido.

Fazem parte desse conflito duas condições inerentes ao humano: a liberdade e a

responsabilidade. A liberdade é condição inerente ao humano a partir do momento em que o

mesmo pode fazer escolhas e dar a sua vida um sentido construído por ele mesmo. Frankl

(2008) afirma que, independente da condição e da situação em que se encontra o ser humano,

é possível que ainda faça algo a partir de sua condição de liberdade. A responsabilidade

caminha lado a lado com a liberdade, pois aquele que é livre para fazer escolhas deve também

arcar com a responsabilidade da mesma.

3.2.3 A Essência e a autotranscendência da existência humana

O verdadeiro sentido da existência humana deve ser encontrado fora do ser humano, e

não dentro dele. A auto-realização não é um objetivo atingível; ela surge sempre como algo

em construção e que deve ser sempre buscado, porém, ele não pode ser encarado como um

porto seguro, mas como algo mutável. A auto-realização só se torna atingível a partir da

autotranscendência.

49

Ao declarar que o ser humano é uma criatura responsável e precisa realizar o sentido

potencial de sua vida, quero salientar que o verdadeiro sentido da vida deve ser

descoberto no mundo, e não dentro da pessoa humana ou de sua psique, como se

fosse um sistema fechado. Chamei essa característica constitutiva de

autotranscendência da existência humana. (FRANKL, 2008, p. 135)

Segundo Frankl (2008), há um imperativo categórico da Logoterapia que mostra a

ênfase na responsabilidade que o ser humano tem para com sua própria existência: “Viva

como se já estivesse vivendo pela segunda vez, e como se na primeira vez você tivesse agido

tão errado como está prestes a agir agora” (FRANKL, 2008, p. 134). Isso convida a pessoa

a imaginar que o presente é passado e que esse passado pode ser alterado. Leva o ser humano

também a se confrontar com a finitude da vida e com aquilo que ele faz dela, de sua própria

vida.

A essência da existência está assim em buscar um sentido para a vida. Para Frankl

(2008), pode-se descobrir o sentido da vida de três diferentes formas: criando um trabalho ou

praticando um ato, experimentando algo ou encontrando alguém e pela atitude que se toma

com relação ao sofrimento inevitável.

As duas primeiras formas de encontrar sentido são de mais fácil compreensão. Um

trabalho ou uma missão pode mover o melhor do homem, levando-o à construção de algo,

uma causa, uma realidade, uma obra por ele encarada como algo digno de sua doação. Com

relação ao amor aponta também para uma atitude de abertura e doação, vendo no outro

alguém com limitações, mas também com possibilidades.

Com relação à terceira forma de se encontrar o sentido, o sofrimento, talvez seja mais

difícil a compreensão, porém, Frankl (2008) afirma que aquelas situações que lançam a

pessoa em um sofrimento inevitável podem também ser fonte de sentido e encaradas como

formas de converter esse sofrimento em uma conquista humana. O sofrimento deixa de ser

encarado como um sofrimento a partir do momento em que se encontra um sentido para o

mesmo.

Existem situações em que se está impedido de trabalhar ou de gozar a vida; o que,

porém, jamais pode ser excluído é a inevitabilidade do sofrimento. Ao aceitar esse

desafio de sofrer com bravura, a vida recebe um sentido até seu derradeiro instante,

mantendo esse sentido literalmente até o fim. Em outras palavras, o sentido da vida é

um sentido incondicional, por incluir até o sentido potencial do sofrimento

inevitável. (FRANKL, 2008, p. 138)

Ao chegar a este ponto, do sentido da vida no sofrimento, Frankl (2008) aponta para o

fato de que o próprio ser humano se pergunta se ainda haveria outro sentido. Nesse momento

50

Frankl (2008) aponta para a construção de um supra-sentido, algo que vai além do lógico e do

conhecido.

Frankl adota uma postura contrária a Freud e também a outros teóricos do

Existencialismo que não vêem um sentido na existência. Assim como pronunciou Sartre, que

―a vida é uma paixão inútil‖, Freud coloca que todo saber que não está alicerçado na razão

não é digno de crédito. Frankl, porém, de forma corajosa, afirma que ainda que não se possa

ser compreensível em termos racionais, há uma outra realidade que oferece um outro sentido,

um supra-sentido.

Esse sentido último necessariamente excede e ultrapassa a capacidade intelectual

finita do ser humano; na Logoterapia falamos neste contexto de um supra-sentido. O

que se requer da pessoa não é aquilo que alguns filósofos existenciais ensinam, ou

seja, suportar a falta de sentido da vida; o que se propõe é, antes, suportar a

incapacidade de compreender, em termos racionais, o fato de que a vida tem um

sentido incondicional. O Logos é mais profundo que a lógica. (FRANKL, 2008, p.

143)

É fato observável que muitas são as pessoas que frente a momentos de dificuldades e

de sofrimento, ou frente a alguma vivência mobilizadora, se abrem para a experiência

religiosa e procuram respostas em algo que vai além da existência aparente. É importante

pensar qual o significado dessa busca e o que ela representa para aquele que a busca. Frankl

(2008) aponta que, em uma situação de crise, quando o paciente encontra-se sobre o chão

firme da fé religiosa, não se pode objetar ao uso terapêutico dessas convicções espirituais.

Com relação à vida no campo de concentração, Frankl (2008) ressalta também que o interesse

religioso era algo que se fazia presente na vida dos prisioneiros e de maneira muito ardente.

Relata que eram improvisados cultos e preces em meio àquele ambiente hostil no qual estes

prisioneiros eram deixados, após árduos dias de trabalho.

Portanto, a religiosidade, que na perspectiva da teoria frankliana não se restringe ao

âmbito confessional, constitui para frankl uma demonstração do preenchimento do

significado de sua vida, uma vez que possibilita o encontro e o vínculo do homem

com o Outro absoluto, que na ótica frankliana designa-se o sobre-significado,

constituindo-se o norteador de toda existência humana. (MOREIRA, 2004, p. 185)

A concepção de homem encontrada na obra de Frankl é de uma compreensão da

existência que vai além das experiências psíquicas e físicas do homem, ascendendo a uma

dimensão espiritual da experiência humana. Esse acesso à dimensão espiritual se constitui

como uma experiência possível apenas ao humano, ou seja, para Frankl, a religiosidade é algo

essencialmente do ser humano. Partindo dessas postulações, Frankl afirma que existe no

homem um inconsciente espiritual que se revela como a fonte de todos os empreendimentos

51

humanos. Desse inconsciente espiritual emerge em os fundamentos e a regência da

existencialidade autêntica.

Para situar o postulado do inconsciente espiritual em sua teoria da existência, Frankl

assevera a estreita relação do inconsciente espiritual com as ações especificamente

humanas, inferindo, por fim, que tais ações derivam-se da realidade do inconsciente

espiritual. Frankl considera o inconsciente espiritual como a sede dos fenômenos

originários da moral, do amor e da inspiração estética. Segundo sua teoria no

inconsciente espiritual reside a autêntica pessoalidade do ser. (MOREIRA, 2004, p.

185)

Para Frankl, há no ser humano uma necessidade autêntica de religar-se ao significado

último de sua existência. Essa busca representa um preenchimento do sentido da existência na

busca da transcendência. Segundo Moreira (2004), a dimensão da transcendência é particular

ao ser humano, portanto, sua dimensão espiritual é o que o especifica como um ser

essencialmente humano. Assim, na teoria Frankliana, a religiosidade não constitui apenas um

fenômeno presente na experiência humana, mas um fenômeno da experiência humana.

O que se pode concluir é que em Frankl a fé religiosa pode ser encarada como atitude

de abertura e de busca de sentido, contribuindo para que o humano busque respostas aos seus

anseios e, acima disso, que construa sua existência, dando a ela o contorno que melhor

determinar, que objetivar e construir com seus recursos. Em Frankl, a religião é assim uma

dimensão maior do ser humano; algo que aponta para o transcendente, para a elevação e a

construção de uma outra realidade.

Na angústia gritei para o Senhor e ele me respondeu no espaço livre. – Quanto

tempo ficaste ali ajoelhado? Quantas vezes repetiste aquelas palavras? A lembrança

já não o sabe dizer... mas naquele dia, naquela hora, começou tua nova vida – isso

sabes. E é passo a passo, não de outro modo, que entras nessa nova vida, tornas a ser

pessoa. (FRANKL, 2008, p. 116)

3.3 Religião na Pós-Modernidade

Buscando definir e contextualizar a religião e a religiosidade no momento atual, é

necessário que se faça um retorno histórico para entendermos as mudanças pelas quais passou

a Religião e as instituições religiosas nos últimos séculos. A modernidade e a pós-

modernidade trouxeram profundas mudanças e fizeram surgir novas formas de religiosidade;

novas maneiras de os fiéis se relacionarem com Deus e com as instituições religiosas.

52

Cabe ressaltar que os temas da religião e da religiosidade são analisados por diferentes

redes conceituais, em campos teóricos distintos. Pode-se citar como exemplo, entre outros, a

Teologia, a Sociologia, a Filosofia e também a Psicologia. Nos tópicos anteriores lançou-se

mão das contribuições de autores ligados à Psicologia, buscando assim apreender a

importância da espiritualidade e da religiosidade, num âmbito psicológico, já que o propósito

deste trabalho é fazer uma captura da religiosidade e suas implicações na subjetivação de

pessoas em situação de rua dentro do campo teórico da Psicologia. A proposta nesse momento

é lançar mão de outros saberes para contextualizar o panorama atual da religião e da

religiosidade.

A igreja Cristã, mais especificamente a Igreja Cristã em sua denominação Católica

Apostólica Romana, foi, por muitos anos, detentora do poder e da verdade. Cabia à Igreja o

papel de ser reguladora da vida social e individual. Mais que isso, a influência da Igreja se

fazia presente em todos os âmbitos sociais, culturais, das artes e das ciências. Era seu papel

ditar o ritmo das coisas e as leis do universo. Pode-se afirmar que, no período da humanidade

denominado como Idade Média, a verdade cabia à igreja e às pessoas cabia seguir aquilo por

ela predeterminado.

Segundo Rubem Alves (2009), não houve outra época em que a religião e o

simbolismo do sagrado adquiriram tamanha densidade, concretude e onipresença quanto no

período da Idade Média. Tal presença e intensidade do sagrado faziam com que o mundo

invisível estivesse mais próximo e fosse mais sentido que as próprias realidades materiais.

Deus protegia aqueles que o temiam, e as desgraças e pestes eram por Ele enviadas

como castigos para o pecado e a descrença. Todas as coisas tinham seus lugares

apropriados, numa ordem hierárquica de valores, por que Deus assim havia

arrumado o universo, sua casa, estabelecendo guias espirituais e imperadores, no

alto, para exercer o poder e usar a espada, colocando embaixo a pobreza e o trabalho

no corpo de outros. (RUBEM ALVES, 2009, p. 42)

Como tudo já se dava de forma explicada e determinada pela Igreja Católica que, pelo

menos no Ocidente, dominava as expressões da religiosidade e influenciava a ordem de

diversas instituições e da vida das pessoas, nada havia que ser feito. Assim, no campo das

artes retratavam-se os anjos, demônios e o universo religioso com um todo. Nas ciências

buscava-se a consolidação de teorias que fossem ao encontro daquilo que a religião afirmava,

pois teorias que fossem contrárias eram imediatamente reprimidas. E ainda que existissem

insatisfações, as diferenças sociais eram aceitas como parte do plano divino.

Contudo, essa ordem vigente vai, aos poucos, sendo questionada. Os homens,

segundo Rubem Alves (2009), começaram a fazer coisas não previstas no receituário

53

religioso. Passa a existir então uma nova orientação de pensamento derivada de uma vontade

de controlar e manipular a natureza. O utilitarismo burguês promove uma mudança nas

formas de ler e se relacionar com os símbolos e o sagrado.

Agora a necessidade da riqueza inaugura uma atitude agressiva, ativa, pela qual a

nova classe se apropria da natureza, manipula-a, controla-a, força-a a submeter-se a

suas intenções, integrando-se na linha que vai das minas e dos campos às fábricas, e

destas aos mercados. Silenciosamente a burguesia triunfante escreve o epitáfio da

ordem sacral agonizante. (RUBEM ALVES, 2009, p. 46).

A modernidade surge provocando revoluções nos campos do saber, das artes e dentro

da própria Igreja. O avanço das ciências e uma valorização do homem como centro de todas

as coisas levaram a Igreja a perder o status de reguladora do universo. A razão passa a ser

considerada a grande aliada do homem, que se vê capaz de determinar seu destino.

Há autores que relacionam o desenvolvimento da modernidade e sua influência com

um crescente enfraquecimento social e cultural da religião. Segundo Hervieu-Léger (2008),

três características da modernidade são associadas a esse fenômeno: a primeira seria o fato de

a modernidade colocar à frente, em todos os domínios da ação, a racionalidade; como

conseqüência, há um desencantamento desse mundo religioso; a segunda é a da afirmação na

autonomia do indivíduo, quando ele passa a ser capaz de construir o mundo no qual quer viver

e de dar sentidos e significações a sua existência; e a terceira característica é a de que a

modernidade implica um tipo particular de organização social caracterizada pela diferença das

instituições. Assim, a instituição religiosa é destituída do papel de influenciadora das outras

instituições como a política, o estado e a ciência. Ela fica relegada a um plano subjetivo.

No momento histórico atual, denominado por alguns autores como pós-modernidade

(Giovanetti, 2004), muito se tem discutido sobre qual é a influência da religiosidade na vida

das pessoas e o papel da religião na sociedade.

Há apontamentos no sentido de um declínio cada vez maior da religião e das práticas

religiosas. Contudo, outros autores apontam que, apesar de as diversas mudanças terem

contribuído, em determinado momento histórico, para o declínio das Igrejas enquanto

instituições – principalmente a Igreja Católica antes dominante –, essas mesmas mudanças

não determinaram o fim da religião e nem o fim de sua influência sobre a vida das pessoas. O

fenômeno que observa-se hoje, na sociedade pós-moderna, é que se multiplica o número de

igrejas e diferentes formas religiosas.

Segundo Giovanetti (2004), a discussão religiosa, que parecia ter desaparecido nesses

tempos de pós-modernidade, na verdade, continua em alta. Ainda que não seja da mesma

54

forma e com a mesma intensidade de antes, a religião dita normas e estilos de vida a um

número considerável de pessoas, os chamados fiéis que, por diferentes razões, podem se

render a esses preceitos. O campo religioso se torna vasto e se espalha por diferentes

contextos sociais, influenciando o dia-a-dia das pessoas.

O principal fato a se destacar com relação às mudanças trazidas pela pós-modernidade

no que diz respeito à religião é que a Igreja perde o status de reguladora da vida das pessoas.

O declínio da religião enquanto instituição abre a possibilidade de escolha e o fiel pode

moldar sua síntese religiosa, mas não há o fim da religião e da religiosidade.

3.4 Contribuições da Sociologia para a análise da Religião

Durkheim (1989) afirma que muitas vezes se procede ao estudo da religião como se a

mesma formasse uma espécie de entidade indivisível, mas, segundo o mesmo, a religião é um

todo formado de partes; um sistema complexo formado de mitos, ritos e cerimônias. Assim

ele parte para a análise dos fenômenos elementares de que toda religião é formada buscando

conhecer o todo da religião.

Continuando, afirma Durkheim (1989) que todas as crenças religiosas, sejam simples

ou complexas, apresentam um mesmo caráter comum; elas supõem a classificação das coisas,

sejam reais ou ideais, em dois termos distintos: sagrado e profano. Esse é o único elemento

essencial presente em todas as religiões conhecidas.

A partir da análise de relatos de estudos de tribos australianas, o autor afirma que,

desde os povos primitivos, coisas, objetos ou animais eram considerados como sagrados.

Porém, em sua análise, essas coisas, objetos ou animais não traziam em si a natureza capaz de

produzir sobre o homem aquelas grandes e fortes impressões que podem assemelhar-se às

impressões religiosas, ou seja, não eram sagradas em si. Assim, conclui o autor, não é a

natureza intrínseca da coisa que a leva a tornar-se objeto de culto. Esse objeto sagrado é

expressão material de alguma outra coisa.

Por um lado, é a forma exterior e sensível do que denominamos o princípio ou deus

totêmico. Mas por outro lado é também o símbolo dessa sociedade determinada que

se chama clã. É sua bandeira; é o sinal pelo qual cada clã se distingue dos outros, a

marca visível de sua personalidade (...) o deus do clã, o princípio totêmico, não

pode, pois, ser outra coisa senão o próprio clã, mas hipostasiado e representado para

as imaginações sob as espécies sensíveis do vegetal ou do animal que servem de

totem. (DURKHEIM, 1989, p. 260)

55

Ou seja, a qualidade de sagrado era imposta a essas coisas porque as mesmas eram

depositárias da marca do totem que identificava esse grupo; há uma atribuição de sentido que

aponta para o sagrado. O sagrado, a partir de Durkheim, é uma categoria que se sobrepõe às

coisas, pessoas, tempos, lugares, gestos e palavras, conferindo-lhes uma significação que os

retira do uso profano.

O sagrado, ao ser atribuído a algo, seja um lugar, um objeto ou um ser, passa a ocupar

um lugar diferenciado, é retirado do mundo profano e diferenciado das coisas que possuem

esse mesmo atributo. Assim, para se dirigir ou entrar em contato com esse sagrado, é

necessário que existam ritos que conduzam as pessoas na sua direção.

Assim, em Durkeim (1989), a religião pode ser entendida justamente como esse

conjunto de ritos, sustentados por mitos, que apontam um determinado caminho para se

chegar ao sagrado. Em meio a isso, cada religião cria um sistema de regras, hierarquias e

apontamentos para aqueles que a ela se submetem. Constitui-se a religião como um sistema

oficial de acesso ao sagrado. Aquele que se afirma pertencente a uma determinada religião, de

certa forma, adere a esses sistemas e se submete a eles. É interessante pensar se isso se dá no

meio da população em situação de rua, pois uma das características desse público é não fazer

uma adesão radical a determinada crença, mas freqüentar e estar presente em diferentes

espaços religiosos.

A religião trabalha com categorias básicas que vão orientar as pessoas dentro de um

universo de sentido, por exemplo, céu e inferno, bem e mal. A religião dá uma explicação

social para os fenômenos, revelando assim, uma postura ideológica. Essa ideologia pode ou

não estar a serviço de uma classe dominante e da ordem vigente. A religião possui também

uma função política e pode repetir os padrões de hierarquia. Ela pode acabar, inclusive, por

revestir de sagrado as diferenças profanas e diferenças sociais, podendo também priorizar o

estático, aquilo que é vigente e não se abrir à construção do novo.

Para Bourdieu (1974), a religião possui um poder de consagração que é capaz de dar

às instituições sociais um caráter relativo ou arbitrário, sagrado ou profano. Transforma as

instituições sociais, dando-lhes um caráter de instituições sobrenaturais, ditando normas e

regras de vida. A ordem social ganha um caráter transcendente e inquestionável. A religião

acaba por moldar comportamentos. Muitas vezes as leis superiores colocadas pelas religiões

são, na verdade, retrato das leis terrenas travestidas de poder supremo.

Por ser considerado como um caminho oficial, a religião ganha um destaque e se

diferencia do não oficial. A esse não oficial pode ser destinado o lugar de profano, mas pode

56

ser encarado também como uma apropriação e uma transformação do oficial; assim se pode

entender a religiosidade.

3.5 Campo Religioso Brasileiro e novas formas de religiosidade

Pode-se afirmar que no caso do Brasil existe um contexto onde há um favorecimento

para que ocorram experiências de cunho religioso. Isso pode ser explicado desde as raízes,

desde os princípios da nossa cultura.

Pelo censo realizado no ano 2000, a grande maioria da população brasileira se afirma

cristã e integrante de alguma religião. Vivemos no país mais católico do mundo e onde o

número de cristãos evangélicos mais cresce1.

Bittencourt Filho (2003) caminha na mesma direção e busca explicitar as bases

religiosas e culturais que deram origem ao campo religioso brasileiro, afirmando que há uma

matriz religiosa brasileira, que serve de base para as formas religiosas que vêm se

apresentando ao longo do tempo no país e influencia a religiosidade das pessoas. Com relação

aos elementos que se fundiram na composição da Matriz Religiosa Brasileira, o autor conclui

que para responder a essa pergunta é necessário que se recorra à formação histórica da nossa

nacionalidade.

Com os colonizadores chegaram o catolicismo ibérico (reconhecidamente singular) e

a magia européia. Aqui se encontram com as religiões indígenas, cuja presença irá

impor-se por meio da mestiçagem. Posteriormente, a escravidão trouxe consigo

religiões africanas que, sob determinadas circunstâncias, foram articuladas num

vasto sincretismo. No século XIX, dois novos elementos foram acrescentados: o

espiritismo europeu e alguns poucos elementos do catolicismo romanizado.

(BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 41)

É possível afirmar que a Matriz Religiosa Brasileira é, desde a sua essência, marcada

por um pluralismo que contribui para o sincretismo que ainda hoje se faz presente em nosso

país. A diversidade de crenças atesta essa realidade. Na seqüência o autor reafirma a

existência de uma Matriz Religiosa Brasileira e de uma religiosidade que lhe é inerente e que

ele denomina de Religiosidade Matricial. Pode-se notar aqui também uma possível definição

1 No Censo realizado no ano 2000, 73,8% dos brasileiros se declararam católicos (125 milhões/pessoas) e

15,45% se declararam evangélicas (26 milhões/pessoas). Fonte: ANTONIAZZI, Alberto. As religiões no Brasil

segundo o Censo de 2000. Revista de Estudos da Religião. São Paulo: Rever, nº 2, p 75-80, 2003.

57

do termo religiosidade. Ela nasce da religião, mas, se diferencia da mesma justamente pela

ação daquele que crê.

É preciso dar por assentado que a religiosidade refere-se ao domínio do religioso

não institucionalizado, ou seja, um estado que carece de legitimação social formal.

Trata-se do domínio da prática religiosa, em que não existe a sistematização

especializada de crenças, nem a reprodução específica de práticas e de rituais. Nesse

domínio é perfeitamente plausível a reapropriação, a reinterpretação e, por que não

dizer, a reinvenção de conteúdos pertencentes aos sistemas religiosos

institucionalizados. Historicamente, essa tem sido a maneira por meio da qual as

camadas populares têm assimilado e reproduzido as religiões institucionalizadas e

vice-versa. (BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 71)

Ainda segundo Bittencourt Filho (2003), o que se pode notar na sociedade atual é que

o indivíduo tem tomado para si a tarefa de moldar a própria síntese, isto é, de construir sua

religiosidade privada. Essa afirmação vai ao encontro das novas formas religiosas que vêm se

apresentando na contemporaneidade. Se a religião, enquanto sistema de crenças, procura ser

cada vez mais articulada e fechada em seus ritos, mitos e liturgias, o que justamente diferencia

uma religião de outra, a religiosidade acaba por ser mais livre e difusa, sendo ato de quem crê

moldar essa síntese de acordo com aquilo que o atenda.

Hervieu-Léger (2008) afirma que a modernidade trouxe uma mudança na maneira de

ser religioso das pessoas. Há, na sociedade atual, uma dinâmica marcada pela mobilidade das

pertenças religiosas; a desterritorialização das comunidades; a desregulação dos

procedimentos de transmissão religiosa e a individualização das formas de identificação.

Tudo isso faz com que se enfraqueça a tradicional figura do praticante religioso e apareçam

duas figuras que representam bem essa dinâmica do movimento: a figura do peregrino e a do

convertido. Segundo a autora, a figura do peregrino remete à fluência dos percursos

espirituais individuais e à mobilidade da associação temporária. O peregrino assume para si a

responsabilidade de fazer sua forma religiosa.

Quanto à figura do convertido, Hervieu-Léger (2008) afirma que ela pode aparecer sob

três modalidades diferentes, reforçando a questão da escolha individual. Apresenta-se como a

figura do indivíduo que muda de religião, daquele que se adere a uma tradição religiosa de

forma inaugural e daquele que retoma uma tradição religiosa, antes abandonada por ele.

Ambas as figuras levantadas pela autora reforçam o caráter de escolha e

transitoriedade que marcam o religioso atual se contrapondo às identidades religiosas

herdadas e que, de certa forma, determinavam o percurso e o horizonte religioso dos

indivíduos. Há a presença do fenômeno do crer sem pertencer e, como afirma a autora, uma

bricolagem da fé em que a cada pessoa é dada à possibilidade de moldar sua síntese.

58

Diferentemente daquilo que nos dizem, não é a indiferença com relação à crença que

caracteriza nossas sociedades. É o fato de que a crença escapa totalmente ao controle

das grandes igrejas e das instituições religiosas. (...) A descrição da modernidade

religiosa se organiza a partir de uma característica maior, que é a tendência geral à

individualização e à subjetividade das crenças religiosas. (HERVIEU-LÉGER,

2008, p. 41/42)

Outra demonstração importante da religiosidade na vida das pessoas pode ser

encontrada quando pensa-se na religiosidade denominada de popular. Essa traz em si

características que vão dar um tom e intensidades diferenciadas da religiosidade oficial. A

religiosidade popular pode ser entendida como uma das formas de expressão que as pessoas

encontram de se relacionarem com Deus. Está mais ligada, contudo, a grupos muitas vezes

excluídos ou subalternos, como é o caso da população de rua, o que nos faz supor que há entre

esse grupo de pessoas uma forma singular de vivência da religiosidade. Relaciona-se também

a religiosidade popular, de forma intensa, aos costumes rurais de grande parte da população.

Essa entidade sobrenatural vem de fora e age no sentido de ser um aparato para a realidade

muitas vezes cruel.

Superar o cotidiano – comer, vestir-se, morar, divertir-se –, é uma luta que só pode

ser vencida – ou suportada – com o auxílio dos santos, de Deus, de forças que estão

acima da compreensão humana. É por isso que o discurso popular fala mais a Deus

do que de Deus. Trata-se de uma experiência pessoal direta, não intelectualizada,

que se expressa numa linguagem oblíqua, metafórica (conforme se encontra nas

parábolas do Novo Testamento), ao mesmo tempo que tem um caráter

profundamente utilitário. (CÉSAR, 1976, p. 15)

A religiosidade é assim um pendor, uma capacidade, uma aptidão para o

relacionamento com o sagrado. É um pendor do ser humano para algo transcendente; uma

capacidade do humano para ouvir o cosmo para além do aparente. Sendo uma aptidão, a

religiosidade pode ou não ser desenvolvida.

A aptidão religiosa é inata no ser humano, porém, a religiosidade ocorre como um

fenômeno social; é uma construção social. A religião é sempre uma institucionalização da

religiosidade. A religiosidade traz consigo uma energia que age e mobiliza o sujeito; ela

exerce algo sobre aquele que a vivencia.

59

4 O MORADOR DE RUA

Sendo o morador de rua o tema alvo da presente pesquisa, torna-se necessário elaborar

possíveis definições do fenômeno social denominado morador de rua. Para isso, serão

utilizadas como fontes teóricas elaborações feitas por diferentes autores e também pesquisas

já realizadas sobre o tema. Torna-se importante descrever a realidade de pessoas que vivem

nessa condição, as principais características desse público e suas especificidades.

Posteriormente, será analisada a questão do morador de rua de maneira mais específica na

cidade de Belo Horizonte.

Servirá de base no presente capítulo também a minha experiência no trabalho com a

população de rua, em um serviço público da Secretaria Municipal Adjunta de Assistência

Social da cidade de Belo Horizonte.

4.1 O morador de rua: uma possível definição

Na atualidade, a figura do morador de rua faz parte do cenário de grande parte das

cidades brasileiras, especialmente dos grandes centros urbanos. Confundindo-se com as

paisagens, praças e viadutos, tornou-se comum ver pessoas que passam a fazer do local

público o seu local de vida, a sua moradia. Autores têm voltado seus olhos para o estudo da

temática dos moradores de rua e tem crescido a atenção em políticas públicas para essa

população, visando conhecer suas especificidades e suprir suas demandas.

Bursztyn (2000) afirma que viver no meio da rua não é um problema novo. Segundo o

autor, se esse fenômeno não é tão antigo quanto a própria existência das ruas, da vida urbana,

remonta, pelo menos, ao renascimento das cidades, ao início do capitalismo. O fato relevante

é que pesquisas têm apontado que é um fenômeno comum nas grandes cidades, por diferentes

motivos, o aumento do número de pessoas que passam a viver nas ruas.

Definir e analisar o que vem a ser o morador de rua não é tarefa simples. Araújo

(2000) afirma que realizar estudos sobre pessoas que moram nas ruas ou vivem das ruas é

uma tarefa desafiadora e que em dois sentidos esse desafio se intensifica. O primeiro sentido

colocado como dificultador é que a vida dessas pessoas não é nada simples como pode

60

aparentar o jargão ―população de rua‖, pois, para além desse jargão, escondem-se

diversidades; relações complexas do ponto de vista interpessoal e do trabalho, diferentes

perfis e diferentes redes de sociabilidade, diferentes trajetórias e histórias de vida e, enfim,

complexidades sociais e culturais impossíveis de serem decifradas por conceitos simples e

homogeneizadores.

O segundo sentido que para o autor dificulta o estudo de pessoas em situação de rua se

dá no plano metodológico, já que é difícil pesquisar esse público porque ele é flutuante,

temporário e nômade. ―Em suma, não é fácil contar as pessoas, saber quem são e como

pensam, entender suas redes de sociabilidade e suas formas de sobrevivência‖ (ARAÚJO,

2000, p. 89).

Zaluar (1994) afirma que em todos os tipos de sociedades há a preocupação com o

espaço denominado de ―lugar do íntimo‖, daquilo que é secreto, particular e que não é

exposto aos olhos públicos. O morador de rua faz um deslocamento permanente para as ruas,

espaço público por excelência e, de certa forma, coloca um problema para se pensar essa

distinção entre o público e o privado. Faz do público o espaço do privado e de atos privados,

algumas vezes, atos públicos. Isso traz um sofrimento para quem está vivendo nas ruas e o

incômodo para os demais. Reforça também a postura de coerção de setores da sociedade para

com os moradores de rua.

Faz-se necessário ressaltar que o que praticamente todas as pesquisas apontam é que

não há um único perfil da população de rua; há, sim, diferentes perfis, pode-se dizer mesmo

que há populações de ruas. Não se pode negar que há características verificadas com maior

incidência, mas cada morador de rua apresenta uma trajetória única de perdas e

desvinculações, conflitos, sofrimentos e escolhas que o levam para a vida nas ruas. Sair dessa

condição exigirá sempre uma reorganização de sua trajetória de vida, de inserção no mundo

social e do trabalho, e de uma escolha. Ou seja, sair das ruas envolve necessariamente uma

escolha. Porém, não é uma escolha simples. Ela se faz em meio a um turbilhão de dilemas e

forças que, muitas vezes, operam no sentido de manter essa pessoa na mesma condição. Mas,

apesar dos diferentes atravessadores que dificultam a definição de população de rua e morador

de rua, encontramos em Vieira, Bezerra e Rosa (1994) um desenho que visa a uma definição:

Pessoas que vivem em situação de extrema instabilidade, na grande maioria de

homens sós, sem lugar fixo de moradia, sem contato permanente com a família e

sem trabalho regular; são demandatários de serviços básicos de higiene e abrigo; em

que a falta de convivência com o grupo familiar e a precariedade de outras

referências de apoio efetivo e social fazem com que esses indivíduos se encontrem,

de certa maneira, impedidos de estabelecer projetos de vida e até de resgatar uma

imagem positiva de si mesmos (VIEIRA; BEZERRA e ROSA, 1994, p. 155)

61

Tal definição aponta para características básicas de quase a totalidade de pessoas que

moram nas ruas. Assim, falta aos mesmos uma moradia fixa, uma inserção regular no mundo

do trabalho e há a perda de vínculos familiares.

Segundo Varanda e Adorno (2004), diferentes denominações são utilizadas pelas

pessoas que moram nas ruas para designarem a si mesmas. Essas designações reproduzem, na

verdade, enquadres institucionais que lhes são impostos, ou se referem a práticas voltadas

para grupos específicos. Trazem consigo também a marca dos estereótipos de que são vítimas

os moradores de rua.

É bastante comum, entre aqueles que dormem nas ruas, o uso do termo maloqueiro,

que se refere a quem usa a maloca, ou mocó – lugar de permanência de pequenos

grupos durante o dia, ou usado para o pernoite, com, normalmente, colchões velhos,

algum canto reservado para os pertences pessoais (roupas e documentos) e, às vezes,

utensílios de cozinha. Quem usa albergues são identificados simplesmente como

usuário de albergue ou albergado. ―Trecheiro‖ também é bastante usado entre os

moradores de rua; o termo é oriundo dos trabalhadores que transitavam de uma

cidade para outra a procura de trabalho, continua sendo usado pejorativamente por

uns e naturalmente por quem já teve a experiência de trecho (referindo-se a esse tipo

de percurso). Os ―trecheiros‖ se opõem aos ―pardais‖, que são, na sua visão, os

moradores de rua, que se fixam e não trabalham. (VARANDA; ADORNO, 2004, p.

58).

Chama a atenção também o fato de que, mesmo entre a população de rua, há uma

distinção entre grupos que revelam certa indiferença para com os demais. Assim, os chamados

―pardais‖ são considerados como acomodados, rótulo que é evitado pela maioria. Os

―catadores‖, por exemplo, têm a preocupação de se diferenciar dos demais, pois querem ser

reconhecidos como categoria profissional e não confundidos com os demais moradores de

rua.

Ainda segundo Varanda e Adorno (2004), entre os próprios moradores de rua ocorre

uma delimitação de identidades e espaços por referência ao uso do tipo de drogas. Aqui cabe

ressaltar uma outra característica muito presente, e na verdade quase definidora, de pessoas

em situação de rua. O uso de álcool e drogas se faz presente de forma acentuada em grande

parte desse público. Alguns apontam que o seu uso é necessário até para que se suporte a

situação de rua; outros apontam o vício como a causa da sua vinda para as ruas e há também

aqueles que afirmam ser mais um dos problemas que trouxe a vida nas ruas.

Os usuários de álcool são chamados de bêbados, bebuns, alcoólatras. Há também o

uso de outras drogas na rua, como a maconha o crack e a cocaína. Para os que usam

álcool, de maneira geral, os usuários de outras drogas são chamados de nóia. Os que

usam crack também são chamados de ―pedreiros‖. (VARANDA; ADORNO, 2004,

p. 58).

62

Fato inegável é que o uso de álcool e droga acaba por se tornar também fator de

socialização entre aqueles que moram nas ruas. O baixo preço da cachaça, por exemplo, faz

com que mesmo aqueles que vivem na precariedade extrema tenham algum dinheiro para

comprá-la. É comum nas rodas de conversa ou nas noites frias a garrafa rodar em todas as

bocas. Quanto ao consumo de drogas, nota-se que as autoridades e a mídia têm mostrado

preocupação com o enorme aumento de uso em todas as classes. Entre os moradores de rua é

também algo que se compartilha e que se compra, ainda que seja em lugar da comida.

Certa vez um morador de rua relatou que conseguia boa quantia de dinheiro através de

sua prática de vigiar carros nas ruas, o chamado ―flanelinha‖. Disse que em algumas noites

chegava a ganhar R$ 80,00, porém, não era capaz de guardar o dinheiro e consumia, então,

tudo em drogas. Outro morador, ao receber um dinheiro fruto de um trabalho realizado,

começou a tremer e sentir dores na barriga dizendo ser a ―fissura‖ pela droga.

Compõem o quadro da população de rua pessoas que estão nessa condição de vida há

vários anos, mas também outros que são recém-chegados nessa situação. Por um lado, há

aqueles que desde menores romperam o laço familiar, viveram em instituições para menores

ou mesmo já nas ruas. Outros foram criados nas ruas pelos pais, constituindo assim a segunda

geração. Más há também aqueles que por desemprego, pela migração ou outros motivos, são

expulsos de determinado ritmo de vida e passam a habitar as ruas. Isso só reforça a afirmação

de que a população de rua se constitui um grupo altamente heterogênio.

Todo o exposto acima reforça a dificuldade de definição do morador de rua e todas as

especificidades que se fazem presentes no trabalho com os mesmos. A ausência de uma

definição precisa é reflexo da própria heterogeneidade da população de rua que, em sua

composição, abriga diferentes perfis e motivos. Além disso, os próprios estigmas impostos de

dentro e de fora se tornam mais um ponto dificultador na pesquisa e no trabalho junto a esse

público.

4.2 O morador de rua: vítima da exclusão

Ao referir ao fenômeno da população de rua, necessariamente há que se remeter ao

problema da exclusão social. O morador de rua é considerado como mais um, dentre outros

63

segmentos sociais, que está à margem da sociedade, excluído de uma cadeia produtiva e de

uma vida social positiva.

Araújo (2000) chama a atenção para o fato de que em países como o Brasil a pobreza é

endêmica. Esse é um fenômeno resultante da desigualdade da apropriação e da distribuição do

excedente das produções, da riqueza disponível. Ainda que haja crescimento do ponto de vista

econômico, o país ainda avança a passos muito lentos no desenvolvimento social e humano.

Essa pobreza extrema tem se refletido em diversos campos sociais e é elemento importante no

aumento da população de rua.

Como afirmou Freud, em O futuro de uma ilusão (1976), a humanidade continua a

avançar a passos desiguais no avanço científico, assim como no econômico e no trato com o

humano. A população de rua é uma prova de tal afirmativa.

Ao se referir de maneira específica à situação de crianças e jovens nas ruas, Araújo

(2000) afirma que esse fato da pobreza acaba por se refletir na migração de muitas crianças

para a vida nas ruas, pois a essas crianças pobres é dada a incumbência de complementar a

renda familiar. Muitas vezes as mesmas acabam por ter que dividir o tempo da escola com o

tempo destinado ao trabalho. O fato seguinte é que muitas abandonam a escola ainda cedo e

passam a não mais se prepararem para uma inserção no mundo do trabalho. A concentração

do capital escolar aparece como elemento decisivo no processo da fabricação da situação de

rua de crianças e de adolescentes.

Essa defasagem escolar que se inicia na infância e na adolescência é algo que irá

acompanhar a maioria dos que se tornam adultos nas ruas e será um fator incisivo na

determinação de continuidade dessa situação, dificultando o acesso a emprego e outras formas

de saída.

Nos grandes centros urbanos a população de rua se faz mais presente que em cidades

interioranas, ainda que essas últimas sejam, em geral, mais pobres que as capitais ou cidades

grandes. O fato que faz com que o morador de rua seja mais presente nos grandes centros é

que esses acabam por atrair um número maior de pessoas, entre outros motivos, pela

promessa de melhores oportunidades financeiras e de vida como um todo, o que nem sempre

se torna uma realidade. Em muitos casos, a rua passa a ser a única alternativa para quem não

consegue se manter e construir uma realidade diferente na nova cidade.

... a exclusão provém da migração do campo para as cidades que o desenvolvimento

concentrado provocou ao longo de quase um século, e que é hoje provocada pela

globalização, inclusive dentro da própria cidade, através da migração forçada entre

mundos sociais apartados que existem dentro do mesmo espaço geográfico‖

(BUARQUE, 2000, p. 9)

64

A migração aparece ainda nos dias de hoje como um fator de relevante importância

para a ida de pessoas para as ruas. Essa migração ocorre fundamentalmente de estados mais

pobres, como os do Nordeste do país, para os estados do Sudeste, e de cidades do interior para

a capital dos estados. Porém, além da migração, diferentes fatores sociais, econômicos,

relacionais e também psicológicos contribuem para a ida de pessoas para a vida nas ruas.

Os sem teto, os que moram nas ruas, têm por trás de sua situação uma longa história

e causas sociais determinadas que se ligam a questões econômicas, de migração, de

desagregação familiar, de desemprego, de violência urbana, de drogadição, de

alcoolismo, entre outras. O peso de cada uma dessas variáveis é específico de

situações diferenciadas entre países, regiões e cidades, e no tempo. Dar peso maior a

uma ou a outra só se justifica tendo tais especficidades em mente.‖ (ARAÚJO, 2000,

p. 89)

A partir da colocação anterior, pode-se afirmar que diferentes motivos podem operar

para trazer e manter uma pessoa na vida das ruas. Assim, em cada realidade analisada com

relação à população de rua poderão aparecer todos esses fatores, mas um poderá ser o

elemento determinante. Além disso, não se pode perder de vista o fator individual, aquele que

dentro da história de vida de determinada pessoa o trouxe para essa condição.

Para Burstyn (2000), pobreza e segregação são elementos constantes na história, mas

sempre existiu um elo entre o mundo da riqueza e o da pobreza. Esse elo se fazia através do

trabalho e da interdependênca dos dois mundos. Contudo, a atualidade vem mostrando uma

nova realidade marcada pela separação, pela crise do mundo do trabalho, entre os mundos da

riqueza e da pobreza, que vai se tornando cada vez mais excluída. Criam-se dois mundos que

passam a existir de maneiras independentes.

Os incluídos constroem moradias exclusivas, fecham os vidros dos carros, criam redes

específicas de relações. Os excluídos, ao contrário, não têm acesso a esse mundo e criam um

mundo marginal. O mundo das ruas é um mundo marginal, com suas regras, suas leis e suas

especificidades.

As pessoas que sobrevivem nas ruas não têm, muitas vezes, acesso à inclusão

produtiva por meio de um trabalho formal. Seu mundo se restringe às ruas e o seu trabalho só

se dá nas ruas. A grande parte da população de rua sobrevive assim a partir da reciclagem de

materiais descartados por outros, aqueles que estão inseridos no mundo do trabalho e da

economia. Assim, a atividade produtiva dos que moram nas ruas se resumem à obtenção do

estritamente necessário à subsistência imediata: a comida. Segundo Escorel (2000), as pessoas

em situação de rua acabam realizando cotidianamente atividades que lhes permitem apenas a

65

sobrevivência, permanecendo os mesmos prisioneiros de um círculo de labor e de consumo.

Ainda que haja um esforço individual por parte do morador, ele não leva à transposição dessa

realidade.

Podem ser assinalados três grandes grupos de atividades realizadas com vistas à

obtenção de rendimentos: catadores, atividades vinculadas à mercantilização do

medo ou propriamente à criminalidade e a mendicância. Porém, as atividades da

maior parte dos moradores de rua têm a intermitência como característica principal;

são atividades que precisam ser buscadas diariamente: dependendo das

circunstâncias, das solicitações ou das oportunidades, o morador de rua pode estar

guardando carros hoje, carregando e descarregando caminhões de feira amanhã,

encartando jornais ou catando latas. A atividade de biscateiro, o ―faz tudo‖ que

respondia às pequenas e variadas solicitações de consertos domésticos, foi

substituída pelo ―faz qualquer coisa‖, solicitada ou não. São as ―virações‖, qualquer

atividade (ao seu alcance) que possa reverter em dinheiro, alimentos ou outros

donativos. (ESCOREL, 2000, p. 163)

Relatos de moradores de rua da cidade de Belo Horizonte acabam por reforçar essa

afirmativa. Os mesmos colocam que grande parte das vezes a única possibilidade de

conseguir dinheiro se dá em atividades ligadas à reciclagem ou aos bicos. Isso faz com haja

uma quantia em dinheiro pequena que serve apenas para o sustento. Muitos procuram então o

―Restaurante Popular de Belo Horizonte‖ no qual podem se alimentar a um preço mais baixo.

