a relaÇÃo entre democracia, liberalismo e …

16
1 12º Encontro da ABCP 19 a 23 de outubro de 2020 Área Temática 17: Teoria Política A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA, LIBERALISMO E NEOLIBERALISMO Thais Florencio de Aguiar DCP/IFCS-UFRJ

Upload: others

Post on 28-Jun-2022

6 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA, LIBERALISMO E …

1

12º Encontro da ABCP

19 a 23 de outubro de 2020

Área Temática 17:

Teoria Política

A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA, LIBERALISMO E NEOLIBERALISMO

Thais Florencio de Aguiar

DCP/IFCS-UFRJ

Page 2: A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA, LIBERALISMO E …

2

Resumo em português de até 250 palavras:

5 palavras-chave em português

Resumo em inglês de até 250 palavras

5 palavras-chave em inglês

Page 3: A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA, LIBERALISMO E …

3

1. Introdução

A democracia vem sendo descrita como em colapso. Terminologias como

“democracia iliberal” (Zakaria, 1997), “pós-democracia” (Crouch, 2004; Casara, 2017)

ou “desdemocratização” (Tilly, 2007; Brown, 2015) compõem, cada qual com

repertório analítico próprio, uma miríade de concepções que aponta para o ocaso

específico da democracia liberal. A discussão em torno da chamada “crise da

democracia” tem como uma das teses de grande reverberação, tanto nos meios

acadêmicos quanto nos meios de exercício de opinião pública, a ideia de que o

liberalismo – ou melhor, as liberdades civis individuais, tido como seu fundamento -

vem sofrendo ataque por parte de novas forças neoliberais.

De acordo com essa tese, esse movimento de erosão das chamadas

“liberdades liberais clássicas” constituiria fundamento da desfiguração da democracia

contemporânea. Essa tese persistente frequenta em maior ou menor medida, por

exemplo, as últimas publicações best-sellers da ciência política, como “Como as

democracias morrem”, de Levitsky e Ziblat, bem como “O povo contra a democracia”,

de Yascha Mounk e “Undoing the demos”, de Wendy Brown. A tese vem

acompanhada, principalmente, da crítica da emergência de democracias iliberais e do

populismo (terminologia muitas vezes utilizada difusamente para designar regimes não

liberais).

Algumas questões implícitas a essa concepção devem ser explicitadas. A

primeira versa sobre a natureza das ditas liberdades liberais clássicas que

caracterizam a democracia contemporânea. A segunda trata da identificação de uma

espécie de antagonismo existente entre liberalismo e neoliberalismo, a ponto de se

elaborar amplamente que o segundo se constrói com base na destruição das

liberdades civis conquistadas pelo primeiro.

Em outro campo da literatura acadêmica, a crise da democracia liberal é

formulada em outros termos. Para alguns autores, ela é um sintoma histórico de um

esgotamento da compatibilidade entre liberalismo e democracia. Domenico Losurdo

(2006), por exemplo, problematiza, mais especificamente em sua contra-história do

liberalismo, o estatuto teórico das liberdades individuais defendidas pela tradição

liberal, a partir da consideração das práticas liberais aplicadas, sobretudo, à realidade

dos povos coloniais, identificada como uma matriz que se prolonga no tempo.

Em abordagem diferenciada, outros autores como o francês Grégoire

Chamayou (2018) refletem sobre a emergência, desde os anos 70, das bases teóricas

Page 4: A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA, LIBERALISMO E …

4

e práticas do que chama de liberalismo autoritário (outro nome para neoliberalismo),

assentado em uma lógica gerencial, em reação à consolidação do Estado como um

ator importante para manutenção das garantias dos direitos trabalhistas, sociais e

democráticos. O britânico Ian Bruff, usando o termo “neoliberalismo autoritário” desde

2014, elabora, a partir de bases marxistas (Poulantzas e Stuart Hall), a compreensão

de que a era atualmente vivida fundamenta-se em uma configuração do Estado em

uma entidade menos democrática, afastando-o do conflito político por meio de

implementação de mudanças legais e constitucionais1.