Além disso, é o dinheiro de um maço de cigarros, de uma bebida ou de um sabão para lavar as

roupas. Essa realidade vivida cotidianamente acaba por prender o morador de rua em uma

realidade que não ultrapassa os mesmos lugares, os mesmo modos de vida.

Segundo Lessa (2000), a população de rua se orienta por brechas do mercado para

subsistir. A reciclagem se tornou atualmente importante meio de sobrevivência para inúmeras

famílias que encontram nessa atividade a maneira de trabalhar e ganhar algo com o qual possa

se sustentar. Se no passado o consumidor buscava alongar a vida útil de seus pertences, o

consumidor pós-moderno é orientado para o descarte dos seus bens, mesmo aqueles

comprados há pouco. Desaparecem de cena figuras antes valorizadas, como a do sapateiro, a

cerzideira, entre outros.

De certa forma os moradores de rua assumem o lugar dessas funções que saem de cena

quando exercem a reciclagem, porém, ao contrário das funções anteriores, o profissional da

reciclagem nem sempre é visto de forma positiva pela sociedade. Já que o valor das coisas,

dos produtos foi diminuído pela cultura do descartável, diminui-se também o valor daqueles

que fazem desses descartado a sua atividade; torna-se também sem valor.

A diferença social que passa a existir entre o mundo dos inseridos e dos excluídos

marca uma distinção em todos os âmbitos da vida social. Buarque (2000) afirma que, a

66

continuar o caminho da exclusão que vem sendo traçado no panorama social, caminharemos

dentro de algumas décadas da exclusão para a dessemelhança entre os seres humanos.

A continuar este rumo, com o uso das técnicas modernas – especialmente as médicas

– beneficiando apenas uma parte das pessoas, a humanidade poderá ser rompida e a

dessemelhança transformar-se em diferença biológica. (BUARQUE, 2000, p. 8).

Segundo Tosta (2000), a vinculação familiar proporciona uma rede de solidariedade

que, de certa forma, protege o indivíduo. Contudo, o rompimento dos laços familiares é mais

uma característica que se faz presente no morador de rua.

... o fenômeno situação de rua, na maior parte dos casos, é um problema

sociofamiliar, pois a exclusão de crianças e adolescentes começa com a exclusão

econômica de suas famílias. O fator renda, nesse caso, é determinante, pois as

crianças e os adolescentes assumem papéis de trabalhadores, com o dever de ajudar

no provimento material do grupo familiar. Evidentemente, os conflitos familiares

também influenciam na determinação da situação de rua (...) a rua foi a alternativa

para as crianças e os jovens cujo ambiente familiar tornou inviável a convivência.

(ARAÚJO, 2000, p. 104)

A perda dos vínculos familiares faz também parte dessa característica dos habitantes

do mundo dos excluídos. Ao se perder o laço familiar perde-se também uma referência afetiva

e de valores. Contudo, o trabalho junto a moradores de rua traz à tona uma referência bem

distinta de família daquela que nos é colocada pela sociedade e pela mídia. A idéia de família

nuclear composta por pai, mãe e filhos vem se distanciando há bastante tempo das realidades

de muitas pessoas.

Em muitos casos relatados por moradores de rua houve a ausência da figura paterna.

Outros relembram a família como fonte de violência e indiferença. É possível se afirmar, a

partir de muitos relatos, que pessoas nomeadas como desaparecidas por suas famílias fizeram

na verdade a opção de viver no anonimato das ruas.

Outra característica dos excluídos é o convívio com a violência. Para Tosta (2000), há

uma vinculação entre exclusão social e violência que se faz por meio da identificação da

pobreza com a marginalidade. O excluído passa a ser percebido e reconhecido como

socialmente ameaçador e criam-se então representações sociais nas quais o mesmo é objeto de

pena, indiferença, medo, ou até mesmo eliminação. Se essa eliminação não é vista com

aprovação é dada com indiferença. A exclusão é assim, segundo a autora, um processo de

ruptura do vínculo social e de um vínculo simbólico. “O indivíduo excluído não é

simplesmente quem é rejeitado física, geográfica ou materialmente, ele não apenas é excluído

da troca material e simbólica, como também (e principalmente) ocupa um espaço negativo na

representação dominante”. (TOSTA, 2000, p. 204).

67

Escorel (2000), em pesquisa realizada com moradores de rua da cidade do Rio de

Janeiro, aponta que o panorama da vida nas ruas se faz a partir de um contexto negativo e

permeado por dificuldades. A autora chega a afirmar que aqueles que vivem nas ruas, na

verdade, sobrevivem de teimosos.

A população que mora nas ruas é personagem e cenário do drama social das grandes

cidades do país. Personagens que narram suas trajetórias de múltiplas, constantes e

cumulativas desvinculações. Expõe o ponto de degradação que as condições de vida

urbana atingem. Cenários do meio ambiente social desaparecem na paisagem,

naturalizados e banalizados em sua miséria e isolamento. Constantemente

despojados de seus poucos pertences, instalados a circular pelas ruas sem poder

fixar-se, sobrevivem a cada dia de teimosos que são, insistindo em continuar vivos e

a expor suas misérias no espaço público. (ESCOREL, 2000, p. 139).

Contudo, a sobrevivência quase impossível no contexto das ruas se faz em muitas

pessoas que, apesar de todas as dificuldades, persistem na busca de mudança. Pode-se afirmar

que há nesses casos a presença de uma determinação pessoal. Assim, quando a autora cita que

pessoas vivem de teimosas, pode-se perguntar também o que move essas pessoas na sua

sobrevivência.

Entre o pólo positivo de uma vida saudável e longeva e o pólo negativo da morte,

encontramos diversos episódios de morbidade, mortalidade, diferenças de esperança

de vida, gravidade de patologias, incidência ―preferencial‖ de causas de doenças e

mortes em determinados grupos sociais (como homicídios e causas extrernas de

modo geral em homens, jovens, pretos ou pardos e pobres, moradores das periferias

urbanas), além das iniqüidades existentes em relação ao acesso e á utilização dos

serviços de saúde de qualidade. Todos esses fenômenos revelam tanto a distinção

que há entre viver e sobreviver quanto o grau de dificuldades encontradas por uns e

por outros para permanecerem vivos. Eis que surgem então pessoas que sobrevivem

de teimosas. (ESCOREL, 2000, p. 145)

Pode-se concluir temporariamente que aquelas pessoas que moram nas ruas

encontram-se, talvez por excelência, excluídas socialmente. Não se pode perder de vista o

caráter individual que há em qualquer situação vivida, mas, em muitos casos, o contexto

social limita o horizonte de possibilidades das pessoas. Isso é uma realidade no caso dos

moradores de rua.

Fatores citados como a pobreza e a migração são características que se fazem

presentes no morador de rua de forma marcante. Por tentar sair da pobreza é que muitos vão

em direção aos grandes centros, sem ter condições de se estabelecerem e a rua passa a ser a

única opção. Sair da situação de rua se torna muito difícil porque são muitos os fatores que

operam contra. Quebrar um ciclo de miséria, de falta de acesso social, de vícios e, enfim,

quebrar o ciclo de exclusão, é tarefa que exige esforços e nem sempre é possível a todos.

68

Com relação à reciclagem, ocupação desempenhada pela maioria das pessoas que se

encontram na situação de rua, ela pode ser também a possibilidade de mudança. É, em

diversos casos, a única alternativa de trabalho possível. Apesar disso e de desempenharem um

importante trabalho socioambiental o preconceito e a intolerância para com aqueles que

exercem essa atividade está presente de maneira incisiva.

No decorrer do texto mostram-se também as experiências positivas com relação ao

trabalho nas ruas e das pessoas que moram nas ruas.

4.3 A visão do morador de rua pela sociedade

É necessário pensar, dentro da proposta de se contextualizar o fenômeno dos

moradores de rua, qual a visão que a sociedade faz dessas pessoas que habitam os locais

públicos. Fatos como a violência e a intolerância já noticiados pela mídia mostram que essa

visão se dá, grande parte das vezes, de maneira negativa.

Escorel (2000) afirma que trajetórias de desvinculação podem conduzir à experiência

de não encontrar nenhum estatuto ou reconhecimento nas representações sociais ou de só

encontrá-los em negativo. A distância máxima a que isso pode chegar é o ponto de recusar

qualquer semelhança, até mesmo a condição de humano.

Segundo Mattos e Ferreira (2004) pode-se observar com relação à população de rua

que existem representações sociais pejorativas que se materializam nas relações sociais.

Assim, o imaginário social nomeia essas pessoas como vagabundo, preguiçoso, bêbado, sujo,

perigoso, coitado, mendigo, louco, entre outros. Essas representações acabam por interferir na

constituição da identidade e da subjetividade dessas pessoas, pois esse conhecimento

socialmente compartilhado passa a ser utilizado como um suporte para a construção de suas

identidades pessoais.

A condição de se tornar um morador de rua favorece para a quebra de representações

positivas que as pessoas possuíam, como pai de família, trabalhador, vizinho e, em troca, essa

pessoa passa a adotar apenas representações negativas que a afastam daquilo que ela era antes.

Talvez por tudo isso sair das ruas se torna tarefa tão difícil; é como renascer e buscar algo que

se perdeu: a própria vida.

69

Para ilustrar tal situação, recorrendo a minha experiência profissional com este

público, recordo de um homem em situação de rua que fora convidado para assistir ao

lançamento de um documentário produzido por outras pessoas em situação de rua e que

tratava da questão dos catadores como cidadãos que, de forma oculta, realizam um importante

papel de preservação ambiental. Tal lançamento se realizaria em um importante local de

atividades culturais, de teatro e cinema de Belo Horizonte, o ―Palácio das Artes‖. O mesmo

disse que não iria porque não achava que esse era um lugar para moradores de rua. Quando o

interrogo se o morador de rua não tem os mesmos direitos que qualquer cidadão, ele então

fala que durante 28 anos trabalhou com teatro em Curitiba e se acostumou com platéias,

espetáculos e tudo o que esse meio oferece. Na situação atual, porém, disse que não era mais

nada, ninguém. Voltar a esse lugar não era mais algo que lhe pertencia.

Tal fala serve para ilustrar o que foi exposto acima. O morador de rua adota uma

representação social negativa e subjetiva a realidade, as situações vividas, com o parâmetro

dessa representação. A exclusão, de certa forma, se internaliza e se perpetua.

Matos e Ferreira (2004) se apóiam em Berger e Luckman para propor a noção de

esquemas tipificadores. Esses esquemas constituem-se como um conhecimento socialmente

compartilhado do qual lançamos mão para apreender o outro nas interações sociais. É um pré-

conceito que apreende o outro e o modela na interação dos demais com o mesmo. O ápice da

tipificação é a completa apreensão da pessoa como um tipo, nega-se sua humanidade e a

possibilidade de transformação a ela inerente.

Os autores propõem uma aproximação entre a noção de esquemas tipificadores e a

noção de representação social para ressaltar o valor que possui uma representação social nas

relações que se estabelecem em sociedade. No caso do morador de rua, as representações

negativas que lhe são enderaçadas reforçam e naturalizam o tratamento que é dado aos

mesmos. Justificam-se a violência e a discriminação e se intensificam políticas higienistas.

O viver nas ruas faz com que aos poucos a pessoa que se encontra nessa situação, o

morador de rua, assuma a figura de um caído, alguém que, sem ter uma rotina fixa e sem

desempenhar papéis que a sociedade e suas instituições reforçam como positivos, vai aos

poucos perdendo sua identidade.

A simbologia da queda é particularmente forte entre os que abandonam seus laços

sociais como a família, os parentes, os amigos e passam a viver na solidão nômade

dos que perderam seus referenciais de organização social – tão importantes na

construção de identidades sociais positivas e de personalidades com auto-estima e

noção de dignidade própria. (ZALUAR, 1994, p. 23)

70

Contudo, cabe ressaltar que essas mesmas representações sociais que, na maioria das

vezes, operam no sentido de estigmatizar o morador de rua frente a uma ordem vigente trazem

em si a possibilidade da construção de uma situação de superação. Acredita-se que o sujeito

pode se conformar com o local no qual é colocado ou pode também buscar maneiras de

superação, construção de uma realidade diferente e a saída da situação de rua.

Em contrapartida, consideramos que as mesmas representações contém em si o

germe de sua superação, podendo servir como referências para o ingresso das

pessoas em situação de rua no campo da reivindicação por seus direitos,

constituindo, por conseguinte, identidades mais críticas e autônomas. (MATTOS;

FERREIRA, 2004, p. 48)

Cabe investigar quais os fatores, internos ou externos, operam para colaborar a que

determinadas pessoas consigam transpor tais barreiras e fazer um caminho de saída da

condição de morador de rua. Sabe-se que a atuação do poder público e da sociedade civil pode

se tornar um importante auxílio, mas é fundamental o desejo, o querer, e a escolha daquele

que se vê nessa condição. Aqui pode-se remeter a noção de sentido de vida exposto por Frankl

e pensar que para tais pessoas há um sentido que as impulsiona em sair das ruas e reconstruir

sua existência. O contrário, então, passa a ser possível, ou seja, aqueles que aceitam o lugar de

exclusão e permanecem nas ruas podem vivenciar internamente a perda do sentido de vida.

4.4 A situação dos moradores de rua na cidade de Belo Horizonte: dilemas e conquistas

Belo Horizonte tem se firmado cada vez mais como uma importante cidade no cenário

nacional, reconhecida pelas contribuições políticas, culturais e econômicas, e a cidade tem

experimentado nos últimos anos um crescimento econômico que a torna uma das principais

capitais do Brasil.

Com relação à população de rua, o caso de Belo Horizonte não se difere de outras

cidades; há a presença de pessoas nas ruas e o último censo da população de rua realizado na

cidade aponta também para o crescimento desse público. Pessoas que moram nas ruas de Belo

Horizonte apontam que há fatos positivos de se viver aqui, pois, se comparada a outras

capitais, como Brasília e São Paulo, o custo de vida de Belo Horizonte é mais baixo. Alguns

ressaltam também a hospitalidade do povo belo-horizontino; há locais e pessoas que fazem

71

doações, serviços públicos que oferecem acolhimento e possibilidades da superação da

situação de rua, entre outros.

A política destinada à população de rua de Belo Horizonte existe há quase duas

décadas. O diferencial de algumas outras cidades é que em Belo Horizonte, motivados por

setores da sociedade civil, a população de rua teve voz ativa na implantação de determinados

projetos e serviços, como veremos no decorrer do texto.

4.4.1 Segundo Censo da População de Rua e Análise Qualitativa da Situação dessa

População em Belo Horizonte

O Segundo censo da população de rua e análise qualitativa da situação dessa

população em Belo Horizonte (2006) aponta também, como outras fontes teóricas já citadas,

que a população de rua no Brasil é ainda pouco conhecida. Salienta que as pesquisas oficiais

normalmente partem do domicílio como unidade básica de análise e deixam de incluir aqueles

moradores que não possuem endereço fixo em suas análises. Isso fez com que, ao longo dos

anos, a população de rua ficasse fora das estatísticas oficiais. Paralelamente a isso, os

moradores de rua ficam, muitas vezes, excluídos também do mercado formal de trabalho, do

acesso às instâncias públicas e aos poucos vão se alienando em sua situação. Na pesquisa e

elaboração do censo da população de rua de Belo Horizonte procurou-se levantar fatores que

têm contribuído para o aumento do número de pessoas nas ruas.

De uma maneira geral, pôde-se concluir que, entre vários fatores, alguns parecem ser

mais determinantes para a existência e o aumento do número de pessoas em situação

de rua: a falta de moradia, o desemprego, o sofrimento mental, as rupturas

familiares, a violência doméstica, o uso de drogas e a pobreza. (SEGUNDO CENSO

DA POPULAÇÃO DE RUA E ANÁLISE QUALITATIVA DA SITUAÇÃO

DESSA POPULAÇÃO EM BELO HORIZONTE, 2006, p. 11)

A definição de população de rua, como citado no primeiro tópico desse segundo

capítulo, é algo que ainda se faz de uma forma confusa. As pesquisas que têm sido feitas com

essa população, principalmente nas grandes cidades, têm contribuído para que se conheça

melhor o perfil desse público e se estabeleçam metodologias de trabalhos com o mesmo. No

Segundo censo da população de rua e análise qualitativa da situação dessa população em Belo

Horizonte (2006) os envolvidos na realização desse estudo chegaram a uma possível definição

de que população de rua é:

72

... grupo populacional heterogêneo, constituído por pessoas que possuem em

comum, a garantia da sobrevivência por meio de atividades produtivas

desenvolvidas nas ruas, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a não

referência de moradia regular‖. (SEGUNDO CENSO DA POPULAÇÃO DE RUA

E ANÁLISE QUALITATIVA DA SITUAÇÃO DESSA POPULAÇÃO EM BELO

HORIZONTE, 2006, p. 11)

Essa definição traz em si três características que se assemelham à definição proposta

no início do capítulo por Vieira e colaboradores (1994). Mais uma vez aparecem

características marcantes desse público, como a falta de moradia, do emprego fixo e as

rupturas familiares.

Segundo Sousa (2006), a pesquisa de campo realizada como parte do Censo ocorreu

no período de setembro de 2005 a janeiro de 2006. Objetivou-se fazer a localização, contagem

e caracterização da população de rua, analisando qualitativamente sua situação e viabilizar um

estudo comparativo dos resultados obtidos com os do Censo de 1998.

De uma forma geral, segundo o 2º Censo da População de Rua e análise qualitativa da

situação dessa população em Belo Horizonte (2006), pode-se resumir o perfil da população de

rua em Belo Horizonte da seguinte maneira:

- Em 2005 havia 1.239 pessoas vivendo nas ruas de Belo Horizonte, das quais 991 eram

homens adultos, 79,98% do total;

- 39,04% dos entrevistados estavam vivendo nas ruas há mais de cinco anos;

- 41,2% são pessoas que nasceram em cidades do interior de Minas Gerais e migraram para a

capital. Essa quantia é maior que o número de nascidos na cidade, que é de 32,6%;

- 50,4% dos entrevistados disseram ter vindo para Belo Horizonte à procura de trabalho;

- 55,60% estão na faixa de idade que varia de 18 a 45 anos, sendo que o maior percentual

(12,43%) está na faixa de 25 a 30 anos;

- 46,8% do total dos entrevistados estudaram da 1ª a 4ª série completa;

- 42,8% dos entrevistados vivem da cata de material reciclável;

- 43,65% afirmaram ter algum problema de saúde, sendo que 11,81% afirmaram ter

problemas psíquicos/saúde mental;

- 30,6% declararam que seu maior desejo é conseguir uma moradia e 24,1% almejam

conseguir um emprego. Além disso, 14,9% dos entrevistados disseram que seu maior desejo é

a (re)construção de laços familiares.

O que se pode notar frente à descrição resumida dos dados coletados no Censo da

População de Rua de Belo Horizonte é que as características apresentadas se assemelham às

de outras capitais e também às descrições teóricas feitas ao longo do texto. Assim nota-se a

73

baixa escolaridade, a migração e atividade da reciclagem como sendo o principal meio de

produção. As principais aspirações revelam desejos que tirariam essas pessoas da realidade da

vida nas ruas, assim, é esperado que fossem expressos. Fato relevante apontado pelo Censo é

que, apesar da faixa etária dominante ser do adulto jovem (25 a 30 anos), os resultados

apresentados revelam que vem ocorrendo o envelhecimento dos moradores de rua, o que, ao

longo dos anos, trará a necessidade de políticas de proteção para esse público.

4.4.2 Dilemas e avanços da população de rua em Belo Horizonte

Ao falar sobre os moradores de rua há uma tendência, apoiada na própria situação de

exclusão, a se destacar apenas os pontos negativos e as dificuldades de quem se encontra

nessa situação. Cabe destacar, porém, que há na vida das ruas uma luta constante. Essa luta se

inicia com a própria luta diária pela sobrevivência. Mas há também uma luta por emprego, por

moradia, por liberdade e pela saída dessa situação. Essa luta pode ser vista nos inúmeros casos

individuais em que pessoas relatam seu desejo de sair dessa situação, de se inserir no mercado

de trabalho, mas pode ser vista também no coletivo, no grupo que se forma e vai em busca de

seus direitos.

No caso da cidade de Belo Horizonte, a própria construção da política voltada para o

atendimento da população de rua é uma prova da luta dessas pessoas por melhorias de sua

situação de vida e de sua condição social. Nos parágrafos seguintes será feito um breve

histórico do início da trajetória organizativa da população de rua e da instauração do

Programa de atendimento à população de rua de Belo Horizonte.

Segundo Andrade (2002), a trajetória histórico-organizativa do processo associativo

dos moradores de rua de Belo Horizonte, que culminou no fim dos anos 90 com a fundação

do movimento da população de rua de Belo Horizonte, se inicia em 1987, com a chegada das

Irmãs Oblatas de São Bento, que já trabalhavam com esse público em outros estados e

chegam à cidade com essa proposta. Duas figuras se destacaram nesse processo: a irmã

Fortunata e a irmã Cristina Bove. Esta última continua ainda hoje desempenhando importante

papel na luta pelos direitos da população de rua. Atua mais diretamente em Belo Horizonte,

mas é também a coordenadora nacional da Pastoral de Rua.

74

Elas oportunizam a fundação da Pastoral de Rua de Belo Horizonte, desencadeando

um trabalho pioneiro e precursor na implementação de uma proposta metodológica

sócioeducativa, cujo princípio básico é considerar o morador de rua como sujeito,

em condições de participar e assumir uma postura crítica diante de sua condição

existencial, buscando alternativas que possibilitem a superação dessa condição de

morador de rua, espoliado das condições básicas necessárias, notadamente trabalho e

moradia, para uma sobrevivência digna de cidadãos plenos. (ANDRADE, 2002, p.

46)

Os primeiros contatos com a população de rua se dava nos locais de maiores

concentrações de moradores de rua, como debaixo dos viadutos e nas praças da cidade. Havia

um trabalho de escuta, reuniões, festas comemorativas e litúrgicas, com o intuito de iniciar um

acompanhamento com esse público e também ganhar a sua confiança. Os primeiro anos de

acompanhamento foram demarcando a existência de grupos distinto de moradores de rua.

Havia um grupo de catadores de papel que retiravam dessa atividade o seu sustento, e um

outro grupo maior e mais diversificado formado por pessoas mais comprometidas com a vida

das ruas, pessoas que desenvolviam alguma atividade apenas para o seu sustento.

Segundo Andrade (2002), frente a situações tão diferentes, a pastoral traçou metas

estratégicas diferenciadas buscando atender às especificidades de cada um desses segmentos

da população de rua de Belo Horizonte. Priorizou-se inicialmente a mobilização e a

organização dos catadores que tinham nesse trabalho o motivo principal da permanência na

rua. Nem todos eram moradores de rua, mas eram trabalhadores da rua que, devido a essa

condição, passavam a ser também moradores de rua, ficando nessa condição durante a semana

e retornando as suas moradias nos finais de semana.

Essa situação continua a se fazer presente ainda nos dias de hoje. Muitos trabalhadores

do papel dormem nas ruas durante a semana e, aos finais de semana, vão para suas casas

geralmente localizadas em cidades da região metropolitana. Segundo relato de algumas dessas

pessoas, isso se faz necessário para que o dinheiro que iria custear a passagem nos ônibus seja

destinado a suprir outras necessidades. Contudo, é fato inegável que essa proximidade com a

situação de rua faz com que esse público adquira hábitos semelhantes aos demais moradores

de rua.

Foram estas características comuns que possibilitaram esse entrelaçamento entre os

dois grupos, que ora se identificavam pelas marcas deixadas pela vivência na rua,

ora se diferenciavam em função dos motivos que os empurravam para esta condição

de ser morador de rua. (ANDRADE, 2002, p. 69)

Esse fato, esse entrelaçamento dessas duas situações, trabalhadores das ruas e

moradores das ruas, será determinante na construção da identidade do Movimento de

População de Rua de Belo Horizonte. Assim, como critérios de pertença ao movimento, serão

75

colocadas as situações de ser morador de rua ou de já ter sido morador de rua. Isso revela

também um pouco da noção de População de Rua da Pastoral de Rua, encarando como

morador de rua não só aqueles que fazem das ruas sua moradia diária, mas também aqueles

que ficam nessa condição circunstancialmente devido ao trabalho, ao sofrimento mental ou

estão alocados em algum albergue público.

Com relação à organização coletiva desses catadores de papel, a Pastoral de Rua

desempenhou uma importante função na organização coletiva desse grupo que irá culminar

com a criação da ASMARE (Associação dos Catadores de Materiais Recicláveis de Belo

Horizonte). A ASMARE se constitui ainda hoje como uma experiência bem-sucedida de uma

economia solidária, fazendo com que muitas famílias tenham nessa atividade da reciclagem a

sua subsistência. A experiência lá vivida serviu de exemplo para a implantação de outras

organizações semelhantes em outros locais. Atualmente a Associação conta com cerca de 250

associados, pessoas que, de alguma forma, tiveram em sua trajetória individual a marca da

vida nas ruas.

Nesse mesmo período de fundação da ASMARE (1990/1992), segundo Andrade

(2002), a Pastoral continuava o seu trabalho organizativo junto aos moradores de rua, aquele

segundo grupo, mais caracterizado como pessoas mais marcadas pelas ruas, pelos vícios e

pela precariedade de vida. A Pastoral de Rua continuava promovendo encontros com os

mesmos diretamente nas ruas, onde as pessoas habitavam. Havia uma prática de conversas e

celebrações e uma pequena confraternização em que se tomava o chá junto aos moradores de

rua.

Evoluindo essa situação, visando melhor acolher aos moradores de rua e favorecer a

um processo organizativo dessa população, a Pastoral de Rua cria dois lugares de encontros, a

―Casa da Esperança‖ e a ―Casa da Acolhida‖. Nesses espaços eram realizadas atividades

religiosas, comunitárias e de reflexão de vida.

Foi nesta perspectiva que se colocou a intervenção da Pastoral de Rua, com a sua

proposta sócioeducativa, onde o morador de rua é visto como sujeito e o seu ritmo,

as suas expectativas e formas de organizar são respeitadas possibilitando o

surgimento de novas unidades de pertencimento, através de novas propostas de

agrupamentos, em condições de resgatar uma sociabilidade positiva e recuperar a

identidade fragmentada pela condição de ser um morador de rua. (ANDRADE,

2002, p. 70)

A partir desse trabalho com os moradores de rua foi-se acumulando um saber sobre

esse público e se construindo uma metodologia de trabalho. Além disso, passou-se a conhecer

melhor suas especificidades, seus dilemas e seus desejos. A partir de então se inicia um outro

76

processo do qual pode-se afirmar que o trabalho da Pastoral de Rua foi o motor, o impulso. A

população de rua passa a se organizar e lutar coletivamente por seus direitos e pela criação de

espaços que melhor pudessem atendê-los.

A partir das reuniões realizadas nesses dois espaços há o fortalecimento de um

coletivo de moradores de rua que passarão a se organizar e desencadear um movimento

reivindicativo. A forma encontrada de tornar possível o atendimento das demandas dessa

população organizado foi através da participação no Orçamento Participativo. E foi através

dessas mobilizações que a população de rua foi sendo atendida em suas necessidades quando

o poder público passou a atender essas demandas.

É necessário ressaltar também que houve, nesse período, uma maior abertura e

incentivo do poder público que buscou formar de melhor conhecer esse público e buscar

soluções para suas questões.

São frutos da participação dos moradores de rua no Orçamento Participativo:

- República Reviver (OP 1993)

- Centro de Saúde Carlos Chagas (OP 1996)

- Projeto Cidadania – Centro de Referência da População de Rua (OP 1995)

A proposta metodológica levantada pela Pastoral de Rua aponta que:

Qualquer proposta político-pedagógica que busque a reinserção deste segmento

social (população de rua) será ineficiente se não considerar os desejos, as aspirações,

o ritmo e as formas de se organizar dos moradores de rua. Por outro lado, a

construção destas alternativas, deste desejo da saída da rua, deve ser, também, um

processo coletivo, com várias mãos, envolvendo uma tomada de decisão do sujeito

―morador de rua‖ e de sua rede de apoio. (ANDRADE, 2002, p. 108)

Segundo Andrade (2002), em meados de 1992, não havia por parte da Prefeitura de

Belo Horizonte uma política de População de Rua e o assistencialismo era a prática usual da

Secretaria Municipal de Assistência Social do município. Belo Horizonte era uma das poucas

metrópoles brasileiras que não possuía uma albergue municipal e as relações entre a

administração municipal e a população de rua era bastante tensa firmada na prática dos

despejos e perseguições por parte de fiscais e agentes do controle urbano. Contudo, apesar

dessa hostilidade e do panorama desfavorável, foi criado em 1992 o Albergue Municipal, a

partir de uma parceria estabelecida entre a Administração Municipal e o Grupo Espírita

Consolador.

O albergue existe ainda hoje como mais um equipamento de atendimento à população

de rua e vinculado à Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social. Todas as noites o

albergue acolhe para pernoite cerca de 350 homens moradores de rua. Ainda hoje há uma

77

parceria entre o poder público e a ONG Consolador. Curiosamente, o Albergue Municipal

ficou conhecido como ―Tia Branca‖.

Segundo Freitas (2009), a ―Tia Branca‖, na verdade, é uma senhora chamada Delorme,

de orientação religiosa espírita, que começou o seu trabalho assistencial ainda nas ruas,

através da distribuição de sopa e roupas para pessoas que se encontravam morando nas ruas.

Seu trabalho é anterior à formação e constituição da Associação Grupo Espírita ―O

Consolador‖ fundado em 20 de Agosto de 1987. O Albergue Noturno Municipal foi fundado

em 25 de março de 1992, em um convênio da Prefeitura com ―O Consolador‖.

A mudança do cenário político na cidade ocorrida, em 1993, estabelece uma relação de

maior proximidade entre o poder público e movimentos da sociedade civil. Assume o governo

da cidade a ―Frente BH-Popular‖, liderada pelo Partido dos Trabalhadores, tendo como

prefeito o então Ministro do Desenvolvimento Social Patrus Ananias. A prefeitura municipal

então possibilita apoio financeiro, recursos humanos e de infra-estrutura para a

implementação de um programa de população de rua da cidade de Belo Horizonte. Servirá de

base para esse trabalho que se inicia a experiência acumulada pela Pastoral de Rua.

Neste contexto, a prática da abordagem do morador de rua no espaço mesmo onde

vive, ou seja, nas ruas, marquises e viadutos, entre outros, bastante comum entre os

agentes sociais da Pastoral de Rua, também é assumida pelo Programa da População

de Rua da Prefeitura de Belo Horizonte, quando os educadores sociais procuram

estabelecer vínculos com as pessoas que vivem nas ruas, resgatando as suas

trajetórias existenciais, conhecendo suas necessidades e criando junto com as

mesmas alternativas de enfrentamento aos problemas levantados. Este programa

inaugurava uma nova postura do poder público no relacionamento com estas

populações de rua de Belo Horizonte. (ANDRADE, 2002, p. 80)

Toda essa exposição da história organizativa da população de rua e da política pública

na cidade de Belo Horizonte para os moradores de rua tem como objetivo mostrar o papel de

protagonismo do morador de rua que participou ativamente da idealização e da construção do

programa.

Serve também para mostrar fatores positivos que a presença religiosa junto aos

moradores de rua pode ocasionar. Cria-se muitas vezes o hábito de uma análise simplista que

aponta a influência religiosa apenas como práticas caritativas, que acabam por reforçar o viver

na rua e a alienação. A experiência de Belo Horizonte, e mais especificamente da Pastoral de

Rua de Belo Horizonte, mostra que uma visão religiosa, mais libertária e consciente de

deveres e direitos pode ser um importante catalisador e um meio transformador de realidades.

Essa exposição serve também para mostrar a capacidade de pessoas com trajetória de

vida nas ruas de se organizarem para promover a construção de outra realidade. Quebra com a

78

noção de um público alienado e desprovido do seu saber. Mostra também a possibilidade de

experiências positivas e de engajamento por parte do poder público.

É necessário que se destaque e reconheça também o avanço em termos de políticas

públicas para a população de rua na cidade de Belo Horizonte, buscando traçar metodologias

de trabalho com moradores de rua e minimizar sua situação de invisibilidade e exclusão

social. A prefeitura de Belo Horizonte mantém um programa de ações voltadas para a

população de rua que procuram acompanhar socialmente essas pessoas e lhes dar a condição

de uma saída dessa situação. É um programa que tem sido tomado como experiência para

outras cidades brasileiras. Contudo, há ainda um longo caminho a ser percorrido para que se

resolva a situação da população de rua.

Conforme Villamarim (2009) a política de assistência social organiza as ações de

atendimento à população de rua em Belo Horizonte através dos seguintes serviços:

- Serviço de abordagem social nas ruas: o serviço atende pessoas nas ruas visando a

construção de alternativas a essa situação realizando encaminhamentos sociais à rede e

construção de laços afetivos atuando também na lógica da redução de danos. O corpo técnico

é formado por técnicos concursados e outros contratados por diferentes entidades parceiras.

- Centro de referência da população de rua: busca ser um espaço de referência para o morador

de rua onde o mesmo pode fazer sua higiene, guardar seus pertences, lavar roupas, participar

de oficinas socioeducativas fazendo uma reflexão sobre sua vida e a construção de projetos de

superação dessa situação. Funciona em sistema de parceria com a Pastoral de Rua e a

Providência Nossa Senhora da Conceição. No próximo tópico o centro de referência será

descrito de maneira mais detalhada.

- República Reviver: É uma moradia temporária para homens sozinhos e que tenham

condições de inserção no mercado de trabalho. Os moradores da república contribuem na

manutenção e organização da casa. Funciona em sistema de parceria com a Providência Nossa

Senhora da Conceição.

- República Maria Maria: Consitui-se como uma moradia temporária para mulheres sozinhas.

Funciona em parceria com o Grupo Espírita O Consolador.

- Albergue Noturno Municipal: oferece pernoite, jantar, higienização e café da manhã para

homens adultos e realiza o acompanhamento social aos usuários que acessam o mesmo.

Funciona em parceria com o Grupo Espírita O Consolador.

79

- Abrigo São Paulo: Oferece pernoite, jantar, higienização e café da manhã. É gerenciado pela

Sociedade São Vicente de Paulo em parceria com a Secretaria Municipal Adjunta de

Assistência Social.

- Serviço de atenção sócio familiar: realiza o acompanhamento social de famílias com

trajetórias de rua inseridas no Programa Bolsa-Moradia da companhia urbanizadora de Belo

Horizonte.

Além dessas ações e serviços citados por Villamarim (2009) há também o Abrigo

Pompéia que acolhe famílias com trajetória de rua oferecendo espaço de moradia com vistas a

uma saída das ruas e a futura inserção no Programa Bolsa-Moradia.

Toda essa rede constitui um esforço por parte do poder público em oferecer

possibilidade de acesso e inserção social a pessoas com trajetória de vida nas ruas

favorecendo a uma possível superação dessa situação.

4.5 A religiosidade presente na vida de moradores de rua da cidade de Belo Horizonte

Minha prática profissional com pessoas em situação de rua percorre cerca de oito anos

de trabalho, em um serviço chamado Centro de Referência da População de Rua, que é ligado

à Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social e se insere dentro da Política para

população em situação de rua da Prefeitura de Belo Horizonte. É, portanto, um serviço

público que é mantido por recursos da Prefeitura Municipal, em sistema de parceria com uma

ONG. Como citado anteriormente, o Centro de Referência é uma conquista popular e por isso

guarda ainda hoje em sua metodologia a perspectiva da participação das pessoas nas

atividades desenvolvidas nesse serviço e na vida do mesmo como um todo.

O Centro de Referência da População de Rua tem como objetivo acolher e atender

pessoas adultas e famílias em situação de rua, procurando responder às demandas pontuais e

realizar encaminhamentos para a rede socioassistencial e de saúde da Prefeitura de Belo

Horizonte. Além disso, é um local que oferece a possibilidade do morador de rua se organizar

a partir da oferta de banheiros para higiene corporal; tanques para a lavagem de roupas e

armários individuais para guarda de roupas, documentos e outros pertences.

No dia-a-dia, tenho tido a oportunidade de ouvir a história das pessoas que chegam

pela primeira vez ao serviço e também o acompanhar socialmente outras pessoas que já são

80

estabelecidas na cidade e mais antigas na freqüência ao local, todos na condição de moradores

de rua.

Dentro dessa escuta ao longo dos anos, minha atenção foi se voltando para a forma e a

grande freqüência com que as pessoas em situação de rua expressam através, de suas falas, a

influência da religiosidade em suas vidas. Posso afirmar a partir dessa prática que muitas

pessoas que se encontram morando nas ruas têm suas histórias atravessadas por uma

religiosidade. O fato de estar na rua não faz com que esse fenômeno religioso desapareça.

A maioria das pessoas traz algo da influência religiosa em seus discursos e em suas

ações. Duas situações aparecem de uma forma mais determinante: alguns afirmam que estão

nas ruas, entre outros motivos, por terem se afastado de Deus. Relatam então experiências de

vivências religiosas e como, ao se afastarem destas, suas vidas foram se modificando e se

perdendo até chegar a essa situação. Já outras pessoas expressam a fé de que Deus é quem irá

tirá-las dessa situação de miséria. Nos seus relatos Deus aparece como uma força que os ajuda

no dia-a-dia e quem pode ajudá-los a se reerguerem. A religiosidade ora aparece como

alienação, ora aparece como força e possibilidade de superação, uma fonte de sentido.

Paralelamente a essa religiosidade latente, o ambiente do morador de rua da cidade de

Belo Horizonte é marcado pela presença de grupos e instituições religiosas que procuram, de

diferentes maneiras, acompanhar e assistir a esse público. Algumas dessas instituições têm

longo tempo de trabalho com esse público e são inclusive parceiras na política pública da

cidade voltada para a população de rua.

A forma de organização da Política de Assistência Social em torno de

conveniamento traz, ainda, atravessamentos de ideologias ligadas à religião

dependendo da entidade parceira. (...) os serviços executados em parceria com a

Pastoral de Rua, por exemplo, acabam apostando mais na coletividade pela vivência

mística em torno de um Cristo que se desdobra em todos os integrantes desta

coletividade. Os serviços conveniados com O Consolador, ainda mantêm uma

ligação com a caridade pelo princípio espírita de que ―fora da caridade não há

salvação‖. Fluxos que atravessam. Mas, embora possamos encontrar uma ligação

com a benesse que impregna a Assistência Social até hoje, esse princípio tem

garantido que muitas pessoas sobrevivam nas ruas por terem ao menos uma refeição

no dia distribuída em nome da caridade. (VILLAMARIM, 2009, p. 45)

É necessário que se saliente que, apesar dessas instituições religiosas serem parceiras

na política pública por meio de convênio com a Prefeitura de Belo Horizonte, a gestão desses

serviços e projetos faz-se de maneira imparcial e sem influência religiosa. Os funcionários,

apesar de contratados por essas entidades, seguem as orientações da Secretaria Municipal

Adjunta de Assistência Social. No Centro de Referência da População de Rua não é permitida

nenhuma expressão coletiva de qualquer religião como uma missa ou culto, entre outras.

81

É fato interessante, porém, que grande parte das vezes em que é dada a oportunidade

aos moradores de rua de falarem em público ou em alguma situação coletiva, trazem falas de

cunho religioso. No Centro de Referência da População de Rua há uma atividade chamada

―Quarta Cultural‖ na qual uma vez por mês as pessoas são chamadas a mostrarem habilidades

musicais, literárias e culturais de forma diversa. Tornou-se um fato interessante, em quase

todas as atividades realizadas, pessoas cantarem músicas e hinos de cunho religioso,

geralmente de orientação Evangélica ou Católica.

A presença desses grupos religiosos se torna mais um elemento reforçador,

possibilitando a presença da religiosidade e da ligação com Deus no dia-a-dia do morador de

rua. Dentre vários grupos pode-se destacar os de orientação católica, evangélica e espírita.

Dentre os católicos ainda é possível subdividir em grupos de uma orientação mais tradicional

e outros renovados, carismas mais caritativos e outros mais libertários. Um ponto a ser

levantado é que cada um desses grupos é movido por um ideal, tem uma visão política e

social do morador de rua e age segundo essa inspiração.

Um fato que chama a atenção, narrado pelos próprios moradores de rua, é que os

mesmos convivem e freqüentam diferentes espaços religiosos de forma simultânea. Assim, é

normal freqüentar um ambiente católico em um dia da semana, participar de um culto

evangélico em outro, em seguida, participar de uma reunião espírita. Não cabe fazer juízo de

valor sobre esse comportamento e é necessário que se avance no posicionamento do senso

comum, que acredita que essas pessoas são atraídas simplesmente pelo ganho secundário

dessas práticas religiosas, já que é comum que nesses espaços sejam oferecidos alimentos ou

roupas. Não se pode negar também o interesse no ganho secundário que se mostra uma

estratégia de sobrevivência, porém, é necessário questionar se o morador de rua não encontra

ou não vai buscar algo além do material.

Em determinada oportunidade, em uma tarde de domingo, tive a oportunidade de

comparecer em uma reunião da ―Comunidade Amigos da Rua‖ ligada à Pastoral de Rua. Ali

se encontravam cerca de 50 moradores de rua que participaram ativamente de uma

celebração. Após a leitura de um texto do evangelho, foi interessante notar que muitos

quiseram falar sobre a leitura e procuravam relacionar a mesma com suas vidas. Terminada a

celebração, todos foram para um salão onde houve um lanche e havia uma televisão na qual

quase todos foram assistir a um jogo de futebol. Pude ouvir alguém lamentar que depois

desses momentos chegaria à hora de ―subir‖ para o albergue. Entendi essa fala como um

lamento porque chegava então o momento de voltar para a rotina de ser um morador de rua.

82

Freitas (2009), ao desenvolver uma pesquisa com moradores de rua na cidade de Belo

Horizonte, acompanhou alguns moradores de rua naquilo que ele chamou de ―trajetórias

exemplares de sobrevivência‖. Ele se refere assim ao percurso que moradores de rua fazem

por algumas instituições religiosas nas quais, como já citado anteriormente, encontram, além

de material espiritual, materiais da esfera da necessidade. Segundo o autor, alguns espaços

dessa trama institucional religiosa são mais freqüentados por um contingente maior de

pessoas. O mesmo ressalta que não houve a intenção de mapear esta rede de instituições, mas

cita as seguintes: Fundamigo (Bairro Coração Eucarístico), Igreja Batista Príncipe da Paz

(Barro Preto), Casa Espírita André Luiz (Bairro Santa Efigênia) e a Igreja do Evangelho

Quadrangular (Bairro Floresta).

Escorel (2000) afirma que:

As entidades de ajuda aos moradores de rua não trabalham de maneira integrada e a

articulação entre elas (a ―rede‖) é realizada pela própria população de rua, cujo

conhecimento das atividades oferecidas lhes permite construir um roteiro diário de

demandas, que incide tanto em sua territorialização quanto na sua distribuição de

tempo. As entidades podem funcionar como elementos catalisadores da formação de

vínculos, solidariedade e agregação da população de rua, tanto com as entidades

quanto entre os moradores. (Escorel, 2000, p. 153)

Tal número de ofertas de entidades e doações pode contribuir para que o morador de

rua possa se acomodar na condição de quem sempre está recebendo. As idéias que as

diferentes instituições religiosas têm sobre o morador de rua podem levá-las também a agir de

modo a reforçar essa situação de rua. Como afirmou Escorel (2000) acima, não há uma

interligação entre essas instituições; ela acaba sendo feita pelo próprio morador, não há um

trabalho comum, mas diferentes percepções e tentativas.

Cada uma dessas instituições traz em si uma contribuição religiosa e irá atuar de forma

determinada com o morador de rua. Irá também encarar esse fenômeno com seus olhos

religiosos. Se, para alguns, o morador de rua é fruto da exclusão e do capitalismo, para outros,

é uma questão espiritual. Essa forma de atuação revela a forma como a instituição internaliza

e se relaciona com a idéia de Deus.

O morador de rua é assistido por inúmeros grupos religiosos que ora abordam esses

moradores no local em que eles se encontram, ora os convidam a comparecer em um local

específico: a igreja ou a sede do grupo religioso. Prestam diferentes tipos de assistência, como

um lanche, um banho, um corte de cabelo ou barba e a doação de remédios ou peças de roupa.

Além disso, o morador é convidado a participar de um culto, uma oração ou um passe.

Inúmeras experiências desse tipo já me foram relatadas por moradores que freqüentam tais

83

instituições, às vezes, chamadas pelos mesmos de doação. Alguns se sentem incomodados,

porém, a grande maioria afirma gostar desse tipo de atividade e recebe bem as palavras que

ouve.

O questionamento que se pode levantar é qual o significado dessa religiosidade, do

sentido de Deus para essas pessoas que se encontram na situação de morar nas ruas. Será pura

ilusão e uma forma de mascarar a realidade doída? Será uma alienação de seus direitos e um

conformismo com a situação de rua? Será que podemos entender também essa religiosidade

como uma fonte de energia psíquica vital para a continuidade da sobrevivência dessas

pessoas? Será que a religiosidade pode ser uma alavanca nos projetos futuros dessas pessoas

incentivando-as a sair dessa situação de miséria social? A religiosidade se liga a uma busca de

sentido?

Como ilustração do que foi afirmado anteriormente, gostaria de descrever algumas

situações que pude presenciar e que envolvem o sentimento religioso e a ressonância interna

que esse sentimento traz para as pessoas. É importante notar que os efeitos psicológicos da

vivência religiosa são presentes e, muitas vezes, determinantes das condutas e das mudanças

das pessoas.

Caso I

Um caso que achei muito relevante foi de uma jovem mulher de aproximadamente 25

anos. Visando preservar sua identidade não citarei seu nome verdadeiro. Júlia, como iremos

chamar a moradora de rua, afirmava que a família era acolhedora e preocupava-se com sua

situação. Ela, porém, disse que não se sentia bem ao lado dos mesmos, algo a sufocava e,

assim, fez a opção de romper os laços e vir para as ruas.

Júlia sempre relatava, nos momentos de maior angústia, a sua tristeza por não dar

conta de organizar sua vida. Dizia que teve um filho e sentia-se culpada por saber que o

mesmo estava crescendo, sem que sequer soubesse onde o mesmo estava. Ele era criado pela

avó paterna e o pai do menino estava preso.

Nas ruas Júlia era conhecida como uma mulher ―muito louca‖. Relatos apontavam que

na noite das ruas ela se transformava, tornando-se agressiva e também muito esperta. Era

usuária de droga e, para conseguir o produto, se submetia a programas ou a relações sexuais

em troca da mesma. Quando usava a droga em uma quantidade excessiva era comum que

Júlia ficasse ausente do Centro de Referência por três dias ou mais. Quando retornava sempre

84

estava muito suja, cabelos desgrenhados, às vezes descalça e sempre vinha muito

decepcionada. Pedia para conversarmos e então chorava muito.

Em todas as nossas conversas procurava auxiliá-la na busca de algo que lhe desse

algum sentido e algum ânimo para buscar saída de sua situação. A mesma sempre se negava a

qualquer proposta de internação em uma casa para recuperação de usuários de drogas. Certa

vez aceitou meu convite para que viesse pela manhã participar de alguma oficina. Veio apenas

um dia e não voltou mais.

Até mesmo de sua saúde Júlia estava descuidada. A mesma possuía uma ferida na

perna que ela mesma não sabia dizer de onde viera. A princípio parecia que havia machucado

ao bater a perna em algum lugar, o que provocou um corte, porém, essa ferida ia se abrindo

cada vez mais, sem que ela se cuidasse.

Certo dia quando me dirigia para o trabalho, Júlia passou por mim em uma rua da

cidade a passos apressados e parecia chorar. Estava visivelmente drogada e não me

reconheceu. Alguns metros à frente dois policiais corriam na mesma direção em que Júlia

havia se dirigido. Ela já havia tido uma questão com a justiça quando foi pega fazendo uso de

drogas. Não fiquei sabendo o que aconteceu nessa situação, mas o fato é que Júlia

desapareceu.

Passaram aproximadamente três meses, sem que Júlia reaparecesse. Em um

determinado dia a mesma aparece de repente, mas não se assemelhava com a mesma pessoa

que freqüentou o serviço. Júlia estava com roupas limpas, um semblante melhor; havia

engordado um pouco e trazia consigo uma criança.

Sentamos para conversar e ela relatou então que havia voltado para a casa de um dos

seus irmãos e que estava muito bem. Disse que aquela criança era sua sobrinha que tinha

vindo para fazê-la companhia. Júlia relatou então que, certo dia, quando ainda estava nas ruas,

teve um princípio de overdose e acordou no hospital. Disse que não se lembrava do

acontecido, mas, nas palavras dos médicos, ela quase havia morrido. Júlia relata então que ao

sair do Hospital sentia fome e, em suas palavras, passou a conversar com Deus.

Júlia disse que naquele momento falou para Deus que não aceitava mais aquela

situação e que fazia um compromisso com Deus para que o mesmo pudesse tirá-la da vida nas

ruas e do uso das drogas.

Em seguida, Júlia disse que pensou em ir para casa de algum dos irmãos e, mesmo

sem ter R$ 2,30 para pagar a passagem, ela pegou o ônibus e pediu ao cobrador que

entendesse sua situação e a levasse até o bairro para onde aquele ônibus iria. Desde então,

85

aproximadamente três meses, Júlia estava morando nessa casa. Disse que estava freqüentando

uma igreja evangélica e que as coisas estavam melhorando. Passou a trabalhar vendendo água

mineral e doces caseiros feitos por ela. Naquele momento estava indo ao Fórum para

regularizar sua situação, havia tirado documentos e estava procurando forças para ver seu

filho.

Em outras oportunidades Júlia voltou ao Centro de Referência da População de Rua e

sempre trazia informações de suas mudanças; parecia ficar satisfeita ao vir dar boas notícias.

Certo dia, disse que havia procurado o filho, mas este não a reconheceu. Depois de certo

tempo, Júlia sumiu e não mais voltou ao Centro de Referência.

O caso exposto acima serve para ilustrar como o sentimento religioso, o sentimento de

uma ligação com Deus pode exercer uma influência de mudança na vida de uma pessoa.

Superar a situação de rua só se tornou possível pela presença de um sentimento de um Deus

que acolhe e devolve a vida.

Talvez uma análise mais aprofundada aponte que Deus exerce nessa pessoa também

um sintoma, mas é fato inegável que, ainda que seja essa ligação sintomática, houve uma

mudança radical de uma vida subumana para uma vida mais digna.

Caso II

Pablo, de 29 anos, relata uma história de vida marcada por uma prática religiosa.

Relatou com entusiasmo, sua infância e adolescência que foram vividas em bairro de Belo

Horizonte. Falou dos tempos em que morava com a família e freqüentava a igreja. O mesmo

me concedeu uma entrevista de caráter exploratório em que eu buscava compreender o

sentido atribuído a Deus por pessoas que estão nas ruas.

Ao longo da entrevista Pablo, vai narrando como foi conhecendo outras realidades e

foi aos poucos se afastando da prática religiosa. Ele disse que ministrava catequese sobre a

bíblia e que ainda hoje é capaz de falar muitas coisas sobre a palavra de Deus. No decorrer da

entrevista Pablo vai atribuindo seu momento atual, o morar nas ruas, ao afastamento da Igreja

e da palavra de Deus. Claramente ele aponta que, por conhecer a Deus através de uma prática

religiosa e por ter se afastado da mesma, sua vida foi se desarticulando até ele romper os laços

familiares, deixar também seu filho com uma ex-companheira e passar a viver nas ruas.

―Eu era evangélico... quer dizer, era não... eu já fui agora eu sou desviado, quer

dizer, desviado não... eu sou afastado porque desviado é o demônio... Porque Deus é

vida sabe e se Deus quizer ele vai tocar no meu coração. Eu quero ter forças pra

86

voltar pra Deus ainda sabe. Eu faço minhas orações todos os dias... Quem não

conhece a palavra de Deus sofre, agora, quem conhece e não segue sofre mais ainda.

Você sabe que ta errado e ta fazendo... são sete demônios que entram dentro de

você. Eu rastejei, eu sofri, fui preso... Deus me fez sofrer...‖

Pode-se notar que no discurso do entrevistado Deus aparece como um pai castigador

que inflige o sofrimento àquele que dele se afastou. Apesar de durante a entrevista ele apontar

fatores psicológicos e sociais que o levaram à vida nas ruas, o principal motivo apontado pelo

mesmo para estar nessa situação foi o afastamento religioso, o afastamento de Deus.

Sair das ruas para Pablo é encarado com um retorno a Deus. Uma análise possível do

discurso de Pablo é que há, por sua parte, uma alienação da condição de escolha inerente ao

ser humano, pois o entrevistado coloca sua mudança como dependente da vontade de Deus, e

não de sua própria vontade. É de se supor que o discurso político, uma intervenção da saúde,

ou mesmo uma intervenção psicológica, será ineficiente, se não estiver aberta a escuta dessa

questão religiosa que perpassa o discurso e a existência de Pablo.

Esses dois casos são citados apenas como exemplo de outros que podem ser narrados.

Além desses, a descrição das entidades que atendem à população de rua e o próprio sistema de

parceria entre poder público e ONGs de caráter religioso, servem para atestar a afirmação de

que a vida e a subjetividade de moradores de rua da cidade de Belo Horizonte são permeadas

pela religiosidade. Resta investigarmos qual a contribuição que vivências religiosas podem

trazer a pessoas em situação de rua.

87

5 METODOLOGIA

A metodologia constitui-se parte importante da pesquisa. Ela serve como um caminho

que orienta o pesquisador na busca pelos resultados das questões levantadas, dando também

fundamentação e validação ao saber que se constrói.

Segundo Becker (1999), a metodologia é o estudo dos métodos de se fazer pesquisa,

de se analisar o que pode ser descoberto através dessa metodologia e também o grau de

confiabilidade desse conhecimento que será adquirido.

Para Moreira (2002), a palavra método pode ser concebida com diferentes sentidos.

Ela pode indicar uma doutrina, um conjunto fechado e invariável, mas no sentido que mais se

aproxima daquilo que se busca em um trabalho científico método indica procedimento de

investigação organizado, repetível e autocorrigível, que garante a obtenção de resultados

válidos.

5.1 Objetivos

Objetivo Geral

- Compreender a influência da religiosidade como uma via de subjetivação de moradores de

rua da cidade de Belo Horizonte.

Objetivos Específicos

- Analisar a presença de elementos da religiosidade e da espiritualidade, especificamente em

homens que se encontram na situação de moradores de rua na cidade de Belo Horizonte há,

pelo menos, dois anos e que freqüentam o Centro de Referência da População de Rua.

88

- Analisar se o sentido construído pelo morador de rua com relação à religiosidade pode

contribuir para a sua saída dessa condição social; pode ser um suporte para que o mesmo viva

de forma menos degradante nas ruas ou atua de maneira alienante, reforçando esse lugar de

exclusão.

- Identificar as formas de manifestação e vivência da religiosidade nos moradores de rua da

cidade de Belo Horizonte.

- Analisar também outros elementos da vida nas ruas que são relevantes nos processos de

subjetivação dessas pessoas.

5.2 Justificativa

Com relação a validade e a relevância dos temas aqui propostos, pode-se afirmar que

tanto a religiosidade quanto o fenômeno social denominado população de rua são temas atuais

e de grande relevância social. Acredita-se que a Psicologia tem a contribuir, a partir de suas

construções teóricas e das práticas profissionais que muitos psicólogos têm desenvolvido,

para o estudo desses temas, gerando contribuições para a sociedade.

Historicamente, é comprovado que em grupos sociais menos favorecidos e

marginalizados, a religiosidade aparece como um elemento importante de sua subjetividade.

Se analisarmos a história do Brasil, veremos que sempre existiram práticas religiosas que

foram grandemente difundidas entre grupos excluídos e que construíram formas específicas

de se relacionarem com a entidade superior.

Dentro do contexto atual, a população de rua é também um fenômeno social de

relevante importância e que tem ganhado atenção no cenário político das grandes cidades.

Caracteristicamente são pessoas que vivem em um nível acentuado de pobreza e privações.

Frente a todo esse panorama, o presente projeto de estudo é uma tentativa de analisar a

influência que a religiosidade tem em pessoas do sexo masculino que se encontram na

condição de moradores de rua, na cidade de Belo Horizonte, há, pelo menos dois anos. Para

efeito de estudo serão entrevistadas pessoas que se enquadram nessas condições e que

freqüentam o Centro de Referência da População de Rua.

89

Analisar as vias de subjetivação constituídas a partir da religiosidade desse público

torna-se uma intervenção social que pode levantar pontos de reflexão e possíveis mudanças

nas pessoas e nas instituições.

5.3 Procedimentos Metodológicos

É parte importante e que cabe ao pesquisador encontrar, dentro das possibilidades de

métodos que são oferecidos, aquele que melhor se adapta ao trabalho de pesquisa que se quer

desenvolver. É necessário então adequar os objetivos e o objeto de pesquisa a uma

metodologia que favoreça a coleta de dados, mensuração de resultados, análise de variáveis,

entre outras. No caso de pesquisas envolvendo os seres humanos, deve-se ainda levar em

conta as especificidades desse objeto de pesquisa, ressaltando que todos os procedimentos

devem ser pautados pela ética e visarem a uma interação positiva entre pesquisador e

entrevistado.

Levando-se em conta os objetivos e também o público-alvo a ser entrevistado, ou seja,

pessoas que se encontram na condição de moradores de rua, é necessário buscar o método de

pesquisa que melhor se ajusta à proposta. Pode-se afirmar que aquele que vive nas ruas possui

um saber sobre suas vivências, cabendo ao pesquisador ser um coletor dessas vivências.

A metodologia que melhor se adéqua aos objetivos desta pesquisa é de uma

abordagem qualitativa de pesquisa, que se difere da quantitativa por dar fundamental

importância à fala dos sujeitos entrevistados em oposição aos números e às respostas

fechadas, tão características do método quantitativo.

A pesquisa qualitativa, na verdade, não traz respostas generalizadas de um contexto ou

de uma realidade, mas sim, na verdade ela traz subsídios para intervenções futuras e possíveis

reutilizações dos eixos metodológicos de coleta e análise dos dados, gerando, assim, novas

descobertas. De acordo com Becker (1999), o pesquisador que adota um método qualitativo

deve produzir, de uma forma artesanal, sua forma de fazer ciência. Segundo o autor, o

pesquisador poderá assim desenvolver idéias mais relevantes para os fenômenos, ao invés de

colocar suas observações numa camisa de força de idéias já desenvolvidas.

90

5.3.1 Campo de Pesquisa

Como campo de pesquisa escolhido para a busca das pessoas a serem entrevistadas

bem como o local onde realizar as mesmas, foi escolhido o Centro de Referência da

População de Rua. Como descrito anteriormente, esse é um serviço de reconhecida

importância dentro da política pública para o morador de rua em Belo Horizonte. Além disso,

é um serviço público que não tem influência de qualquer denominação religiosa, o que, a

nosso ver, garante maior imparcialidade.

5.3.2 Pesquisas preliminares

Ao longo da realização da pesquisa, procurou-se, a partir de uma pesquisa

exploratória, verificar a validade do tema proposto, bem como identificar diferentes pontos de

vistas sobre a religiosidade e a população de rua.

Foram realizadas cinco entrevistas exploratórias, com pessoas que estavam em

situação de rua, abordando aspectos mais específicos da religiosidade. Todos afirmaram uma

crença em Deus e alguma forma de ligação com alguma denominação religiosa. Tal fato

mostrou mais uma vez a grande incidência de elementos da religiosidade no discurso de

pessoas em situação de rua.

Tive também a oportunidade de visitar, em uma tarde de domingo, uma reunião

realizada na Pastoral de Rua, na qual cerca de 50 pessoas ouviram um trecho de um texto

bíblico e, em seguida, falavam com grande interesse sobre o mesmo.

Foram realizadas também entrevistas com pessoas que têm ou tiveram um trabalho

com moradores de rua, orientados por uma visão religiosa. Assim, foram entrevistados a Irmã

Cristina Bovi e o então Bispo auxiliar de Belo Horizonte, Dom Aloisio Vitral. Conversei

também com o Prof. Pierre Sanchis, que falou um pouco sobre a religiosidade na atualidade e,

especificamente, em grupos minoritários.

Todos esses passos anteriores vieram a corroborar a primeira noção das vivências de

pessoas em situação de rua e aspectos da religiosidade.

91

5.3.3 Entrevistas

O método de coleta dos dados que se mostra mais apropriado para essa pesquisa é do

questionário semi-estruturado. Essa ferramenta serve como um orientador na pesquisa a ser

realizada por apresentar eixos principais de questionamentos, mas permite ao pesquisador

maior liberdade, podendo transitar ou se aprofundar em outros eixos que se façam presentes

no decorrer do processo de entrevista.

Pretende-se abordar de maneira específica a questão da religiosidade, mas interessa

saber também sobre como o entrevistado articula elementos de suas vivências nas ruas, como

apreende sua própria história. A religiosidade pode aparecer nesse percurso. Assim, as

entrevistas serão iniciadas pedindo a cada participante que conte um pouco de sua história.

Segundo Machado (2002), a entrevista é um instrumento tradicionalmente utilizado na

coleta de dados nas ciências sociais. A autora procura relatar o surgimento de três grandes

enfoques na forma de se fazer entrevista. O enfoque que mais se aproxima dos objetivos aqui

buscados é aquele em que o entrevistador busca apreender a partir das representações feitas

pelos sujeitos os temas pertinentes a uma problemática. O entrevistador se coloca numa

posição compreensiva, não se importando tanto com a padronização, mas com significado do

tema para o entrevistado.

Como toda pesquisa será orientada dentro do método fenomenológico, objetiva-se,

através das perguntas, fazer com que o entrevistado expresse suas vivências e busque relatar

seus sentimentos no momento desse vivido. Não interessa o porquê, mas o como; o

experimentado para a pessoa naquela situação.

As respostas dos entrevistados, falam de um momento de suas vidas, um recorte de

suas histórias. Os discursos são construídos a partir de um contexto histórico dentro do qual a

pessoa se situa.

5.3.4 Definição dos sujeitos de pesquisa

Com relação à definição dos sujeitos de pesquisa, das pessoas a serem entrevistadas,

alguns critérios foram levados em conta. Na pesquisa fenomenológica a escolha dos sujeitos,

92

os colaboradores da pesquisa, é direcionada pelo interesse do pesquisador em acessar

determinada vivência. Assim, os colaboradores são procurados por apresentarem

características que facilitem o acesso ao tema pesquisado.

Para Gomes (2001), a intencionalidade da amostra reflete a lógica da pesquisa

fenomenológica que se articula sobre a tensão entre universalidades e singularidades.

O primeiro desses critérios é que foi feito um recorte dentro do universo de pessoas

que compõem a população de rua, optando por entrevistar apenas homens. Isso se deveu ao

fato de todas as pesquisas apontarem um grande predomínio de homens dentre esse público.

Além disso, a situação da mulher nas ruas traz outras especificidades que não se pretende

abordar nessa pesquisa.

O último censo realizado em Belo Horizonte mostra que das 1.239 pessoas

entrevistadas e que se encontravam morando nas ruas, 79,66% eram homens maiores de 18

anos.

Chama a atenção o ritmo de crescimento do número de adultos homens em situação

de rua, que, no período, atinge a taxa média de 4,8% ao ano. Por outro lado, ocorreu

uma substancial redução, em termos tanto relativos como absolutos no número de

mulheres e, paralelamente, no número de menores de 18 anos, acompanhados por

um adulto, respectivamente, menos 2,76% ao ano e menos 13,32% ao ano.‖

(SEGUNDO CENSO DA POPULAÇÃO DE RUA E ANÁLISE QUALITATIVA

DA SITUAÇÃO DESSA POPULAÇÃO EM BELO HORIZONTE, p. 43, 44)

Outro fator que se fez importante dentro da escolha dos entrevistados foi levar em

conta a faixa etária dentro da qual se insere a pessoa. É fato comprovado que pessoas de

diferentes faixas etárias possuem diferentes aspirações e visões de mundo. Frente a uma

mesma experiência é possível afirmar que haverá diferentes significações dependendo da

faixa etária na qual se insere a pessoa.

Com relação à vida nas ruas esse fato não é diferente. A prática de trabalho no Centro

de Referência da População de Rua tem demonstrado que a faixa etária aponta diferentes

maneiras de encarar e significar a situação de rua; diferentes vínculos, diferentes maneiras de

sobrevivência e expectativas.

No público compreendido entre 18 e 30 anos, percebe-se maior desresponsabilização

com o fato de se viver nas ruas. Esse público geralmente sente o viver nas ruas como algo

ligado à liberdade. Nota-se que esse é o público mais envolvido com o uso de drogas e

pequenos delitos.

O público compreendido entre 30 e 50 anos, aproximadamente, mostra pessoas que

trazem um maior grau de angústia com a condição de rua e uma busca mais intensa pela

93

inserção no mercado de trabalho. A idade é sentida como certo peso e há uma obrigatoriedade

em se fazer algo para sair dessa situação.

A partir dos 50 anos, há certa alienação e acomodação à situação de rua. Esse público

é aquele que geralmente traz maiores demandas por intervenções do poder público no sentido

de que se oferte uma saída protegida. Faz-se presente também, de forma muito intensa, um

sentimento de angústia trazido pelo questionamento da própria vida e do desejo de mudança

da situação social, sem, contudo, haver possibilidades mais reais.

Cabe ressaltar que essas são observações que a prática com tal público tem revelado,

contudo, não se pode apagar a singularidade de cada pessoa que, independente da faixa etária

na qual está inserida, imprime sempre algo de singular em sua condição e em suas aspirações.

Amatuzzi (2001) caminha em um mesmo sentido, ao afirmar que é possível se dividir

a vida em etapas. Essas etapas se fazem presentes de acordo com os principais desafios que se

colocam como mais característicos de cada idade, se manifestam de forma mais premente em

cada idade. O autor propõe então que o desenvolvimento religioso se faz também nesse

mesmo aspecto de um caminho evolutivo do eu. Passa-se de uma menor idade para uma

maior idade, assim como se passa de um desenvolvimento religioso menos elaborado para

outro mais elaborado e autêntico. Isso é o esperado.

Como maneira de focar um perfil de faixa etária, optamos por entrevistar homens que

estão na faixa etária dos 30 aos 50 anos, aproximadamente. Tal fato se faz relevante porque

essa é uma faixa etária que tem crescido nas ruas. Além disso, acreditamos que pessoas nessa

faixa etária podem ter maior facilidade de expressar suas vivências de maneira mais rica.

Assim, o recorte do público e a escolha das pessoas entrevistadas se fizeram de maneira

intencional, porém, com relação à religiosidade não foram procuradas pessoas que se

declararam religiosas, pois o intuito é de que esse tema aparecesse de forma aleatória, caso

fosse uma vivência importante para a pessoa.

Foram escolhidas também pessoas que estivessem em Belo Horizonte há pelo menos

seis meses e em situação de rua há, no mínimo, dois anos. A questão do tempo em Belo

Horizonte seguia uma portaria que na época considerava morador da cidade apenas pessoas

que estavam residindo aqui há mais de seis meses. Um tempo inferior a esse caracterizava a

situação de migrante.

Com relação a buscar pessoas que estavam nas ruas há pelo menos dois anos foi por

acreditar que é um tempo relevante para que o entrevistado pudesse falar com maior

propriedade de uma vida nas ruas.

94

5.3.5 Análise das entrevistas

Podemos afirmar que as análises das entrevistas tiveram início no próprio ato da

entrevista, quando o pesquisador procurou manter-se atento a formas de expressão dos

entrevistados que apontassem para conteúdos vivenciais.

Após a realização das entrevistas procurou-se transcrever as mesmas de maneira

literal, preservando inclusive a linguagem dos entrevistados. Em seguida, buscamos

identificar as vivências contidas nos relatos e elaborar uma síntese dos mesmos. Essa síntese

foi submetida a cada entrevistado.

O método de análise que foi utilizado nessa pesquisa é o proposto por Forghieri

(1993), que propõe um método de análise calcado nos seguintes passos:

1) Após a realização da entrevista, fazer a transcrição da mesma como um todo. Fazer

então uma primeira leitura dessa transcrição buscando uma apreensão geral do que foi

colocado pelos entrevistados.

2) Realizar outra leitura, mais reflexiva, buscando enunciar o significado de cada parte do

relato. Fazer uma articulação entre os significados, objetivando descrever a vivência

do entrevistado. Elaborar uma síntese.

3) Submeter essa síntese à apreciação do entrevistado.

4) Comparar as sínteses finais das entrevistas, buscando identificar elementos comuns

entre as mesmas.

5) Elaboração de um diálogo com a teoria que serve de base a respeito dos significados

encontrados.

95

6 A PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA NA PESQUISA

6.1 O Método Fenomenológico de Pesquisa

Outro aspecto de fundamental importância no processo da pesquisa é identificar qual a

proposta teórica que irá orientar o processo de coleta dos dados e também a análise destes. Se

o objeto aqui em questão é o homem, deve-se então adotar um método que ofereça uma visão

de homem e uma filosofia de base que servirá de fundamento na interpretação.

Ao procurar conhecer um fenômeno humano, formulando perguntas sobre o que é e

como se dá tal fenômeno, é necessário um método que permita construir esse tipo de

conhecimento. Isso quer dizer que o método de investigação a ser utilizado é, em

parte, definido pelo objeto e, principalmente, determinado pelo olhar do

investigador. (LUCKZINSKI, 2005, p. 60)

Ao analisar todas essas especificidades, o método que mais se aproxima dos objetivos

buscados e que servirá de base para a presente pesquisa é o método fenomenológico. Ele será

o orientador tanto do processo da coleta quanto da análise dos dados.

Segundo Feijoo (2000), ao adotar-se o método fenomenológico, visa alcançar o

fenômeno em sua totalidade para compreender a sua essência, ou seja, apreender aquilo sem o

qual o fenômeno passa a inexistir.

A Psicologia Fenomenológica visa a descrever com rigor, e não deduzir ou induzir,

mostrar e não demonstrar, explicitar as estruturas em que a experiência se verifica e

não expor a lógica da estrutura; por fim, deixar transparecer na descrição da

experiência suas estruturas e não deduzir o aparente por aquilo que não se mostra.

(FEIJOO, 2000, p. 33)

Para Forghieri (1993), nas pesquisas quantitativas, o rigor é buscado a partir do

controle das variáveis externas. Já na pesquisa fenomenológica o rigor é buscado através do

trabalho com o próprio pesquisador, com o seu olhar. Tal fato se faz presente devido ao

pressuposto da Psicologia fenomenológica de que o fenômeno se dá na interação do sujeito

com o mundo. A percepção é um ato da consciência intencional e é através dela que o homem

atribui significados aos fenômenos. Pode-se afirmar então que não há sujeito puro nem objeto

puro, ainda que seja feita uma separação entre sujeito e objeto concebida no mundo natural.

Estar imerso nessa atitude natural é considerar os acontecimentos como fatos os quais existem

independentemente da pessoa que os observa.

96

Partindo-se desse princípio é necessário que o pesquisador reconheça suas inclinações

pessoais, os pressupostos que influenciaram na escolha do tema, tornando-as visíveis e não as

negando. Tal esforço procurou ser feito pelo autor/pesquisador quando o mesmo, na

introdução, coloca os fatores que o motivaram e se fizeram questão para o presente estudo.

Há um fato complicador por ser o campo de pesquisa e os sujeitos entrevistados o

mesmo campo profissional do autor. Isso exige uma retirada desse lugar profissional para que

se coloque apenas no papel de pesquisador. É necessário que isso se torne claro também para

os entrevistados, levando-os a não ver nada além de uma entrevista de pesquisa.

Seguindo a orientação fenomenológica, não nos cabe negar essas especificidades, mas

reconhecê-las e trabalhar com as mesmas para não se tornarem um ponto problemático. O

movimento posterior que se faz necessário quando se adota o método fenomenológico de

pesquisa é que o pesquisador se retire de cena, deixando de lado seus pressupostos e suas

inclinações para tentar ver com os olhos daquele a quem entrevista.

Analisar a religiosidade torna-se também tarefa mais simples quando não há qualquer

elo de ligação com a mesma. Porém, a escolha por tal tema já pode revelar algo que faz

ligação com o interesse ou a subjetividade do pesquisador.

Pode-se negar que é um mito a neutralidade científica, porém, o método

fenomenológico exige que se busque a imparcialidade para que se busque identificar o

fenômeno como o mesmo se mostra. Não se deve negar as influências, mas ser capaz de se

abstrair das mesmas. Utilizar o método fenomenológico em uma pesquisa não se constitui

tarefa simples. Exige do pesquisador um domínio da técnica, além de um esforço pessoal para

se despir dos seus pré-conceitos a cerca do tema.

Moreira (2002) se pergunta quais os tipos de fenômenos são mais apropriados para a

pesquisa fenomenológica e responde:

Na verdade, o método fenomenológico enfoca fenômenos subjetivos na crença de

que verdades essenciais acerca da realidade são baseadas na experiência vivida. É

importante que a experiência tal como se apresenta, e não o que possamos pensar,

ler ou dizer acerca dela. O que interessa é a experiência vivida no mundo do dia-a-

dia da pessoa. (MOREIRA, 2002, p. 108)

Ao se adotar o método fenomenológico na pesquisa, o foco do pesquisador estará

sempre voltado para a experiência. Os métodos empíricos de pesquisa estarão preocupados

com o comportamento, com aquilo que se manifesta de maneira visível e quantificável e está

em um pólo objetivo. O método fenomenológico de pesquisa se voltará para a experiência dos

97

sujeitos. A experiência, ao contrário do comportamento, não é observável e não pode ser

quantificada por um observador externo. Ela só pode ser relatada por aquele que a vivenciou.

Vemos assim que, no caso do estudo da religiosidade de pessoas que vivem nas ruas, o

método fenomenológico se faz válido e um importante modo de coleta de dados, pois o que se

deseja é realmente centrar a atenção nos discursos dos sujeitos entrevistados, buscando os

relatos de suas vivências ligadas a uma religiosidade e como esta vivência influencia em seu

dia-a-dia. Objetiva-se identificar justamente o que significa para a pessoa ter a experiência de

uma religiosidade.

Segundo Moreira (2002), o método fenomenológico possui variantes, contudo, há

também semelhanças que se fazem presentes em todas essas variações. As semelhanças

ocorrem principalmente na estratégia da coleta dos dados e na apresentação dos resultados.

... observa-se que os resultados da pesquisa fenomenológica são invariavelmente

descritos a partir da orientação dos participantes, em vez de serem codificados em

linguagem científica ou teórica. Usam-se palavras reais dos participantes para ajudar

na descrição. O pesquisador identifica temas nos dados, a partir dos temas é

desenvolvida uma explicação estrutural. (MOREIRA, 2002, p. 118)

A Fenomenologia é, por excelência, um método filosófico que se transpõe para o

método empírico. O método fenomenológico aplicado à pesquisa tem como componentes

básicos as duas reduções (Fenomenológica e Eidética) e freqüentemente culmina com a

descoberta das essências relacionadas ao fenômeno estudado.

6.2 Processos de subjetivação em uma perspectiva fenomenológica existencial

Torna-se necessário entender e definir o que vem a ser os processos de subjetivação,

tema norteador das análises que serão realizadas.

Dentre as diversas teorias psicológicas, vê-se que normalmente compreende-se a

subjetividade como um resultado de processos internos e dissociada muitas vezes dos

processos e influências sociais. A temática dos processos de subjetivação é uma linha de

pesquisa ainda recente dentro da Psicologia e não específico dessa ciência, que procura

abordar e compreender a subjetividade enquanto um processo conectado à exterioridade, à

influência do meio social.

Segundo Neto (2006), em uma abordagem como essa, a idéia de interioridade

identitária cede lugar a uma idéia de processualidade em permanente transformação e à

98

pluralidade de sua constituição. É importante ressaltar que quando adota-se a idéia da

subjetividade como uma estrutura entende-se a mesma como individualizada, des-

historicizada e tomada como parâmetro definitivo da natureza humana.

Analisar o processo de subjetivação, tendo a subjetividade como processo, é ver os

fenômenos não como fatos isolados, mas como fatos sociais conectados a um contexto. No

tema aqui proposto, buscamos entender o fenômeno da população de rua e da religiosidade

como fatos sociais, buscando significar as vivências de pessoas que se encontram nessa

situação.

Como já citado acima, a temática dos processos de subjetivação não é específica de

uma única ciência ou de uma única corrente de pensamento. Cabe ao pesquisador interrogar

se a linha de pesquisa por ele adotada concebe a subjetividade como algo já construído e

fechado internamente, ou, ao contrário, se a mesma é algo que se constrói e se molda frente ao

vivido e frente a como esse vivido é singularizado por aquele que vive.

Adotou-se a Fenomenologia como método de análise e autores ligados ao movimento

existencialista, como Viktor Frankl, por acreditar que nesse eixo teórico encontra-se a

possibilidade de pensar a subjetivação como algo que se constrói. Em uma perspectiva

fenomenológico-existencial, o homem é visto como um ser bio-psico-sócio-noético. Ou seja,

fazem parte de sua constituição aspectos do mundo biológico, psicológico, noético ou

espiritual e também o mundo social.

O ser, a partir de sua intencionalidade, é que moldará sua síntese. Não cabe saber se

um desses quatro componentes irá sobrepor-se aos demais, mas ressalta-se que o mundo

social e das relações é um componente. Assim, o social nessa perspectiva de homem será

parte integrante de sua subjetivação.

O dinamismo psíquico2 dentro de uma proposta fenomenológica existencial se dá na

seguinte maneira: O ser é lançado em sua existência e, diferentemente de outros seres, o

humano pode pensar, refletir sobre ela. Dentro dessa existência muitas vezes o ser se depara

com uma questão ou problema; esses, podem ser da mais variada natureza. A questão seria

um acontecimento que se arrasta pela existência do sujeito, o paralisa. O problema pode ser

entendido como qualquer fato pontual. Frente a essa questão ou problema surge a angústia.

Tanto a questão quanto o problema representam angústia porque ameaçam a integridade do

2 Baseado em texto compilado pelo professor Hélcio José Gomes, a partir de bibliografia citada pelo mesmo, e

apresentado em aula do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Existencial da Fead/MG no dia 19 de

Maio de 2006.

99

sujeito, o seu vir-a-ser. Entende-se a angústia de duas formas: a ontológica, que é inerente ao

ser humano, e a angústia patológica, que já se constitui como uma forma adoecida do ser.

Frente à angústia surge um mecanismo de defesa, que seria a forma do sujeito atuar na

realidade. Esse mecanismo pode ser positivo ou negativo. Será positivo, sadio, quando o

mecanismo de defesa condizer com a realidade apresentada; será doente (do-ente) quando

extrapolar ou distorcer a realidade apresentada. É a partir dessa forma do sujeito responder à

angústia que poderemos compreender como ele estrutura o seu modo de ser, que pode ser

doente ou sadio.

Em resumo, a dinâmica do ser do ponto de vista existencial pode ser assim

compreendida: tem-se um fato que promove no ser uma ressonância. Essa ressonância passa a

ser compreendida dentro de uma estrutura, e o sujeito constrói então suas verdades.

Sendo o ser humano um projeto sempre em construção, é inconcebível pensar então

que sua subjetividade é dada a priori, ou seja, é imutável. A maior premissa do

existencialismo aponta que a existência precede a essência, ou seja, só pode se falar de algo

fechado, estático, após o fim da existência.

6.3 Algumas noções sobre a Fenomenologia

A origem do termo Fenomenologia vem do grego: phaíno, que significa brilhar,

aparecer, e logos, que significa o que é dito, argumento, razão, entre outros. Seria assim a

Fenomenologia a ciência que se ocupa do estudo dos fenômenos, daquilo que aparece.

Dar uma definição que esgote o conceito de Fenomenologia torna-se uma tarefa difícil

dada a complexidade da mesma. Além disso, está na base da própria Fenomenologia a idéia

de um não fechamento, de um pensamento sempre aberto e sempre em construção.

A evolução da análise, sem destruir as evidências anteriores, deve proporcionar uma

interpretação nova e rigorosa dos fenômenos. É por esse motivo que não

encontramos em Husserl um sistema acabado, fechado, pois a fenomenologia

pretende ser, por essência, a filosofia fundamental no dinamismo intencional de uma

consciência sempre aberta. (BUENO, 2003, p. 11).

Goto (2004) aponta Husserl como o criador do movimento fenomenológico, porém,

caracteriza a fundamental influência do pensamento de Brentano em Husserl e em toda a sua

100

obra. O processo de conhecimento que Brentano formulou e que atraiu Husserl mostrou-se

possível no conceito de intencionalidade.

Assim, para Brentano, a relação que estabelecemos com os objetos está na

consciência, ou seja, nos atos da consciência ou atos intencionais. Para analisarmos

a formação dos juízos, então, é preciso investigar o campo da consciência e os

modos de se relacionar com os objetos. Teríamos, a partir disso, as normas do

pensamento e a origem do conhecimento. (GOTO, 2004, p. 22)

Husserl era matemático e começou a freqüentar as aulas de Brentano, primeiramente,

sem grande interesse, porém, ao se aprofundar no pensamento de Brentano, ele passou a

identificar uma forma diferente de pensar o conhecimento e passou a se aprofundar na

Filosofia.

No final do século XIX, o momento é marcado por uma crise das ciências humanas e

por um descrédito na filosofia enquanto saber. A tendência era que apenas práticas

fundamentadas em bases empíricas ou psicológicas tivessem o estatuto de verdade. Em

resposta a essa situação, Husserl vai tentar fundamentar a Filosofia como uma ciência de

rigor, e, além disso, tentar fazer com que a Filosofia se tornasse à base para outras ciências. É

a constituição de Fenomenologia enquanto método do conhecimento.

Para Husserl, a Fenomenologia surge no processo de revisão de verdades tidas como

cientificamente inabaláveis, no momento em que as ciências, ao nível da

investigação, assumem um distanciamento do humano. Ele acreditava ter encontrado

o caminho para reumanização através da fenomenologia, buscando captar a essência

mesma das coisas, descrevendo a experiência tal como ela se processa, de modo a

que se atinja a realidade como ela é. Husserl propõe a ―volta às coisas mesmas‖,

preocupado com o fenômeno puro tal como se apresenta e se mostra à consciência.

Assim, o sentido do ser e do fenômeno é inseparável. (BUENO, 2003, p. 18).

Assim, a Fenomenologia pode ser encarada como uma forma de tentar se compreender

o homem, porém, desde sua origem, a Fenomenologia é uma tentativa de se explicar o homem

de uma forma diferente da qual vinha sendo explicado. Se outras práticas mostram-se como

um método interpretativo ou explicativo, na Fenomenologia tem-se um método

compreensivo, ou seja, sem explicações e respostas a priori, o que muda de forma radical o

conceito de homem e a forma de encará-lo em toda sua dimensão.

Pode-se entender a Fenomenologia como a ciência dos fenômenos. Por fenômeno

pode-se entender tudo o que intencionalmente está presente à consciência, sendo para esta

uma significação. Toda consciência e toda existência só se dá no mundo que é o conjunto das

significações.

101

O objetivo da Fenomenologia consistirá em analisar e descrever com o maior rigor

possível o universo dos fenômenos, esforçando-se, ao mesmo tempo, por apreender

as relações que os ligam entre si, o que equivale a ultrapassar a pura descrição e

captar o sentido originário. Para isso é necessário mostrar como os fenômenos

aparecem no campo da consciência, ou seja, é preciso reduzir a realidade à origem

de sua aparição. Realizar uma redução ou sucessivas reduções. Os fenômenos devem

ter uma origem e é para lá que devemos ir, isto é, ao encontro desses fenômenos, (...)

(GOTO, 2004, p.26)

É possível ter uma noção geral do método Fenomenológico a partir da descrição de

seus principais conceitos. Porém, tal descrição no presente trabalho constitui-se como algo

superficial, sendo os termos e sua aplicação algo de maior complexidade.

Para o leigo o termo coisa mesma pode ser entendido como algo exterior à onsciência

ou com uma existência própria. No âmbito da Fenomenologia, a coisa mesma é aquela

experiência que se tem em relação a algo, um objeto; um sentimento, entre outros, sem que

tenha havido qualquer reflexão. A coisa mesma é considerada por Husserl como o ponto de

partida de todo conhecimento. Quando propõe o retorno às coisas mesmas, ele propõe a volta

à experiência puramente como é vista pelo seu observador.

Por fenômeno pode-se entender tudo aquilo que se mostra, que aparece aos sentidos e

é captado pela consciência. É tudo que se tem acesso pela consciência, exista ou não, ou pelos

sentidos, presente ou não.