Esse trabalho pretende, em explorações ainda iniciais, abordar esses campos

de reflexão sobre a democracia, problematizando a relação entre liberalismo

(liberdades civis individuais) e democracia, bem como o suposto antagonismo entre

liberalismo e neoliberalismo. Busca-se compreender em que medida liberalismo e

neoliberalismo se antagonizam e em que medida se associam. Antes, todavia, é

pertinente tomar como ponto de partida a compreensão da relação que se faz

intrínseca entre liberalismo e democracia, relação essa que se cristalizou

acentuadamente ao longo do século XX, permitindo compreender ataques às

liberdades civis clássicas como ataques à democracia. Essa perspectiva demanda,

necessariamente, identificar a disputa que se deu em torno do significado da

democracia ao longo do século XIX e XX e no início deste século XXI. Para tanto,

pretende-se revisitar parte da literatura que teoriza a formação da democracia liberal.

2. Breves notas críticas sobre associação entre liberalismo e democracia

Dada a variabilidade dos termos e conceitos mobilizados na teoria política

hoje para explicar a chamada “crise da democracia” (liberalismo autoritário,

neoliberalismo autoritário, democracia iliberal etc), torna-se pertinente restabelecer um

conjunto de premissas como ponto de partida, ou melhor, uma compreensão acerca

do modelo liberal de democracia, para melhor entender o que está sendo

desconfigurado com o avanço atual do neoliberalismo.

As liberdades liberais clássicas ou liberdades civis conquistadas ao longo da

modernidade dizem respeito a um conjunto amplo de princípios que incluem,

sobretudo, a defesa do indivíduo contra o Estado, a liberdade de expressão, a

1 Apenas para salientar a constelação de terminologias e conceitos cunhados nos últimos anos

para explicar a construção da hegemonia liberal em colisão com a democracia, vale registrar as expressões “neoliberalismo progressista” e “neoliberalismo conservador” forjadas por Nancy Fraser (2019), a partir de suas análises do cenário político norte-americano.

Page 5: A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA, LIBERALISMO E …

5

liberdade de opinião, liberdade de associação, direito ao voto ou sufrágio etc. Esses

direitos foram identificados à democracia moderna, concedendo-lhe realidade. As

liberdades liberais clássicas desenvolveram-se do período pré-moderno à

contemporaneidade, de modo que a concepção que identifica liberalismo e

democracia está fortemente consolidada no referencial teórico contemporâneo (Tilly,

2013; Dahl, 2001; Rawls, 2000 etc).

De acordo com o modelo poliárquico de Dahl, por exemplo, as noções de

inclusividade (direitos de participação) e de liberalização

(oposição/contestação/competição política) incluem, principalmente: liberdade de

formar e aderir a organizações, liberdade de expressão, direito ao voto, elegibilidade

para cargos públicos, direito de líderes políticos disputarem apoio (votos), garantia de

acesso a fontes alternativas de informação, eleições livres e idôneas, instituições para

fazer com que as políticas governamentais dependam de eleições e de outras

manifestações de preferência (Dahl, 2001).

Com efeito, o liberalismo empresta seu significado à democracia, dos tempos

modernos aos contemporâneos, de modo que a democracia, tal como existe hoje, não

pode mais ser pensada sem a presença do liberalismo. Essa noção é quase

consensual para os autores das mais diversas perspectivas, tanto críticas quanto

liberais. Por isso, abalos nessa identificação entre liberalismo e democracia trazem,

por vezes, efeitos vertiginosos para os mais diversos campos de análise da teoria

política.

2.1 Deslindando democracia e liberalismo

Na perspectiva da marxista política Ellen Wood (2003), a identificação entre

liberalismo e democracia é desnormatizada. Wood escreve em fins dos anos de 1990,

retomando o materialismo histórico como categoria de análise para desconstruir 1)

movimentos autoproclamados anticapitalistas que, na sua concepção seriam

movimentos antiglobalização ou antineoliberais que transacionam em favor de

democracia combinada com capitalismo reformado; além de pós-modernos e

marxistas economicistas ou tecnológico-deterministas, por motivos distintos.

Para Wood, as forças liberais conformadas desde o seio do baronato feudal

em luta contra o poder centralizador do monarca (da Carta Magna de 1215, passando

pelo século XVII, com epicentro na Inglaterra, e séculos XVIII e XIX, com epicentro na

França), confluem para o estabelecimento de liberdades ou direitos individuais civis

Page 6: A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA, LIBERALISMO E …

6

frente ao Estado. Essas liberdades se ampliaram de um grupo de senhores,

aristocratas e burgueses, para o maior número da população, constituindo a cidadania

moderna. Do ponto de vista dos marxistas políticos, esse advento marca a

democratização do liberalismo – dito de outro modo, o liberalismo se democratiza.

Como isso ocorre? Na visão de Wood, a confluência entre capitalismo e

liberalismo teria lançado as bases institucionais para a cisão entre esfera econômica e

política - tese maior da obra de Wood –, promovendo uma esfera econômica (a

economia de mercado) apartada do alcance dos poderes políticos democráticos. Essa

cisão é realizada com a ascensão das relações capitalistas que historicamente separa

produtores diretos em relação aos meios de produção (cercamentos, êxodo rural dos

camponeses, fim do direito de usufruto, criminalização de vadiagem, criação de

contingente do proletariado etc).

O ponto essencial para compreensão da democratização do liberalismo é o

seguinte: a separação dos meios de produção torna desnecessária a coerção

extraeconômica e concentrada nas mãos dos proprietários dos meios de produção.

Isso porque a apropriação do trabalho excedente ocorre primordialmente por

mecanismos econômicos; ao contrário das formas pré-capitalistas, em que

prevaleciam os modos extra-economicos (políticos, jurídicos e militares)2. A cisão

garante que funções de produção e distribuição, bem como de alocação do trabalho

não sejam objeto de direção política ou deliberação comum. Essas decisões são de

natureza privada (não pública) e tudo que está submetido a ela é regido pelas leis do

mercado e das relações contratuais - o trabalho, portanto, sendo uma mais uma

mercadoria. O liberalismo, como ideologia correlata ao capitalismo, torna possível a

expansão paulatina das liberdades liberais ou direitos civis da comunidade dos

senhores para ampla população. Para Wood, ao mesmo tempo em que se

democratiza, essa cidadania se torna passiva, uma vez que assuntos de distribuição

de riqueza e propriedade se apartam do poder político popular.

A democracia liberal se caracterizaria, justamente, por resguardar a esfera de

poder econômico, isto é, por liberá-la e não mais submetê-la ao poder político. Wood

assinala que a esfera de prevalência das leis de mercado não é percebida como fonte

de coerção e sim, como fonte da própria prática da liberdade. Nessa perspectiva, a

correspondência estreita entre democracia liberal e capitalismo não seria meramente

fruto de uma coincidência temporal, mas uma construção histórica. Assim se

2 É preciso esclarecer, no entanto, que não se trata de Estado x Mercado, o que reduz ou simplifica o

papel do Estado no liberalismo e, inclusive, no neoliberalismo.

Page 7: A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA, LIBERALISMO E …

7

fundamental a liberalização da democracia – dito de outro modo, a democracia se

torna liberal.

Se o capitalismo reconfigurou historicamente a relação entre poder político e

econômico, tornando possível a experiência da democracia moderna, o liberalismo em

associação com ele tornam-se produtores da teoria da democracia.

O fenômeno da liberalização da democracia é uma tese de Wood que se

destaca pelo esforço analítico ou desnormatizador. Como outros autores da escola

marxista, Wood reconhece que o liberalismo deixa legados políticos importantes, como

proteção dos indivíduos e da sociedade em relação ao Estado, a proteção da esfera

privada em relação à interferência público/estatal, as liberdades civis e a contribuição

para direitos humanos. Contudo, aquilo que hoje qualifica a democracia (liberdades

civis, liberdade de expressão, liberdade de imprensa, de reunião, proteção do

indivíduo contra o Estado) não contempla o sentido literal da democracia pelo demos,

isto é, dotado de um conteúdo social originário contido na fórmula “governo do povo

pelo povo” em desafio às forças oligárquicas. Nesse sentido, seria adequado deslindar

a confluência entre democracia e liberalismo, distinguindo um do outro.

“Há uma grande confusão sobre a democracia”3. Formulador de teses

analíticas de relevo sobre o consórcio entre liberalismo e democracia, Crawford

Brough Macpherson sintetiza, nessa declaração dada a Canadian Broadcasting

Corporation em 22 de janeiro de 1965, o propósito de parte significativa de sua obra,

qual seja, deslindar democracia diferenciada de liberalismo. Escreve dos anos 60 aos

804, no contexto da Guerra Fria, em que democracias liberais avançadas consistiam

na alternativa mais fortalecida frente a “tiranias totalitárias” socialistas e do bloco do

Terceiro Mundo (dicotomia considerada demasiado simplista pelo autor, afirma McKay,

2019). Na contracorrente, a produção teórica do autor canadense enfatizava a

importância de realizar uma revisão da teoria da liberal-democracia.