A consciência, outro termo básico do método fenomenológico, não é algo que existe

por si só, ela diz respeito ao conhecimento de algo. Percepção imediata, mais ou menos clara

pelo sujeito, daquilo que se passa nele ou fora dele. A consciência também pode pensar sobre

si o que é chamado de reflexibilidade da consciência.

A intencionalidade é o ato de atribuir sentido, é a característica definidora da

consciência na medida em que está voltada para um objeto. Há entre o Fenômeno, a

Consciência e a Intencionalidade uma relação definidora de sentido. Toda consciência é

consciência de algo. A intencionalidade é o ato de atribuir sentido ao fenômeno. Quanto mais

se conhece essa relação, mais se conhece a intencionalidade.

A redução fenomenológica ou epoché é um dos conceitos mais importantes do

método Fenomenológico. O termo tem origem grega e significa suspensão ou cessação. A

redução fenomenológica é o caminho para se chegar à coisa mesma, na essência do

fenômeno. Goto (2004), apoiado em Husserl, afirma que a epoché é um método radical e que

implica uma nova atitude.

Esta nova atitude é a epoché filosófica (fenomenológica), que consiste em nos

ausentarmos por completo dos julgamentos que temos acerca de qualquer filosofia

ou dógma. Só desta maneira que é possível chegarmos à reflexão clarificadora do

102

fundamento último e absoluto e deixar surgir o sentido de ser de algo. (GOTO,

2004, p. 27)

Consiste a Redução Fenomenológica em suspender ou cessar, colocar fora nossos

juízos ou pré-conceitos sobre o fenômeno, já que são esses que não nos permitem ver o

fenômeno por si, como ele se mostra.

Segundo Forghieri (1993), aplicar a redução seria promover uma mudança: de uma

atitude natural em que a percepção não se pergunta pelas coisas mas as aceita como tal para

uma atitude fenomenológica onde há um desvelar do fenômeno.

Seria a Redução Fenomenológica esse ato de suspender nossos juízos. Na clínica, por

exemplo, ela ocorre quando o Psicoterapeuta escuta o que seu cliente o traz sem que antecipe

qualquer explicação ou enquadre essa fala em alguma teoria explicativa e que, por si só,

esgote o sentido trazido pelo cliente. Ao se falar da redução é sempre necessário salientar que

o fenômeno ocorre dentro de uma estrutura, o mundo, e revela a ligação entre idéias e coisas.

O elo dessa ligação é a intencionalidade.

É como se o indivíduo adotasse uma espécie de abandono provisório do mundo para

melhor captá-lo. Husserl denominou esse processo de ―redução fenomenológica‖ ou

epoché. A preocupação básica da fenomenologia é a de contribuir para a superação

do senso comum (atitude natural), para que os indivíduos possam assumir uma

postura fundamentada e crítica (atitude fenomenológica). (BUENO, 2003, p. 19).

Segundo Bueno (2003) a redução eidética, outro conceito de fundamental

importância dentro da Fenomenologia, seria a fase de descrição dos dados significativos. A

consciência se dirige para a coisa, penetra-a e faz com que ela se manifeste em sua realidade.

Neutralizando aquilo que é inessencial, faz-se surgir o que é essencial. A redução Eidética

seria a análise descritiva das vivências. É a forma do sujeito colocar sua vivência

rigorosamente como ela acontece, como ele a experimenta.

Através da redução eidética se realiza a distinção entre fato (factum) e a essência

(eidos). A redução eidética só se faz possível através da intuição; essa pode ser uma intuição

sensível ou intelectual.

A redução eidética é o processo pelo qual praticamos sucessivas reduções, em busca

da essência, ou melhor, do sentido do ser. É através da redução eidética que Husserl

retoma a ontologia, no seu sentido mais originário. É preciso ―voltar às coisas

mesmas‖, voltar ao fenômeno puro, como ele se mostra à consciência. (GOTO,

2004, 31)

103

Dentro da história do movimento Fenomenológico, Heidegger é outro autor de

extrema relevância. Heidegger foi aluno de Husserl e, portanto, influenciado por seu

pensamento. Torna-se outro grande expoente da Fenomenologia e um dos criadores do

Existencialismo. Segundo Feijoo (2000), Heidegger se dedica ao estudo do ser diferentemente

de outros, como Platão e Aristóteles, por diferenciar ser e ente. Parte do ente para conhecer o

ser, já que este ente seria sua realidade determinada e concreta, o Sentido do ser.

Heidegger parte de Husserl e Brentano e propõe o método fenomenológico como o

modo pelo qual procederá à investigação do ser. Para Heidegger, o fenômeno se mostra de

forma direta, mas também se mostra como aquilo que não é. Deve-se partir daí para desvelar

o ser. Alguns aspectos apontados por Husserl são adotados por Heidegger, como as coisas em

si mesmas, o fenômeno, as estruturas da experiência, a transparência e a compreensão da

existência.

Segundo Goto (2004), Heidegger definiu a Fenomenologia do modo como a entendeu,

como um método fundamental da filosofia que chega ao mostrar das coisas mesmas. A

pergunta do ser será a primeira e a última coisa mesma.

A analítica da existência é a descrição das estruturas originárias do ser chegando ao

ente que se destaca sobre os outros. Como foi dito, a este ente em destaque,

Heidegger chamou de dasein, isto é, um ente que difere dos outros entes pela

qualidade de colocar o seu próprio ser em questão, de indagar sua própria existência.

O olhar do ser do dasein é diferente do olhar do ser das outras coisas. A existência é

dasein por ser compreensão de si mesma. Conseqüentemente, esta fenomenologia

constitui-se também como hermenêutica, no sentido de uma ontologia da

compreensão. Temos, então, a fenomenologia de Heidegger sendo uma ontologia,

concretizada na hermenêutica, ou seja, uma ontologia hermenêutica. (GOTO, 2004,

p. 46)

O termo Hermenêutica vem de Hermes, um deus da mitologia grega que não tinha

casa e, por isso, habitava a casa do outro. Segundo Feijoo (2000), a hermenêutica consistia em

uma proposta de Heidegger, ainda em seu curso de Teologia, quando buscava estabelecer uma

relação entre a escritura sagrada e o pensamento teológico. Denomina-se Hermenêutica

Filosófica ao modo pelo qual esse mesmo filósofo busca compreender o sentido da

humanidade que se perdeu na modernidade ao apostar todos os sentidos na razão. A

Hermenêutica se diferencia de teorias ou histórias porque busca a mensagem em si mesma

sem interpretações, possibilita-se o emergir do ser do ente, de forma que o ser mesmo se

revele.

O ser da pre-sença não pode ser entendido como uma estrutura fechada. A

investigação dos fenômenos se dará na forma de se mostrar do ente. Esse pode se mostrar

como não é (aparência), a partir de coisas que em si mesmas não se mostram, mas se

104

enunciam (manifestação) e pode também mostrar-se e esconder-se (entulhamento). Três

pressupostos do pensamento de Heidegger.

O ser-no-mundo é o modo fundamental do dasein, como estando no mundo e

radicalizando-se nessa relação. Esta relação não pode ser concebida como estar

dentro do mundo, mas sim como ser-em. O sem em é ―habitar‖, ―morar‖, ―estar

junto‖, o ―ser-junto‖ e o lidar com alguma coisa. Assim, o mundo assume outras

concepções, como: a totalidade dos entes que o dasein encontra no seu lidar; o ser

desta totalidade (região) diferente do dasein; lugar onde o dasein ―vive‖ como dasein

(privado, público ou próprio) ou como ―mundanidade‖ (característica do dasein, um

mundo existencial). (GOTO, 2004, p. 49)

Para Heidegger a pre-sença traz uma abertura ontológica. Frente às possibilidades

pode caminhar tanto para a autenticidade quanto para a inautenticidade. Quando ela tende

para a inautenticidade caminha para o fechamento. Na postura aberta ela caminha para a

autenticidade, o que significa, em última instância, em reconhecer-se como um ser para a

morte.

As formas de expressão do ser podem se dar na cotidianidade mediana, de forma

imprópria e impessoal, mas, num outro momento, pode-se dar de forma autêntica, própria e

singular.

6.4 Fenomenologia e Religião

A Fenomenologia, enquanto um método de análise do fenômeno, pode ser aplicada em

diferentes práticas, estudos e pesquisas. São vários os saberes que se apropriam do método

fenomenológico como uma ferramenta para a construção de um saber sobre seu objeto de

estudo.

Se considerar que o fenômeno é algo que se manifesta presente à consciência e pode

ser carregado de sentido, pode-se considerar então que a fé e a religiosidade são fenômenos.

Interessa saber então o que a presença desse fenômeno traz à existência daquele que o

vivencia. Essa é a questão central que procura responder a Fenomenologia da religião.

A Fenomenologia, além de estabelecer-se como metodologia, estendeu-se também

ao âmbito da religião na forma de uma ―ciência‖ autônoma, ou seja, como

Fenomenologia da Religião, contudo não só no aspecto de uma fenomenologia

religiosa. A teologia também se apropriou desse método para repensar o sagrado e a

experiência religiosa. Isso porque o método fenomenológico possibilita a redefinição

105

de alguns conceitos ou pressupostos da teologia na religião e na experiência

religiosa. (GOTO, 2004, p. 54)

Para Goto (2004), a fenomenologia da religião está inscrita num saber diferente da

teologia. A fenomenologia da religião se estabelece na ordem das ciências religiosas e a

teologia configura-se numa reflexão de caráter normativo como a filosofia. A fenomenologia

da religião configura-se como uma disciplina autônoma, com método particular de abordagem

ampla, enquanto a teologia mantém-se no campo da fé e da revelação cristã e utiliza-se da

fenomenologia filosófica para rever seus principais conceitos.

Assim, mudou-se a perspectiva do estudo clássico da religiosidade para o olhar

fenomenológico, que não se restringiu em descrever apenas a religião como

construto abstrato ou teórico, mas em descrever os possíveis fenômenos religiosos

da vivência humana. Com isso, a fenomenologia da religião voltou-se para diversas

correntes contemporâneas com influências filosóficas e religiosas. (GOTO, 2004, p.

58)

Holanda (2004) afirma que a possibilidade de se pensar a aplicação da Fenomenologia

no campo religioso parte primeiramente da obra de Gerardus Van der Leew, identificado

como o criador da Fenomenologia da Religião. A partir de então, passou-se a utilizar a

fenomenologia como uma ferramenta de interpretação dos conceitos religiosos, mas,

principalmente, procura-se auxiliar a compreensão do que implica e do que significa tais

conceitos ou vivências para aquele que o vivencia.

A Fenomenologia Religiosa supõe a pesquisa histórica dos fatos religiosos e

emprega o método comparativo na classificação dos mesmos, mas vai mais a fundo,

pois estuda o significado destes fenômenos como expressão do pensamento e do

sentimento do homem com respeito a Deus. No entanto, ela não supõe a existência

de Deus, como a teologia, nem emite um juízo de valor sobre os sistemas religiosos,

como a filosofia. Ela é uma ciência profundamente humana. (Waldomiro O.

PIAZZA, Introdução à Fenomenologia Religiosa, p. 21 – Citado por Goto, 2004, p.

59)

O exposto acima se torna de fundamental importância e torna possível um diálogo

entre a Psicologia e a Religião. Apoiado na teoria Fenomenológica, não interessa questionar a

veracidade dos fatos religiosos. O interesse recai sobre saber o que implica esse fenômeno na

vida daquele que o experimenta. Assim, muda-se o foco de uma verdade externa para uma

verdade interna analisando suas implicações.

Para Goto (2004), o fenômeno religioso na abordagem da fenomenologia religiosa

pode ser entendido como um fenômeno especificamente humano. Essa condição humana é

algo além daquilo que a vida que nos foi dada.

106

A religiosidade se tornou, então, uma condição humana desde o momento em que

humanidade entrou em contato com esta dimensão na busca de um sentido

supramundano ou sobrenatural para sua existência. Podemos afirmar que todos os

homens possuem essa manifestação do religioso, porém não afetando a todos da

mesma maneira e nem na mesma intensidade. Assim, o fenômeno religioso é um

autêntico fenômeno do homem, que se radica como condição humana, chegando

assim a ser uma das naturezas da humanidade. (GOTO, 2004, p. 60)

Segundo Holanda (2004), falar de religião é, fundamentalmente, falar de uma

experiência religiosa, pois a religião só existe porque há sujeitos que a manifestam de uma

forma intencional. A religião não se dá como uma manifestação pura, mas sim como a

manifestação de um sujeito que a acolhe e a manifesta. Manifestação religiosa é uma

experiência, um fenômeno.

Quando se fala de experiência não se pode querer reduzi-la à empiria sensível do

mundo físico, pois ela é um ato da consciência. Uma experiência religiosa é uma experiência

da subjetividade.

O homem busca a solução existencial de sua vida humana, finita e indeterminada,

através da transcendência. Somente a fenomenologia religiosa é capaz de entender esse apelo,

porque ela pode conhecer vivencialmente as realidades existenciais que configurar a vida

humana. Essas realidades são fenomenológicas porque são fenômenos carregados de

significados próprios.

Entretanto, a existência humana comporta muitas vivências, isto é, diferentes atos

intencionais, tais como: as vivências físicas, as sociais, as estéticas e muitas outras, e

é diante disso que podemos perguntar: E a experiência religiosa? E sua importância

na existência humana? Segundo a fenomenologia da religião, a experiência religiosa

é a vivência fundante do homem, porque é nela que realizamos nosso diálogo com o

mundo e, principalmente, com o significado último das coisas e do homem em

relação ao sagrado (...) a superação da experiência da finitude existencial só

acontece com a experiência religiosa, que faz o homem abrir-se para a infinitude de

seu ser, para algo que está além do humano ou supra-humano. Assim, a vivência

religiosa mantém-se intimamente ligada à instância religiosa, isto é, na possibilidade

do surgimento do sagrado. (GOTO, 2004, p. 61)

Para a teoria existencial existe um princípio interno que leva à expansão da vida. A

vida se desenvolve de uma forma espontânea e não caótica. Para a Filosofia esse princípio é

chamado de devir, o vir-a-ser. Esse devir se desenvolve a partir do desejo de ser. O ser não é

dado de maneira integrada, mas se desenvolve dentro de um processo, que é a própria

existência. Do ponto de vista da Psicologia Existencial esse princípio de expansão é o devir

existencial. Esse devir se dá através de um projeto de vida.

107

Toda existência humana é marcada pela consciência da morte, pela descontinuidade de

seus projetos, porém, é característica da existência um apelo constante à transcendência. A

experiência religiosa pode apontar para a possibilidade de buscar essa transcendência.

Para dar um salto existencial na finitude, na proposta vivencial de sair do círculo da

nadificação do ser, a vivência religiosa oferece-se como abertura do ser para a

infinitude, na compreensão de algo além do que é temporal e condicional. (...) A

fenomenologia da religião realiza, então, a descrição da religião considerando a

vivência religiosa como vivência fundamental no projeto de ser humano e é só a

partir dela que temos a abertura para o mundo, dando-lhe sentido e significado.

(GOTO, 2004, p. 62)

Ao se pensar sobre a religiosidade em classes menos favorecidas, como é o caso da

população de rua, cabe refletir se essa experiência aponta para o imediato, como forma de

lamentação ou de barganha com uma realidade superior, ou se serve como suporte e aponta

para a transcendência, para a superação de algo.

Frente a situações que remetem o ser humano a sua morte, não propriamente a morte

física, mas de qualquer função que o impossibilite o vir-a-ser, o homem tende a imprimir um

novo sentido à sua existência. Heidegger, citado por Yallon (1982), nos fala de duas maneiras

de existir no mundo: ―o estado de descuido do ser‖ e o ―estado de cuidado do ser‖. No estado

de ―descuido do ser‖, o ser humano se encontra em um nível inferior, o mundo das coisas. É

um modo de existir inautêntico em que a pessoa não se dá conta de sua responsabilidade com

sua própria vida e com o mundo. O estado de ―cuidado do ser‖ é marcado por uma contínua

consciência de ser. O ser não se maravilha com a beleza das coisas, mas sim com o fato de

elas existirem. É denominado de modo ontológico. Nesse estado a pessoa tem consciência de

si mesmo, capta suas responsabilidades e limites e enfrenta a liberdade absoluta. A religião

pode ser uma experiência que aponta para os dois níveis: o do cuidado e o do descuido, da

imanência e da transcendência.

O objetivo é encontrar o sentido que caracteriza os fenômenos religiosos, a fim de

descobrir a vivência religiosa que há em todos os seres humanos, e não afirmar uma

determinada fé. Esse é ponto fundamental em que a fenomenologia da religião se

diferencia da teologia, justamente por buscar o fundamento da vivência religiosa e

não afirmar uma doutrina ou princípios como a teologia faz. (GOTO, 2004, p. 63)

A partir dessas explicitações é que se propõem a buscar identificar a presença de uma

experiência ou vivência religiosa na vida de pessoas que moram nas ruas na cidade de Belo

Horizonte e procurar analisar qual o sentido da mesma para essa pessoa. Não é nossa

preocupação atestar a verdade da religião ou da existência de Deus, mas analisar como essa

experiência, essa transcendência, se faz presente na vida do morador de rua.

108

7 ENTREVISTAS

A partir desse momento serão apresentadas análises dos trechos mais relevantes das

entrevistas realizadas. Será citada a fala do entrevistado buscando, na seqüência, extrair os

significados e as vivências em suas falas. Ao final será feita uma síntese das vivências e, no

próximo capítulo, busca-se, analisar os pontos comuns na fala dos entrevistados e que se

apresentam como fatores importantes, como vias de subjetivação nos mesmos.

7.1 Análise de entrevista I: Marcelo

O primeiro entrevistado chama-se Marcelo. Relata que essa é a terceira vez que vem a

Belo Horizonte. Ao todo já viveu nas ruas da cidade por mais de dois anos; dessa última vez

em que retornou disse que está nesta situação há cerca de um ano e seis meses. É interessante

que dentro deste tempo ele ressalta que nos últimos seis meses está pernoitando no Albergue

Público Municipal ―Tia Branca‖, assim, ele mesmo faz certa distinção do tempo em que

ficava na rua dia e noite para o momento atual onde não pernoita diretamente nas ruas.

Como descrito na parte referente à teorização sobre o morador de rua, o conceito sobre

esse público tem certa variação e depende de diferentes situações, porém, no caso da política

pública para a população em situação de rua de Belo Horizonte, ainda que pernoite no

albergue público essa pessoa é considerada moradora de rua. Essas pessoas geralmente

durante o dia ficam nas ruas; em outros serviços públicos voltados à população de rua ou

ainda em instituições filantrópicas que se voltam para o atendimento a esse público, como

veremos no decorrer do relato de Marcelo.

Um fato que chama a atenção é que Marcelo, no início da entrevista, disse ter nascido

em 1959, e teria, então, 50 anos, porém, ao longo do relato, ele afirma ter 52 anos. Isso se

revela um fato recorrente entre pessoas que vivem nas ruas; uma noção flutuante do tempo.

Nem sempre há a precisão do tempo em que se está nas ruas, do tempo em que algo

aconteceu, ou mesmo do tempo cotidiano. Pode-se creditar isso à falta de uma rotina fixa que

delimite o dia-a-dia como, por exemplo, um trabalho formal que distingue claramente dias

úteis e finais de semana. Há também certa confusão trazida pelo uso de álcool ou outros

entorpecentes.

109

É de se supor também que há um mecanismo de defesa que age para que a pessoa não

se reconheça como morador de rua. Tive a oportunidade de conversar com uma pessoa que

estava nas ruas há cerca de cinco anos, porém, ela afirmava categoricamente que estava nessa

situação há dois anos.

Cabe ressaltar, porém, que não se fará julgamentos com relação a dados aparentemente

incorretos com relação ao tempo, pois interessa a vivência e os sentimentos a ela atribuídos

pelo entrevistado. Não se questiona assim a verdade desse sujeito.

Como a proposta dessa pesquisa é pensar sobre processos de subjetivação em pessoas

que vivem nas ruas de Belo Horizonte, utilizei-me de um questionário semi-estruturado,

propondo questões que levassem o entrevistado a pensar sobre alguns temas, buscando

expressar seu sentimento com relação ao vivido. Uma das questões trazia de forma direta o

tema da religiosidade, mas, sem que fosse perguntado, elementos que falam da religiosidade e

de Deus foram aparecendo naturalmente na fala desse entrevistado.

Ao iniciar, peço a Marcelo que relate um pouco sobre a sua história e o que o trouxe

para as ruas. Assim, essa foi a questão inicial: levar o entrevistado a falar um pouco sobre sua

história, deixando que ele eleja os momentos significativos e buscando também entender

como ocorreu sua vinda para as ruas.

Marcelo inicia a entrevista falando então de um período feliz onde possuía trabalho

fixo, moradia e uma esposa. A mesma estava grávida e o casal, segundo ele, muito feliz. Mas

devido a complicações no parto a esposa de Marcelo acabou falecendo juntamente com o

bebê. Esse fato, segundo ele, foi um divisor de águas em sua vida, pois, a partir daí, sua vida

foi-se modificando.

... isso eu tava trabalhando. Ai ligaram pra mim urgentemente que era pra vim pra

casa. Quando eu cheguei já tinha levado pro Hospital, chegou lá... faixa de umas

18:00 Horas da tarde, 18:00 horas... ai veio a notícia (entrevistado se engasga na

fala)... dá a notícia que ela tinha falecido né, ela mais a criança junto, morreu os

dois. Aí de lá... tudo o que eu construí... o império foi destruindo tudin. Destruiu

tudin. Eu não ligava mais pro serviço... (faz gesto batendo uma mão na outra como

quem expressa, “não to nem ai”) pra mim tanto faz né... ai acabou. Ai cai no

alcoolismo, e antes disso não bebia nada. Cai no alcoolismo... era de dia, de noite,

de manhã cedo, na hora de que desse. Vendi os dois carros que eu tinha. Acabei

com tudo. E eu tinha uma situação mais ou menos que eu era controlado. Aí de lá

pra cá... ai vendi a casa, vendi tudo. Ai fui pra rua, comecei a andar...

Marcelo relembra quando trabalhava e a esposa estava grávida. Ao se referir ao

momento em que recebeu a notícia da morte da esposa e do filho recém-nascido, ele se

engasga deixando vir à tona a intensidade de seu sentimento. Sua expressão se faz

emocionada. Em seguida, afirma que a partir disso tudo o que havia construído, seu império,

110

destruiu tudin; ele passa a não ligar mais pro serviço, podemos estender, passa a não mais

ligar para sua vida. Outro fato que ele marca em sua fala é que então ele cai no alcoolismo, e

antes disso não bebia nada. Frente à perda sofrida e ao envolvimento com o álcool ele resolve

vir para as ruas e começa a andar. Enfrentar essa realidade que a vida trouxe torna-se

insuportável para Marcelo.

Depois que ela faleceu, sabe como é que é né? Você fica lembrando, a casa vazia...

cadê a jóia que você tinha? Não tem mais (...) o sentimento meu que eu tenho,

verdadeiro mesmo, é a perca dela né. Que ela não era nem uma mulher, não era

nem mais uma esposa, já era mais como uma irmã né? Dentro de casa... brincava

pra lá e pra cá... é isso ai, ela se foi e tudo se acabou. Ai de lá pra cá só foi...

chegava em casa a casa vazia, não via mais ninguém, era só eu mesmo, ai eu fui

começando a beber. Tomava uma hoje e amanhã também.

Quando pergunto a Marcelo sobre o seu sentimento ao vivenciar essa experiência ele

não expressa um sentimento sobre a perda, mas diz que o seu sentimento é a perda. A morte

da esposa traz um vazio: ele não tem mais a jóia, algo de valor. Relata que a companheira era

mais que esposa, expressando um sentimento de grande intensidade. Novamente afirma então

que frente à solidão começa a beber; tomava uma hoje e amanhã também.

Pode-se perceber que a fala de Marcelo aponta para uma falta de sentido em continuar

vivendo após esta perda. Torna-se difícil viver daquela forma, naquele local. A sua ação é sair

andando como a procurar outra realidade ou o sentido para sua vida que havia mudado tanto.

Até mesmo o fato de começar a beber demasiadamente aponta para esse vazio existencial. A

fala de Marcelo aponta que havia também a ausência de outros laços significativos ou algo

que o movesse para uma mudança positiva. O maior laço aparentemente foi aquele desfeito

com a morte da companheira.

Em matéria, por exemplo... pai e mãe eu não tenho... faleceu todos os dois. Só tenho

um irmão, mas com esse irmão eu não convivo muito bem não. Quando na época

que eu precisei dele pra me ajudar sobre... da minha esposa, ele falou que ele não

tinha condições e a família dele não tinha condições. Aí de lá pra cá eu desprezei, tá

entendendo? Desprezei meu cunhado, sogra... de lá pra cá já vai fazer vinte e dois

anos que eu não procuro nenhum deles. É eu e eu e Deus...

Reforçando esse sentimento de vazio e da ausência de outros laços, Marcelo logo em

seguida afirma que já havia perdido os pais e que não convive bem com o irmão. Lembra que

quando precisou do irmão ele falou que ele não tinha condições e a família dele não tinha

condições de ajudar. Surge então o sentimento de desprezo pelo irmão e outros familiares. Ao

sentir-se desprezado, Marcelo também despreza e rompe com o irmão, sem nunca voltar a

procurá-lo. Fala então de 22 anos em que não procura mais essas pessoas e que agora é

somente Deus o seu companheiro. Há então um primeiro sentimento dirigido a Deus em sua

111

fala, alguém que o acompanha, alguém com quem não rompeu o laço, apesar de todo o

vivido.

.. ai passei por várias casas de recuperação, pra tentar melhorar... entrei numa que

com um mês eles queria me levantar de obreiro e eu quis ir embora... é assim a

minha vida. (faz uma expressão de decepção)

Buscando deixar o vício do alcoolismo, Marcelo relata que passou por diversas casas

de recuperação, mas sem sucesso no tratamento. Lembra que em uma dessas casas eles

queriam até o levantar de obreiro, figura de liderança dentro de determinadas igrejas e

instituições ligadas às mesmas, mas prefere novamente ir embora e ressalta: é assim a minha

vida, deixando transparecer um sentimento de decepção. Novamente ele sai da casa de

recuperação e resolve andar, voltar à vida nas ruas.

Ao ser questionado sobre como é para ele a vida no dia-a-dia, ressalta novamente a

companhia de Deus. Para ele, Deus é quem sabe de sua vida, por isso ele a entrega a Deus

todos os dias.

Ó veio... eu levo a vida como assim... eu entrego a minha vida todo dia quando eu

acordo eu... e quando eu vou dormir, na mão de Deus. Só Deus que agora que sabe

da minha vida.

Para Marcelo é somente Deus quem sabe o que será de sua vida; ele a entrega e vive.

Há um elemento de confiança em Deus. A partir desse ponto descreve outros elementos de

sua experiência de viver nas ruas. A ausência de um emprego formal é sentida como um

grande empecilho para outras oportunidades na vida.

Pra mim fica difícil, trabalha em serviço, em obra assim, pra mim não dá. Ai, tinha

de ser um serviço assim, transportadora, ta entendendo, mas, em transportadora...

só da transportadora aqui é só mudança, esses negócios, eu já encarei, encarei

várias mudanças ai, mas... você trabalha por trabalhar porque o dinheiro mesmo

você não vê nada dele.

O emprego formal é difícil para a maioria das pessoas que se encontram em situação

de rua e diferentes motivos contribuem para isso. O mercado que mais se abre para o morador

de rua é de pequenas tarefas, os chamados ―bicos‖. Marcelo fala do trabalho em

transportadora. Muitos recorrem a pessoas em situação de rua para o trabalho braçal de carga

e descarga, situações pontuais que não exigem registro em carteira de trabalho e baixa

remuneração, o que dá a impressão de nem se ver o dinheiro.

No caso de Marcelo, de forma mais específica, mas não somente em seu caso, há

elementos pessoais que acabam por dificultar ainda mais o acesso ao trabalho formal. Muitas

112

vezes são elementos trazidos pela própria vida nas ruas, resultados de uma vida descuidada,

violentada.

Aí vou falar a realidade. Não faço nada. Porque o Aluizio... eu pra trabalhar em

obra eu não posso, eu tenho uma platina aqui nessa perna aqui (me mostra a perna)

que ela fica sempre mais inchada que essa aqui. E essa vista esquerda eu não

enxergo dela. Foi batida de caminhão, ai eu perdi essa visão dessa vista aqui. Só

enxergo com essa aqui. (SIC)

O corpo de Marcelo traz marcas da vida nas ruas. Sente que hoje não faz nada, mas

está se referindo de forma direta ao trabalho. Ressalta que não tem trabalho fixo porque hoje

não daria conta de um trabalho pesado ao qual seu perfil mais se adaptaria, como em obras,

por ter machucado a perna e ter perdido uma visão, frutos de situações vividas nas ruas.

Parei no tempo. Não faço nada, num trabalho, num faço nada né? Parei de tudo,

não dô um dia de... nada, pra ninguém. Inútil eu não sou, tenho condições para

trabalhar mas num... num tenho como eu entrar de frente sozinho, tinha que ter

alguém pra dar apoio, pra indicar, apoiar, o cara chegar até num emprego, tá

entendendo? Que... nóis somos muito maltratados porque se você chega numa firma

você pode levar um currículo desse inteiro e a primeira coisa que eles procura

saber, “você mora aonde?” A... eu moro no albergue. “Que que é albergue?” a...

mora tantos homens lá e tal... “Cê é albergado?” É.

Marcelo sente que está parado no tempo. Vive nas ruas e não faz nada; para, fica

estático. Afirma então o sentimento de que não é inútil, mas vive a dificuldade do desemprego

que não consegue superar sozinho, precisa da ajuda de alguém. O sentimento de ser

maltratado se faz presente quando afirma que ainda que apresente um currículo para se

candidatar a um emprego, a pergunta você mora aonde? Acaba por determinar a condição de

diferente, de um albergado.

Essa é uma queixa muito recorrente entre os moradores de rua, já que a ausência de

um endereço fixo pode impedir o acesso ao serviço regulamentar. Além disso, o termo

albergado traz construções sociais negativas em relação ao termo. Na seqüência, Marcelo

relata a sua própria experiência de discriminação.

Eu mesmo já fui discrimado, eu cheguei numa firma, pra trabalhar numa firma,

levei todos os documentos, o cara falou: “Ó, amanhã você pode vim trabalhar” (...)

Quando eu cheguei lá, “A... é o seguinte, a vaga que tinha já foi preenchida, o cara

não me falou pra mim e já foi preenchida”. Foi preenchida nada, foi porque eu falei

que morava no albergue. Por isso que a gente é discriminado. (...) Se você entrar

numa empresa e falar que você é morador de rua, mora no albergue, você é

discriminado, a firma não aceita não. (SIC)

O fato de não ter como comprovar moradia e a revelação de se estar morando nas ruas

faz com que a sociedade, de forma geral, crie uma imagem negativa da pessoa. A

113

oportunidade de trabalho poderia ser a chance de uma inserção social, mas ela pode acabar

não ocorrendo devido ao conceito social criado sobre a população de rua de que se trata de

pessoas que já roubaram, que mataram, não são dignos de confiança. Esse preconceito, aliado

ao baixo nível de escolaridade da maioria, leva tais pessoas ao trabalho informal e

descontínuo. Essa experiência de não poder acessar o serviço que lhe garantiria uma melhor

qualidade de vida mantém Marcelo na mesma situação. Ele fala então das dificuldades de se

viver nas ruas.

A ai... ai é difícil... hoje você tem R$ 1,00 aqui, come um lanche ali. Amanhã você

tem R$ 5,00 você vai lá e come uma comida melhorzinha... o dia que não tem nada,

aguarda até de vir a noite pra jantar, só isso. (risos com ar de certa decepção)

Espera vim a noite, só jantar e pronto.

Marcelo vivencia a necessidade e a carência na pele. Se tem pouco dinheiro faz um

lanche; se consegue uma quantia maior, come uma comida também melhor. Porém, como não

há uma renda fixa e há dificuldade em se conseguir dinheiro, quando não tem Marcelo

aguarda a noite onde irá dormir no albergue e então terá a janta. O sentimento de decepção se

faz presente na face de Marcelo, pois a única alternativa nessa condição é esperar. Uma outra

alternativa que se abre é pedir, como Marcelo descreve na seqüência.

Bater na porta da casa dos outros ou restaurante e ficar ali ó... se sobrar é seu.

Igual cachorro, fica lá esperando o resto. Se sobrar é seu, se não sobrar ó... “não

sobrou nada”. Então aquele nada, você já tem que esperar aquilo lá mesmo procê

comer. De dia ainda passa... a dificuldade maior é a noite, que a noite... a noite é

uma vigia.

Para se comer quando não tem dinheiro Marcelo pede então em casas ou alguns

restaurantes que doam a comida que não foi vendida naquele dia, que acontece, segundo ele,

por volta das 15 horas. Assim, o sentimento que é despertado em Marcelo é de ser igual

cachorro que fica lá esperando o resto. Quando acontece de não receber nada, esse nada já

era uma possibilidade esperada.

Dando ênfase à na vida nas ruas, Marcelo fala que há muitas dificuldades, mas ressalta

que a noite nas ruas é ainda pior.

Quer dizer, é um risco que você passa; o dia, a noite... a noite que você passa na

rua, é um dia que você tem de Vitória porque você deitou e levantou no outro dia. É

uma vitória que você conta na sua vida. Eu falo pros meninos ai... porque eu fiquei

aqui agora, depois que eu tava na Tia Branca eu fiquei seis meses na rua; fiquei

porque eu quis, não fui suspenso do albergue. Mas cada um dia que você deita e que

você amanhece, é uma vitória na sua vida, você não sabe o que que vai passar a

noite com você. (...) Cê dorme, a morte perto de você e você não vê. Ai só Deus

114

mesmo que ta ali pra proteger você. Porque o homem é falho. O homem pra chegar,

pra fazer uma covardia com você não custa nada. (SIC)

Dormir na rua e acordar no outro dia é vivido como uma vitória diante de todos os

riscos que se passa. Marcelo ressalta que ficou dormindo nas ruas cerca de seis meses e deixa

claro que foi por opção, não por ter tido problemas no albergue. A noite na rua expõe Marcelo

à possibilidade mais concreta da morte, uma morte covarde. Sente por tudo isso que o ser

humano é falho e conta, assim, com a proteção de Deus.

A violência para com o morador de rua torna-se, muitas vezes, algo banal. Inúmeros

são os fatos ocorridos que podem atestar essa realidade. Em São Paulo e no Rio de Janeiro

aconteceram chacinas com moradores de rua e meninos de rua. Novamente em São Paulo uma

onda de mortes no ano de 2004 assustou a população de rua daquela cidade. Em Brasília

ganhou repercussão o caso do índio Galdino, que foi morto queimado por jovens de classe

média e alta. Como forma de defesa, alegaram que achavam tratar-se de um mendigo. Além

de serem vítimas de uma violência vinda de fora, os moradores de rua sofrem a violência de

pessoas do mesmo grupo onde os mais jovens muitas vezes maltratam os mais velhos.

Dentre os atos de violência que já viveu ou presenciou nas ruas, Marcelo fala de ter

visto meninos de rua colocar fogo entre os dedos de um morador de rua adulto e de ter visto

outro morador ser queimado. O risco sentido é de que se pode acontecer isso a qualquer um,

inclusive a ele próprio.

Eu falo que eu já vi em Niterói; já vi em Caxias, o camarada deitado assim, os

moleque de rua vim, tirá o chinelo do cara assim; colocar fogo, algodão, joga

álcool e coloca fogo no meio dos dedos do camarada. Colocar fogo num camarada

deitado dentro do carrinho (carrinho usado para a cata de material reciclável), o

cara era mais alto que eu e ele ficou desse tamaninho (faz sinal com a mão

mostrando). (SIC)

O maior medo causado é por pensar que se pode ser o próximo a sofrer tal violência.

Isso leva Marcelo a afirmar que cada noite passada na rua é uma vitória. Muitas vezes o grupo

que é considerado amigo e fonte de sociabilidade pode ser também fonte de violência.

Marcelo utiliza um termo que chama a atenção, ao dizer que na rua a pessoa passa por muitas

atribulações. Pergunto quais são essas atribulações e ele procura dar um exemplo.

Ai, quando pensei que nada, ele meteu a faca aqui (levantou a camisa e mostrou

uma cicatriz no abdômen), ai os outros gritaram, os que tavam na rua junto com a

gente, ai ele passou a faca aqui. Isso que eu recebi, na mesma vida que eu tava

levando, ele também, ele pegou e queria me furar pra me tomar o dinheiro.

115

Marcelo relata que era amigo de um outro morador de rua e que andavam sempre

juntos, na mesma vida. Certa vez, conta que conseguiu uma doação em dinheiro de um pastor

e esse outro morador de rua quis roubar-lhe o dinheiro desferindo-lhe uma facada.

Atribulações podem ser, como no exemplo citado, a marca da violência deixada pela vida nas

ruas.

A experiência de pedir mobiliza muitos sentimentos em Marcelo, pois sente que está

em um papel que não gostaria de estar e recebendo inúmeras imagens daqueles que estão

externos a sua realidade.

É difícil, mas fazê o que? Fica ai na porta de um e outro pedindo, levando aquilo

que todo mundo brasileiro aprendeu: “Vai trabalhar vagabundo”. Ou senão eles te

vem com um tanto de pedrada em cima de você. Ou senão “vai roubar pra você

comer”. Ai eu jamais penso em entrar numa vida dessa. (SIC)

O termo vagabundo é usado justamente para designar aquele que não trabalha e vive

na vadiagem. Marcelo vivencia esse fato, mas afirma que jamais pensa em se tornar um

vagabundo ou um ladrão. Se todos os brasileiros aprenderam a falar, ou pensar isso, Marcelo

mostra que sua subjetivação da situação de rua não o leva para o papel do contraventor, de

quem faz como todo mundo brasileiro.

Frente a todo esse panorama desfavorável, o que é viver para Marcelo?

Eu vou falar aqui a verdade; do jeito que eu tô vivendo, não tô vivendo... a vida,

quem faz a vida é você, eu não reclamo nada da vida, eu não reclamo... igual eu

falei, se eu tô desse jeito. Eu podia passar a borracha naquilo lá da morte da minha

mulher e, entregar na mão de Deus e continuar a minha vida. Hoje eu tava um

homem aposentado pelo porto, tinha minha casa, tinha tudo. Mas eu... eu fui um

fracasso de mim mesmo. Eu fui fracasso, eu mesmo me fracassei, eu fracassei.

Pode-se afirmar primeiramente que na afirmação de Marcelo há um descontentamento

para com a vida atual, o sentimento é de que não está vivendo. Se essa afirmação soa como

negativa por trazer um sentimento de tristeza e decepção, ela revela também que há em

Marcelo um desejo de uma vida diferente. Ao afirmar que não está vivendo, ele aponta que

acredita em uma forma diferente de viver; há um sentido colocado. Há também um

sentimento de responsabilização, pois Marcelo sente que poderia ter feito uma escolha

diferente, passado uma borracha no passado, ter entregado na mão de Deus sua vida e

continuar vivendo. Deus revela-se assim para Marcelo como um ser acolhedor, aquele que

entende e oferece um conforto. Marcelo reflete sobre uma vida diferente que poderia ter

construído e, frente ao sofrimento, subjetiva a si mesmo como um fracasso.

Peço a Marcelo que fale sobre o momento mais difícil que viveu nas ruas em todos

esses anos e então relata a vivência da solidão como sendo esse momento.

116

Ó... momento mais difícil (silêncio)... o momento mais difícil que eu passei na minha

vida foi o dia que eu senti a solidão; o que é a solidão. Foi o dia que eu cai aqui

dentro e fui levado pelo SAMU pro Pronto Socorro. Dia vinte e cinco de Dezembro

eu tava dentro do João XXIII, ai que eu lembrei viu! Tudo que eu tinha e joguei pra

trás agora to aqui. Dia vinte de dezembro... dia vinte e cinco de dezembro e dia de

ano novo sozinho aqui. Ninguém pra falar pra você: “Feliz ano novo... um feliz

natal”. Isso foi a maior tristeza na minha vida. (SIC)

Marcelo relata a vivência de ter conhecido o que é a solidão. Num momento de

fragilidade da saúde ele se vê sozinho em um hospital público. A data do natal e do ano novo

o faz lembrar de sua vida, de tudo o que tinha e, em suas palavras, jogou para trás e agora

estava ali, sem que ninguém lhe desejasse algo de bom nesse período. Certas datas, como é o

caso do Natal e da entrada de um ano novo, remetem a um contexto de planos, expectativas de

mudanças e as pessoas são incentivadas a estarem próximas de seus familiares. Nesse

momento é que Marcelo sente com maior intensidade o que é a solidão.

Agora... assim... tristeza mesmo é quando a gente vê assim né, os amigos que você

tem mais conhecimento com eles é morto, outros é “faqueado”, outros tá preso por

causa de droga, esses bagulhos, essas merdas ai que não leva ninguém a frente, ai

da tristeza na gente, tá sabendo? Vê que tem uns amigos que bebeu cachaça com a

gente; dormia na rua junto com a gente, hoje tá numa grade ou senão ta morto, aí te

fere. Tem uns que não ligam, mas tem outros, pra mim eu já fico triste. (SIC)

Marcelo sente-se triste também quando outros amigos de rua são mortos ou presos e se

refere, especificamente, ao uso de droga como motivo dessas prisões. Expressa também sua

opinião sobre drogas essas merdas ai que não leva ninguém a frente. Faz referências aos

amigos com os quais conviveu nas ruas, tomou cachaça junto e hoje estão presos ou foram

mortos. Ressalta que ainda que alguns não liguem, ele fica triste.

Ao falar dessa tristeza e das dificuldades em se viver nas ruas, Marcelo relata então

que sem a força de outros o morador de rua passaria por dificuldades ainda maiores.

Se não tiver ninguém pra dar uma força pra ele, ele só vai ó... A maioria, todos nós

que ai, dentro desse trem aqui, ninguém tá aqui porque quis, tá aqui porque tá

necessitado. Se essa casa fecha aqui, ou se fecha esses albergue tudin que eu

conheço, e essas casas de recuperação, e essas doação, o morador de rua, ele vai

ter que dar os pulos dele, que tem casa que da apoio. As casas de recuperação da

apoio, tem as casas que dá alimentação, tem as que da roupa final de semana. O dia

que fecha esse ciclo todinho ai... (SIC)

Para Marcelo ninguém está nas ruas porque quer, mas devido à necessidade. Assim, se

não houver alguém que dê forças e apoio ao morador de rua, sua situação será pior. Marcelo

sente como apoio os programas sociais da prefeitura, casas de doação e casas de recuperação.

117

Esses espaços que atendem ao morador de rua são vistos como a formação de um ciclo; caso

ele se encerre, o morador de rua terá que buscar outras formas de se sustentar.

Ao mesmo tempo em que Marcelo afirma que ninguém, está na rua porque quer,

inclusive ele, ele reconhece a vinda para as ruas como uma escolha sua.

Eu se sinto mal, mas eu vou falar a verdade, foi eu mesmo que procurei, foi eu

mesmo. (...) não acuso ninguém; não acuso ninguém. Eu acuso o meu eu, o meu eu...

meu eu que tá nesse negócio, não acuso ninguém. Sai... tudo que eu fiz não foi

forçada de ninguém, fui eu mesmo que escolhi; “a eu vou sair pra arejar a cabeça

por ai”. E daí foi até hoje... até hoje. Não encontrei ainda o que eu queria

encontrar, mas eu sei que até chegar lá eu ainda vou encontrar meu objetivo ainda.

Tá vendo? Não acuso ninguém. (SIC)

Marcelo se sente mal com o fato de viver nas ruas e com todas as situações que lhe são

colocadas. No entanto, não acusa outros pela vida que está levando mas a si mesmo como

responsável por ter saído para as ruas. Em seguida, faz uma importante revelação, afirmando

que não encontrou nas ruas o seu objetivo. Mas há uma certeza de que até chegar lá, no fim,

ele ainda vai encontrar algo que o responda por seus objetivos.

Eu acredito que um dia eu pelejo e vou passar por cima, eu não vou ficar nessa pro

resto da minha vida, ou senão eu vou pra eternidade. A eternidade é na hora que o

meu pai me chama uai. Mas aqui na terra eu vou fazer por onde, pra nunca entrar

nas maus tentações. Cai dentro de uma cadeia eu nunca cai; não fumo droga

nenhuma, nunca fumei um cigarro na minha vida, é isso. Mas eu acredito, até o

final da minha vida, eu tenho certeza que eu vou ter uma mudança, não sei como

mas eu vou ter uma mudança. (SIC)

Marcelo tem o sentimento de que irá superar, mudar sua vida. Ele vai lutar, pelejar e

passar por cima, pois não vai ficar o resto da vida na situação de rua. Ou ele muda, ou vai para

a eternidade. Buscando explicar o que entende por eternidade, Marcelo aponta que será a hora

em que seu pai chamá-lo para um outro local, uma outra vida. Enquanto está vivendo aqui na

terra, Marcelo procura fazer algo para não cair nas maus tentações (SIC), como não fumar

(droga), não usar cigarro ou vir a ser preso. Há em Marcelo a certeza de sua mudança, porém,

ele ainda não sabe como fará para obtê-la. Questiono sobre como seria essa mudança e ele

responde.

O meu sonho mesmo é ter uma casa, um canto pra mim mesmo, um emprego pra

mim mesmo. Ai eu levanto, eu já vou deitar sabendo que amanhã eu já sei pra onde

que eu vou. Agora viver numa vida dessa ai num dá né? Se levanta de manhã cedo

cê vai pra onde? Banco da Praça; praça da estação, praça da Rodoviária, fica em

doação pra cima e pra baixo ai, pra chegar lá e come um pratin de sopa? tomar um

café? Arranjar umas roupa véia? Não... eu sou obrigado a pegar porque trabalhar

eu não to trabalhando, não vou dizer que eu não sou melhor que ninguém não. A

gente vai lá e pega a roupa que ta dando, não ta roubando; mas o meu sonho não é

118

isso não, ficá pro resto dessa vida nisso não. E uma que eu já to chegando na casa,

já cheguei nos 52 anos. Até agora eu parei... (faz silêncio), parei, parei. (SIC)

A mudança a que Marcelo se refere é realizar o sonho de ter uma casa e um emprego,

mas isso serve para lhe dar a condição de sair da vida de rua; sair e saber para onde se vai e

não ocupar o logradouro público. Reaparece então a questão das doações, mas surge o

sentimento de que ele só freqüenta tais espaço devido à falta de um emprego. Mas Marcelo

ressalta que seu sonho passa por outro lugar, não é ficar pro resto dessa vida nisso não.

Marcelo reflete sobre sua vida e sente que chegou aos 52 anos. Seu sentimento é de parou no

tempo. O silêncio ao fazer essa afirmação mostra um rosto angustiado, o sentimento de uma

vida que passa, que completa 52 anos e está parada.

Como no discurso de Marcelo novamente aparece a questão das instituições que doam

algo ao morador de rua, percebo que as mesmas têm uma importância para o mesmo. Peço a

ele que fale um pouco sobre as mesmas.

Eu freqüento. Hoje mesmo; ontem eu fui na Bernadete, hoje eu fui lá outra vez. É

casa espírita, casa espírita e católico. Eu freqüento a igreja aqui em cima todo

domingo (...) A... aquela de frente da passarela ali... Igreja católica mesmo. Não

tem a passarela aqui (aponta no sentido do Bairro Carlos Prates), é a primeira

igreja que tem ali. (...) Eu freqüento. Leio o livro de Alan Kardec... tô lendo o livro

dele; já li o livro dele, de Alan Kardec, agora tô lendo o Chico Xavier. (SIC)

Marcelo, ao falar das instituições, reafirma que é freqüente as mesmas, contudo, não

descreve mais a questão das doações, mas faz sua ligação com as religiões. Assim, há, além

da possibilidade de receber doções, a vivência de uma religiosidade. Marcelo freqüenta a

igreja católica e dedica-se à leitura de livros espíritas, formas de vivenciar sua religiosidade.

Pergunto sobre como se sente em relação a essa vivência da religiosidade e Marcelo responde.

Não... o importante pra mim eu tô ali livre, livre, ouvindo a palavra de Deus. Eu me

sinto bem ta vendo; que eu já fui obreiro de casa de recuperação. Hora dessas eu

tava dando culto pras outras pessoas que tava chegando. Ai eu peguei e desviei

disso tudinho, mas eu gosto de ir; eu me sinto bem, eu gosto de ler o livro de Alan

Kardec, só que é um livro que você não pode cair em fundamento dele demais senão

ó (faz sinal rodando o dedo indicador em volta do ouvido como quem diz: “fica

doido”). Ele conta entre o vivo e o mortal, é muita coisa?

Para Marcelo, o que importa é o fato de se sentir livre ao ouvir a palavra de Deus. O

sentimento é de sentir-se bem; Deus possibilita a vivência de uma liberdade. Marcelo

relembra o tempo em que se dedicava de forma mais direta a uma religiosidade sendo obreiro.

Entra então o sentimento de ter se desviado do caminho que seguia e que poderia tê-lo levado

em outra direção, pois poderia estar, naquele momento da entrevista, fazendo culto e

recebendo outras pessoas. Reafirma que gosta de freqüentar e sente-se bem com a

119

religiosidade. Marcelo, porém, faz uma advertência a si mesmo, pois entrar em fundamentos

do espiritismo pode deixá-lo confuso. O mundo dos vivos e dos mortais é algo que o

confunde. Porém, analisando o discurso de Marcelo, esta não é a principal questão da religião,

não está o principal foco em acreditar ou não.

Eu não acredito mas... eu paro pra meditar; pra ver né, o que vai dar no futuro. Eu

espero no futuro, passado é museu (...) A véio... eu espero muita coisa melhor ainda

até quando Deus me chamar viu. Melhores... bastante melhoras pra mim. (SIC)

Deus e a religiosidade para Marcelo estão na esfera da liberdade e oferecem a

possibilidade de pensar no futuro, um futuro diferente e cheio de melhoras. Marcelo projeta

no futuro porque passado é museu. Até que Deus o chame, que se encontre com a morte,

Marcelo ainda espera muitas melhoras. Há aqui a possibilidade de uma transcendência.

(...)ai foi passado, e agora não, eu to querendo é viver o futuro. Quero viver o

futuro... quero viver o futuro. Tô esforçando, to trabalhando, to pedindo a Deus

todo dia, toda hora. Vem atribulação? Vem. Vem “lero lero” no seu ouvido? Vem.

Então eu passo a régua naquilo e saio fora.

Novamente Marcelo expressa o sentimento de que o passado ficou e resta viver o

futuro. Ele se esforça e está pedindo a Deus. Apesar das tribulações, ele passa por cima e

segue em frente. Deus é vivenciado então como uma fonte de força para a superação.

Marcelo vivencia a religião também falando de Deus, mas, para falar de Deus,

segundo ele, há que ser fiel.

Pra falar de Deus você tem que ser fiel a ele, fiel a ele. Não é só falar de Deus aqui

e amanhã você virar as costas pra ele, você tem que ser fiel. Eu sou um camarada

normal, eu falo de Deus, assim, na hora certa e no momento certo. Então quando

tem uma palestra nessas igrejas ai que a gente vai, nessas casas de recuperação

onde que, doação, eles dão oportunidade, eu falo, mas, tem de falar de coração.

Falar por falar não vence barreiras.

Para falar de Deus é necessário que seja fiel a ele. A fidelidade a Deus está em não

virar as costas para ele. Assim, Marcelo fala de Deus na hora certa e no momento certo, mas

essa fala tem de ser de coração, pois falar por falar não vence barreiras. Há em Marcelo uma

preocupação em saber se sua fala é de coração, mas quem pode julgar é apenas Deus. Mas ele

fala com Deus tirando o seu momento com o transcendente.

Olha... eu falo... Eu tiro o meu momento, é eu e ele, é pra mim e ele. Ai ele lá que

vai, vai me julgar, se eu to falando a sinceridade com ele ou se eu to jogando de

boca pra fora contra ele. (SIC)

120

Assim, ao poucos, Marcelo vai desenhando em seu discurso a influência positiva que a

religiosidade exerce em suas vivências. O momento tirado para falar com Deus mantém um

canal que o liga a um ser que está presente e o ajuda em seus momentos de necessidade. Deus

é sentido como alguém que ajuda.

Já... me ajudou. Me ajudou muito porque... eu fiquei nove meses numa cadeira de

rodas; stress de cachaça e não se alimentar, fiquei nove meses na cadeira de rodas.

Hoje ele me colocou do jeito que eu to aqui; do jeito que eu andei isso tudo ai. Hoje

eu me sinto tranqüilo, ele me ajudou. (SIC)

O uso intenso de bebida alcoólica causa em Marcelo sérios problemas de saúde que

acabam por prejudicá-lo. Há uma limitação física, que, segundo ele, durou nove meses. Foi

comunicado por médicos que havia a possibilidade dele permanecer sem movimento na

pernas, mas Deus o levanta; ele me colocou do jeito que eu to aqui. Isso traz um sentimento

de tranqüilidade e o reconhecimento de que foi ajudado em seu momento de dificuldade.

Marcelo ressalta, porém, que isso não se deu de modo isolado; a sua participação se deu pelo

sentimento da fé.

Mas eu peguei com fé a ele, lutando, eu consegui levantar, ele me levantou, mas

através de mim e com fé com ele, hoje ele me colocou em cima, ai ó. Se não fosse ele

se acha que eu... “á... eu já to é ruim mesmo; num barco d`´agua, a água já

entornou mesmo do balde, agora deixa e vô viver o resto da minha vida na cadeira

de roda”. Hora dessa eu tava aqui falando com você numa cadeira de rodas se eu

deixasse, mas, ele diz: “Vai que eu te ajudarei; agora, se esforça. Se você não se

esforçar... vai depender de você; que eu vou te ajudar, se esforça”. (SIC)

Marcelo sente que Deus o levanta, mas através dele mesmo, de sua fé. Ele ―pegou com

fé‖ e Deus o colocou em cima. Ao mesmo tempo Marcelo aponta que se fosse apenas por ele,

não teria superado o problema. Se não fosse ele (Deus), Marcelo sente que poderia ter se

conformado e ficado sem andar, hora dessa eu tava aqui falando com você numa cadeira de

rodas se eu deixasse. Ao finalizar esse trecho, ele expressa o sentimento que tem com relação

a Deus como alguém que ajuda o humano, mas exige do mesmo que faça um esforço. A ajuda

de Deus é certa, dependendo do esforço ou não do humano, vai depender de você.

Cai e me levantei. De lá pra cá, desde aquele dia que eu cai aqui, até hoje o álcool

tá fora, não coloco. Com fé em Deus, igual os outro fala ai.. “Com fé em Deus

nunca mais eu ponho essa peste desse trem na minha boca.” Eu não falo isso,

enquanto que eu tiver força, força de vontade e disposição eu vou lutar contra ela.

Agora eu não vou falar com fé em Deus eu não vou... ai ele cai, ele bebe, ai o outro

fala, uai fulano, se falou que... “A... Deus virou as costas pra mim”, ele não vira as

costas pra ninguém não, você que escolheu voltar pelo caminho que você tava, não

conseguiu seguir ele. Eu não coloco ninguém, eu me coloco eu. Por que eu vou

falar, a Deus virou as costas, Deus não vira as costas pra ninguém não, nois que

procura. (SIC)

121

Marcelo traz então em questão uma de suas dificuldades para exemplificar a ajuda de

Deus e o esforço daquele que pede; que busca mudança. Assim, ao analisar sua própria vida,

ele afirma que caiu e se levantou. Fala então de uma situação em que passou mal novamente

devido ao uso do álcool e que, após isso, está sem beber. Contextualiza então a fala de outras

pessoas que afirmam que com fé em Deus deixarão de beber, ou de fazer outras coisas. Já

Marcelo fala que o importante é sua força de vontade e a disposição de lutar, no caso, contra a

dependência. Para Marcelo, o fato concreto é de que Deus não vira as costas pra ninguém, é

a própria pessoa que escolhe voltar por um caminho que difere do caminho de Deus, não

conseguiu seguir a ele. Finaliza esse trecho de sua fala reafirmando a questão da escolha

inerente ao humano. O caminho de Deus para Marcelo é o de deixar a bebida, mais que isso, o

caminho de superar um situação; de mudar uma realidade.

Quando peço a Marcelo que fale sobre o seu sentido de vida, ele traz aquilo que para

ele é de fundamental importância e que pode tirá-lo da condição de morador de rua: a

conquista de uma casa.

Quer dizer, se eu tendo a minha casa ai sim eu vou ter o meu horário de acordar, eu

não vou ficar dependendo dos outros pra comer a hora que eles quer dar. Se eu não

quizer comer eu não vou comer porque eu não quis fazer, agora enquanto cê tiver

dependendo da ajuda dos outros, cê tem que ser capacho deles né? Fazer a hora

deles. (SIC)

Ter a própria casa aponta para a possibilidade de não ser dependente de outros, ter a

sua hora para fazer suas coisas e a condição de não ser capacho de outra pessoa. Ter a vida

própria para Marcelo é ter um emprego e o seu dinheiro, o que lhe traria uma vida digna.

Viver na rua para Marcelo é não viver, é ser jogado pelos outros.

O meu projeto agora, que eu to vivendo agora, meu único projeto, eu quero

conseguir um emprego, sabendo? Tê uma vida digna, uma vida digna que eu posso

ter emprego, ter o meu dinheiro e ter a minha vida. Porque na rua a gente não véve;

véve jogado pelos outros ai, na mão de um, hoje ta aqui, amanhã ta ali, ta sentado

no banco de uma praça; amanhã você tá sentado ne outro banco de outra praça, ai

você chega lá pra cima (Se refere a ir dormir no albergue) você vê aquele monte de

gente falando só “lheira”... “Eu já fui cadeeiro, já matei, já roubei, fui traficante”.

Mas o que? Tá ali comendo no mesmo prato. (SIC)

Marcelo se refere ao assunto dos outros moradores de rua como um discurso vazio,

lheira. Ressalta apenas falas que mostram o lado negativo que muitas vezes marcam, rotulam,

pessoas nas ruas como ex-presidiário; alguém que matou ou roubou. Para Marcelo vale,

entretanto, o fato de que ali não há diferença entre as pessoas; estão todas na mesma situação

de vida nas ruas.

122

Agora você tando na sua casa é você e você, ta vendo? Mas enquanto não tem; tem

que ficar ouvindo asneira, até que um dia Deus olhe pra você. “Não... você merece,

eu vou tirar você desse lamaçal, vou te colocar numa outra vida melhor, vou te dar

um plano de vida melhor”. O meu plano de vida nesse momento, eu quero o que? É

ter um emprego, uma vida digna; uma vida digna. Dono do meu nariz, não do nariz

dos outros. Ser dono do meu nariz, se eu falar que eu não quero hoje eu não quero.

(SIC)

Enquanto se está vivendo nas ruas é inevitável ouvir asneiras de outras pessoas que

estão na mesma condição. Asneiras aqui se refere a esse conteúdo das falas marcado por

violência e uso de drogas, o que não agrada Marcelo. Novamente surgem em sua fala

elementos da religiosidade quando ele afirma que essa situação pode mudar quando Deus

olhar para sua situação. O merecimento, talvez pelo sofrimento já vivido, alimenta o

sentimento de que Deus pode tirá-lo desse lamaçal. Deus favorece a busca de uma vida digna

e de ser dono de si mesmo.

Finalizando, peço a Marcelo que fale sobre o seu sentimento com relação à morte, e

então ele faz algumas colocações que novamente apontam para sua ligação com o

transcendente.

Agora sobre respeito à morte, ai meu amigo, ai ficou encrencado. Só o pai e o filho

e o espírito santo que vai saber qual é o seu dia e qual é sua hora, se chegar hoje,

no momento em que eu descer essa escada ai, ele me levar, fazer o que? É ele que

quis, não foi eu. Ou eu sair daqui até chegar la em cima, posso me deitar e não

posso me levantar também. É a vida dele uai, ele que sabe, ele que faz o controle da

nossa vida, não são nóis aqui não, em carnal aqui na terra não. Quem faz o nosso

dia-a-dia é ele. Vou te descansar e vou te alertar pra você no outro dia. (SIC)

Assim como entrega sua vida na mão de Deus, Marcelo diz que só o pai, o filho e o

espírito santo vai saber qual é o dia e a hora da morte e, quando ela chegar, nada se pode

fazer. A vida é de Deus e ele é quem sabe da vida do homem, ele que faz o controle da nossa

vida.

Síntese das vivências expressadas por Marcelo em sua entrevista

A partir do relato de Marcelo sobre suas vivências e seus sentimentos enquanto pessoa

na condição de morador de rua, pode-se apreender sentimentos e significados que compõem

seus processos de subjetivação.

Marcelo expressa um sentimento muito intenso frente à perda de uma pessoa querida

e, frente a essa vivência da perda, promove mudanças em sua vida que o levam a romper

123

outros laços e partir para uma vida nas ruas em busca de algo, mas sem saber especificamente

o quê.

Frente a essa nova realidade, o envolvimento com o álcool passa a ser uma constante

em sua vida e aponta para novas formas de relacionamento e também para uma vida

descuidada. Marcelo busca deixar a bebida através de casas de recuperação que são também

um componente de suas experiências de vida.

Um homem que teve casa, carros e esposa passa a viver como morador de rua e

experimenta diversos sentimentos e situações que essa condição lhe traz. Assim, vivencia

sentimentos de humilhação; de quem sobrevive com restos de outros. O contexto da vida em

grupo nas ruas gera sentimentos de tristeza e alegrias, porém, a comunicação e a fala das

pessoas nessa mesma situação são sentidas como asneiras, conversas vazias que reforçam o

lugar negativo do morador de rua no imaginário das pessoas, inclusive no imaginário das

próprias pessoas que vivem essa situação.

Sofre também na pele a conseqüência de atos violentos que marcam seu corpo e a

subjetividade sobre o mesmo, um corpo que possui limites e dificulta, entre outros fatores, o

acesso ao mercado formal de trabalho.

A falta de trabalho é vista como uma situação indigna e, por isso, o acesso ao trabalho

e a condição de materializar suas necessidades e desejos internos surge como uma busca e

uma fonte de sentido.

Deus aparece no relato de Marcelo como uma ligação com um ser que acolhe e

acompanha. Há um sentimento de entrega e também uma esperança de que Ele há de voltar

seu olhar e tirar Marcelo dessa situação. A religiosidade é vivida assim como liberdade, como

algo que traz reflexões e aponta para o futuro. A religiosidade opera assim no sentido da

transcendência, de buscar algo que está à frente, uma vida melhor.

Marcelo relata, em diferentes momentos, também a consciência de responsabilidade

para com a sua vida. Hora se arrepende de escolhas feitas e, em outros momentos, reflete a

necessidade de se empenhar para a mudança.

7.2 Análise de Entrevista II: Paulo

O segundo entrevistado é Paulo. Ele tem 48 anos e está em Belo Horizonte há

aproximadamente três anos. Inicio a entrevista, assim como a primeira, pedindo-lhe que fale

124

um pouco sobre sua história e sobre o que o levou a viver nas ruas. Ele começa falando sobre

sua vida em uma outra cidade e de uma rotina de trabalho que o satisfazia; dava-lhe muito

prazer. Havia aprendido tal ofício ao longo de muitos anos. Contudo, em determinado

momento, Paulo resolve romper com tudo e partir para uma outra vida.

Então eu já tava começando a pirar, já tava brigando comigo mesmo. Já tava

chegando numa situação assim que eu não tava mais suportando, isso eu fiz, quase

a minha vida inteira. Ai eu resolvi jogar tudo pra cima, resolvi ir embora... ai eu

falei, eu vou pra Vitória. Não sei porque que eu escolhi Vitória, no Espírito Santo.

Falei, eu vou pra algum lugar. Vou pra Vitória. Fui pra Vitória... (SIC)

Apesar de ter afirmado, no início da entrevista, que seu trabalho era prazeroso, Paulo

disse que em determinado momento não tava mais suportando. O sentimento era de que

estava começando a pirar, brigando com ele mesmo. Paulo resolve jogar tudo pra cima e ir

para outro lugar. Esse outro lugar não é um lugar específico ou um lugar fonte de alguma

expectativa. Relata que não sabe porque escolheu o lugar para onde foi. Ele sai então de uma

outra região do Brasil e vai para Vitória.

Tento fazer com que Paulo se aprofunde um pouco mais nessa vida anterior, mas ele

relata poucos elementos. Fala um pouco sobre a família e inicia dizendo que sempre morou

com a mesma, contudo, esse laço familiar, em sua fala, não parece muito significativo.

Bom... eu... sempre morei com a minha família até há seis anos atrás. É... morei

com a minha família inteira, no começo eu morava com a minha família, depois eu

comecei... minha família morava num bairro e eu sempre morei no centro da

cidade porque meu trabalho exigia muito que eu ficasse o mais próximo possível.

Então eu sempre tive sozinho, uma casa sozinha pra mim... uma casa, um

apartamento, sempre tive longe.

Paulo afirma que sempre morou com a família até seis anos atrás, porém, afirma

posteriormente que morava longe da família porque o seu trabalho exigia isso. Ressalta então

que sempre esteve sozinho; sempre esteve longe. Após estar em Belo Horizonte há cerca de

três anos Paulo relata que não mais procurou entrar em contato com a família.

Há um rompimento com o núcleo familiar que se faz concreto. Isso se revela presente

em muitas pessoas que vivem nas ruas. Apesar de terem o contato dos familiares, ocorre um

distanciamento que vai se estendendo. Esse distanciamento pode ser um indicativo de uma

relação que traz sentimentos diversos e, por isso, esbarra em algo que faz distanciar. É como

se mesmo antes sempre se esteve longe.

Continuando sua narrativa, Paulo fala que foi trabalhar como garçom em Vitória e,

após algumas tentativas de se estabelecer naquela cidade, resolve vir para Belo Horizonte. O

que o motivou foi o fato de ter conhecido mineiros que falavam muito bem a respeito da

125

capital mineira. Paulo diz que como todos pareciam ―bem de vida‖, ele decide vir para Belo

Horizonte.

Cheguei aqui de madrugada... e sai da rodoviária e fui parar na porta de um hotel.

Tava fechado, o cara não tava lá. Eu tava sentado em cima da minha mala, não deu,

acho que meia hora que eu to lá esperando acontecer alguma coisa na cidade, me

roubaram tudo, documento, mala, tudo tudo, eu só fiquei com a roupa do corpo. Eu

falei, muito bem recebido nessa cidade né? (SIC)

Paulo chega de madrugada em Belo Horizonte e é roubado. Ao vir para essa cidade já

trazia claras expectativas de conquistar algo. Frente ao roubo de suas coisas ele ironiza o fato

de não ter sido bem recebido na cidade. A partir desse evento, Paulo se vê sem documentação

e em uma cidade estranha. Ele recorre a um abrigo que acolhe migrantes e, posteriormente,

passa a freqüentar espaços que são destinados à população de rua. A entrada em um abrigo

traz novas vivências a Paulo.

Daí o que que acontece, eu tava no abrigo tava tudo normal, saia ia lá, dormia,

acordava naquele monte de, de... porque lá tem um monte de ladrão, monte de

viciado, monte de tudo. Uma coisa que sempre me falavam, não vai pra Tia Branca.

Tia Branca só tem ladrão, só tem traficante, só tem usuário de droga, uma

pancadaria, toda hora tem briga e não mentiram nada, tudo era verdade. Daí quer

dizer, um cara que nunca tinha ficado na rua, nunca tinha ficado num albergue,

entendeu? Tive que encarar de frente isso entendeu? (SIC)

Paulo muda sua expressão que se torna tensa ao relembrar o início dos dias em que

ficou em um albergue. Há um estranhamento de sua parte ao acordar com um monte de

ladrão, monte de viciado, monte de tudo. Lembra que já haviam dito a ele que no Tia Branca

(Albergue Público Municipal de Belo Horizonte) só tem ladrão, só tem traficante, só tem

usuário de droga, uma pancadaria, toda hora tem briga, e ele afirma então, após passar a

frequentar esse serviço, que tudo é verdade. Ressalta que teve que enfrentar tudo isso, embora

nunca houvesse ficado nas ruas antes.

Essa fala de Paulo ressalta o estigma que circunda o morador de rua. O próprio Paulo

que está dormindo no albergue afirma que só há ali: ladrões, viciados, traficantes e brigas.

Seguindo essa forma de pensar, alguém externo aos acontecimentos enquadraria Paulo em

algum desses adjetivos. Assim, a conseqüência é que até mesmo entre os próprios moradores

de rua há a estigmatização e o preconceito.

Peço a Paulo que fale sobre seu sentimento nesses momentos e ele afirma que sentia

como se estivesse entrando em um outro mundo.

Olha... vou falar pra você que eu, nesse momento, nas primeiras semanas até eu

começar a me orientar ali dentro, não foi fácil, foi assim tipo eu chegava, não

conversava com ninguém... jantava, ia dormir, não tinha muita relação e tal. O

126

medo né, no caso. Não sei se era medo ou receio. Não sei se era receio que eu tinha

de que acontecesse alguma coisa comigo por que eu tava entrando num outro

mundo. Eu tava saindo do meu mundo e tava caindo num outro mundo. (SIC)

Começar a se orientar nessa nova situação não foi fácil. Há em Paulo uma atitude de

fechamento. Ele relata não saber o porquê, se um sentimento de medo ou receio de que

acontecesse algo a ele. Esse receio expressa justamente o sentimento de medo. Afirma então

que se sentia como se estivesse entrando num outro mundo. O termo utilizado por Paulo é

significativo quando traz a idéia de uma queda: eu tava saindo do meu mundo e tava caindo

num outro mundo.

Frente a essa vivência desse outro mundo e esse sentimento de queda, Paulo acaba por

se refugiar no álcool.

Olha... a partir daí foi a hora que eu comecei a cair na... no álcool. Porque... eu só

rebatia no coisa... tanto que, pra mim cair na rua mesmo, sair do albergue e... e

parti pra marquise, foi por causa de álcool, porque um dia teve uma briga lá

(Albergue), não comigo, com as pessoas lá. Quando sai eu comecei, tipo assim, me

senti... não sei como é que eu poderia dizer que eu me senti naquela hora que eu

tava caindo num mundo mesmo de... num sub mundo no caso. Daí eu comecei a

beber. (SIC)

Novamente Paulo utiliza o termo queda para indicar uma passagem, uma vivência. Ele

afirma que começou a cair no álcool. Para sair do albergue e cair na rua mesmo ele atribui

isso ao álcool. Relata que após uma briga no albergue em que estava pernoitando ele sai e

parte pra marquise. Esse momento é vivenciado por Paulo como a sua entrada num

submundo, no mundo da rua. Daí eu comecei a beber.

A fala de Paulo vem ressaltar o sentimento expresso por muitos moradores de rua

sobre a necessidade do álcool como forma de suportar a vida nas ruas. Muitos expressam que

viver ―de cara limpa‖ na rua é tarefa das mais difíceis. Serve o álcool como um anestésico na

dor da vida nas ruas. A questão que se levanta é que ele acaba por trazer outras situações que

vêm a tornar ainda mais difícil a vida do dia-a-dia, contribuindo para acentuar a queda desse

ser humano que vive nas ruas.

A partir do momento em que Paulo começa a se envolver com o uso de álcool, o

mesmo passa a estar presente em diferentes momentos e situações de sua vida nas ruas.

Ai o que que aconteceu, um dia eu cheguei lá bêbado, ai o cara não queria me

deixar entrar. Eu xinguei o cara pra caramba, falei, como é que você me dá uma

dessa, um cara que nunca teve na rua e babababa... ele falou, o negócio é o

seguinte, já que você nunca ficou na rua então você vai ficar e me deu doze dias de

suspensão. Foi ai que... Doze não, mentira, seis dias de suspensão. Esses seis dias

pra mim, foram a pior coisa que aconteceu na minha vida. (SIC)

127

Paulo chega ao Albergue embriagado e, como é regra no serviço, a entrada não lhe é

permitida. Ele se sente contrariado e xinga o funcionário. Seu argumento, porém, serve mais

como um lamento, pois como ficar na rua um cara que nunca teve na rua? A resposta do

porteiro vem intolerante em forma de punição. A sentença é dada: seis dias de suspensão. O

sentimento de Paulo é que esses seis dias foram a pior coisa que aconteceu em sua vida. É a

consumação de sua vinda para as ruas.

Buscando fazer com que o mesmo reflita e fale sobre suas vivências, pergunto a Paulo

qual foi à situação mais difícil que ele viveu nas ruas.

Foram os seis primeiros dias que eu fiquei na rua. Foi porque eu não conhecia nada

de BH, não conhecia uma doação, não sabia onde almoçar, onde jantar, não sabia

onde eu podia dormir que era seguro, não tinha lugar seguro... (SIC)

O momento mais difícil é quando ele se vê lançado num mundo desconhecido, onde se

depara com a realidade que sua vida havia tomado: ele estava naquele momento um morador

de rua. Estava em uma cidade que não conhecia e não sabia como se cuidar, se sustentar. Não

havia um lugar seguro.

Eu me senti completamente perdido, completamente fora do ar. Eu tava é ... como

eu vou dizer assim... eu tava me sentindo perdido mas assim ...tô morto. Porque...

você chegar numa cidade que não conhece nada, cair na rua, neguin roubando

neguin na madrugada, voce tá durmindo com uma bolsa o cara te rouba, ta com um

tênis o cara te rouba. Eu já acordei um monte de vezes descalço aqui, entendeu? Já

ate perdi as contas de quantas vezes eu acordei descalço e ter que correr atrás para

conseguir algo. Por isso que eu digo, dormir na rua é o maior perigo. Eu graças a

Deus não tenho briga com ninguém mas por qualquer coisa os cara enfia a faca.

(SIC)

O sentimento que Paulo vivencia é de estar completamente perdido e fora do ar. Ele

resume a vinda para as ruas como se sentindo morto. Novamente ele fala da dificuldade de

estar em uma cidade desconhecida e sendo roubado. Relata então que muitas vezes acordou

descalço e sem ter como conseguir algo. Ressalta então novamente que dormir nas ruas é o

maior perigo, por qualquer coisa os cara enfia a faca.

O processo que leva uma pessoa a sair da situação de rua é algo lento e se constrói

com dificuldades. Sair das ruas implica muitas vezes conseguir acesso ao mercado de

trabalho, outras vezes, passa por superar uma condição psicológica, de saúde, de superação de

vícios, um retorno familiar, o acesso a políticas públicas ou serviços públicos, entre outras

saídas possíveis.

Pode-se afirmar o mesmo com relação ao movimento que faz com que uma pessoa

deixe uma vida comum e se torne um morador de rua. É um processo, na maioria das vezes,

128

lento e complexo. É soma de perdas que, ao se acumularem, se transformam em uma quebra

da vida antes construída.

Porém, o momento que é reconhecido como a entrada real nas ruas é sentido como

algo de grande intensidade. No caso de Paulo, esse momento é sentido como a queda para o

submundo; uma quebra com seu mundo.

Eu dormia assim num lugar sozinho e os caras chegavam e falavam assim... me

arrumaram cobertor, me fizeram tudo porque eu não tinha nada né? Ai o que que

acontece que os caras falaram, olha, nunca dorme sozinho porque senão vão te

matar, vão te roubar, vão fazer qualquer coisa com você e tal. Falavam a real

mesmo, porque eu já vi várias mortes ai na madrugada, o cara tá dormindo e chega

outro e enfia a faca no cara e já era, ai no outro dia... já vi já. (SIC)

No relato de Paulo vemos presente um elemento de solidariedade entre aqueles que

estão vivendo nas ruas. No momento em que ele não tinha nada, ele ganha um cobertor. Há

também uma advertência a Paulo que só dormia assim num lugar sozinho. É alertado para que

não dormisse sozinho porque poderia ser morto ou roubado. Essa fala é interpretada por Paulo

como a real mesmo. Ele próprio viveu a experiência de ter visto outros terem sido mortos. A

violência se faz presente na madrugada. A noite é vivida como uma ameaça que faz com que

pessoas se aproximem.

No caso de mulheres em situação de rua ocorre fenômeno semelhante quando as

mesmas afirmam que preferem se aproximar de um determinado companheiro para não ter

que correr o risco da violência de outros homens.

Pergunto a ele sobre qual é o seu sentimento com relação a isso, a esse risco diário.

É uma sensação completamente ruim, você correndo o maior risco de vida. Você

lembra o que aconteceu em São Paulo quando mataram aqueles moradores de rua?

A sensação real é do risco de vida, da possibilidade da morte. Ele relembra então dos

atos de violência contra moradores de rua ocorridos em São Paulo onde muitos foram mortos

queimados. O cotidiano violento é vivenciado com angústia e medo de que algo aconteça.

Paulo relata uma experiência que viveu quando estava dormindo nas ruas e se viu em

meio a uma situação de risco iminente a sua vida.

Tô morto... pensava assim, fui pro pacote, entendeu? É o que você pensa, o cara

vem em cima de você, armado, sem você ta devendo nada. E os caras, eles não vem

pra pensar, eles vem pra executar. Qualquer um que sai a noite, ele chega e se

precisar, pra matar um, ele mata todo mundo. Se precisar acerta você. Chega numa

maloca e têm cinco ou seis, se ele quiser matar um, morre dois ou três. (SIC)

129

Paulo vivencia o risco e pensa na conseqüência: pode morrer. Fala então novamente

dos riscos de se ser morto nas ruas, ainda que não se esteja devendo nada, sem que haja

motivo para tal morte. Assim como o primeiro entrevistado, Paulo ressalta por vezes a

questão da noite nas ruas, onde os riscos se tornam ainda maiores.

Na rua eu não dormia sem tá bêbado. Na maloca, debaixo da marquise a gente

chama de maloca, toda maloca sempre tem cachaça e a gente sempre bebe pra

dormir tranqüilo. Correndo o maior risco de ficar desmaiado e alguém chegar e te

fazer qualquer coisa. Esse é um risco que você corre todo dia. O cara pode se

enganar, te confundir e te matar. (SIC)

Paulo fala novamente sobre a bebida e a rua, dizendo que não dormia nas ruas sem

estar bêbado. Retrata então a situação cotidiana de sempre ter bebida na maloca, debaixo da

marquise. Segundo ele, se bebe pra dormir tranqüilo. Esse tranqüilo é como se houvesse um

esquecimento dos riscos que se passa, pois ele completa em seguida que se dorme correndo o

maior risco de ficar desmaiado pelo efeito do álcool e ser vítima de alguma violência. Em

seguida Paulo ressalta que esse é um risco que se corre todo dia: o risco de uma morte banal.

Frente a tantas dificuldades narradas pergunto-lhe então como acredita na vida. É de se

imaginar que diante de tantas lutas enfrentadas haja pessoas que pensem em desistir, em pôr

fim a própria vida. Minha pergunta causa uma reação em Paulo, que me olha com expressão

de surpresa.

Agora você me pegou. Olha... eu nunca parei para pensar nisso não.só sei que

varias vezes, quando eu passei por isso... perdido mesmo. Eu me agarrei na garrafa

né. Entendeu? Sempre que eu via que tava naquela, entendeu? (SIC)

A surpresa de Paulo se faz presente ao dizer que nunca havia pensado em como

acredita na vida. Nos momentos em que se sentia perdido ele diz que se agarrou na garrafa. A

bebida age assim como uma forma de defesa frente ao desespero. Nesse sentido, não refletir

sobre a vida é não entrar em contato com seus sentimentos e procurar saídas positivas frente

ao desespero e à ansiedade. A garrafa companheira causa uma anestesia momentânea, mas,

geralmente, traz um sentimento posterior ainda mais negativo e se instaura um ciclo de

decepções e perdas que vão se acentuando. É uma existência que não se reflete.

Peço a Paulo que fale sobre seus sentimentos ao vivenciar tudo isso.

Eu senti completamente sem chão, entendeu? Me senti assim... eu falei, agora foi o

final mesmo né, agora to no final, porque... não posso dormir aqui porque tem isso,

não posso dormir ali porque tem aquilo, não tenho coberta pra mim dormir, tá frio,

e tá não sei o que, não tem papelão, não sei como é que cata papelão, não sei

arrumar dinheiro, entendeu? Meu dinheiro acabando, daí acabou o dinheiro né....

porque... nessa época eu não sabia onde que era as doações. (SIC)

130

Paulo afirma que o sentimento que aparece quando de sua vinda para as ruas é ter

perdido o chão, a segurança. Não há lugar onde se possa dormir sem medo de algo ruim

acontecer; frente ao frio não há com o que se cobrir; ele não sabia como catar papelão, não

sabia como arrumar dinheiro. Ao entrar na situação de rua Paulo perde condições que são

básicas para que qualquer pessoa se oriente e se cuide de uma maneira satisfatória. O fim de

sua fala aponta para um caminho que se abre a pessoas que estão morando nas ruas,

freqüentar as doações.

eu conheci... já conhecia umas pessoas que falava, ó... faz o seguinte, vamos subir

pra fazer uma reciclagem e lá em cima tem uma doação vai dá pra nós almoçar.

(SIC)

Dois elementos muito presentes na vida do morador de rua estão citados nesse trecho

da fala de Paulo. O fazer uma reciclagem é uma alternativa de renda que se abre àqueles que

não têm uma forma fixa de trabalho. Apesar de garantir apenas o mínimo para a subsistência,

conforme afirmação dos mesmos é uma fonte de renda que se abre a quem perdeu outras

possibilidades. As instituições que fazem doações são outra alternativa. O caminhar do

morador de rua no dia-a-dia geralmente passa por onde há uma doação. Apesar de a doação

ser a ação de uma instituição que, muitas vezes, oferece outros serviços, o ato de doar é o que

mais atrai o morador de rua.

Ele chegou, me viu no albergue daí falou, e ai mano, o que que vai acontecer e tal...

falei, ó... sinceramente, to totalmente perdido, vô fala a real pra você, não sei o que

que ta acontecendo.. ai ele falou, ó eu to indo pra uma doação lá em cima na Afonso

Pena, lá no Vitório, é logo ali em cima. (SIC)

Paulo fala do sentimento em seus primeiros dias de vida nas ruas quando foi abordado

por um outro morador de rua. Ao ser perguntado sobre o que ia acontecer, o que ia fazer, ele

responde aquilo que vivenciava naquele momento; o sentimento de estar totalmente perdido,

de não saber o que estava acontecendo. O outro morador de rua lhe dá uma direção sugerindo

ir ao Vitório.

Novamente aparece, como parte significativa da realidade do morador de rua, uma

instituição filantrópica que, de alguma forma, se põe a trabalhar ou acompanhar os moradores

de rua. O Vitório era uma instituição de orientação espírita que, em um dia da semana,

oferecia algumas atividades e uma sopa para os moradores de rua.

Peço a Paulo que fale um pouco sobre essas instituições que costuma freqüentar e ele

cita um grande número.

131

Tem a Pastoral, Fundamigo, Manuel Felipe Santiago, que a gente chama de

Japonês, é lá no Santo Antonio... O Glauco é espirita, o Fundamigo é espirita,

Japonês também, a Pastoral é católica e tem o Machado que é evangélica. (SIC)

Paulo enumera algumas das instituições que acompanham pessoas em situação de rua

e ressalta que há entre as mesmas as mais diferentes denominações: espíritas, católicos e

evangélicos.

um dia a gente tava lá na Praça da Rodoviária vendo o que que ia fazer; tava eu,

ele e um doidão, o cara era “vinte e dois” (gíria recorrente entre os moradores de

rua para indicar pessoas que possuem sofrimento mental) mesmo, o verdadeiro

“vinte e dois”. O tempo tava chuvoso e tal...pegamos um jornal e achamos um

rodeio. Era o rodeio do Barreiro, perto de Contagem aqui, ai nós... ó gente a única

alternativa é nós parti pra essa, nem que seja pra gente cata latinha, a gente tem

que se virá. E fomos daqui lá a pé e chuva que Deus manda. (SIC)

Paulo relembra de um dia, talvez um dia comum para o morador de rua, onde estava

sentado em uma praça vendo o que que ia fazer. Essa ausência de uma rotina fixa é

vivenciada, no relato de alguns, como uma angústia do dia-a-dia. Nos albergues destinados a

esse público as pessoas têm que sair muito cedo, geralmente às 6 horas. Assim, o que relatam

é que saem e não têm para onde ir, o que fazer. Há um sofrimento nessa ausência do que

fazer.

Paulo relembra que tava ele, um outro conhecido e um doidão, o cara era “vinte e

dois” mesmo. Nas ruas o termo ―vinte e dois‖ é usado para se referir a pessoas que portam

algum sofrimento mental. A prática do trabalho com pessoas em situação de rua tem

demonstrado que há um contingente de pessoas que sofrem de algum transtorno mental e têm

nas ruas sua única acolhida. Geralmente essas pessoas, por sua própria dificuldade, não

aderem a um tratamento de saúde mental e vivem nas ruas em pleno surto. Além do próprio

sofrimento advindo da saúde mental, são também estigmatizados e excluídos por estarem em

situação de rua.