Na sua concepção, os valores liberais (todas as liberdades clássicas, os

direitos humanos, a ordem mundial pacífica, regra da lei, civilidade ordenada)

entraram em contradição com a democracia – entendida aristotelicamente como a

regra de muitos, não de poucos –, quando se associaram ao capitalismo e suas

relações de mercado, no bojo do qual persistem inerentemente individualismo

possessivo e desigualdades. O princípio das liberdades não tinha como efeito alterar

3 “There is a good deal of muddle about democracy”.

4 Conhecido pela obra The political theory of Possessive individualismo: from Hobbes to Locke (1962),

Macpherson publicou The Real Word of Democracy (1965), Democratic Theory: Essays in Retrieval (1973) e The Life and Times of Liberal Democracy (1977).

Page 8: A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA, LIBERALISMO E …

8

essencialmente esses malefícios da sociedade de mercado. Ao fim e ao cabo, se

encaixava nessa sociedade na construção do arcabouço da sociedade de mercado

individualista e competitiva. “A democracia foi aplicada, „como um top

dressing‟[cobertura, capa, forro], ao solo „já preparado pelo funcionamento da

sociedade de mercado competitiva e individualista", ressalta McKay, citando

passagens de The Real World of Democracy de Macpherson (McKay, tradução

minha). Como Wood, ele está em busca de distinguir liberalismo e democracia

conceitual e historicamente. E, particularmente, questiona: é possível conceber um

liberalismo anti-capitalista? A tradição liberal pode recuperar a democracia ou tornar-

se mais democrática, tomando emprestados elementos da tradição marxista?

Outro crítico contundente do liberalismo é o filósofo marxista italiano

Domenico Losurdo, cujos trabalhos mais relevantes acerca do tema datam de fins da

década de 90 (Democrazia o Bonapartismo, 1997) e meados da primeira década dos

anos 2000 (Contrastoria del liberalismo, 2005). Já em Democracia e Bonapartismo,

Losurdo tematizava os recuos e avanços do sufrágio eleitoral, abordando criticamente

os teóricos do liberalismo tidos como pensadores da democracia. Em Contra-história

do Liberalismo, Losurdo problematiza o próprio estatuto das liberdades individuais

concebido pelo liberalismo: o fato de as ideias clássicas liberais serem gestadas no

seio da comunidade de senhores, ou seja, dos homens livres e proprietários, o que

para ele constitui uma código genético compatível teórica e historicamente com

colonização, escravidão e racismo modernos. O argumento de Losurdo avança até em

demonstrar, por exemplo, que liberalismo e escravidão racial não coincidem

simplesmente no tempo, mas podem ser concebidos como “singular parto gêmeo”

(2006a, 47).

Utilizando-se de um método de pesquisa que analisa o pensamento liberal

(análise teórica) e o movimento das sociedades liberais (análise histórica), o autor

concebe que o empreendimento liberal democrático de autogoverno dos senhores

livres se viabiliza por meio de formas imprescindíveis de segregação e expropriação

coloniais. A comunidade dos livres forjada pela tradição liberal seria marcada por

cláusulas de exclusão daqueles não dignos ou despreparados para a liberdade, como

trabalhadores pobres, negros, índios, mulheres etc, constituindo uma “democracia

para o povo dos senhores”5. O autor aprofunda, assim, as tensões entre liberalismo e

5 A expressão “democracia para os povos dos senhores” é usada, em princípio para designar

os regimes de segregação racial que vigoravam na África do Sul e no sul dos Estados Unidos. A expressão se torna uma categoria, sendo posteriormente empregada com mais amplamente, abrangendo a democracia liberal restrita socialmente, imprimindo cláusulas de exclusão a pobres, negros, índios, amarelos e mulheres.

Page 9: A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA, LIBERALISMO E …

9

democracia, ressaltando uma matriz liberal de código genético aristocrático-burguês,

elitista, etnocêntrico e racista (universalismo limitado). A análise crítica acerca do

liberalismo constitui a linguagem e a formulação que vieram a nutrir o campo do

recente decolonialismo.

O autor sugere que essa compatibilidade não se restringe aos primórdios da

constituição moderna das ideias do liberalismo e da democracia. Guardadas as

resistências e lutas históricas, ela se persistiria operando no interior das sociedades,

seja por meio do neocolonialismo, seja pela persistência dos racismos e de outras

formas segregacionistas. Na coletânea brasileira de artigos que compõe o livro

Liberalismo: Entre Civilização e Barbárie (2006b), Losurdo projeta uma ponte entre o

liberalismo de ontem e de hoje, desde Tocqueville a Hayek. Evidencia a posição de

Tocqueville em 1848, contrária a direitos políticos e sociais como a redução da jornada

de trabalho para 12 horas, por considerar a medida socializante e, portanto, antiliberal.