Outra característica da vida nas ruas é, como já dito em outras oportunidades, a

ausência de uma rotina de trabalho fixo. Na situação relembrada, Paulo relata que encontrou o

anúncio de um rodeio e andaram cerca de 30 km para ver se conseguiam algum bico.

Teve aquela história que acabei quebrando a coluna, depois rasguei o braço e tal e

tal. E agora eu to reciclando mesmo. Aprendi a meter a mão no buraco, ó... comecei

a meter a mão no lixo mesmo e, ultimamente, por exemplo, essa semana, só

trabalhei terça de manhã e quarta de manhã. (SIC)

Paulo relembra eventos acontecidos desde que está vivendo nas ruas. Os

acontecimentos remetem, assim como no caso de primeiro entrevistado, a um corpo que traz

marcas da vida nas ruas. Diz que acabou quebrando a coluna, depois rasgou o braço e tem lhe

132

restado como alternativa de trabalho a reciclagem. Disse que começou a meter a mão no lixo

mesmo. Essa fala é carregada de uma expressão de decepção.

Notamos que o discurso de Paulo é carregado com questões que remetem ao trabalho,

ao desejo de trabalhar. Trabalho para ele expressa ser algo além da simples função; traz algo

de simbólico, de valor pessoal. Ele começa descrevendo sua profissão; vai descrevendo o

contato com o dia-a-dia das ruas e, nesse momento, se frustra ao dizer que aprendeu a meter

a mão no lixo mesmo.

Tento fazer com que Paulo se aprofunde em sua vivência e pergunto sobre como é o

seu dia-a-dia. Ele me responde de forma resumida e direta.

Meu dia-a-dia? É correr... no lixo né.

Paulo responde que sua vida é correr, e correr no lixo. Mais uma vez vemos a

importância do trabalho em sua vida. A ausência desse trabalho resume a vida a correr no

lixo. Ele fala então do desejo de conseguir um trabalho ou fazer um curso para dar outro rumo

a sua vida. Na seqüência de sua fala aparece um elemento da religiosidade que é revelador

para mostrar uma vivência subjetiva de Paulo.

Pra dar outra direção na minha vida. Pra mim essa vida eu acho que já... Se Deus

fez isso assim... pra me dar uma lição ou pra... pra... pra mim cair ne outra coisa,

eu acho que esses dois anos e meio que eu to nessa vida, eu acho que já bastou né.

Eu nunca precisei pedir nada pra ninguém, nunca precisei de chegar e pedir, você

me dá uma camisa? Eu nunca precisei disso. (SIC)

Paulo fala de uma outra vida dizendo que essa já (deu). Em seguida coloca que se

Deus fez isso para lhe dar uma lição, ou para cair ne outra coisa, ele acha que os dois anos e

meio de vida nas ruas já bastou. Reafirma sua condição atual, contrapondo-a com sua vida

anterior, pois nunca havia precisado pedir.

Deus aparece pela primeira vez na fala de Paulo e de maneira espontânea. A sua fala

revela o sentimento de um Deus que põe o humano à prova, um pai que castiga o filho

visando que o mesmo aprenda a lição.

Eu to fazendo dois tratamento de tomar remédio e, na verdade, isso tá me ajudando

a parar de beber. Quer dizer, eu já tava parando. Ai quando eu fui fazer meus

exames eu falei, vou tomar meu último porre. A partir de hoje eu vou fazer meu

tratamento. Parece que isso ai é praga, sabia? Por causa que nessa semana agora,

eu nuca vi tanta garrafa de cachaça na minha frente, parece que o diabo atenta

mesmo. Não... você não precisa fazer tratamento, toma cachaça, toma cachaça. Eu

falei, não. (SIC)

133

Demonstrando uma atitude de cuidado para consigo, Paulo fala que está fazendo dois

tratamentos e que estão ajudando a parar de beber. Ressalta que já estava parando e, quando

teve que fazer dois exames, resolveu que ia tomar seu último porre. Quando decide então que

vai fazer o tratamento e parar com a bebida, Paulo vive uma situação que parece que é praga.

Relata então que quando resolve parar de beber a oferta da bebida passa a ser constante como

a dizer que ele não precisa fazer tratamento e sim tomar cachaça.

Novamente outro elemento da religiosidade aparece na fala de Paulo. Essa oferta de

bebida é vivenciada como uma tentação; parece que o diabo atenta mesmo. O diabo aparece

como aquele que não quer a mudança de vida e se faz presente na oferta daquilo que Paulo

quer evitar: a bebida. É relevante que ele termina sua fala afirmando que superou a tentação e

disse não.

Peço a Paulo que fale um pouco sobre a questão do diabo atentar.

Não... porque você quer ir pra uma linha e o diabo te leva pra outra, tá

entendendo? O diabo te leva pra outra. Tipo assim... eu não to querendo beber.

Quando eu to querendo beber, nunca tem cachaça. (SIC)

Paulo reforça o que disse anteriormente e ressalta o duelo entre a vontade própria e a

vontade do diabo: a tentação. É como se ele quisesse ir pra uma linha e o diabo leva pra

outra. Reafirma que quando não quer beber tem cachaça e quando quer, não tem.

O diabo surge na fala de Paulo como um agente externo e ativo. Ele muda as situações

cotidianas para colocar o humano à prova e fazê-lo escolher.

É... o que eu digo pra você. Quando você tem dinheiro, ela não aparece fácil pra

você, você tem que entrar no mercado e comprar ela pra tomar. Agora, essa semana

que eu não to querendo beber, aonde eu sento sempre tem duas ou três garrafinhas.

(... ) Ai por isso que eu digo que é a tentação do diabo. Porque o diabo não quer

que você saia disso, ele quer que você continue nisso pra você não evoluir. Porque

a partir que eu to bebendo, eu não vou correr atrás. A partir que eu to são, eu sei o

rumo que eu tenho que tomar, o que eu tenho que fazer, quais as atitudes que eu

tenho que tomar. Se você ta bebendo... se você tomar a primeira meu amigo, você

não faz mais nada o dia inteiro. (SIC)

Paulo continua sua fala e ressalta que tem vivido essa tentação desde quando decidiu

não beber. Onde senta sempre tem duas ou três garrafinhas. Afirma então que o diabo não

quer que a pessoa saia da situação, no seu caso do vício da bebida. Ele, o diabo, quer que a

pessoa continue na mesma situação e não evolua. No seu caso, ele sabe que se estiver

bebendo não irá correr atrás, e se estiver são saberá o rumo que tem a tomar, o que tem a fazer

e as atitudes a tomar. Termina colocando a questão que é muito relatada por dependentes de

134

álcool e que aponta para a compulsão da dependência de substâncias alucinógenas, se há a

primeira dose, outras certamente virão.

Fazendo cenário na oficina é que eu senti que to voltando a viver, porque eu não

tava vivendo, entendeu? Eu tava de baixo astral, mas a partir daquele cenário, que

acreditaram em mim me deixaram fazer... quer dizer ... isso que me fez eu me

acreditar mais. Se não tavam em cima de mim, me cobrando e orientando é porque

eu sei fazer o negocio, eu tenho capacidade para isso, posso voltar a fazer isso. Aí

que eu comecei a voltar a vida, porque, nesse tempo que eu to na rua pra mim, eu

to morto. (SIC)

Paulo ressalta a importância que teve para ele participar de uma das oficinas

socioeducativas do Centro de Referência. Escolhe participar de uma oficina que se assemelha

à função que antes ele desempenhava. Afirma então que ao fazer tal atividade sentia-se como

se estivesse voltando a viver, porque antes não tava vivendo. A partir do momento em que

Paulo sente que alguém acredita em seu potencial, ele mesmo passa a acreditar mais em si. A

postura do oficineiro de deixar Paulo à vontade resgata seu potencial de saber fazer algo, de

ter capacidade.

O sentimento é então de retornar à vida. Resgatar o seu potencial de criação e de quem

possui um saber que se contrapõe às perdas sofridas com a vinda para as ruas. Termina a fala

dizendo mais uma vez que nesse tempo que eu to na rua pra mim, eu to morto.

Frente a minha vida? Eu to vendo que eu to... mais aberto a voltar a ser quem eu

era. Porque vamos dizer... até uns dez dias atrás, eu não tava nem aí para vida. Eu

metendo a mão no lixo tava ganhando meu dinheirinho, fumava meu cigarro,

tomava minha cachaça, e tava normal. Dormindo no albergue, dormindo na rua...

eu tava morto, para mim tava tudo normal. Hoje tá diferente, eu to acreditando, me

fizeram acreditar. Quero fazer o curso, quero voltar a ser o que eu era, só que para

isso, eu vou ter que me adaptar a minha nova situação. A situação de um aleijado

né, eu posso falar. Trinta e cinco anos dentro de um teatro, fazendo mudanças, e

hoje... não posso fazer nada disso entendeu? Eu me tornei um primeiro emprego, só

que eu tenho que me adaptar a isso. (SIC)

Pergunto a Paulo como ele se vê hoje frente a sua vida e ele responde que se vê mais

aberto a voltar a ser quem ele era. Apesar das mudanças serem recentes, ele sente que há dez

dias antes da data da entrevista não estava nem ai pra vida. Na sua rotina de vida nas ruas

metendo a mão no lixo ganhava dinheiro para sustentar seus vícios e tava normal. Novamente

relata que se sentia morto, mas tava tudo normal. A des-responsabilização para com a própria

vida se faz presente nessa fala de Paulo.

Mas afirma, na seqüência, que hoje está diferente e está acreditando já que o fizeram

acreditar em si. Aponta então projetos futuros como fazer cursos e poder voltar ao que era.

135

Paulo fala também que terá que se adaptar a nova situação: a situação de um aleijado

que não pode mais retomar a atividade que sempre desempenhou.

Apesar de em inúmeras situações ter vivenciado a possibilidade da morte, quando

pergunto a Paulo sobre como ele se vê diante da mesma, ele nega qualquer sentimento.

Não. Por incrível que pareça sempre pensei nisso, eu nunca me preocupei com a

morte... nunca me preocupei com a morte. (...) Eu não me vejo cara, eu não tenho

medo da morte, tipo assim, to ficando velho, to com cinqüenta anos que nem eu

falei, já to chegando lá entendeu? Não to nem aí. (SIC)

Paulo afirma que sempre pensou nisso, nunca se preocupou com a morte. Diz então

que não se vê morto e não tem medo da morte, porém, a seguir, revela certa preocupação ao

dizer que já está ficando velho, com 50 anos e está chegando lá. Afirma finalmente que não

está nem aí.

Por um lado, essa fala de Paulo aponta para uma forma desresponsabilizada de viver,

mas é contraditória com outros pontos de sua fala em que, frente à possibilidade da morte, ele

reflete sobre sua existência.

Pergunto a Paulo na seqüência, qual é o seu sentido de vida. Ele responde então:

O meu sentido de vida hoje, é eu correr atrás de melhorar cada vez mais, e voltar...

tipo... Eu quero voltar a vida. Eu quero voltar a fazer as cosias que eu sempre fiz na

minha vida, que eu perdi isso a dois anos e meio entendeu. Isso é meu sentido de

vida. Eu quero... eu to com consciência de que eu... não sei se eu vou voltar a beber,

talvez eu volte a tomar uns goles de vez em quando, entendeu? Porque isso é

normal. Quem foi viciado o tempo todo, então... não vou dizer que não vou tomar

uns goles de vez em quando. (SIC)

Paulo diz que seu sentido de vida hoje é correr atrás de melhorar cada vez mais. O

seu sentido de vida é voltar à vida. Fazer aquelas coisas que sempre fez e que perdeu desde

que passou a viver nas ruas, viver neste outro mundo.

O elemento da bebida é algo muito forte em Paulo, que diz que está com consciência

de que não sabe se vai voltar a beber; diz que talvez volte a tomar uns goles de vez em

quando. Acha que isso é normal em quem foi viciado o tempo todo. A bebida surge como um

representante, uma divisão de um mundo e outro, de algo que pode impedir o acesso a esse

sentido de vida.

Talvez tomar uns goles de vez em quando possa ser um passo para uma mudança que

está se construindo em Paulo e que o fará caminhar para a construção de um novo rumo a sua

vida, porém, ele vacila quanto a isso.

136

O entrevistado relata então uma experiência que viveu recentemente de ter conseguido

um dinheiro com reciclagem e entrar em um supermercado para fazer compras.

Nossa... eu me senti voltando ao meu mundo entendeu? Falei, nossa! (expressão de

satisfação) que coisa boa cara. Gastando do meu dinheiro, era o dinheiro que eu

tinha feito a reciclagem de manhã; ganhei uma grana e pensei, vou comprar essas

coisas. Porque é assim, você usa a escova de um; o sabão você ganha nessas

doações... chega lá ganha sabão, roupa, tênis, sapato, o que precisar eles te dão.

Então fazia dois anos que eu tava assim. (SIC)

Paulo relata uma experiência vivida de entrar em um supermercado, depois de mais de

dois anos, segundo ele, e fazer algumas compras. Pergunto pelo seu sentimento com relação a

isso e ele responde que sentiu como se estivesse voltando ao seu mundo. Estava se sentindo

feliz, digno, porque gastava do seu dinheiro; dinheiro que havia conseguido através de uma

reciclagem que havia feito. Assim que conseguiu o dinheiro logo pensou em comprar coisas

das quais necessitava. Lembra que há dois anos não fazia isso porque estava sobrevivendo de

doações e usando coisas emprestadas de outros.

A questão do dinheiro e do poder de compra pode ser analisada de diferentes formas.

Por um lado, podemos interpretar a situação narrada por Paulo como um simples prazer que

uma compra propicia a uma pessoa. Nos casos em que essa compra é abusiva, podemos

interpretar inclusive como futilidade e muitas vezes a tentativa de preencher um vazio interno.

Porém, o dinheiro pode apontar para um sentido quando ele representa a condição real de

fazermos algo para nossa vida, para uma necessidade interna que, necessariamente, passa por

algo material.

Em Paulo podemos perceber que o pouco dinheiro e o ato de comprar tem sentido por

se tornar instrumento de cuidado para consigo. Mais que o valor monetário, esse seu dinheiro

traz um valor simbólico de resgate da dignidade e de uma condição perdida de gerir sua vida.

Até me falaram pra tomar então uma latinha de cerveja em vez de cachaça, e eu

falei, o que eu vou fazer com uma latinha de cerveja? Porque eu tomo cachaça pra

ficar bêbado, pra perde a noção da vida, entendeu. (SIC)

Conta que alguém o recomendou a tomar uma latinha em vez de cachaça, trabalhando

com o mesmo na perspectiva da redução de danos, porém, Paulo se pergunta: o que eu vou

fazer com uma latinha de cerveja? A latinha de cerveja não pode lhe proporcionar aquilo que

busca ao se embriagar; Paulo bebe pra perde a noção da vida.

Porque na real de tomar cachaça é isso, você toma uma garrafa de cachaça você

não tem orientação pra nada, entendeu. O cara que vai beber sabe disso, vai tomar,

vai ficar doido e eu vou dormi. Porque eu na minha consciência eu vou dormi, não

137

vou brigar, entendeu? Aí é isso... eu quero largar disso, quero fazer tudo porque eu

quero voltar... quer dizer, eu já larguei uma parte. Espero que não aconteça de eu

cair de novo nessa, mas... to fazendo de tudo. (SIC)

Ressalta, na seqüência, que a real de tomar cachaça é isso; quando se toma uma

garrafa de cachaça você não tem orientação pra nada. No seu caso, ele afirma que vai tomar a

garrafa de cachaça e vai dormir. Aquele que dorme, como ele mesmo expressou em sua fala

anterior, perde a noção da vida.

Ao mesmo tempo em que sua fala ressalta essa busca de se alienar da condição de

humano, da condição de quem vive e se angustia e deve buscar o seu sentido para viver,

mostra-se dividido e aponta novamente para o desejo de mudança. Afirma que quer largar

disso, quer voltar a viver. Afirma então que já deixou uma parte se referindo aos dias em que

está sem beber e que espera não cair de novo nessa situação; está fazendo de tudo.

Como eu falei pra você, o diabo atenta, atenta demais e atenta mesmo. E o que quê

é que eu quero... me tornar outra pessoa. Vou voltar a outra pessoa que eu era e

que eu não to sendo atualmente, entendeu. Eu não to sendo atualmente que era o

que eu sempre fui na minha vida. Hoje em dia, por enquanto, eu ainda não sou o

que eu quero ser. E eu to tentando chegar lá no que eu quero ser, e eu acho que eu

vou conseguir. (SIC)

O desejo de Paulo aponta para o querer se tornar outra pessoa, voltar ao que era antes

e que não está sendo no momento de sua vida. Porém, novamente aparece um elemento da

religiosidade, o diabo atenta, atenta demais e atenta mesmo. O diabo representa um ser que

não deixa Paulo ser aquilo que quer ser.

A procura de ser aquilo que quer ser aponta também para um desejo de transcendência

em Paulo. Há aqui elementos de um sentido que se pode construir. Há a consciência de se

estar em débito consigo mesmo. Há também o elemento da esperança, ressaltado no primeiro

capítulo, quando Paulo diz que acha que vai conseguir ser aquilo que quer ser.

A Deus... olha, a Deus eu vou te contar, como eu falei pra você, eu não sei se eu to

no castigo de Deus esse tempo, entendeu? Ou se eu to pagando alguma coisa, mas

é... Deus pra mim é tudo. Deus pra mim se não fosse ele, eu não estava aqui, que

nem eu te falei esse negocio da morte. Eu acho que no dia que eu... lá no tempo de

criança que eu quase morri afogado, não era pra eu ter morrido afogado ele me

tirou de lá. No dia que eu cai do viaduto era pra mim tá morto ou aleijado na

cadeira de roda, não tava na hora de acontecer nada disso. Eu acho que foi ele que

me segurou pra mim não morrer, entendeu. O dia que eu quase morri dentro do...

do... parque municipal, foi antes de eu cair do viaduto. Veio três, quatro médicos,

fazendo exercícios assim, até que um me puxou no meu peito e me fez voltar, quer

dizer não era ainda minha hora de morrer. Pra mim, tudo isso é Deus dizendo que

não tá na minha hora, que é pra mim me cuidar. E eu não to me cuidando. Quer

dizer, eu to sendo até um filho bastar... como é que é? Um filho rebelde, entendeu?

(SIC)

138

Peço a Paulo que fale um pouco sobre como ele vivencia Deus em sua vida. Ele inicia

questionando novamente e diz não saber se esse tempo de vida nas ruas é um castigo de Deus;

se ele está pagando alguma coisa. Afirma, porém, que Deus é tudo e que se não fosse Deus ele

não estaria vivo. Relembra então três situações muito marcantes nas quais quase veio a

morrer: uma quando criança, outra quando estava embriagado e caiu do Viaduto de Santa

Tereza e outro quando teve um mal súbito no Parque Municipal de Belo Horizonte, local

muito freqüentado por moradores de rua. Ele acredita que todas essas situações vividas e

superadas é Deus dizendo que não é a sua hora de morrer. Ele sente que Deus diz a ele

também através disso que ele precisa se cuidar.

Paulo pensa e diz que ele não está se cuidando. O sentimento então é de que ele não

cumpre essa vontade de Deus que dá a ele chances de se cuidar. Ele começa a se denominar

como um filho bastardo, mas troca o termo por um filho rebelde.

O termo filho rebelde pode apontar aquele que desafia o pai e faz algo contrário a sua

vontade. É interessante notar, contudo, que sua desobediência é não se cuidar, não cuidar de

sua vida.

Na seqüência Paulo complementa.

Que eu to vendo que ele tá me dando chance, porque é ele se não fosse ele eu já

tinha ido a muito tempo. Se não fosse Deus na minha vida eu acho que eu já teria

até ido já, entendeu? Eu acho que pra mim Deus é tudo na vida, e eu acho que ele tá

com muita... não digo caridade... ou é caridade mesmo. Tá me dando muita chance

e eu não to levando a serio essa chance que ele tá me dando. (SIC)

Paulo acredita que Deus está lhe dando chance, pois, se não as tivesse tido, já havia

morrido. Diz então que Deus é tudo em sua vida e que ele está com muita caridade.

Paulo faz uma reflexão sobre seu modo de vida, quando diz que Deus está lhe dando

muita chance e ele não está levando a sério essas chances, ou seja, ele sente que não está

levando a sério sua vida. É uma reflexão carregada de sentido, pois ele toma consciência de

estar em débito consigo. A conseqüência esperada é que ele passe então a agir de maneira

responsável, caso essa tomada de consciência venha a se transformar em atos concretos.

Pergunto a Paulo o que o faz não aproveitar essas chances, e então traz elementos de

sua religiosidade e que servem de orientações que formam a maneira como ele conduz sua

vida. (SIC)

É o que eu tava... o que eu to dizendo. Tem o lado de Deus, e tem o lado do outro,

entendeu? O outro tá me puxando mais pro lado dele entendeu. Tava... fazendo de

tudo pra mim não ir pra lá. Ele não tá querendo que eu saia dessa linha, entendeu,

ele tá querendo que eu continue assim. Isso aí não é Deus, não é por causa de Deus

139

que eu tava fazendo isso. Eu to numa briga interna entendeu? Uma briga interna

entre dois. E um tá... ou tava não sei... a briga tá forte se eu quero mais um, ou se eu

quero mais o outro. Porque se eu cair do outro lado ruim, aí acabou pra mim. A

minha briga tá sendo forte demais nesse sentido. (SIC)

Paulo vê a vida por dois lados, um é o lado de Deus e o outro, é o lado do outro.

Diferentemente do início da entrevista, Paulo não expressa o nome diabo. Esse outro é como

uma força que o está puxando mais pro lado dele. Esse outro não quer que ele procure outra

direção, mas que continue no caminho da rua e da bebida. Afirma então que isso não é Deus,

pois não é por causa de Deus que ele adota tais comportamentos.

Essa experiência de bem e mal é vivida e descrita por Paulo como uma briga interna,

uma briga interna entre dois. Reforça novamente: Eu to numa briga interna, entendeu? E

sente que a briga está forte se ele quer um lado ou o outro lado. Sente que se cair do lado do

outro, ai acabou.

Deus e o diabo no início são relatados como algo externo. No decorrer da fala Paulo

traz esses dois lados, essas duas forças, para dentro de si, para o seu interior. Além disso, a

questão da escolha aparece em sua fala quando ele afirma não saber se ele quer mais um lado

ou o outro lado, ou seja, cabe a ele escolher.

porque Deus ele te da oportunidade demais, te da muita oportunidade, te da livre

arbítrio, aí é você que vai optar, e eu to tentando optar por ele mas tá difícil, não

vou dizer que ta fácil assim... a minha briga aí fora tá feia. Por isso que eu to

andando mais sozinho, to evitando um tanto de gente. (SIC)

Ratificando a condição da escolha do ser humano e reafirmando sua consciência disso,

Paulo diz que Deus dá oportunidades e dá o livre-arbítrio, cabendo ao homem optar. A ligação

de Paulo com Deus, a sua vivência com o transcendente se faz presente nessa fala, pois ele

poderia dizer que o homem é livre por natureza e por si mesmo, porém, o livre-arbítrio, a

condição de escolha, é dado por Deus. Afirma na seqüência que está tentando optar por Deus,

mas está difícil. Sua briga ai fora tá feia.

Paulo diz então que está andando mais sozinho, está evitando um tanto de gente. Este

andar sozinho pode revelar uma atitude de se voltar para sua vida e pensar sobre suas

escolhas.

Afirma também que andar sozinho é uma forma de evitar entrar em contato com

aquilo que é muito comum no discurso de pessoas que vivem nas ruas.

O papo deles era, eu vou lá pra favela, vou buscar uma pedra, porque isso você

escuta todo dia. Vou lá em cima pegar um cachimbo vou pegar um pedra, você

escuta isso o dia inteiro do “grupo treme treme”, vou pegar um cachimbo e fumar

uma pedra, vou vender isso aqui pra comprar uma pedra, pedra, pedra, pedra... não

140

é isso que eu quero. Eu quero como eu tava ontem, um papo cabeça. Por isso que eu

chamava o “grupo treme, treme”, todo mundo tremendo por falta de cachaça,

entende? Cortei o grupo. Converso com alguns mas o papo deles é só cachaça e

droga, só. Isso eu não quero pra minha vida. Eu quero chegar, sentar num lugar,

poder gastar do meu bolso e trocar uma idéia sadia. Não quero escutar so isso e

ficar sentado e fazer um vaquinha pra comprar cachaça. (SIC)

O que se escuta todo dia por parte das pessoas que vivem nas ruas é que vou lá pra

favela, vou buscar uma pedra, vou lá em cima pegar um cachimbo. A droga e o álcool são

elementos muito vivos na subjetivação dos moradores de rua. Aqueles que buscam fazer o

caminho inverso, o caminho de deixar o uso de drogas e do álcool, tem frente a si grandes

dificuldades. Paulo relata sobre o “grupo treme treme”, expressão usada por um grupo de

pessoas que participavam de uma atividade pela manhã, no Centro de Referência da

População de Rua. Ao tentarem fazer uma atividade de artes manuais, os mesmos

apresentavam tremores acentuados pela abstinência de substâncias alucinógenas, fenômeno

comum em dependentes químicos.

Paulo afirma que cortou esse grupo porque não é isso o que quer para a sua vida. O

que quer, segundo ele, é mudar, sentar num lugar, poder gastar do meu bolso e trocar uma

idéia sadia.

Paulo narra um momento em que participou de um evento promovido pela Pastoral de

Rua, por ocasião da semana santa. Em meio à procissão ele é incumbido de carregar a cruz.

Num momento em que estava parado com a cruz duas crianças chegam e se assentam a sua

frente; ele acha isso maravilhoso, expressa então seu sentimento: que astral legal que está

aqui. O Padre então, nesse momento em que ele estava segurando a cruz, pede que todos a

beijem. Paulo ressalta que não é muito chegado à religião assim, mas sentiu-se maravilhoso

vivenciando essa situação de estar segurando a cruz, crianças próximas a ele e todos beijando

a cruz que segurava. Afirma que nesse momento se sentiu leve, muito suave.

Foi duas coisas, primeiro veio duas crianças e sentou, assim na minha frente, eu

carregando a cruz. achei maravilhoso. Falei que astral legal que está aqui. Aí

mandou beijar a cruz, eu sou muito chegado a religião assim, não entendo muito,

mas ele mandou beijar a cruz e as criancinhas sentadas, e veio todo mundo beijar a

cruz e eu segurando da cruz. Achei maravilhoso aquilo. Naquele momento eu me

senti leve. Naquele momento de ter duas crianças no meu pé e o pessoal vim beijar

a cruz. Eu me senti leve, muito suave. (SIC)

Quando pergunto a Paulo sobre seu sentimento nesses momentos em que tem a

oportunidade de ouvir ou participar de algum momento de religiosidade ele afirma que gosta e

se sente maravilhoso. Essa vivência da religiosidade lhe traz uma paz. Diz que quando vai a

um instituição Espírita procura entrar para ouvir a palestra, gosta de tá la dentro. Acredita que

muita gente vai para ganhar algum brinde, tomar um café ou uma sopa, mas não ele.

141

Gosto. Sinto maravilhoso, me traz uma paz. Tanto que quando ela chama eu entro,

do lado de fora não é legal, eu gosto de tá lá dentro. Na Fundamigo, o pessoal vai

na palestra porque quando acaba tem sabonete, shampoo e vários brindes. Muita

gente vai por causa disso, não vai para prestar atenção no que o cara está falando,

vai lá porque no final pode escolher algum produto, vai tomar um café, vai tomar

uma sopa, e vai embora. (SIC)

Síntese das vivências expressadas por Paulo em sua entrevista:

Pode-se perceber ao longo da entrevista de Paulo, alguns elementos que apontam para

o modo como o mesmo buscou estruturar sua vida nesse tempo em que está vivendo nas ruas

e como as experiências vivenciadas contribuem para a construção de processos de

subjetivação.

Não há um elemento explícito que possa ser considerado como fator preponderante

para a vinda de Paulo às ruas, mas há elementos em sua fala de uma ausência de laços

significativos na vida anterior. Quando da vinda para as ruas, há a expressão de sentimentos

ligados a uma queda para outro mundo; um submundo, que é a vida nas ruas. Frente a essa

queda o mesmo vivencia diferentes situações que sempre apontam para a tristeza, a violência

e uma perda de si. Sente-se como se estivesse morto.

Há uma ligação com o trabalho que é visto como possibilidade de organização pessoal

e um elemento que favorece a dignidade. A ausência desse trabalho, ao contrário, traz o

sentimento de indignidade e de alguém que passa a ser dependente.

A ligação com o álcool é algo também muito marcante na vida de Paulo, que trava

uma luta contra o mesmo. O álcool aparece como necessário para se viver nas ruas; como algo

que adormece Paulo para o sofrimento que tem vivenciado, mas é também um elemento de

perda que procura ser evitado.

Deus e o diabo são forças que agem e convidam para se trilhar um determinado

caminho. Aparecem na fala de Paulo em determinados momentos como forças que

determinam situações e condições e, em outros momentos, como possibilidades. Sendo

possibilidades, Paulo reconhece seu papel de consciente e de quem pode escolher.

Há uma busca de mudança que aponta para a construção de um sentido. Há também a

esperança de que se possa suportar e superar a situação de rua. Paulo vivencia a religiosidade

de uma maneira livre e se liga a momentos de leveza e bem-estar.

142

A religiosidade e a figura de Deus operam de uma maneira positiva e são fontes de

força para a superação do diabo, das tentações, da vida nas ruas, que se difere da vida que

Paulo busca construir.

143

8 CONCLUSÃO:

Busco a partir de agora, apontar os pontos conclusivos desta pesquisa por meio da

análise dos relatos dos entrevistados, objetivando dialogar com as teorias que serviram de

base para o presente estudo. Procuro trazer reflexões sobre os temas que apareceram de

maneira comum na fala e nas vivências dos sujeitos entrevistados. Esses temas, levando-se em

consideração a relevância dos mesmos, podem ser considerados como modos de subjetivação

dessas pessoas em situação de rua.

Inicialmente, buscando fazer um resgate do processo desenvolvido ao longo da

pesquisa, o objetivo inicial era compreender a influência da religiosidade como uma via de

subjetivação de moradores de rua, da cidade de Belo Horizonte. Considero, também como

objetivos outros aspectos importantes dentro da temática da religiosidade nesse grupo de

pessoas, como analisar a presença de elementos da religiosidade e da espiritualidade em suas

falas e modos de vida, buscar compreender o sentido construído pelo morador de rua com

relação à religiosidade e as ressonâncias do mesmo em suas vivências, e analisar também

outros elementos da vida nas ruas que pudessem ser relevantes, sendo vias de subjetivação

dessas pessoas.

Para alcançar esses objetivos foi necessário fazer todo um percurso de teorizações

sobre o humano; o humano morador de rua, a definição do método de pesquisa e das pessoas

a serem entrevistadas.

Posto que o objeto de pesquisa é o ser humano em uma determinada situação social e

sua relação com a dimensão da religiosidade, procedo à reflexão sobre ele dentro de uma

concepção da Psicologia Existencial e lanço mão de construções teóricas que apontam o

homem como um ser buscador de sentido. Dentro desse percurso, a teoria de Viktor Frankl

significou uma valiosa contribuição encontrando na mesma a teorização do homem como um

ser essencialmente movido pela busca do sentido. A capacidade de dotar a existência de

sentido é a característica definidora do que é ser humano, pois é o que pode diferenciar o

homem de todos os outros animais. Tornou-se importante também definir as diferenças

existentes entre aspectos psicológicos que se fazem presentes na vivência e na experiência,

bem como marcar as distinções entre a religiosidade e espiritualidade. Deste modo, tornou-se

claro que a espiritualidade é algo mais amplo que a religiosidade, abarcando-a como uma

possibilidade dentro de algo maior, dessa busca de sentido que representa a espiritualidade.

144

Em um segundo momento, procuro me ater de maneira mais específica à questão da

religiosidade e suas implicações no humano. Fazendo um recorte dentro de autores da

Psicologia, busco as contribuições de dois autores que, de maneira crítica, procuram mostrar

reflexões e analisar o papel da mesma no ser humano. Encontro Freud e Frankl como

representantes de dois movimentos opostos: um que vê a religiosidade como ilusão e

alienação do homem; como estando a bloquear o crescimento do humano em suas dimensões,

e outro que vê a religiosidade e o encontro com o transcendente como promotor de

crescimento do humano e estando a serviço da transcendência e da construção do sentido.

Utilizo também da contribuição de autores ligados a outras ciências para analisar a

religiosidade no contexto atual e num aspecto mais geral dentro do seio da sociedade.

Também como outro aspecto importante dentro do percurso desenvolvido, tornou-se

relevante analisar a literatura científica quanto à questão da população de rua. Conheci, assim,

diferentes definições sobre este público e importantes contribuições para pensar a respeito

dessa questão social e humana, que se faz presente de maneira cada vez mais marcante em

nossa sociedade.

A partir deste percurso inicial foi encontrado o caminho possível para definir os

sujeitos de pesquisa; aqueles moradores de rua que seriam entrevistados, e para definir

também o método de pesquisa mais adequado a analisar tais questões. A fenomenologia se

mostrou, a partir de uma apreensão científica e de uma escolha pessoal do pesquisador, o

método mais adequado para se fazer o processo de entrevista e análise dos relatos.

Optei por apoiar no método fenomenológico de pesquisa, por acreditar que o mesmo

oferece a possibilidade de um mergulho nas vivências e experiências dos sujeitos

entrevistados, proporcionando a oportunidade de ver o fenômeno, neste caso, a vida nas ruas e

o sentimento religioso, como vêem os que estão vivendo essa situação. Foi necessária então a

busca de um maior conhecimento do método fenomenológico de pesquisa e centrar a atenção

sobre a postura do entrevistador, fazendo com que a subjetividade do mesmo não se fizesse

presente causando empecilhos ou distorções.

Ao chegarmos agora à conclusão, pude perceber a importância de todo esse percurso.

Foi possível apreender, ao longo do contato com a teoria e do encontro com pessoas em

situação de vida nas ruas através das entrevistas, a questão da busca do sentido como algo

orientador do ser humano. Chama atenção a importância da dimensão do sentido como um

norteador da existência e como a falta do sentido traz reflexos nas vivências e nos modos de

ser das pessoas.

145

A religiosidade e a espiritualidade também foram percebidas como dimensões

importantes do ser humano e como constituintes da dimensão subjetiva de cada ser em

particular e da vida em sociedade. Tornou-se possível apreender também, de maneira mais

detalhada, a realidade individual e coletiva da população de rua, lançando um olhar mais

aprofundado sobre suas questões sociais e subjetivas.

A escolha da fenomenologia como método de pesquisa colocou-me frente ao objeto de

pesquisa, seres humanos que vivem nas ruas, de maneira aberta e despojada de pré-conceitos.

Propiciou a um verdadeiro encontro existencial e pode contribuir para irmos além das

questões iniciais.

A riqueza do método fenomenológico tornou possível mergulhar nas vivências e

experiências das pessoas em situação de rua e ver estes fenômenos como os mesmo o vêem.

Deste modo, foi relevante perceber a história inicial de cada pessoa e como experiências

vividas podem levar a construções de sentidos distintos. A rua pôde ser percebida como uma

contingência, mas também como uma escolha. Foi possível ver também como a experiência

de viver nas ruas favorece novas formas de subjetivação e a estruturação de uma vida

diferente pautada, nem sempre, em aspectos positivos ou constituintes de um movimento

existencial voltado para o crescimento enquanto pessoa.

Frente a tudo isso, posso afirmar que o encontro existencial com os moradores de rua

ensinou para além dos objetivos iniciais. Constituiu-se como um verdadeiro encontro levando

ao conhecimento e ao aprofundamento das subjetividades dessas pessoas que moram nas ruas

e gerou inquietações e outras reflexões que se estendem para além daquilo que era o esperado

no início do trabalho.

Talvez a principal contribuição desse estudo foi mostrar a realidade subjetiva de

moradores de rua, da maneira como os mesmos apreendem essa realidade, ver pelos olhos dos

mesmos e analisar suas subjetivações como os mesmos a estruturam.

Não se pretende apontar aspectos conclusivos no sentido de um fechamento, mas, a

exemplo da premissa do método fenomenológico, espera-se que este estudo possa ser o lançar

de um olhar sobre essas questões para que outros olhares possam aprofundá-los num

constante movimento do desvelar dos seres e das subjetivações. Pode esse estudo ser fonte de

reflexão também das dimensões subjetivas de pessoas em situação de vida nas ruas, levando a

considerá-las no momento de se pensarem intervenções e políticas públicas para os mesmos.

Quando, ao longo do percurso, busquei definir o que se pode entender por população

de rua, foram encontradas definições que, em sua maioria, se referem à caracterização de um

146

público marcado pela pobreza; falta de recursos financeiros, ausências de laços significativos

e de trabalho fixo. Notei que ser morador de rua não significa apenas ser marcado por esse

contexto, mas adquirir outros referenciais de vida e também novas formas de subjetivação

diferentes dos anteriores que eram baseados em valores reconhecidos socialmente como

positivos, como trabalho, moradia e laços sociais. Entende-se que esses novos valores e novas

formas de vida que são adotados pelos moradores de rua constituem-se como novas formas

subjetivas, vias e processos de subjetivação. Interessou assim saber sobre esses processos de

subjetivação que a vida nas ruas propicia.

Cabe ressaltar que um dos objetivos iniciais que apontavam para o questionamento

sobre a presença de elementos da religiosidade na fala e nas vivências de pessoas em situação

de rua foi comprovado. Ao longo das entrevistas, de maneira espontânea, foram surgindo

elementos que apontavam para a ligação das pessoas entrevistadas com aspectos da

espiritualidade e da religiosidade. Além desses aspectos religiosos, as entrevistas nos

colocaram frente à possibilidade de encontrar e analisar outros elementos constitutivos da

subjetivação de pessoas que vivem nas ruas, apontando para a riqueza do material que ali se

expunha: as vivências dessas pessoas.

Pode-se afirmar que a religiosidade constitui-se uma importante via de subjetivação

em pessoas que vivem nas ruas, na cidade de Belo Horizonte. A vida do morador de rua se

articula a partir determinadas vivências e experiências significativas que se estruturam como

um contexto diferenciado. Esse contexto influencia a subjetivação dessas pessoas,

contribuindo para a organização de formas singulares de vida. A religiosidade pode ser

apontada, assim, como uma via de subjetivação.

A partir de agora, serão abordados temas que apareceram de maneira comum e

marcante no discurso dos entrevistados. Será tratada a questão da religiosidade presente na

vida dessas pessoas, como a mesma se faz uma via de subjetivação e também a questão da

busca do sentido na vida de pessoas em situação de rua.

O encontro existencial com pessoas em situação de rua provocou também a

necessidade de pensar sobre outros aspectos que se fazem de grande relevância na vida dos

mesmos, vias de subjetivação das vidas nas ruas. Assim, busquei, ao final, lançar reflexões

sobre esses temas, como a visão da sociedade sobre o morador de rua e a sua autovisão; o uso

intenso de álcool e drogas, o corpo marcado pela violência da vida nas ruas, o freqüentar das

doações e a serviços públicos.

147

8.1 Concluindo a partir dos objetivos

8.1.1 A religiosidade como via de subjetivação

Dentre os elementos da religiosidade propriamente dita, expressos pelos entrevistados,

é importante ressaltar que os mesmos revelaram uma ligação com Deus como o ser

transcendente. Essas representações de Deus são carregadas de intencionalidades.

As representações de Deus feitas pelos moradores de rua apontam, de forma

preponderante, para a subjetivação em duas direções. Por um lado, um pai que perdoa; um pai

misericordioso. Deus é alguém que abarca a existência e traz conforto frente às adversidades.

Em outros momentos, Deus aparece também, na fala dos mesmos entrevistados, como um pai,

que, apesar da misericórdia e do perdão, pune e repreende. A própria realidade de viver nas

ruas pode ser uma prova colocada por Ele como forma de punir esse homem.

Quando Marcelo afirma que todos os dias faz uma entrega da sua vida a Deus; que Ele

é aquele que sabe de sua vida, percebe-se a presença de um Deus companheiro na solidão das

ruas. Diz: eu entrego a minha vida todo dia quando eu acordo, e quando eu vou dormir; na

mão de Deus. Só Deus que agora que sabe da minha vida. Anteriormente, o mesmo Marcelo

já havia dito que já faz mais de 20 anos que ele optou por não mais procurar nenhum dos seus

familiares. Afirmou que desde então sua companhia tem sido somente Deus; é ele e Deus.

É relevante a fala de Marcelo quando pergunto-lhe sobre o momento mais difícil que

ele viveu em todo esse tempo de rua. Ele responde que foi o momento em que sentiu o que é a

solidão. Relata o momento em que passou natal e ano novo no hospital e ninguém sequer lhe

desejou felicidades nessas datas. Nesses momentos de solidão apenas Deus surge como

companheiro, pois, desde que veio para as ruas, é só com Deus que conta como companhia.

O sentimento de solidão é uma vivência comum relatada por moradores de rua. Os

mesmos expressam a solidão frente à condição de invisibilidade social em que vivem. Deus

acaba por ser um refúgio e um companheiro. Fato semelhante foi relatado pela Irmã Cristina

Bovi, Presidente nacional da Pastoral de Rua, em entrevista de caráter exploratório realizada

com a mesma no prédio da Pastoral de Rua de Belo Horizonte, em 19 de Setembro de 2008.

148

Segundo a mesma, Deus é alvo de sentimentos positivos e de companheirismo. Ela relata

então a seguinte passagem:

Tô lembrando agora da E. , não sei se você conhece ela; tá trabalhando no Reciclo

agora. Ela disse que ela tem um caderno, ela contou numa entrevista, é um caderno

que ela escrevia cartas para Deus... porque não tinha outro jeito de poder se

comunicar. É muito bonito... ai ela sentava na rua... no tempo que ela morava na

rua, e ela escrevia cartas pra Deus (risos..) né... ela contou isso. (Entrevista

realizada com a Irmã Cristina Bovi em 19/09/08)

No caso de Marcelo o mesmo se aplica quando ele afirma que nos últimos 20 anos tem

sido apenas ele e Deus. Desde que sua esposa veio a falecer e ele não se sentiu apoiado pelos

demais parentes, ele faz a opção de não mais procurá-los e Deus é sua companhia.

Segundo Frankl (2007), onde o conhecimento não tem mais utilidade ou possibilidade

de acesso é que surge a fé. Pela fé, aquilo que é incompreensível não precisa ser inacreditável.

Assume-se a fé a partir de uma decisão existencial.

―Deus é o parceiro dos nossos mais íntimos diálogos conosco mesmos. Na prática,

isso significa que sempre que estivermos totalmente a sós conosco, quando

estivermos dialogando conosco na derradeira solidão e honestidade, é legítimo

denominar o parceiro desses solilóquios de Deus, independente de nos consideramos

ateístas ou crentes em Deus. Essa diferenciação torna-se irrelevante dentro dessa

definição operacional.‖ (FRANKL, 2007, p. 113)

Em sua fala, Marcelo aponta Deus como um ser supremo, cabendo a ele saber sobre a

vida do homem. Só o pai e o filho e o espírito santo que vai saber qual é o seu dia e qual é

sua hora, se chegar hoje, no momento em que eu descer essa escada ai, ele me levar, fazer o

quê?

Vemos que, para ele, Deus, na manifestação da santíssima trindade concebida pela

Igreja Católica como o pai, o filho e o espírito santo é o único que pode saber o dia e a hora da

morte. Na visão e na vivência de Marcelo quanto a isso não há o que fazer; Deus é quem pode

levar o humano. O termo levar, da forma relatada por Marcelo, indica uma ação de Deus que

leva o homem para outra realidade: a da salvação. Leva para consigo.

Essa concepção de Deus como senhor da vida não leva Marcelo, pelo menos no

momento atual, a ter uma postura de não cuidado com a vida. É o que se pode notar quando

ele afirma que está se esforçando; trabalhando e pedindo a Deus. Apesar de se deparar com

tribulação, como o mesmo afirma, ele sente que se fizer sua parte Deus estará ao seu lado. Há

a subjetivação de um Deus que é companheiro nas dificuldades. Mas eu peguei com fé a ele,

lutando, eu consegui levantar, ele me levantou, mas através de mim e com fé com ele, hoje ele

me colocou em cima, ai ó.

149

Segundo Marcelo, ele sente que se fizer sua parte Deus o ajudará. Sua vida encontra

possibilidade no apoio de Deus. Ele ressalta, porém, que cabe ao homem, no seu caso a ele

mesmo, fazer sua parte. Deus aparece como uma força transcendente que o auxiliará na

superação das dificuldades. Ele procura deixar marcado que pra falar de Deus você tem que

ser fiel a ele, fiel a ele. Não é só falar de Deus aqui e amanhã você virar as costas pra ele;

você tem que ser fiel. A fidelidade a Deus é sentida como parte necessária à reestruturação de

sua vida.

Para Paulo, o segundo entrevistado, ao longo do relato sobre sua vida nas ruas, Deus

aparece, em determinados momentos, também como um ser transcendente. É também uma

força que cuida dos humanos. Deus pra mim é tudo. Deus pra mim se não fosse ele, eu não

estava aqui. Quando relata várias passagens dolorosas de sua vida como ter sido roubado;

passado fome e ter sofrido acidentes nas ruas, ele reafirma Deus como um pai que cuida dos

filhos, que cuidou dele.

Esse cuidado de Deus faz despertar em Paulo o questionamento do próprio cuidado

com sua vida. Pra mim, tudo isso é Deus dizendo que não tá na minha hora, que é pra mim

me cuidar. E eu não to me cuidando. Quer dizer, eu to sendo até um filho bastar... como é que

é? Um filho rebelde entendeu? Ele se interroga sobre o que Deus quer dizê-lo lhe dando

novas oportunidades e reflete sobre a necessidade de se cuidar. Deus é assim subjetivado

como alguém que cuida e que chama a atenção para o autocuidado.

Essa expressão verbal de se reconhecer como filho de Deus que não está cumprindo a

vontade do pai aparece de maneiras distintas, no relato de Paulo e de Marcelo. Deus é aquele

que está dando chances para que os mesmos revejam suas posturas, mas eles sentem que não

estão aproveitando tais chances. Entende-se esses questionamentos como carregados de

sentido; se vale viver a vida dessa forma.

Ocorre uma distinção, contudo, quando Deus deixa de ser considerado como algo

externo que controla a vontade e as escolhas dos homens e aparece então como parceiro do

humano. O humano passa a ser visto como um ser consciente de suas escolhas e

possibilidades. Aparece a dimensão da liberdade e da responsabilidade.

Pode-se notar isso em Marcelo, quando ele afirma que não culpa ninguém por estar

hoje nessa situação; diz que poderia ter entregado a perda da esposa e do filho nas mãos de

Deus e ter levado em frente seus projetos, então, culpa apenas a si mesmo. Ou seja, frente à

perda sofrida ele tem consciência que escolheu; talvez uma escolha não sadia, mas fez uma

escolha frente à sua condição de liberdade. Não houve uma determinação de Deus.

150

Já Paulo, ao longo de sua fala, chega a apontar Deus como um ser punitivo e

castigador e, como poderá ser visto na seqüência, atribui também a outro ser, o demônio,

ações que prejudicaram sua vida. Sua fala muda de sentido quando posteriormente ele diz que

está não no meio de uma briga entre Deus e o demônio, mas em uma briga interna, e não sabe

qual lado irá vencer: se aquele Paulo que quer sair das ruas ou o Paulo que quer continuar nas

ruas e bebendo. Deus e o demônio deixam de ser seres fantásticos e externos ao homem para

serem considerados como dimensões do humano, representantes do bem e do mal; do sadio e

do doente, da mudança e da estagnação. Possibilidades.

Se as falas descritas acima apontam para a subjetivação de Deus como um pai bom,

nos relatos dos mesmos entrevistados aparece Deus como alguém que pune o homem pelos

erros cometidos, castiga e põe à prova. Nota-se isso na fala de Paulo, quando o mesmo diz

que:

se Deus fez isso assim... pra me dar uma lição ou pra... pra... pra mim cair ne outra

coisa, eu acho que esses dois anos e meio que eu to nessa vida, eu acho que já

bastou né (...)como eu falei pra você, eu não sei se eu to no castigo de Deus esse

tempo, entendeu? Ou se eu to pagando alguma coisa...

A fala de Paulo é reveladora e aponta a subjetivação que o mesmo faz da sua vinda

para as ruas. Apesar de ter narrado situações vividas, perdas sofridas, a escolha de romper

laços e o envolvimento com o álcool, Paulo ainda percebe a vinda para as ruas como uma

vontade de Deus. Estar nas ruas é como se fosse parte de um plano traçado por Deus para que

ele aprenda alguma lição.

Ao afirmar isso Paulo revela a idéia de um destino preconcebido por um ser superior

que tudo ordena. Perde-se nesse momento aquilo que, conforme Frankl (2007), pode

diferenciar o homem de outras espécies, sua dimensão de atribuir sentido a sua vida. Perde-se

a noção da responsabilidade e da liberdade que, de acordo com o autor, é a possibilidade que

tem o ser humano de dar respostas e lançar-se em sua existência.

Torna-se relevante analisarmos um pouco mais detalhadamente essa vivência, pois

voltar-se para Deus como possibilidade de sentido não significa ter uma vida preestabelecida,

ou seja, Deus não deve ocupar o lugar de definidor do ser humano e de seu destino como algo

dado a priori, pois, nesse aspecto, Deus deixa de estar, na direção de encontrar um sentido e

passa a ser um limitador dessa possibilidade, desse caminho do homem. Caso ocorra esse

fechamento, caminha o homem para a alienação em torno de Deus e da religiosidade. A

religiosidade vivenciada dessa forma caminha para a direção de se tornar bloqueadora do

desenvolvimento humano (Amatuzzi, 2001). Assemelha-se ao que Marx (2005) objetivou

151

mostrar quando afirmou que a religião é ópio do povo, apontando que a religião, no contexto

analisado pelo autor, permitia explicar e legitimar as relações sociais desiguais. Trata-se de

um papel ideológico por excelência, pois são essas idéias religiosas que legitimavam e

explicavam as relações sociais.

Se, por um lado, Deus é alvo de sentimentos ligados a um pólo positivo, de superação

e de mudança, o diabo aparece como um pólo negativo, representando a tentação e a

estagnação na situação de rua; na morte anunciada pela vida nas ruas. Paulo chega a afirmar

que trava uma briga com o diabo quando diz que você quer ir pra uma linha e o diabo te leva

pra outra, porque o diabo não quer que você saia disso, ele quer que você continue nisso pra

você não evoluir. Estaria assim o diabo como uma força que age no sentido contrário ao

desejo de mudança do homem e à vontade de Deus. Em oposição, Deus seria uma força

positiva, que age como um representante das mudanças que o homem almeja e busca.

É relevante a fala de Paulo quando ele personifica a vontade ou a ação do diabo em

algo que, pelo seu relato, tem sido um ponto fundamental em sua vida nas ruas, em mantê-lo

nas ruas, o vício da bebida. Ele diz parece que o diabo atenta mesmo. Não... você não precisa

fazer tratamento, toma cachaça, toma cachaça. A cachaça, aquela que em sua fala faz a

pessoa perder a noção da vida, é parte do plano do diabo para que ele continue na mesma

forma de existência: na vida nas ruas.

A subjetivação do demônio como um ser que se faz presente na vida da pessoa deixa

Paulo frente a um dilema existencial. Deus representa um caminho positivo, uma saída. O

demônio representa um caminho negativo, a estagnação. Deus aponta para a transcendência e

o demônio para a imanência. Há uma duplicidade de sentidos atribuídos no seu discurso

quando, por um lado, Deus e o demônio, principalmente o demônio, são forças que movem o

homem e, por outro lado, são possibilidades de escolha do homem.

É o que eu tava... o que eu to dizendo. Tem o lado de Deus, e tem o lado do outro,

entendeu? O outro tá me puxando mais pro lado dele entendeu. Tava... fazendo de

tudo pra mim não ir pra lá. (...) Eu to numa briga interna entendeu? Uma briga

interna entre dois. E um tá... ou tava não sei... a briga tá forte se eu quero mais um,

ou se eu quero mais o outro.

Não cabe aqui, nem é intenção, fazer apontamentos ou questionamentos sobre a

orientação religiosa dos entrevistados, mas perguntar pela religiosidade como forma de

subjetivação, estando ela ao lado da construção de um sentido ou não. Porém, é relevante

apontar que, ao longo das entrevistas, alguns termos utilizados pelos entrevistados nos

revelam a influência de formas religiosas específicas na visão de mundo dos mesmos.

152

Frente a tudo isso, podemos reafirmar que a religiosidade faz parte da subjetivação e

da vida das pessoas em situação de rua. Superar essa condição social envolve para os

entrevistados, além do acesso a emprego, moradia fixa e outros valores sociais, a superação

das tentações do demônio e a entrega a se fazer a vontade de Deus.

Inicialmente, marquei uma dimensão da religiosidade, que é a ligação com um ser

denominado Deus e encarado como um ser transcendente, porém, ao longo das entrevistas,

outros elementos da religiosidade foram se fazendo presentes. É importante dizer que os

entrevistados não relataram vivências da religiosidade anteriores a vinda para as ruas.

Contudo, a condição de morador de rua favoreceu-os à possibilidade de conhecer diferentes

manifestações religiosas. Nenhum dos entrevistados fez uma adesão radical e exclusiva de

determinada forma religiosa. Pode-se dizer que os mesmos têm constituído um verdadeiro

mosaico religioso, colhendo contribuições e influências de diversas orientações religiosas.

Ainda que, em determinados momentos, a participação religiosa seja motivada pela

necessidade de receber algo nas doações, é possível afirmar que os moradores de rua

entrevistados buscam e encontram algo mais que a satisfação da simples necessidade básica.

Seja como forma de aumentar o ciclo de relações interpessoais, como alento à dura realidade

das ruas, a religiosidade se revela como algo positivo.

Paulo relata a vivência de um rito religioso no qual participou de maneira ativa,

inteirada, apesar de não se afirmar católico, orientação religiosa à qual pertencia a celebração.

Com relação ao sentimento que experimentou ao longo dessa celebração, ele descreve da

seguinte maneira: Achei maravilhoso aquilo. Naquele momento eu me senti leve. Naquele

momento de ter duas crianças no meu pé e o pessoal vim beijar a cruz. Eu me senti leve,

muito suave. Essa fala nos remeta à noção de vivência. Há um sentimento que é mobilizador

de ressonâncias internas para Paulo. O mesmo sente-se leve e suave. Talvez não constitua

uma experiência no sentido de ser algo que trará reflexões e mudanças na sua maneira de

atuar no mundo, mas, naquele momento, contribuiu de maneira positiva.

Essa vivência religiosa pode ser considerada como algo que favoreceu um momento

de transcendência. É assim que se entende a contribuição da religiosidade nessas pessoas.

Contudo, é necessário questionar se essa forma de transcendência se constitui algo positivo.

Julgo que o critério para saber se a transcendência é boa, se potencia o ser humano

ou o diminui, está na resposta que damos a essa pergunta: em que medida tal

experiência ajuda a enriquecer e a assumir o cotidiano? Ela representa uma fuga ou

um álibi para o cotidiano, um endeusamento e uma fetichização daquilo que

representa sentido para nós? Se a experiência não amplia nossa liberdade, não nos dá

mais energia para enfrentar os desafios do cotidiano, comum a todos os mortais, não

nos faz mais compassivos, generosos e solidários, podemos seguramente dizer:

153

fizemos uma experiência de pseudotranscendência. Saímos mais empobrecidos em

nossa realidade essencial, que é a de existências que se constroem com decisões de

liberdade, assumindo honestamente os desafios e estando à altura deles. (BOFF,

2000, p. 55, 56)

Pode-se afirmar, baseando-se na fala de Paulo e também na de Marcelo, que a

religiosidade é uma transcendência boa (Boff, 2000) justamente porque, para as pessoas em

situação de rua, ela aparece em seus relatos como fonte de energia para superar as situações

cotidianas da rua. Ela auxilia essas pessoas na situação de assumirem o cotidiano, buscando

sustento e possíveis mudanças. Está assim a serviço da busca e constituição de sentido. Pode-

se questionar a qualidade do encontro religioso entre a pessoa em situação de rua e o ser

transcendente, mas não se pode questionar o caráter de abertura e sustentação que a

religiosidade pode oferecer.

Marcelo se afirma católico e diz que freqüenta a missa todos os domingos, porém, isso

não surge como impedimento para que ele vivencie e se aprofunde em outras denominações

religiosas.

Igreja católica mesmo. (...)Eu freqüento. Leio o livro de Alan Kardec... tô lendo o

livro dele; já li o livro dele, de Alan Kardec, agora tô lendo o Chico Xavier. (...)eu

me sinto bem, eu gosto de ler o livro de Alan Kardec, só que é um livro que você

não pode cair em fundamento dele demais senão ó (faz sinal rodando o dedo

indicador em volta do ouvido como quem diz: “fica doido”). Ele conta entre o vivo

e o mortal, é muita coisa?

A fala de Marcelo remete ao que afirma Bittencourt Filho (2003), quando o mesmo diz

que na sociedade atual o indivíduo tem tomado para si a tarefa de moldar a própria síntese, de

construir sua religiosidade privada. A religiosidade atual se mostra mais livre e difusa, sendo

ato de quem crê moldar essa síntese.

Nesse mesmo sentido, a fala de Marcelo corrobora o que diz Hervieu-Léger (2008), ao

afirmar que a modernidade trouxe uma mudança na maneira de ser religioso das pessoas. Para

a autora, a sociedade atual trouxe uma dinâmica marcada pela mobilidade das pertenças

religiosas. Enfraquece a tradicional figura do praticante religioso e aparecem duas figuras que

representam essa dinâmica do movimento: a figura do peregrino e a do convertido. Segundo a

autora, a figura do peregrino remete à fluência dos percursos espirituais individuais e a

mobilidade da associação temporária. O peregrino assume para si a responsabilidade de fazer

sua forma religiosa.

Pode-se afirmar que para os moradores de rua entrevistados não interessa aderir a uma

forma religiosa determinada e exclusiva, mas vivenciar de forma livre a religiosidade. Talvez

na fala de Marcelo a religiosidade já se aprofunde um pouco, refletindo assim no seu dia-a-dia

154

e em suas ações, ou seja, o mesmo caminha no sentido de fazer uma experiência religiosa.

Não... o importante pra mim eu tô ali livre, livre, ouvindo a palavra de Deus. Eu me sinto

bem ta vendo. Essa afirmação de Marcelo revela que a vivência da religiosidade se faz de uma

forma livre. A religiosidade aqui está a serviço de um senso de liberdade e de vivências

positivas. Ele se sente bem ouvindo a palavra de Deus. Ao mesmo tempo afirma que

freqüenta a Igreja Católica e lê livros da doutrina Espírita, ou seja, não há uma preocupação

com a religião instituída, mas sim com a vivência livre de uma religiosidade que aproxima o

ser humano de uma realidade transcendente.

Vê-se, assim, que a religiosidade favorece vivências positivas e, portanto, se

estabelece como uma via de subjetivação que contribui para a construção de saídas positivas

frente à situação de rua.

Se determinadas falas apontam para uma morte em vida e para a ausência de um

sentido para a existência, a religiosidade aponta para a possibilidade da construção de um

sentido de vida, da mudança para uma nova vida, uma nova realidade social e para a

construção de outras realidades. A religiosidade, para Frankl (2007), pertence ao campo das

decisões pessoais. A religiosidade pode ser inconsciente, mas não é um impulso, faz parte de

uma escolha.

―A verdadeira religiosidade não tem caráter de impulso, mas, antes, de decisão. A

religiosidade se mantém pelo caráter de decisão, e deixa de sê-la quando predomina

o caráter de impulso. A religiosidade ou é existencial ou é nada. (...) Para nós, no

entanto, a religiosidade inconsciente e, de modo geral, todo inconsciente espiritual

constituem um ser inconsciente que decide e não um ser impelido a partir do

inconsciente. Para nós, o inconsciente espiritual e, sobretudo, a religiosidade

inconsciente, ou seja, o inconsciente transcendente, não são um inconsciente

determinante, mas existente‖ (FRANKL, 2007, p. 61, 62)

Identifica-se a religiosidade no relato de Marcelo como caminhando na construção de

um sentido. A religiosidade é encarada como liberdade e como algo que o faz bem. Para

Frankl (2007), a religiosidade possui efeitos psico-higiênicos e até psicoterapêuticos. Ela

propicia à pessoa uma sensação de incomparável proteção e ancoramento que não podem ser

encontradas em outro lugar, a não ser na transcendência, no absoluto. Na Psicoterapia,

acontece um semelhante efeito no qual o paciente pode reencontrar fontes de uma fé original,

inconsciente e reprimida.

Se se remeter a Amatuzzi (1999) com relação ao que o mesmo afirma sobre a teoria do

desenvolvimento religioso, nota-se que, para o autor, na fase da vida em que os entrevistados

estão inseridos o grande desafio é o de descobrir um novo sentido para tudo, um sentido mais

pessoal no sentido de que está dentro de si. Com relação ao desenvolvimento religioso:

155

A religião, ou qualquer sistema de fé, se torna mais pessoal. Se existia uma rigidez

na prática religiosa ou de alguma filosofia de vida, a descoberta de uma verdadeira

liberdade pode levar ao abandono da religião ou daquele sistema de fé. Mas pode

levar também a um aprofundamento, se é que neles existia objetivamente algo mais

profundo a ser descoberto. Se no passado a pessoa tinha abandonado a religião como

expressão de sua confiança básica, é possível que a reencontre nessa fase da vida,

descobrindo seu valor em alguma forma de experiência nova. (AMATUZZI, 1999,

p. 137, 138).

Encontramos em Frankl (2007) uma definição de religião que se aproxima muito da

noção de religiosidade que as pessoas em situação de rua revelaram em suas falas. Frankl

(2007) adota uma postura contracorrente, ao se fazer um teórico religioso, e novamente adota

uma postura contrária à da maioria dos autores religiosos quando afirma uma concepção

diferente da religião.

― Não há dúvida que essa nossa concepção de religião tem muito pouco a ver com

estreiteza confessional e sua conseqüência, ou seja, a miopia religiosa que parece ver

em Deus um ser que basicamente só pretende uma coisa: que o maior número

possível de pessoas creia nele e ainda bem do jeito prescrito por uma denominação

determinada. Simplesmente não consigo imaginar que Deus seja tão mesquinho.

Igualmente acho inconcebível uma igreja exigir de mim que eu creia. Afinal não

posso querer crer – assim como também não posso querer amar, da mesma maneira

como também não me posso forçar a ter esperança, quando tudo evidencia o

contrário. Afinal, existem certas coisas que não se podem querer e que, portanto,

também não se conseguem querendo ou ordenando‖. (FRANKL, 2007, p. 78)

É também reveladora a afirmação de Frankl (2007) quando diz que a direção da

religiosidade não seria a de caminhar no sentido de um coletivo universal, mas sim de uma

religião enquanto decisão pessoal do homem em direção a Deus.

Não estamos caminhando em direção a uma religiosidade universal, mas antes para

uma religiosidade pessoal, profundamente personalizada, uma religiosidade a partir

da qual cada um encontrará sua linguagem muitíssimo pessoal, sua linguagem

própria, mais originalmente sua, ao voltar-se para Deus. (FRANKL, 2007, p. 79)

Todo o exposto acima serve para fundamentar a religiosidade como uma importante

via de subjetivação de pessoas que estão na condição de moradores de rua, na cidade de Belo

Horizonte. As contribuições aqui elaboradas não se pretendem ser conclusivas nem

definitivas, mas aponta possibilidades de análises e possíveis contribuições para se entender o

humano morador de rua, em suas especificidades.

8.1.2 A questão do sentido nos moradores de rua

156

É possível pensar que há um sentido de vida nos moradores de rua, ou essas pessoas,

mergulhadas na esfera da necessidade, perderam o sentido de suas existências e vivem de

maneira errante pelo mundo?

A partir das análises dos relatos dos moradores de rua, é possível perceber que há uma

pergunta pelo sentido que perpassa os discursos dos mesmos e a religiosidade aparece como

possibilidade de poder ser uma resposta para tais questões, não a única. Talvez não se

identifica um sentido geral e fechado para a vida nos discursos dessas pessoas, mas há

elementos de um constante impulso na busca do sentido.

Frankl (2007) afirma que não é o ser humano quem faz a pergunta pelo sentido da

vida, mas ao contrário, ele é interrogado pela vida e deve dar respostas, que serão sempre

dadas através de atos. As perguntas vitais só podem ser respondidas, segundo Frankl, pelas

ações. As respostas são dadas pela responsabilidade assumida pela existência em cada

situação. A existência só pode ser de cada um se for responsável. Para e Existencialismo e a

Logoterapia, o verdadeiro ser humano não é aquele que é movido por instintos, mas é um ser

que decide, responsável. O humano começa onde deixa de ser impelido, determinado. Ele

acaba quando deixa de ser responsável.

Ao longo da presente dissertação, buscou-se, a partir da teoria de Viktor Frankl,

fundamentar a visão da Logoterapia que norteia o humano como um ser que busca o sentido

em todas as situações vividas. Atribuir sentido à existência é, nessa teoria, justamente aquilo

que diferencia o humano dos outros animais.

Ao se analisarem as vivências relatadas pelos moradores de rua, notam-se elementos

que se referem, de alguma forma, à questão do sentido. Por um lado, há a perda do sentido de

vida que se manifesta em atitudes de descuido para com o próprio ser, por outro, há também

momentos em que os entrevistados apontam para a busca do sentido de vida. Se o mesmo

ainda não foi encontrado, eles não perderam também a noção dessa busca.

A situação de vida nas ruas, como procurou-se contextualizar ao longo da dissertação,

é marcada pela exclusão social e pelo sofrimento físico e psíquico. Pode-se afirmar que, frente

a condições tão adversas de existência, aquele que vive nas ruas vive numa situação-limite.

Muitos elementos e vivências de seu dia-a-dia podem indicar a ausência de sentido e a

possibilidade da morte, tanto a física quanto a morte das possibilidades. Escorel (2000) chega

a afirmar que, frente a tantas condições adversas, existem pessoas que sobrevivem de

teimosas, cita como exemplo, os moradores de rua. O que a autora chama de teimosia pode-se

entender em Frankl (2007), como sentido de vida, um motivo para permanecer vivo. Mesmo

157

com um cenário negativo é possível encontrar um sentido para a vida. Conforme Frankl

(2007), há sentido em qualquer situação, mesmo no suicídio.

Marcelo dá um exemplo dessa busca que o morador de rua faz pelo sentido, por algo

que possa orientar e dar sustentação à vida nas ruas. Não encontrei ainda o que eu queria

encontrar, mas eu sei que até chegar lá eu ainda vou encontrar meu objetivo ainda. Nota-se

então que há uma procura por esse algo que preenche o vazio da existência.

Isso vai também ao encontro do que afirma Frankl (2007) que o que importa não é dar

sentido, mas encontrar um sentido. A vida equivale assim a um enigma a ser decifrado. O

sentido não pode ser inventado, mas precisa ser descoberto. Descobrir o sentido é, assim, algo

único e individual e faz parte da responsabilidade de cada ser humano para consigo próprio.

Na fala de ambos os entrevistados, há a expressão marcante de um desejo de se

conseguir trabalho. Não afirmamos que o trabalho constitui-se como um sentido, mas, pode

estar como a representar um sentido maior. O trabalho e mesmo o desejo de fazer cursos são

encarados como a possibilidade de saída da situação de rua. Estão a serviço da

transcendência, à medida que podem permitir a essas pessoas que estão vivendo nas ruas uma

mudança. Há a possibilidade de se desprender da rua, do imediato e almejar algo futuro. Neste

sentido o desejo de um trabalho fixo pode ser entendido como um desejo de se constituírem

vínculos estáveis.

Pode-se ver na fala de ambos essa expressão pelo desejo do trabalho. Marcelo diz que

meu projeto agora, que eu to vivendo agora, meu único projeto, eu quero conseguir um

emprego, sabendo? Tê uma vida digna, uma vida digna que eu posso ter emprego, ter o meu

dinheiro e ter a minha vida. No mesmo caminho a fala de Paulo aponta que o meu sentido de

vida hoje é eu correr atrás de melhorar cada vez mais, e voltar... tipo... Eu quero voltar a

vida. Eu quero voltar a fazer as coisas que eu sempre fiz na minha vida, que eu perdi isso há

dois anos e meio entendeu.

Segundo Frankl (2007), o sentido não se refere apenas a uma situação determinada,

mas também a uma pessoa determinada que está envolvida numa situação determinada. Não

só se modifica, como é diferente de pessoa para pessoa.

Entretanto, sentido não se refere apenas a uma situação determinada, mas também a

uma pessoa determinada que está envolvida numa situação determinada que está

envolvida numa situação determinada. Em outras palavras, sentido não só se

modifica de um dia para o outro e de uma hora para outra, mas também é diferente

de pessoa para pessoa. Ele é sentido ad situationem e não só ad personam.

(FRANKL, 2007, p. 85)

158

Estar vivendo nas ruas é assim uma morte. É a morte das possibilidades e a perda do

sentido de vida. Os caminhos que apontarem assim para a superação dessa situação de vida

estão a serviço da busca pelo sentido, pelo sentido de se reencontrar enquanto ser humano,

livre e responsável.

Marcelo, ao falar sobre sua vida e sua vinda para as ruas, analisa então sua existência

como um todo. O fato de não encontrar um sentido que oriente sua vida é sentido então como

um fracasso de si mesmo.

Eu vou falar aqui a verdade; do jeito que eu tô vivendo, não tô vivendo... a vida,

quem faz a vida é você, eu não reclamo nada da vida, eu não reclamo... igual eu

falei, se eu tô desse jeito. Eu podia passar a borracha naquilo lá da morte da minha

mulher e entregar na mão de Deus e continuar a minha vida. Hoje eu tava um

homem aposentado pelo porto, tinha minha casa, tinha tudo. Mas eu... eu fui um

fracasso de mim mesmo. Eu fui fracasso, eu mesmo me fracassei, eu fracassei.

Ao mesmo tempo o entrevistado mantém a firme convicção de que irá superar sua

situação e encontrar algo, uma mudança. Esse ideal tem-no motivado a fazer ações concretas

para que possa alcançar tais mudanças. Um exemplo dessas ações é o fato de o mesmo

diminuir o uso da bebida. Assim, o sentimento de algo a ser alcançado e mudado aparece

como a manifestação de um sentido.

Eu acredito que um dia eu pelejo e vou passar por cima, eu não vou ficar nessa pro

resto da minha vida, ou senão eu vou pra eternidade.(...) Mas eu acredito, até o

final da minha vida, eu tenho certeza que eu vou ter uma mudança, não sei como

mas eu vou ter uma mudança. (...) O meu sonho mesmo é ter uma casa, um canto

pra mim mesmo, um emprego pra mim mesmo. Ai eu levanto, eu já vou deitar

sabendo que amanhã eu já sei pra onde que eu vou. Agora viver numa vida dessa ai

num dá né?

Esta fala de Marcelo mostra a saída de uma situação e o desejo de se lançar em algo

diferente. É um sinal da transcendência que se faz presente, impulsionando-o ao caminho de

encontrar o sentido.

Na realidade, a existência humana sempre já vai além de si mesma, já está sempre

indicando um sentido. Neste sentido o que importa à existência humana não é prazer

ou poder, nem auto-realização, mas antes o cumprimento de sentido. Na Logoterapia

falamos de uma vontade de sentido. O sentido é uma barreira além da qual não

podemos avançar, mas que simplesmente precisamos aceitar: esse sentido último

temos que aceitar porque não podemos perguntar além dele; pois se tentarmos

responder à pergunta pelo sentido do ser, já se pressupõe o ser de sentido‖

(FRANKL, 2007, p. 76)

Ou seja, para Frankl (2007), há um sentido maior que não é apreensível ao humano

por meios humanos. Aqui deixa de aparecer o sentido apreensível, no qual não há

possibilidade de se acessar por meios racionais; entra em cena a fé em algo maior. Segundo

159

Frankl (2007), o crer não é apenas uma fé em Deus, mas uma fé mais abrangente em um

sentido. Fazer a pergunta pelo sentido da vida significa ser religioso.

Frankl (2007) afirma que a consciência é um órgão de sentido que orienta o homem a

buscar encontrar o mesmo em todas as situações. Contudo, Frankl ressalta que a própria

consciência pode se enganar.

―A consciência também pode enganar a pessoa. Mais ainda: até o último instante,

até o último suspiro a pessoa não sabe se ela realmente cumpriu o sentido de sua

vida ou se ela apenas se enganou. (...) o fato de que nem no nosso leito de morte

saberemos se o órgão de sentido, nossa consciência, em última análise não foi vítima

de uma ilusão de sentido também implica que uma pessoa não sabe se não é a

consciência do outro que tinha razão. Isso não quer dizer que não exista verdade.

Somente pode haver uma verdade; mas ninguém pode saber se é ele e não o outro

que a possui.‖ (FRANKL, 2007, p. 85/86)

A partir de Frankl (2007), pode-se afirmar que é sobre esse sentido real, apreensível e

calcado na vida presente a que podemos ter acesso. O sentido amplo, aquele que diz de toda

uma vida, não se pode acessar imediato, mas a partir da apreensão desse sentido colocado em

cada situação é que se abre terreno para o acesso a esse sentido maior. Não se pode negar esse

sentido amplo.

―Ao iniciarmos nossa discussão sobre o sentido na acepção da Logoterapia, já

mencionamos que o sentido se refere ao sentido concreto de uma situação com a

qual uma pessoa igualmente concreta é confrontada. Além disso, existe logicamente

um sentido último, mais amplo. Porém, quanto mais amplo for o sentido, menos

compreensível será. Trata-se do sentido do todo, do sentido da vida como um todo.

E acredito não ser digno de um Psiquiatra, ou de qualquer cientista, negar de

antemão a simples possibilidade de um tal sentido universal com base em

pressupostos apriorísticos ou doutrinações ideológicas.‖ (FRANKL, 2007, p. 104)

Destacam-se a partir de agora, outros pontos que apontamos como vias de

subjetivação nas pessoas em situação de rua.

8.2 O novo do encontro: outros temas vividos como vias de subjetivação

8.2.1 A visão do morador de rua pela sociedade e a sua autovisão

A realidade de se tornar mais um morador de rua dentro de um universo maior de

pessoas que se encontram nessa situação coloca um sujeito que, na maioria das vezes, possuía

160

outras orientações e outros valores em uma situação que aponta para uma perda destes

valores. O morador de rua é apenas mais um dentro da massa excluída.

Aos poucos aquele que passa a viver nas ruas vai assimilando outra estrutura de vida

que, contudo, é permeada por valores negativos em sua maioria e desvalorizada pela

sociedade de maneira geral. Isso vai, aos poucos, produzindo novas subjetividades marcadas

pela negação da realidade de vida e também do passado.

É interessante notar que, como nos relatos dos entrevistados, muitas pessoas em

situação de rua fazem a opção de não mais procurarem os parentes ou pessoas importantes do

ponto de vista dos laços anteriores. Isso pode ser motivado por inúmeros fatores: um deles

pode ser por vergonha da situação, o sentimento de queda. De acordo com Erikson (1976),

mesmo os adultos maduros e não neuróticos temem a possibilidade de um vergonhoso

descrédito. Estar na rua, ser um morador de rua, pode estar relacionado a este vergonhoso

descrédito. Matta (1997) aponta nesta direção ao afirmar que, no Brasil, casa e rua são

categorias sociológicas. Trazem consigo ideologias que são permeadas de força e determinam

olhares.

Quando digo então que casa e rua são categorias sociológicas para os brasileiros,

estou afirmando que, entre nós, estas palavras não designam simplesmente espaços

geográficos ou coisas físicas comensuráveis, mas acima de tudo entidades morais,

esferas de ação social, províncias éticas dotadas de positividade, domínios culturais

institucionalizados e, por causa disso, capazes de despertar emoções, reações, leis,

orações, músicas e imagens esteticamente emolduradas e inspiradas. (MATTA,

1997, p. 15)

Paulo, quando relatou seus primeiros dias nas ruas, lembrou-se daquilo que lhe

disseram a respeito das pessoas que pernoitavam no albergue. Disseram a ele que lá tem um

monte de ladrão, monte de viciado, monte de tudo. Uma coisa que sempre me falavam, não

vai pra Tia Branca. Tia Branca só tem ladrão, só tem traficante, só tem usuário de droga,

uma pancadaria, toda hora tem briga e não mentiram nada, tudo era verdade. Quando

passou a freqüentar esse mesmo espaço, um serviço público destinado a pessoas em situação

de rua, Paulo concorda com a afirmação. Ele mesmo generaliza o estigma que se estende aos

moradores de rua sem se perceber como mais um em meio a tantos. Apesar de, até ali, ter sido

um cidadão responsável e que sempre trabalhou, possuía uma rede de laços e tinha planos, ao

entrar nas ruas passa a ser apenas mais um, até para ele mesmo.

Em casa somos todos, conforme tenho dito, supercidadãos. Mas e na rua? Bem, aqui

passamos sempre por cidadãos anônimos e desgarrados, somos quase sempre

maltratados pelas chamadas autoridades e não temos nem paz, nem voz. Somos

rigorosamente subcidadãos. (MATTA, 1997, p. 20)

161

Na fala de Paulo a rua é sentida como um submundo, assim, sua entrada nessa situação

é também sentida como a entrada em um submundo. Quando sai eu comecei, tipo assim, me

senti... não sei como é que eu poderia dizer que eu me senti naquela hora que eu tava caindo

num mundo mesmo de... num sub mundo no caso.

A fala de Marcelo é também carregada de sentimentos quando afirma que, durante

esse tempo em que vive nas ruas, sua vida está parada. Parei no tempo. Não faço nada, num

trabalho, num faço nada né? Parei de tudo. Tudo isso, todos esses sentimentos que nascem

da vivência das ruas acaba por levar à subjetivação de que não se é mais um ser humano como

outro qualquer; não se é mais um cidadão.

A discriminação se faz presente em inúmeras situações e de diferentes maneiras. Com

relação à busca de um trabalho nota-se que isso se faz muito presente. Que... nóis somos

muito maltratados porque se você chega numa firma você pode levar um currículo desse

inteiro e a primeira coisa que eles procura saber, “você mora aonde?” A... eu moro no

albergue. “Que que é albergue?” a... mora tantos homens lá e tal... “Cê é albergado?” É.

Essa dificuldade de acesso ao trabalho formal acaba por perpetuar a exclusão social. É

reflexo, por um lado, da falta de qualificação das pessoas que vivem em situação de rua e, por

outro lado, reflexo também da visão discriminatória que se estende sobre os moradores de rua.

Dar emprego a uma pessoa que vive nas ruas é algo impensável para a maioria das empresas.

O fato que é relatado por muito moradores de rua é que, devido à ação e à postura de

alguns que vivem nessa situação, todos sofrem as conseqüências, sendo colocados como

iguais.

Marcelo fala sobre a autovisão de sua condição e situação social. O sentimento que

aflora em sua subjetividade é o de se sentir semelhante a um cachorro. Bater na porta da casa

dos outros ou restaurante e ficar ali ó... se sobrar é seu. Igual cachorro, fica lá esperando o

resto. Se sobrar é seu, se não sobrar ó... “não sobrou nada”. Então aquele nada, você já tem

que esperar aquilo lá mesmo procê comer. Relata também, através da fala de outros, o local

em que aquele que vive nas ruas é colocado pela sociedade de maneira geral: vagabundo,

ladrão. É difícil, mas fazê o que? Fica ai na porta de um e outro pedindo, levando aquilo que

todo mundo brasileiro aprendeu: “Vai trabalhar vagabundo”. Ou senão eles te vem com um

tanto de pedrada em cima de você. Ou senão “vai roubar pra você comer”.

Superar a situação de rua envolve um processo de auxiliar essa pessoa a reencontrar

papéis e identidades positivas. Através desse resgate é que pode aflorar o desejo dessa pessoa

em superar essa situação social e de vida.

162

8.2.2 Sobre álcool e drogas

Ao longo do capítulo em que trata especificamente do morador de rua buscando expor

seus principais dilemas e tecer uma possível definição para esse público, vê-se que, dentre as

várias definições existentes, todas destacam o uso de álcool como uma das características

marcantes das pessoas que vivem nas ruas.

Inúmeras interpretações podem ser feitas com relação a esse uso abusivo do álcool.

Torna-se inclusive difícil determinar se o morador passa a abusar desse uso por vir para as

ruas ou vir para as ruas se relaciona com o vício anterior. O uso do álcool pode ser

considerado como causa, mas também como efeito.

Paulo relata a questão do uso do álcool nas ruas.

Na rua eu não dormia sem tá bêbado. Na maloca; debaixo da marquise a gente

chama de maloca, toda maloca sempre tem cachaça e a gente sempre bebe pra

dormir tranqüilo. Correndo o maior risco de ficar desmaiado e alguém chegar e te

fazer qualquer coisa. Esse é um risco que você corre todo dia.

Neste sentido a bebida acaba por ser uma forma de fugir da realidade cruel e que

amedronta a pessoa em situação de rua. Ainda que se corra risco, é melhor estar bêbado que

viver esse risco de maneira consciente.

Contudo, se se remeter a Boff (2000) referindo ao que ele chama de transcendência

boa, vê-se que o álcool e as drogas acabam por funcionar como uma transcendência ruim e

que não leva o homem a encarar e mudar a realidade.

Há também uma pseudotranscendência que a cultura atual promove de forma

inflacionada. Acho que todo esse universo do marketing, do show bizz, do

entretenimento nacional e mundial são os campos onde se produzem uma

experiência de pseudotranscendência. (...) E a maior de todas elas é a droga. Ela

permite uma viagem fantástica, feita não pela espiritualidade, mas pela química. A

religião, a arte, o cinema podem ser drogas. Com elas rompem-se todos os limites,

vive-se a onipotência e se voa para além dos limites da condição humana cotidiana.

O problema da droga não é a viagem, é a volta da viagem, quando então não se

suporta mais o cotidiano. O cotidiano que é a imanência, que é a rotina chata, a

obrigação diuturna de trabalhar, de levantar, de seguir horários, de pagar contas,

tudo isso é estafante e enervante. Então, é muito melhor viajar, saltar para fora

dessas limitações, artificialmente, a preço de destruir a liberdade e a vida. (BOFF,

2000, p. 54, 55)

163

A partir das formulações de Boff (2000) entende-se o uso do álcool e também das

drogas como uma tentativa de responder a um anseio interno, a dor que se faz presente,

porém, é uma resposta temporária e que apenas limita o horizonte de liberdade dos sujeitos.

Quando Paulo é interrogado sobre o que o levou a superar tantas adversidades, sua

resposta indica uma falta de sentido frente ao vivido. Ele diz: Olha... eu nunca parei para

pensar nisso não. Só sei que várias vezes, quando eu passei por isso... perdido mesmo. Eu me

agarrei na garrafa né.

O álcool, assim como as drogas, conduz as pessoas a uma viagem e proporciona

sentimentos de bem-estar que, geralmente, traz sentimentos contraditórios e ligados à

depreciação de si mesmo. Talvez no primeiro momento o uso do álcool possa até favorecer a

uma transcendência por permitir àquele que bebe uma saída da situação imediata, porém, é

uma falsa transcendência que, ao se esgotar, mergulha ainda mais fundo aquele que nela se

apoiou.

Na seqüência é o próprio Paulo quem fala sobre o objetivo de beber. Porque eu tomo

cachaça pra ficar bêbado, pra perde a noção da vida, entendeu. (...) Porque na real de tomar

cachaça é isso, você toma uma garrafa de cachaça você não tem orientação pra nada,

entendeu. O cara que vai beber sabe disso, vai tomar, vai ficar doido

―Sentido precisa ser encontrado, mas não pode ser produzido. Aquilo que se pode

produzir ou é sentido subjetivo, mera sensação de sentido (sinngefühl) ou é absurdo.

Entende-se, então, que a pessoa que não mais consegue encontrar sentido em sua

vida, nem consegue inventá-lo, tenta fugir do sentimento cada vez mais forte de falta

de sentido e produz ou algo absurdo ou um sentido subjetivo: enquanto um se

desenrola no palco – teatro absurdo! – , o outro se produz no inebriamento,

sobretudo naquele produzido pelo LSD. Neste caso isso ocorre com o risco de se

viver ao largo do sentido verdadeiro, das tarefas autênticas lá fora, no mundo (em

contraste com a vivência de sentido apenas subjetiva, dentro de si mesmo).

(FRANKL, 2007, p. 84)

Uma relevante pesquisa foi realizada no Centro de Referência da População de Rua,

no ano de 2009, e contou com uma amostra de 245 homens adultos. Tal pesquisa buscou

identificar questões relacionadas à saúde mental de pessoas em situação de rua. A motivação

para a pesquisa, entre outros motivos, partiu também dos dados encontrados nos dois censos

realizados na cidade de Belo Horizonte.