Em Hayek, emblematiza sua visão sobre a Declaração Universal dos Direitos do

Homem, quando afirma que ela assegura “ao camponês, ao esquimó e talvez também

ao abominável homem das neves „férias periódicas remuneradas‟”. Para o ideólogo do

neoliberalismo, ela constituia “uma tentativa de fundir os direitos da tradição liberal

ocidental com a concepção completamente diferente da revolução marxista russa”

(Hayek, 1976, p. 104, apud Losurdo, 2005). Explicita-se a tese da tensão entre

liberdade e igualdade no liberalismo clássico, aqui reapresentada como se medidas de

igualdade fossem concessões ao bolchevismo.

Os autores mobilizados aqui contribuem para o esboço de “breves” notas

críticas à associação entre liberalismo e democracia. Essa vertente do pensamento

crítico não se exaure nessa lista, tampouco aos teóricos marxistas. Outro movimento

válido para ampliação deste trabalho é a revisitação de autores liberais críticos do

liberalismo.

2.2 Resgatar o liberalismo para salvar a democracia?

Uma questão a ser analisada é posta desde os anos 60 e 70 por Macpherson,

quando ressaltava a necessidade de operar uma revisão da teoria da liberal-

democracia, de modo a depurá-la da ideologia da sociedade de mercado (capitalismo),

mesclando o liberalismo com a tradição marxista para forjar nova teoria da

democracia. A noção de que o liberalismo trouxe avanços consideráveis para a

Page 10: A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA, LIBERALISMO E …

10

construção do projeto democrático não se reduz ao campo liberal. Os avanços das

ideias liberais são reconhecidos e defendidos também no campo marxista.

Essa argumentação remete à corrente revisionista marxista do início do

século XX, que reconhece o liberalismo como legado político importante. Ao contrário

de seus correligionários adeptos de projetos enfaticamente revolucionários, Bernstein

(1987) não só valoriza o sistema parlamentar como peça fundamental do sistema

democrático, bem como defende a aliança para ação no parlamento entre social-

democratas e liberais. Para ele, o socialismo é herdeiro do liberalismo, tanto do ponto

de vista cronológico quanto do ponto de vista de seu conteúdo social. De todo modo,

Bernstein concebe o socialismo como fase evolutiva do liberalismo e como tal

desempenha papel superior a este ao se colocar como verdadeiro defensor das

liberdades civis. Isso quer dizer que se o liberalismo foi capaz de romper com as

cadeias feudais impostas aos indivíduos, caberia então ao socialismo formular

maneiras de libertar os indivíduos das cadeias burguesas/capitalistas, aos quais o

liberalismo havia se associado. Nesse sentido, a liberdade do demos em relação aos

senhores e a liberdade do trabalho em relação ao capital precisam caminhar juntas.

Ellen Wood se aproxima dessa visão quando confere importância aos

avanços concernentes ao legado do liberalismo (constitucionalismo, governo limitado,

direitos individuais e liberdades civis), que liberta os indivíduos de grilhões feudais

tradicionalistas e hierarquizantes. Todavia, Wood não concede que o conceito de

democracia tenha sido identificado com liberalismo. “O liberalismo entrou no discurso

político moderno não apenas como um conjunto de ideias e instituições criadas para

limitar o poder do Estado, mas também como um substituto da democracia”, escreve

Wood (2003, p. X).

Dessa forma, essa substituição, desprovendo o conteúdo social da

democracia, teria permitido que o termo “democrático” fosse aplicado amplamente,

como os Federalistas. Essa substituição mostrou-se, para a autora, como forma de

conter impulsos revolucionários, aplicando-lhe contrapesos contrarrevolucionários. Na

sua visão, a democracia teria sido superada pelo liberalismo.

“O efeito foi a mudança do foco da „democracia‟, que passou do exercício

ativo do poder popular para o gozo passivo das salvaguardas e dos direitos

constitucionais e processuais, e do poder coletivo das classes subordinadas para a

privacidade e o isolamento do cidadão individual. Mais e mais, o conceito de

„democracia‟ passou a ser identificado com o liberalismo” (2003, p. 196, grifo da

autora).

Page 11: A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA, LIBERALISMO E …

11

Para Wood, o capitalismo permite que as

esferas político, jurídico e militar (o extra-econômico), tal como configuradas pelas

relações feudais, não tenham mais implicação direta e determinante no poder

econômico (apropriação, exploração, distribuição de riquezas). A esfera econômica

não depende mais de privilégio político nem jurídico. Privilégio político é substituído

por coação econômica. “O capitalismo tornou possível a redefinição da democracia e

sua redução ao liberalismo”, escreve (2003, p. 2010). Wood considera que a

democracia pode aprender muitas lições com temas tratados pela tradição liberal

(proteção da liberdade de associação, de comunicação, diversidade de opiniões,

esfera privada inviolável), tanto na teoria quanto na prática. Todavia, o liberalismo não

estaria “equipado para enfrentar as realidades do poder numa sociedade capitalista,

muito menos para abranger um tipo mais inclusivo de democracia do que o que existe

hoje” (2003, p. 204).

Projetada aos dias de hoje, a questão apresentada por Wood converge com

trabalhos recentes de Wolfgang Streeck a propósito do capitalismo. Streeck enfatiza a

tensão entre democracia e capitalismo, que dá título ao livro de Wood, conduzindo o

leitor a novas interrogações. A persistência do capitalismo, agora em sua fase

fortemente financeirizada, depende da pressão sobre a democracia? Streeck afirma

que a nova fase do capitalismo, de uma economia de baixo crescimento e

endividamento crescente, faz este entrar em rota de colisão com os direitos

democráticos. Retomando os termos de análise de Wood, a questão pode ser

resposta assim: é o liberalismo capaz de enfrentar as condições de pressão postas

pelo capitalismo atual sobre a democracia? E ainda: o liberalismo, em nome da

democracia, se tornará incompatível com capitalismo ou ele exauriu sua capacidade

de monopolizar o imaginário sobre a democracia? São muitas questões.

3. Do liberalismo ao neoliberalismo: e a democracia?

Essas questões fazem emergir uma perspectiva funcional à reflexão sobre a

relação hoje existente entre democracia e neoliberalismo. Como compreender, por

exemplo, que em nome da democracia seja reinvindicada, atualmente, a redução de

direitos democráticos, como direitos trabalhistas, enquanto a concentração de renda

atinge patamares históricos, como mostra Piketty (2014)? A crítica do liberalismo traz

algumas possibilidades de enquadramento teórico, quando ressaltam um DNA

oligárquico e plutocrático na tradição liberal, combinado a expansão de direitos de

Page 12: A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA, LIBERALISMO E …

12

cidadania passivos. Essas e outras leituras ganham relevo nesse momento de refluxo

da democracia liberal. Elaboradas, algumas delas, pouco antes da grande crise do

capitalismo financeiro de 2008, essas teorias apontam, não necessariamente para

crise da democracia, mas para crise do liberalismo.

Importante notar que o momento que, 30 anos após a queda do muro de

Berlim, e o avanço da tese do fim da historia que anunciava a expansão e

consolidação da democracia liberal, vive-se justamente o debate sobre a crise dessa

democracia e alguns autores anunciam a chegada de uma democracia pós-liberal. O

diagnóstico sobre a situação é naturalmente variado. Seguindo a perspectivas dos

autores acima, a ideia de que o liberalismo nunca foi tão necessário num momento

identificado como de contrarrevolução iliberal tenha que ser matizada. A tese de que a

combinação entre neoliberalismo econômico e autoritarismo político resume essa

contrarrevolução iliberal não parece ser suficiente como explicação. A ascensão de

partidos nacionalistas, xenófobos, o colapso do modelo de representação, a crítica da

desigualdade, o descontentamento com os serviços públicos básicos, o descrédito da

legitimidade institucional, a desconfiança do establishment político etc – que teriam

conduzido parte do eleitorado a aderir a fórmulas da nova direita – ainda carecem de

interpretações.

Autores como Wendy Brown e Dardot e Laval, seguindo as pistas de Foucault,

apontam para a disseminação do modelo empresarial pelas esferas da sociedade, de

indivíduos a Estados. O neoliberalismo seria sobretudo compreendido como um

avanço de forças desdemocratizadoras, que começa a ganhar força nos anos 70, com

a queda do modelo de Bem-Estar Social (o neoliberalismo como resistência e ele).

Outros autores como Ian Bruff (2014) e Chamayou (2020), confluindo com esses

argumentos, classificam esse advento como neoliberalismo autoritário e liberalismo

autoritário, respectivamente. Para esses autores, portanto, haveria uma mudança

qualitativa no tipo de liberalismo exercido até então. Aqui há uma distinção: não é uma

onda iliberal que faz o liberalismo de outrora entrar em refluxo, mas um novo tipo de

liberalismo. E, retomando autores abordados na primeira parte, esse novo tipo de

liberalismo (neoliberalismo) não teria uma relação tão exógena ou antagônica com o

antigo liberalismo.

Importante retornar, hoje, às raízes históricas que pavimentaram o caminho

para o neoliberalismo. Mesmo da perspectiva de seus ideólogos centrais, a relação

entre liberalismo e o novo(neo) liberalismo pode se mostrar menos antagônica do que

aparece hoje. Hayek escreve com todas as letras em “O caminho da servidão” que seu

propósito é reerguer o liberalismo difamado com a Crise de 1929, crise essa que deu

Page 13: A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA, LIBERALISMO E …

13

força ao ditado “em trincheira não tem ateu, em crise não tem liberal” (ditado que, a

propósito, caiu por terra em 2008, atestando que as escolas da Áustria de Hayek, da

Chicago de Friedman e de Freiburg dos ordoliberais se mantiveram firmes). Hayek

afirma que pretende refundar o liberalismo no século XX, contra os adversários do

momento – a social-democracia, que teria não só ganhado protagonismo,

desbancando o liberalismo de tipo mais clássico, bem como influenciado os rumos do

liberalismo que teria adotado, por exemplo, planejamentos econômicos e fórmulas de

Estado de Bem-Estar.

Sendo possível apontar semelhanças estruturais entre liberalismo clássico e o

liberalismo refundado (o novo liberalismo ou neoliberalismo), cabe lembrar que ambas

são concepções que situam o mercado como centro da vida – o que rege a vida. Mais

ainda: como espaço de exercício da liberdade, que deve ser emulada em outras

dimensões da vida. A égide da liberdade como emulação da atividade econômica,

fonte de invenções/inovações, entendida como liberação das energias individuais

espontâneas, encontra seu ponto de forte contato com a “mão invisível” do liberalismo

clássico. O novo liberalismo apresenta, por suposto, características próprias, operando

a passagem do indivíduo e do Estado da sociedade de livre mercado para a sociedade

da livre empresa, em conjunto com concorrência exacerbada.

Se hoje o novo liberalismo ou neoliberalismo se caracteriza por se voltar contra

as liberdades liberais, é necessário se perguntar onde está o ponto de inflexão que

desvia do movimento de refundação para o de ruptura. O novo liberalismo se

constituiu como fase subsequente de um liberalismo e um capitalismo exauridos?

Seria possível afirmar que o neoliberalismo está para o capitalismo financeiro, assim

como o liberalismo estava para o capitalismo industrial e comercial?

Essas questões iniciais, que ainda demandam maiores investigações, parecem

habitar o coração da relação estabelecida entre liberalismo, novo

liberalismo/neoliberalismo e democracia. Uma hipótese extraída da leitura de

ideólogos como Hayek é que o neoliberalismo não deixa de disputar o significado da

democracia – o que traz mais matizes às teses de que o neoliberalismo reivindica a

desdemocratização (Wendy Brown, Dardot e Laval etc). Essa hipótese lança luz, ao

mesmo tempo, para compreensão da retórica de redução da direitos em nome da

democracia. Se a divisa liberal era a liberdade e a igualdade, mantendo a tensão

permanente entre elas, a divisa do novo liberalismo se torna a liberdade e a

desigualdade. Isso diz muito acerca da disputa de significados da democracia hoje.]

Page 14: A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA, LIBERALISMO E …

14

Hayek afirma que o socialismo democrático é a grande utopia porque

compreende o planejamento na economia como pretensão irreal da consciência da

sociedade sobre ela mesma, fixando o sentido de que direção política da economia é

instrumento supressor da liberdade. Para Hayek, é fundamental que a democracia,

elaborada como soberania popular e bem comum, seja concebida como obstáculo à

supressão da liberdade individual. Toda democracia que concebe a vontade do demos

como fonte suprema, sustentando a ideia do bem comum (uma ideia ilusória, na sua

concepção), tenderia a ser arbitrária. Contra a democracia da vontade da maioria,

caberia sempre afirmar a essência da liberdade. Uma vez que essa democracia não

se torna a égide da liberdade individual tal qual concebida pelos novos liberais, surge

o ponto de inflexão: essa liberdade pode ser mais bem garantida sob regimes

autocráticos. Mais vale uma ditadura com liberalismo econômico. A democracia não

precisa se converter em "fetiche". Assim, a redução de direitos outrora democráticos

se apresenta como bandeira em defesa da democracia.

É possível neoliberalismo se dizer democrático? Possivelmente, essa é a

batalha que estamos assistindo, a batalha perene em torno dos significados da

democracia. Como destaca Verónica Gago (2018), o neoliberalismo não vem apenas

“de cima para baixo”, tendo uma grande capacidade de se recompor, dada ao

enraizamento de sua racionalidade, na infraestrutura popular, como ficou demonstrado

após as revoltas antiglobalização e antineoliberais da virada do século. O

“neoliberalismo desde baixo”, na expressão de Gago, traz grandes desafios para se

pensar o futuro do imaginário sobre a democracia.

Referências bibliográficas:

AGUIAR, Thais Florencio de. Demofobia e demofilia: dilemas da democratização. Rio

de Janeiro: Azougue Editorial, 2015.

BERNSTEIN, Eduard. Socialismo evolucionário. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

BROWN, Wendy. Undoing the demos. Neoliberalism’s stealth revolution. New York:

Zone Books, 2015.

BRUFF, Ian. The Rise of Authoritarian Neoliberalism, Rethinking Marxism, 26:1, 113-

129, 2014.

BUONICORE, Augusto C. Liberalismo. Entre civilização e barbárie. Crítica Marxista.

137-140

Page 15: A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA, LIBERALISMO E …

15

CASARA, Rubens R R. Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos

indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar,

2018.

CHAMAYOU, Grégoire. A sociedade ingovernável. Uma genealogia do liberalismo

autoritário. Paris : La Fabrique, 2018.

CROUCH, Colin. Post-democracy. Cambridge: Polity Press, 2004.

DAHL, R. Poliarquia. Participação e oposição. São Paulo: Edusp, 1997.

______. Sobre a democracia. Brasília: Editora UNB, 2001.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaios sobre a

sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016.

ESPING-ANDERSEN, Gosta. (1991). As três economias políticas do welfare state. Lua

Nova: Revista de Cultura e Política, (24), 85-116.

FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

FRASER, Nancy. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. São Paulo:

Autonomia Literária, 2019.

HAYEK, Friedrich A. von. O caminho da servidão. Rio de Janeiro: Expressão e

Cultura, Instituto Liberal, 1987.

______. Os fundamentos da liberdade. Brasília: Visão e Editoria UNB, 1983.

LOSURDO, Domenico. “Marx, a tradição liberal e a construção histórica do conceito

universal de homem”. Revista Lutas Sociais, PUC SP, n. 13/14, 2005)

______. Contra-história do liberalismo. Aparecida: Ideias & Letras, 2006a.

_____. Liberalismo. Entre Civilização e Barbárie. São Paulo: Editora Anita Garibaldi,

2006b.

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro:

Zahar, 2018.

MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia: Por que nossa liberdade corre perigo e

como salvá-la. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

MCKAY, Ian. The Real World of Democracy? C.B. Macpherson’s Critique of the Cold

War Reification of ‘Liberal Democracy,’ 1965. Presentation to the Canadian Political

Page 16: A RELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA, LIBERALISMO E …

16

Science Association, June, 2019. Wilson Institute for Canadian History; McMaster

University.

MACPHERSON, C.B. The Real World of Democracy. Toronto: House of Anansi Press,

1992.

______. Democratic Theory: Essays in Retrieval.

______. The Life and Times of Liberal Democracy. Oxford University Press, 1977.

PANITCH, Leo; ALBO, Greg. Rethinking democracy. Socialist Register. Hamburg:

VSA Verlag, 2018.

PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.

POLANYI, Karl. A Grande Transformação: As origens políticas e econômicas de nosso

tempo, 2 ª ed. Prefácio de Joseph E. Stiglitz; introdução de Bloco Fred. Boston:

Beacon Press, 2001.

RAWLS, John. O liberalismo político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000.

SCHUMPETER, J. A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. São Paulo, Editora

Unesp, 2017. Capítulos 20 a 23.

STREECK, Wolfgang. Buying time. The delayed crisis of democratic capitalism.

London/New York: Verso, 2014.

______. “As crises do capitalismo democrático”. Novos Estudos, n. 92, 2012, p.35-56.

WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo

histórico. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.