Nos dois censos, os problemas psiquiátricos foram os mais declarados, sendo,

portanto, um dos principais problemas de saúde coletiva encontrados nas ruas. Nesta

categoria incluem-se os problemas relacionados ao uso de drogas, lícitas e ilícitas;

egressos de hospitais psiquiátricos e pessoas com distúrbios mentais temporários e

permanentes. (BOTTI et. al., 2009, p. 3)

164

Segundo Botti et al (2009), os moradores de rua, em função do uso de álcool e drogas,

tornam-se mais vulneráveis a problemas físicos e mentais, além dos acidentes e agressões

decorrentes de conflitos relacionados a esse uso. Ou seja, pensando na questão da saúde física

e mental, o uso de álcool e outras drogas contribuem de maneira decisiva para a manutenção

de uma pessoa em situação de rua e pode funcionar como um agravante desses casos,

colaborando inclusive para uma forma descuidada de viver.

Associando-se aos achados deste estudo sugere-se que o uso de álcool seja o

principal problema de saúde mental deste grupo social. Por este viés, trabalhar com

a saúde da população rualizada implica necessariamente atuar com as questões

decorrentes deste problema, pois se reconhece que o uso de drogas, tanto lícita

quanto ilícita, atua como determinantes da entrada, permanência e saída da rua e do

comprometimento dos laços familiares e vínculos empregatícios. (BOTTI et. al.,

2009, p. 9)

Com relação ao uso de álcool em números quantitativos, a pesquisa aponta resultados

preocupantes e que, comparados à população geral, indicam números superiores com relação

ao uso de álcool entre moradores de rua.

Verifica-se que 17,55% são abstêmios, 21,22% apresentam uso de baixo risco, 20%

uso de risco, 9,80% uso nocivo e 31,43% são prováveis dependentes. Nota-se que

61,22% dos participantes apresentam uso de risco de álcool. Do total de

participantes, 46,94% revelaram ter consumido 5 ou mais doses de álcool em uma

única ocasião. (BOTTI et. al., 2009, p. 6)

Outros dados relevantes apontados por Botti et. al. (2009), mostram que o uso nocivo

de álcool e a provável dependência encontram-se primordialmente nos adultos maduros; há

uma maior freqüência do padrão de risco do uso de álcool entre pessoas que estão na situação

de rua, em um período maior que seis anos. Verifica-se também que o uso de baixo risco tem

maior prevalência naqueles moradores de rua que utilizam instituições públicas, como, por

exemplo, o albergue para dormir.

Destes apontamentos conclui-se que é necessário pensar em políticas públicas que

venham a atuar sobre esse público formado por adultos maduros, de forma a auxiliá-los na

saída das ruas e no tratamento de sua dependência. O trabalho com tal público revela que

quanto mais tempo passa e a pessoa, por conseqüência, vai envelhecendo nas ruas, a angústia

se manifesta de maneira mais intensa, sendo um possível motivo para o uso nocivo do álcool.

Aponta também a necessidade de se pensarem estratégias que levem a encurtar o tempo de

saída das pessoas das ruas, pois, as pesquisas dão mostras de que, quanto mais tempo a pessoa

vive em situação de rua, mais difícil sua saída.

165

Outro fato relevante é que os equipamentos públicos se revelam importantes

estratégias na redução de danos causada pelo uso do álcool. Sendo assim, faz-se necessário a

criação ou ampliação dessa rede pública de atendimento ao morador de rua.

O morador de rua torna-se vulnerável a múltiplos fatores de risco para a saúde que se

associam, e são intensificados, à condição de extrema pobreza. Os problemas físicos e

mentais podem, em parte, ser explicados pela condição desfavorável de vida e as formas

subjetivas que se produzem nesses contextos.

8.2.3 O corpo marcado pelas ruas: A violência

Segundo Moreira, Abreu e Oliveira (2006), pode-se afirmar que na teoria de Frankl o

encontro com outro não é apenas importante, mas indispensável. As relações interpessoais

são, assim, expressão de um encontro existencial entre um eu e um tu no qual se inscreve o

reconhecimento da singularidade do outro. Já em Freud a busca da felicidade é vista como

uma busca individual.

A violência, para Frankl (1989), aponta para uma ação não-humana e impessoal. Ela é

desumanizadora. A superação da violência para o autor só pode ser alcançada por uma

vontade de sentido compartilhada e pela busca de um sentido que inclua o outro através da

solidariedade mútua. É relevante lembrar que Freud (1976), no texto O futuro de uma ilusão,

chama a atenção que, apenas frente às grandes catástrofes, quando a natureza revela o seu

poder esmagador frente ao homem, é que os humanos dão conta de se unir.

A violência em Frankl (1989) se remete a uma falta de sentido transcendente. O autor

afirma que pode haver causas psíquicas, emocionais e até econômicas para a violência, mas

não existe sentido no ato violento; o sentido não habita o campo da violência. Como o sentido

é característica essencialmente do humano, podemos afirmar que o ato violento é um ato

subumano.

A vida do homem só adquire sentido quando este se supera, transcende a sua

existência e se apreende como uma peça constituinte de um todo, por meio do

reconhecimento de si mesmo como um elemento relevante para sua constituição.

Por conseguinte, o reconhecimento do valor que adquire a existência de um ser

para o seu entorno circundante confere sentido à sua vida. (MOREIRA, ABREU E

OLIVEIRA, 2006, p. 634, 635)

166

É fato notório e reconhecido que, culturalmente, ao espaço denominado como rua são

atribuídos sentimentos ligados ao medo e ao perigo. Nas grandes cidades, de maneira

marcante, estar nas ruas, principalmente à noite, é estar sujeito a inúmeros riscos, como um

assalto ou algum tipo de violência física. Algumas pessoas, após viver um desses eventos

traumáticos, evitam o espaço da rua, estabelecendo, em alguns casos, um quadro de fobia.

No caso do morador de rua há um convívio constante com esse sentimento. O morador

de rua está imerso nesse universo das ruas e, por isso, sofre de maneira direta e contínua os

reflexos da violência. Muitos moradores de rua tornam-se também violentos e passam a

reproduzir esses atos, sejam voltados a outros moradores de rua ou à sociedade de uma forma

geral.

Tanto Marcelo quanto Paulo expressam a questão da violência nas ruas, que se faz

ainda mais presente à noite. Paulo afirma que dormir na rua é o maior perigo. Eu graças a

Deus não tenho briga com ninguém, mas por qualquer coisa os cara enfia a faca. No mesmo

sentido Marcelo procura ressaltar que a noite que você passa na rua, é um dia que você tem

de Vitória porque você deitou e levantou no outro dia. É uma vitória que você conta na sua

vida. A noite, para aqueles que dormem nas ruas, traz além do frio e da solidão, o medo. É

quando se está exposto a um risco ainda maior. O medo representa a possibilidade de poder

ser um dos próximos a sofrerem a agressão.

Ambos os entrevistados têm histórias para contar que se remetem a vivências e

passagens permeadas pela violência. Paulo expressa o seguinte: eu já vi várias mortes ai na

madrugada, o cara tá dormindo e chega outro e enfia a faca no cara e já era, ai no outro

dia... já vi já. E Marcelo relembra a situação que vivenciou em outra cidade. Disse que viu

uma pessoa tirá o chinelo do cara assim; colocar fogo, algodão, joga álcool e coloca fogo no

meio dos dedos do camarada. Colocar fogo num camarada deitado dentro do carrinho.

Marcelo, ao procurar expressar como sente a noite nas ruas, diz: Cê dorme, a morte

perto de você e você não vê. Ai só Deus mesmo que ta ali pra proteger você. Porque o

homem é falho. O homem pra chegar, pra fazer uma covardia com você não custa nada.

Novamente Deus e sua proteção é depositário da esperança dessa pessoa para que possa viver

essa situação.

Pode-se afirmar que essa violência explícita passa a constituir-se como uma via de

subjetivação no sentido em que o dia-a-dia desse morador passa a se estruturar sobre esses

elementos e os sentimentos ligados à violência.

167

O próprio discurso do morador de rua passa a ser contaminado com esses elementos da

violência, das drogas e da criminalidade. Nota-se isto na fala de Paulo quando, se refere a um

grupo de amigos que tem tentado evitar.

O papo deles era, eu vou lá pra favela, vou buscar uma pedra, porque isso você

escuta todo dia. Vou lá em cima pegar um cachimbo vou pegar uma pedra, você

escuta isso o dia inteiro do “grupo treme treme”, vou pegar um cachimbo e fumar

uma pedra, vou vender isso aqui pra comprar uma pedra, pedra, pedra, pedra...

A sociedade, segundo Damergian (1988), deveria funcionar como uma mãe que

favorece o desenvolvimento dos seus filhos, porém, o que se pode notar é que cresce a

destrutividade, a falta de consideração pelo humano, entre outros aspectos negativos. Assim, o

que tem predominado na vida em sociedade é o componente destrutivo. Isso leva à alienação

das pessoas, de seus direitos humanos. A população de rua sofre tais conseqüências em

medida acentuada, pois é oprimida pela desigualdade social e humana. A partir das

contribuições de Freud (1976), conclui-se que a sociedade continua a avançar a passos

distintos entre o avanço científico e tecnológico e o trato com o humano.

A violência na situação de rua se faz presente de uma forma direcionada ao outro.

Além disto, é também voltada para si mesmo, para o próprio morador de rua. A subjetivação

de um corpo marcado pelas ruas, pela violência nas ruas, é algo que também se faz presente

nos moradores de rua.

A consciência de se ter um corpo biológico faz parte da subjetividade humana.

Quando se é apenas um bebê há uma fusão do pequeno vivente com o corpo de sua mãe. Aos

poucos, a criança vai se desenvolvendo e tomando consciência de que há uma separação, uma

distinção entre o seu corpo e o mundo externo. Nesse momento é que o ser humano deixa de

ser apenas um vivente para se tornar humano, um ser.

Esse corpo biológico, na verdade, extrapola o aspecto biológico e se torna um corpo

subjetivado e erotizado, sendo mais um componente da subjetivação do humano. Quando se

olha no espelho, o humano percebe o aspecto aparente de um ser subjetivado.

Muitos moradores de rua trazem em seus corpos a presença de marcas que

representam fatos e vivências ocorridas nas ruas. A maioria dessas marcas são heranças de

atos violentos que sofreram ou do estado de descuido que passaram a viver desde que estão

em situação de rua.

O uso permanente do álcool é um elemento que acaba por facilitar pequenos ou graves

acidentes. Há um número considerável de pessoas que por estarem embriagas são atropeladas;

168

outros são vítimas de violência física por motivos banais ou violentados pelos próprios

companheiros de rua.

Paulo relata alguns episódios que vivenciou nas ruas e que deixaram, além de marcas

subjetivas, marcas no seu corpo que carrega e o faz lembrar a todo momento. Teve aquela

história que acabei quebrando a coluna, depois rasguei o braço e tal e tal.

Em uma situação extrema ele acabou caindo do alto de um viaduto por estar bêbado.

Ele afirma ter quebrado a coluna. Tal fato não aconteceu, pois, caso acontecesse, fatalmente o

mesmo teria perdido o movimento de seus membros inferiores. Porém, ele passou a conviver

com uma limitação física que o acompanhará para sempre.

Também Marcelo fala de suas marcas trazidas pela vida nas ruas. Eu tenho uma

platina aqui nessa perna aqui (me mostra a perna) que ela fica sempre mais inchada que essa

aqui. E essa vista esquerda eu não enxergo dela. Ambas as situações aconteceram depois que

Marcelo passou a viver em situação de rua.

Ele relembrou também do episódio em que foi agredido por um outro morador de rua

com quem tinha uma relação de proximidade. Ai, quando pensei que nada, ele meteu a faca

aqui.

O corpo marcado pela agressividade e a violência das ruas é assim um elemento de

subjetivação da vida de moradores de rua. Os anos vividos nas ruas deixarão, além de marcas

internas, marcas na exterioridade dessas pessoas. É fato relevante que os três entrevistados

têm cicatrizes ou limitações de suas atividades, devido a eventos acontecidos nas ruas. Além

disso, um dos entrevistados lamentou de maneira angustiada o fato de ter contraído uma

doença grave depois do tempo em que veio para as ruas.

―Cada vez mais o ser humano moderno é acometido de uma sensação de falta de

sentido, que geralmente vem acompanhada de uma sensação de vazio interior, aquilo

que descrevi e denominei de vazio existencial. Manifesta-se principalmente através

de tédio e indiferença. Neste sentido, o tédio representa uma perda de interesse pelo

mundo, enquanto a indiferença significa uma falta de iniciativa para melhorar ou

modificar algo no mundo‖. (FRANKL, 2007, p. 100)

O vazio existencial se faz presente através do tédio e da indiferença. São formas

também de uma auto-agressividade que se manifesta nos moradores de rua. O vazio

existencial para Frankl (2007) não deve ser entendido apenas como uma neurose noogênica

ou psicogênica; pode ser entendido como uma neurose sociogênica. A sociedade

industrializada procura satisfazer todas as necessidades possíveis, ela até mesmo cria as

necessidades para depois satisfazê-las. Porém, a necessidade de sentido é frustrada pela

sociedade.

169

A industrialização traz consigo conseqüências iminentes, como a urbanização

desenfreada que desarraiga as pessoas, alienando-as de suas tradições e dos valores por ela

transmitidos.

Frankl (2007) aponta como fruto dessa concepção social a constituição de uma

síndrome de neurose de massa constituída por uma tríade: dependência (de drogas, álcool),

agressão e depressão. Para ele as mesmas têm sua origem, comprovadamente, na sensação da

falta de sentido.

Moreira, Abreu e Oliveira (2006) apresentam a concepção da violência para Frankl

ressaltando que para o autor a violência é desumanizadora e a solução para a mesma está em o

homem buscar a autotranscendência em contraposição a uma existência egoísta.

Segundo sua concepção, a violência é um empobrecimento e uma descaracterização do

humano; portanto, ela é desumanizadora. Em sua ótica antropológica humanista, a

superação da violência deve ser concebida pela via da autotranscendência, isto é, por

meio da superação de uma existência egoísta. É na experiência da moralidade e da

sociabilidade que o homem pode desvelar o sentido que a alteridade confere à sua vida.

É, portanto, sedimentando sua existência na autotranscendência que o humano encontra

sua realização. Assim, o homem pode realizar suas potencialidades na

autotranscendência quando encontra um sentido fora de si mesmo, no encontro autêntico

com o outro que permite a sociabilidade, garante a conduta moral e ultrapassa a

dimensão da violência. (MOREIRA, ABREU E OLIVEIRA, 2006, p. 627)

É interessante pensar que se vive em uma sociedade industrializada e de consumo que

se apóia no individualismo para criar seus mecanismos consumistas. Ou seja, uma sociedade

que exalta a existência egoísta. Será uma sociedade formadora de sujeitos violentos?

Pode-se afirmar também que, no caso de pessoas que moram nas ruas, devido ao fato

já levantado de estarem em uma condição acentuada de pobreza e vivendo mergulhadas na

esfera da necessidade, essa existência egoísta se faça presente até mesmo como mecanismo de

defesa. Isso levaria então, na visão da teoria de Frankl, ao surgimento de uma existência

violenta.

É relevante apontar que entre os moradores de rua é comum ouvir a seguinte

expressão: Eu não tenho nada a perder. Isso justificaria entrar em qualquer situação e não

fugir dos conflitos; é a vida loka. Apoiando-nos em Freud (1976) é de se supor que a

população de rua represente uma parcela de pessoas que estão descontentes com a civilização,

já que a mesma não os provém com o mínimo para uma existência digna. Cabe ressaltar,

contudo, que não se refere aqui à população de rua como um todo, pois, se assim fosse, estar-

se-ia caindo no mesmo erro de generalizar um estigma sobre todos os moradores de rua.

É relevante ao final desse tópico salientar que a vida na sociedade atual tem mostrado,

de forma às vezes assustadora, o crescimento de atos violentos. A se pensar no panorama

170

atual e o que relatam os jornais, são inúmeros casos de agressões, assassinatos, corrupção,

pedofilia, mortes no trânsito, entre outras tantas formas de agressividade. Tudo isso leva a

refletir se não estamos vivendo um tempo de caos, em que a sociedade, de maneira geral e

ampla, se tornou uma sociedade agressiva. Analisando esse contexto mais amplo, vê-se que se

vive em uma sociedade que perdeu o sentido e a população de rua é apenas mais uma parcela

dessa sociedade.

Frente a isso, o panorama se torna negativo e marcado por um descrédito, pois é

necessário que a sociedade busque maneiras coletivas de encontrar um sentido, algo que não

se tem feito.

8.2.4 Doações

Ao longo dos relatos dos entrevistados, ganha importância a presença das doações no

dia-a-dia do morador de rua, é considerada um elemento de subjetivação porque, de uma

maneira marcante, aquele que vive nas ruas e convive com a miséria e a escassez de recursos

financeiros se vê, às vezes, impelido a pedir algo que satisfaça sua necessidade. Há também o

elemento da oferta espontânea de algo que sempre se faz presente nas ruas.

Em sua entrevista Paulo relata que no início do tempo em que começou a ficar nas

ruas as dificuldades foram maiores. Nessa época eu não sabia onde que era as doações. Ou

seja, após conhecer as doações, diminui-se um pouco dessa dificuldade, já que há o ganho de

comida e materiais básicos para a subsistência.

As chamadas doações são geralmente instituições ligadas a religiões que procuram

fazer, segundo sua doutrina, algo de concreto, movidos pelo preceito da caridade, por aqueles

que estão em alguma situação social difícil. Paulo relata algumas das doações que costuma

freqüentar: Tem a Pastoral, Fundamigo, Manuel Felipe Santiago, que a gente chama de

Japonês, é lá no Santo Antonio... O Glauco é espirita, o Fundamigo é espirita, Japonês

também, a Pastoral é católica e tem o Machado que é evangélica.

Ao mesmo tempo em que as doações são alvos de sentimentos positivos e valorosos,

há elementos de sentimentos contraditórios. Aquele que doa está em uma posição de quem

serve e de quem tem algo a dar. É movido por sentimentos que se ligam ao desejo de doar e

171

transformar realidades; geralmente sua própria realidade interna e também a realidade daquele

que necessita.

Aquele que recebe está em uma posição de quem não tem. Se o ato de doar passa pela

escolha, o ato de pedir pode partir justamente da necessidade em que não há possibilidade de

escolha. Estar na posição de pedinte é contraditório para quem teve ao longo da vida a

condição de gerir. Assim, aquele que pede pode ser ou sentir-se humilhado. Eu nunca precisei

pedir nada pra ninguém, nunca precisei de chegar e pedir, você me dá uma camisa? Eu

nunca precisei disso, afirmou Paulo.

O que se ganha nas doações vão desde gêneros alimentícios a utensílios mais básicos e

também móveis para aqueles que estão saindo da situação de rua. Porque é assim, você usa a

escova de um; o sabão você ganha nessas doações... chega lá ganha sabão, roupa, tênis,

sapato, o que precisar eles te dão. Outra possibilidade que se abre a partir da questão da

doação é que pode, aquele que recebe, caminhar para a estagnação e se conformar com sua

situação de pedinte, não buscando sair dessa posição. Ainda que haja sofrimento e

questionamento interior pela ação de pedir, ela pode acabar se tornando algo comum na vida

dessa pessoa. Pode inclusive agir no sentido contrário de um resgate de uma condição social

melhor.

É necessário que haja por parte de quem doa o cuidado para não incentivar o

conformismo das pessoas a essa situação, o que pode acabar por tornar-se não necessidade,

mas alienação. A questão preocupante é que, como essas doações atuam de maneira isolada,

não há uma preocupação com esse limite. Muitos moradores de rua criam sua própria rede de

doações, estando em uma a cada dia da semana.

Outro aspecto das chamadas doações é o fato de serem as mesmas instituições que

propagam a religiosidade. Geralmente, como descrito nos relatos dos entrevistados, antes que

receba a doção o morador de rua é convidado a participar de um rito ligado àquela religião. Se

é espírita, há uma palestra ou pode-se tomar um passe; se é católico, geralmente há uma

conversa em torno de uma leitura; se é evangélico há um culto ou algo semelhante.

Tudo isto acaba por trazer o morador de rua para a realidade da vivência religiosa. De

alguma forma, o morador de rua se vê entrelaçado com a religiosidade. Marcelo destaca que

freqüenta tais doações e marca que as mesmas possuem uma religiosidade. Eu freqüento. Hoje

mesmo; ontem eu fui na Bernadete, hoje eu fui lá outra vez. É casa espírita, casa espírita e

católico.

172

Com relação à ligação religiosa que essas instituições trazem consigo, pode-se afirmar

que essa mesma religiosidade, de certa forma, acaba sendo ofertada ao morador de rua. Nesse

ponto pode-se remeter a Frankl (2007), que aponta que o ser humano já encontra algo por

onde canalizar sua religiosidade. Ele se apodera desse algo de maneira existencial. São

imagens recebidas de nosso ambiente religioso-cultural. (FRANKL, 2007, p. 63)

8.2.5 Serviços públicos

O acesso a serviços públicos que atendem as pessoas em situação de rua é outro ponto

de relevante importância na fala das pessoas entrevistadas. Se, por um lado, pode-se afirmar

que há ainda muito a se avançar no estabelecimento de políticas públicas voltadas para a

população de rua, conclui-se também que os serviços existentes exercem papel positivo no

dia-a-dia das pessoas em situação de rua, contribuindo de maneira transformadora para a

superação deste quadro e também do resgate de elementos perdidos ou fragilizados em suas

subjetividades.

Paulo procura destacar a importância que teve poder participar de uma Oficina

socioeducativa do Centro de Referência da População de Rua. A partir dessa participação,

segundo sua afirmação, foi capaz de resgatar elementos importantes de sua subjetividade,

como a autoconfiança que havia perdido.

Fazendo cenário na oficina é que eu senti que to voltando a viver, porque eu não

tava vivendo, entendeu? Eu tava de baixo astral, mas a partir daquele cenário, que

acreditaram em mim me deixaram fazer... quer dizer ... isso que me fez eu me

acreditar mais. Se não tavam em cima de mim, me cobrando e orientando é porque

eu sei fazer o negocio, eu tenho capacidade para isso, posso voltar a fazer isso. Aí

que eu comecei a voltar à vida, porque, nesse tempo que eu to na rua pra mim, eu

to morto (sic).

Especificamente no caso citado acima, é interessante ressaltar que a partir do momento

em que o morador de rua se insere em alguma dessas oficinas, ela passa a resgatar noções

como o cuidado, a tolerância as regras e o contato com o grupo. Isso serve de motivação para

que essas pessoas busquem maneiras de se organizarem para a saída da situação de rua.

Outros benefícios sociais, como a Bolsa-moradia, programa criado pela Prefeitura de

Belo Horizonte a princípio para auxiliar vítimas desabrigadas pelas chuvas e, mais tarde,

estendido à população de rua, têm-se mostrado um importante instrumento de promoção

173

social e saída definitiva das pessoas da vida nas ruas. Há a necessidade de se aumentar o

número de acessos a tais benefícios.

Marcelo também, de maneira mais ligada à esfera da necessidade, aponta que as

instituições públicas e filantrópicas possuem importância relevante na vida de moradores de

rua. Se essa casa fecha aqui, ou se fecha esses albergue tudin que eu conheço, e essas casas

de recuperação, e essas doação, o morador de rua, ele vai ter que dar os pulos dele, que tem

casa que da apoio.

Tal situação pode ser controversa, pois estar inserido em um serviço que atende

moradores de rua acaba por facilitar a subjetivação de se reconhecer morador de rua. Ainda

que não seja algo vivido sem sofrimento, essa inserção em serviços voltados à população de

rua faz com que o mesmo se reconheça enquanto tal. A própria denominação que algumas

pessoas utilizam, dentro do próprio universo da rua, traz a contribuição desses serviços como

o termo albergado, termo esse carregado de preconceitos.

Frente a isso, ressalta-se a importância da criação e manutenção de uma política

pública voltada para o atendimento dos moradores de rua, porém, chama a atenção a

necessidade de que esses serviços trabalhem para promoverem mudanças individuais e sociais

para esse público. Os serviços públicos e mesmo as entidades filantrópicas devem evitar

reforçar a posição de pedinte e necessitado e investir na prática de fomentar o desejo de

organização pessoal e resgate da própria vida.

Ao finalizar, cabe ressaltar que esses são novos temas que surgiram ao longo do

percurso da pesquisa e que não eram, a princípio, objetivos principais da mesma. Pode-se

frisar que o aparecimento desses temas foram propiciados pela riqueza do método

fenomenológico, que ofereceu a possibilidade de adentrar no vivido e nas vivências e

experiências das pessoas que moram nas ruas, buscando apreender o sentido destes

fenômenos para os mesmos.

Estes temas não foram abordados com o intuito de finalizar tais reflexões, mas apontar

para novos horizontes de reflexão que poderão ser tratados em outros trabalhos. Além disso,

chamam a atenção para a realidade subjetiva e cotidiana das pessoas que vivem nas ruas,

podendo ser relevantes ao se pensarem novas formas de atuação junto aos mesmos ou na

elaboração de novas políticas para essa população.

174

REFERÊNCIAS

ALVES, Rubens. O que é religião? 10 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2009. 131 p.

AMATUZZI, Mauro Martins. Esboço de teoria do desenvolvimento religioso. In: PAIVA,

Geraldo José (Org) Entre necessidade e desejo. Diálogos da psicologia com a religião. São

Paulo: Edições Loyola, 2001. p. 25-51.

AMATUZZI, Mauro Martins. Desenvolvimento Psicológico e desenvolvimento religioso:

Uma hipótese descritiva. In: MASSIMI, Marina; MAHFOUD, Miguel (org.). Diante do

mistério, psicologia e senso religioso. São Paulo: Loyola, 1999, p. 123 - 140.

ANDRADE, Heloisa Schmidt de. "A rua em movimento- A rua é movimento- A rua é o

movimento-": a trajetória histórico-organizativa da população de rua de Belo Horizonte.

2002. 168f. Dissertação (Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais: Gestão das Cidades

ANTONIAZZI, Alberto. As religiões no Brasil segundo o Censo de 2000. Revista de

Estudos da Religião. São Paulo: REVER, nº 2, p 75-80, 2003..

ARAÚJO, Carlos Henrique. Migrações e vida nas ruas. In: BURSZTYN, Marcel (Org). No

meio da rua – Nômades, excluídos e viradores. Rio de Janeiro: Garamond, 2000, (p. 88-

120)

BECKER, Howard Saul Métodos de pesquisa em ciências sociais. 4 ed. São Paulo: Hucitec,

1999.

BITTENCOURT FILHO, José. Matriz religiosa brasileira: religiosidade e mudança

social. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Koinomia, 2003. p. 31-81.

BOFF, Leonardo. Tempo de transcendência. Rio de Janeiro: Sextante, 2000, 93 p.

BOTTI, Nadja Cristiane Lappan, et. al. Padrão de uso de álcool entre homens adultos em

situação de rua de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de

Minas Gerais, 2010. [Impresso]

BOURDIEU, P. Gênese e estrutura do campo religioso. In: P. BOURDIEU: A economia das

trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 27 – 78.

BRASIL. Ministério do desenvolvimento social e combate à fome. 2º Censo da população

em situação de rua e análise qualitativa da situação dessa população em Belo Horizonte:

meta 10 – Realização de ações de atendimento sócio-assistencial, de inclusão produtiva e

capacitação para população de rua. Belo Horizonte: MDS., 2006.

BUARQUE, Cristóvão. Olhar a (da) rua. In: BURSZTYN, Marcel (Org). No meio da Rua –

Nômades, excluídos e viradores. Rio de Janeiro: Garamond, 2000, p. 7-10.

175

BUENO, Enilda Rodrigues de Almeida. Fenomenologia: A volta às coisas mesmas. In:

Interações entre fenomenologia e educação. Adão José Peixoto (Org.). Campinas: Alínea,

2003, p. 9 – 42.

BURSZTYN, Marcel (Org). No meio da Rua – Nômades, excluídos e viradores. Rio de

Janeiro: Garamond, 2000, 274 p.

CÉSAR, Waldo. O que é Popular no catolicismo popular. In: BOFF, Leonardo (Org).

Revista Eclesiástica Brasileira (Vol. XXXVI). Petrópilis / RJ: Vozes, p. 5-18, 1976.

CRESPI, Franco. A experiência religiosa na pós-modernidade. Bauru, São Paulo: Edusc,

1999, 88 p. (Trad. Antonio Angonese).

CRITELLI, Dulce Mára. Pensar a vida, saltar o abismo. Texto transcrito do caderno ―Folha

e equilíbrio‖. Folha de São Paulo, 10/10/2002, p. 4.

DAMERGIAN, S. O papel do inconsciente na interação humana: um estudo sobre o

objeto da psicologia social. São Paulo, 1988. (Tese de Doutorado – Instituto de Psicologia da

Universidade de São Paulo).

DURKHEIM, Émile. As formas elementares de vida religiosa: o sistema totêmico na

Austrália. São Paulo: Paulus, 1989.

ERIKSON, Erik H. Infância e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

ERIKSON, Erik H. O ciclo de vida completo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998 (Trad.

Maria Adriana Veríssimo Veronese)

ESCOREL, Sarah. Vivendo de teimosos: Moradores de rua da cidade do Rio de Janeiro. In:

BURSZTYN, Marcel (Org). No meio da Rua – Nômades, excluídos e viradores. Rio de

Janeiro: Garamond, 2000, p. 139 – 171.

FEIJOO, Ana Maria Lopes Calvo de. A escuta e a fala em psicoterapia. Uma proposta

fenomenológico-existencial. São Paulo: Vetor, 2000, 195 p.

FORGUIERI, Yolanda Cintrão. Psicologia fenomenológica. Fundamentos, método e

pesquisas. São Paulo: Pioneira, 1993, 81 p.

FRAGOSO FILHO, Carlos. Religiosidade popular. In: PEREIRA, William César Castilho.

O adoecer psíquico do subproletaraido – Projeto de saúde mental na comunidade. Rio de

Janeiro: Imago, 2004, p. 160-169.

FRANKL, Viktor E. Psicoterapia e sentido de vida: fundamentos da Logoterapia e

análise existencial. 3 ed. São Paulo: Quadrante, 1989, 352 p. (Trad. Alípio Maia de Castro)

FRANKL, Viktor E. A presença ignorada de Deus. 10 ed. São Leopoldo: Sinodal;

Petrópolis: Vozes, 2007. 131 p. (Trad: Walter O. Schlupp e Helga H. Reinhold)

176

FRANKL, Viktor E. Em Busca de Sentido: um Psicólogo no campo de concentração. 25

ed. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 2008. 186 p. (Trad: Walter O. Schlupp e Carlos

C. Aveline)

FREITAS, Leonardo Augusto Silva de. Uma polifonia etnográfica: sacerdotes e

catecúmenos na liminaridade instituída. Belo Horizonte, 2009. Mestrado em Antropologia

do Departamento de Pós-Graduação em Antropologia do Departamento de Sociologia e

Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. 174 p.

FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão (1927). Rio de Janeiro: Imago, 1976. Edição

Eletrônica Brasileira das obras Psicológicas completas de Sigmund Freud: Vol. 21, p. 1 – 31.

GIOVANETTI, José Paulo. A vivência religiosa no mundo (pós) moderno In: CAMON,

Valdemar Augusto Angerami (Org). Espiritualidade e prática clínica. São Paulo:

Thompsom, 2004, cap. 4, p. 111-126.

GIOVANETTI, José Paulo. Psicologia existencial e espiritualidade in: AMATUZZI, Mauro

Martins (Org). Psicologia e Espiritualidade. Campinas: Paulus, 2005, cap. 7, p. 129-145.

GIOVANETTI, José Paulo. O sagrado e a experiência religiosa na Psicoterapia. In:

MASSIMI, Marina; MAHFOUD, Miguel (Org.). Diante do mistério, psicologia e senso

religioso. Edições Loyola. São Paulo, 1999, p 87 - 96.

GIUSSANI, Luigi. O senso religioso. São Paulo: C. I., 1998, 205 p. (Trad. Paulo Afonso E.

Oliveira).

GOMES, Willian Barbosa e cols. Revelar ou não revelar: Uma abordagem fenomenológica do

abuso sexual com crianças. In: BRUNS, Maria Alves de Toledo e HOLANDA, Adriano

Furtado (Orgs.). Psicologia e Pesquisa Fenomenológica: Reflexões e Perspectivas. São

Paulo: Ômega, 2001, p. 109-142.

GOTO, Tommy Akira. O fenômeno religioso: a fenomenologia em Paulo Tillich. São

Paulo: Paulus, 2004. 164p.

HERVIEU-LÉGER, Daniele. O peregrino e o convertido: a religião em movimento.

Petrópolis: Vozes, 2008.

HOLANDA, Adriano. Fenomenologia da religião em G. Van der Leeuw. In: HOLANDA,

Adriano (org). Psicologia, religiosidade e fenomenologia. Campinas, São Paulo: Alínea,

2004, cap. 3, p. 47 – 54.

LESSA, Carlos. Os ovos da serpente. In: BURSZTYN, Marcel (Org). No meio da rua –

Nômades, excluídos e viradores. Rio de Janeiro: Garamond, 2000, p. 11 – 18.

LUCZINSKI, Giovana Fagundes. O psicólogo clínico e a religiosidade do cliente: Impactos

na relação terapêutica. São Paulo, 2005. Mestrado em Psicologia Clínica do departamento

de Psicologia da Pontífice Universidade Católica de São Paulo.

MACHADO, Marília Novaes da Mata. Entrevista de pesquisa: A interação pesquisador /

entrevistado. Belo Horizonte: C/Arte, 2002.

177

MAHFOUD, Miguél; COELHO JÚNIOR, Achilles Gonçalves. As dimensões espiritual e

religiosa da experiência humana: distinções e inter-relações na obra de Viktor Frankl.

Psicologia USP, 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=s0103-

65642001000200006&script=sci_arttext>

MARX, Karl. Crítica da filosfia do direito de Hegel. São Paulo: Bontempo, 2005, 167 p.

MASSIMI, Marina. História da fenomenologia. Belo Horizonte, 2000, 33 p. Palestra

proferida em 14/03/2000 para pós-graduação em Psicologia da UFMG.

MASSIMI, Marina; MAHFOUD, Miguel. Senso Religioso: dinamismo da experiência,

desafio para a Psicologia. In: MASSIMI, Marina; MAHFOUD, Miguel (Org.). Diante do

mistério, psicologia e senso religioso. São Paulo: Loyola, 1999, p 11- 14.

MATTA, Roberto da. A casa & a rua. 5. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, 163 p.

MATTOS, Ricardo Mendes; FERREIRA, Ricardo Franklin Quem vocês pensam que (elas)

são? - Representações sobre as pessoas em situação de rua. Psicologia Social, Ago 2004,

v.16, n.2, p. 47-58.

MOREIRA, Daniel Augusto. O método fenomenológico na pesquisa. São Paulo: Pioneira

Thomson, 2002. 152 p.

MOREIRA, J. O. . Fundamentos antropológicos da psicologia: um estudo sobre Freud e

Frankl. (Relatório de pesquisa). PUC-Minas, Belo Horizonte, 2004.

MOREIRA, J. O., ABREU, A. K. C., OLIVEIRA, M. C. Moralidade e sociabilidade em

Frankl: um norte para superação da violência. Psicologia em estudo, Maringá, vol. 11, n.

3, p. 627-635, set. / dez. 2006.

NETO, João Leite Ferreira. Processos de subjetivação e novos arranjos urbanos.

Disponível em: http://www.pucminas.br/documentos/processos_subjetivacao.pdf

OTTO, Rudolf. O sagrado. São Bernardo do Campo, São Paulo: Imprensa Metodista, 1985.

RIBEIRO, Jorge Ponciano. Religião e Psicologia in: HOLANDA, Adriano (Org). Psicologia,

religiosidade e fenomenologia. Campinas, São Paulo: Alínea, 2004, cap. 1, p. 11-36.

SOUSA, Patrus Ananias de. Apresentação. In: BRASIL. Ministério do desenvolvimento

social e combate à fome. 2º Censo da população em situação de rua e análise qualitativa

da situação dessa população em Belo Horizonte: meta 10 – Realização de ações de

atendimento sócio-assistencial, de inclusão produtiva e capacitação para população de

rua. Belo Horizonte: MDS, 2006.

TILLICH, Paul. Dinâmica da fé. São Leopoldo, Rio Grande do Sul: Sinodal, 1980.

TOSTA, Tania Ludmila Dias. Memórias das ruas, Memórias da exclusão. BURSZTYN,

Marcel (Org). No meio da Rua – Nômades, excluídos e viradores. Rio de Janeiro:

Garamond, 2000, p. 201 – 229.

178

VALLE, João Edênio dos Reis. Religião e Espiritualidade: um olhar psicológico. In:

AMATUZZI, Mauro Martins (org). Psicologia e espiritualidade. São Paulo: Paulus, 2005, p.

83 - 108.

VARANDA, Walter; ADORNO, Rubens de Camargo Ferreira Descartáveis urbanos:

discutindo a complexidade da população de rua e o desafio para políticas de saúde.

Saude soc., Abr 2004, v.13, n.1, p. 56-69.

VIEIRA, M. A. C.; BEZERRA, E. M. R.; ROSA, C. M.M. População de Rua: quem é, como

vive, como é vista. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1994.

YALLON, Irvin D. Psicoterapia Existencial. Espanha: Herder, 1982.

ZALUAR, Alba. Quando a rua não tem casa. In: I Seminário Nacional sobre população de

Rua. São Paulo. Caderno do CEAS n. 151, p. 22-25, 1994.

179

ANEXO A

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Título do Projeto:

A religiosidade de moradores de rua da cidade de Belo Horizonte: Uma via de

subjetivação

Prezado Senhor,

Este Termo de Consentimento pode conter palavras que você não entenda. Peça ao

pesquisador que explique as palavras ou informações não compreendidas completamente.

1 ) Introdução:

Você está sendo convidado(a) a participar de uma pesquisa que estudará a

religiosidade de pessoas que moram nas ruas de Belo Horizonte e as implicações dessa

religiosidade em seus processos de subjetivação. Você foi selecionado por que atende ao

perfil estabelecido na pesquisa e sua participação não é obrigatória. O objetivo do projeto é

analisar a presença da religiosidade em pessoas que vivem nas ruas da cidade de Belo

Horizonte e como essa religiosidade os influencia.

2 ) Procedimentos do Estudo:

Para participar deste estudo solicito a sua especial colaboração em participar de uma

entrevista gravada sobre aspectos de sua vida.

3) Riscos e desconfortos:

Os desconfortos e riscos que você poderá sentir estão relacionados ao sentimento de

desinteresse em relação ao tema da pesquisa, não se reconhecer no perfil das pessoas

participantes ou mal estar com algum assunto abordado nas perguntas. Nesse sentido, a

gravação das entrevistas poderá ser interrompida se você sentir necessidade ou até mesmo

encerrar a sua participação. Caso a entrevista cause sofrimento emocional, ela será

interrompida e você poderá ser encaminhado, caso deseje, à Clínica de Psicologia da PUC

Minas.

180

4)Benefícios:

Espera-se que, como resultado deste estudo, você possa conhecer mais sobre sua própria vida

e sua realidade social. Os resultados desse estudo poderão contribuir para outros contextos

envolvendo a população de rua e grupos sociais e religiosos que acompanham a mesma. As

experiências cotidianas vivenciadas por você poderão ser melhor compreendidas. Além disso,

por apresentar uma metodologia que pode ser aplicada e (re) inventada, essa pesquisa poderá

servir de base para outras que abordem essa temática ou outra semelhante.

5) Custos/Reembolso:

Você não terá nenhum gasto com a sua participação no estudo e também não receberá

pagamento pelo mesmo.

6) Caráter Confidencial dos Registros:

A sua identidade será mantida em sigilo. Os resultados do estudo serão sempre

apresentados como o retrato de um grupo e não de uma pessoa. Dessa forma, você não será

identificado quando o material de seu registro for utilizado, seja para propósitos de publicação

científica ou educativa. Os registros gravados ficarão sob a responsabilidade do pesquisador e

serão utilizadas apenas para as finalidades da pesquisa, sendo destruídas após a utilização no

estudo.

7) Participação:

Sua participação neste estudo é muito importante e voluntária. Você tem o direito de

não querer participar ou de sair deste estudo a qualquer momento, sem penalidades ou perda

de qualquer benefício ou cuidados a que tenha direito nesta instituição. Você também pode ser

desligado do estudo a qualquer momento sem o seu consentimento nas seguintes situações:

(a) você não use ou siga adequadamente as orientações/tratamento em estudo; (b) você sofra

efeitos indesejáveis não esperados; (c) o estudo termine. Em caso de você decidir retirar-se do

estudo, favor notificar o profissional e/ou pesquisador que esteja atendendo-o.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais que poderá ser contatado em caso de questões éticas, pelo telefone

3319-4517 ou e-mail [email protected].

181

O pesquisador responsável pelo estudo poderá fornecer qualquer esclarecimento sobre

o estudo, assim como tirar dúvidas, bastando contato no seguinte endereço e/ou telefone:

Nome do pesquisador: Aluizio Geraldo de Carvalho Guimarães

Endereço: Rua Mario Renno Gomes, 149, Ap. 14, Bloco 02, Bairro Floramar

Belo Horizonte - MG CEP:31765-310

Telefone: (31) 3434-7640 ou (31) 8534-7093

E-mail: [email protected]

8) Declaração de Consentimento

Li ou alguém leu para mim as informações contidas neste documento antes de assinar

este termo de consentimento. Declaro que toda a linguagem técnica utilizada na descrição

deste estudo de pesquisa foi satisfatoriamente explicada e que recebi respostas para todas as

minhas dúvidas. Confirmo também que recebi uma cópia deste Termo de Consentimento

Livre e Esclarecido. Compreendo que sou livre para me retirar do estudo em qualquer

momento, sem perda de benefícios ou qualquer outra penalidade.

Dou meu consentimento de livre e espontânea vontade para participar deste estudo.

______________________________________________________

Nome do participante (em letra de fôrma)

___________________________________________________ ____________

Assinatura do participante Data

Obrigado pela sua colaboração e por merecer sua confiança.

________________________________________________ ____________

Aluizio Geraldo de Carvalho Guimarães Data

(pesquisador)

182

ANEXO B

ROTEIRO DE ENTREVISTA

Data:

1) Quantos anos você tem?

2) Há quanto tempo vive em Belo Horizonte?

3) Há quanto tempo está vivendo nas ruas?

4) Gostaria que você contasse, de maneira resumida, a sua história?

5) Como é para você a vida a cada dia?

6) Como você acredita na vida?

7) Como você se vê perante a vida?

8) Como você se vê frente à vida nas ruas?

9) Como você se vê diante da morte?

10) Descreva como é o seu sentido de vida.

11) Fale sobre os seus projetos de vida.

12) Como você se vê com relação a Deus?

13) Como você vivencia sua religiosidade?

Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )

Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas

Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo