republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

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REPUBLICANISMO E LIBERALISMO - DA RELAÇÃO ENTRE CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA NO MARCO DAS TRADIÇÕES DO PENSAMENTO POLÍTICO MODERNO Marcelo Andrade Cattoni de Olivreira Mestre e Doutor em Direito Constitucional (UFMG) Professor Adjunto de Filosofia do Direito, Sociologia Jurídica, Teoria Geral do Direito e Hermenêutica e Teoria da Argumentação Jurídica (PUCMinas) Professor Adjunto de Teoria da Constituição, Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional (UFMG) Professor de Teoria Geral do Direito do Curso de Direito da Escola Superior Dom Helder Câmara Membro do Comitê de Ética na Pesquisa (PUCMinas) Membro da Associação Brasileira de Filosofia e Sociologia do Direito Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual Membro do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos da Secretaria de Estado da Justiça e Direitos Humanos de Minas Gerais Membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Minas Gerais 1 – INTRODUÇÃO Na introdução à sua tradução de Faktizität und Geltung (Direito e Democracia: Entre facticidade e validade ), de Jürgen Habermas, Manuel Jiménez Redondo (1998) parte do pressuposto segundo o qual se poderia considerar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, como uma das expressões mais significativas do conteúdo normativo da Modernidade política. Analisando a Declaração, seria possível reconhecer a marca das duas grandes tradições do pensamento político moderno, a liberal e a republicana, representadas, respectivamente, nos embates políticos da Revolução Francesa, pelos girondinos e pelos jacobinos (ELSTER 1994: 57ss.). Após o seu preâmbulo, que procura explicitar as razões pelas quais os “representantes do povo francês” julgaram necessário “expor em uma declaração solene os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do

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REPUBLICANISMO E LIBERALISMO - DA RELAÇÃO ENTRE

CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA NO MARCO DAS TRADIÇÕES

DO PENSAMENTO POLÍTICO MODERNO

Marcelo Andrade Cattoni de OlivreiraMestre e Doutor em Direito Constitucional (UFMG)

Professor Adjunto de Filosofia do Direito, Sociologia Jurídica, Teoria Geral do Direito eHermenêutica e Teoria da Argumentação Jurídica (PUCMinas)

Professor Adjunto de Teoria da Constituição, Teoria Geral do Estado e DireitoConstitucional (UFMG)

Professor de Teoria Geral do Direito do Curso de Direito da Escola Superior Dom HelderCâmara

Membro do Comitê de Ética na Pesquisa (PUCMinas)Membro da Associação Brasileira de Filosofia e Sociologia do Direito

Membro do Instituto Brasileiro de Direito ProcessualMembro do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos da Secretaria de Estado da

Justiça e Direitos Humanos de Minas GeraisMembro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção

Minas Gerais

1 – INTRODUÇÃO

Na introdução à sua tradução de Faktizität und Geltung (Direito e

Democracia: Entre facticidade e validade ), de Jürgen Habermas, Manuel

Jiménez Redondo (1998) parte do pressuposto segundo o qual se poderia

considerar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789,

como uma das expressões mais significativas do conteúdo normativo da

Modernidade política. Analisando a Declaração, seria possível reconhecer a

marca das duas grandes tradições do pensamento político moderno, a liberal

e a republicana, representadas, respectivamente, nos embates políticos da

Revolução Francesa, pelos girondinos e pelos jacobinos (ELSTER 1994: 57ss.).

Após o seu preâmbulo, que procura explicitar as razões pelas

quais os “representantes do povo francês” julgaram necessário “expor em

uma declaração solene os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do

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homem” - ou seja, o esquecimento, a ignorância e desapreço pelos direitos

do homem como causa de toda corrupção dos governos - , a Declaração de

1789 passa a especificar uma série de princípios e de direitos, dentre os

quais, os direitos à igualdade jurídica, à liberdade, à propriedade, à

segurança e à resistência à opressão (arts.1º e 2º); e o objetivo de toda

sociedade política, a conservação desses direitos “naturais e imprescritíveis

do homem” (art. 2º). O art. 4º esclarece que “a liberdade consiste em poder

fazer tudo aquilo que não prejudique a outrem; por isso, o exercício dos

direitos naturais do homem não tem outro limite que aqueles que assegurem

aos demais membros de uma sociedade o gozo dos mesmos direitos”.

Até esse ponto, a Declaração nada mais seria que a expressão da

idéia liberal lockeana fundamental, segundo a qual haveria um conjunto de

direitos pré- políticos, verdadeira fonte normativa natural, que precederia,

limitaria e condicionaria a lei, devendo essa ser tão- somente a encarnação e

a expressão daqueles direitos. Assim, o art. 5º dirá que não cabe à lei senão

proibir as ações nocivas à sociedade, que desrespeitem os fins para os quais

a sociedade civil se constitui: a garantia e a conservação dos direitos naturais

do homem. E o restante do art. 5º, “tudo o que não está vedado pela lei não

pode ser impedido, e ninguém pode ser forçado a realizar o que a lei não

ordena”, e, ainda, o art. 3º, “a soberania reside essencialmente na nação.

Nenhum indivíduo ou corporação poderão realizar o exercício de autoridade

que não emane expressamente dela”, podem, também, ser interpretados no

sentido liberal segundo o qual,

...“para evitar os inconvenientes do ‘estado denatureza’ e com o objetivo de uma melhor conservação dosdireitos, se institui por pacto uma commonwealth para cujo

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government se delega a faculdade que no ‘estado de natureza’cada indivíduo tinha de fazer valer coercivamente seusdireitos; ao government dessa commonwealth compete agoracom exclusividade a função de fixar, interpretar e impor osdireitos.”(JIMÉNEZ REDONDO 1998: 21)

Todavia, segundo Jiménez Redondo, o art. 6º irá introduzir uma

outra fonte de normatividade e de legitimidade bastante distinta daquela

que representam os direitos naturais que precederiam a sociedade política,

na linha do pensamento não mais de Locke, mas de Rousseau: “A lei é a

expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer

para a sua formação pessoalmente ou por seus representantes”; e, sendo

assim, a lei “deve ser a mesma para todos, seja que proteja, seja que

castigue”. O art. 6º levanta a questão acerca do que deveria ocorrer com a lei,

que podendo considerar - se expressão da vontade geral, vulnere os direitos

naturais. Com base no art. 5º, a lei que desrespeitasse direitos naturais

deveria ser nula. Mas, desde a perspectiva do art. 6º, obter - se- ia, por sua

vez, um sentido bastante diferente que, inclusive, poderia estar mais de

acordo com o disposto no art. 3º. A questão é que, da perspectiva do art. 6º,

explica Jiménez Redondo,

“A liberdade não consiste primeiramente, comodisse o artigo quarto da Declaração, ‘em poder fazer tudo oque não prejudique a outrem; por tanto, o exercício dosdireitos naturais do homem não têm outros limites queaqueles que assegurem aos demais membros da sociedade ogozo desses mesmos direitos’ (art. 4); tampouco consiste emestar permitido a qualquer um tudo aquilo que as leis dosoberano não proíbem; senão que primariamente consistenaquilo a que se faz referência n’O contrato social [deRousseau] ao assinalar o problema que o contrato resolve:‘Encontrar una forma de associação que defenda, com toda aforça comum, a pessoa e os bens de cada associado e pelaqual cada um, unindo - se a todos, não obedeça, todavia, senãoa si mesmo’, isto é, a liberdade consiste primariamente em

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autonomia pública, quer dizer, em havendo de estarsubmetido a leis, não estar submetido a outras leis que as quequalquer um haja podido impor a si mesmo, conjuntamente,com cada um de todos os demais, podendo valer para todos epara qualquer um.” (JIMÉNEZ REDONDO 1998: 23)

Todavia, segundo Jiménez Redondo, (grifos meus )

“Deste conceito positivo de liberdade deriva,certamente, outro inteiramente subordinado a ele: ‘Tudo oque não está vedado pela lei não pode ser impedido, eninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordena’(art. 5), mas disso não resulta necessariamente o conceitodo artigo quarto.” (JIMÉNEZ REDONDO 1998: 23)

Afinal, um argumento é dizer que a lei não pode ferir os direitos

humanos naturais (ou fundamentais), baseados na noção de liberdade

segundo a qual essa consiste em fazer tudo o que não prejudique o igual

exercício da mesma liberdade pelos outros, e outro argumento consiste em

afirmar que a lei é a expressão da liberdade enquanto autonomia política

de cada um, que se exerce no interior ou no todo da sociedade política.

Para se pontuar a importância de tal problemática, e da força que essas duas

concepções ainda possuem na atualidade, basta abrirmos a Constituição

brasileira de 1988 para notarmos, a princípio, um certo paralelismo com a

Declaração de 1789. Por um lado, o art.5º da Constituição brasileira dispõe

que todos são iguais perante a lei, sendo garantidos os direitos à vida, à

liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade; e o art. 60, §4º, inciso IV,

torna esses direitos um limite ao exercício do Poder Legislativo, inclusive do

Poder Constituinte de Reforma da Constituição, ao determinar que não

deverá ser (o texto, em tom de declaração, diz, literalmente, “não será”)

objeto de apreciação por parte do Poder Legislativo proposta de Ementa

tendente a abolir direitos e garantias individuais (isso, sem nos esquecermos

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da normativa do inciso XXXVI, do art.5º, que determina que a lei não deverá

prejudicar - “não prejudicará”, como está no texto – o direito adquirido, o

ato jurídico perfeito e a coisa julgada). Por outro lado, o art. 1º, parágrafo

único, da Constituição, dispõe que a fonte de legitimidade do poder político

é o povo , que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou

diretamente; e o art.5º, II, estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou

deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Como, ontem e hoje,

compreender adequadamente esses dispositivos normativos?

Diante dessa problemática, Isaiah Berlin, como outros autores, no

terreno da Filosofia Política, buscou sintetizar o que seria o grande e

duvidoso legado da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de

1789, com as seguintes palavras:

“A relação entre democracia e liberdade individual ébem mais tênue do que pareceu a muitos defensores deambas. O desejo de ser governado por mim mesmo ou, pelomenos, de participar do processo através do qual minha vidadeve ser controlada, pode ser um desejo tão profundo quantoo de uma área livre para a ação, e talvez historicamente maisantigo . Mas não é um desejo relativo à mesma coisa . Narealidade, é tão diferente, que levou, em última instância, aogrande conflito de ideologias que domina nosso mundo. Poisé isto – a concepção “positiva” de liberdade: não liberdade de,mas liberdade para – de levar uma forma de vida prescrita –que os adeptos do conceito de liberdade “negativa” imaginamseja, algumas vezes, nada mais do que um ilusório disfarcepara a tirania brutal.” (BERLIN 1981: 142)

Mas será essa a forma mais adequada, ao paradigma do Estado

Democrático de Direito, de se reconstruir o conteúdo normativo moderno,

que se expressa, por exemplo, através do disposto pela Declaração dos

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Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e que encontra ecos até hoje,

como no Direito Constitucional brasileiro?

Tal indagação se impõe não somente por uma questão teórica mas

também por uma questão prática, operacional, do Direito, fundamental para

a questão acerca de uma justificação do controle judicial de

constitucionalidade das leis e do processo legislativo. Pois é algo bastante

diferente tentar justificar, por um lado, de uma perspectiva liberal, que tal

controle se sustenta em razão da garantia dos direitos liberais fundamentais

frente ao legislador, e, por outro lado, buscar justificar, se é que é possível

justificar, de uma perspectiva republicana, que esse controle se baseia na

garantia da manifestação de uma cidadania ativa.

Será impossível compreender de forma não concorrente o que

estaria disposto nos arts. 4º e 6º, da Declaração, os direitos do homem e os

direitos do cidadão ? Ou, em outras palavras, será possível conectar a fonte

normativa que emprestaria legitimidade às leis, que é representada pelos

direitos humanos (“naturais”), de liberdade, de propriedade e de segurança,

que o liberalismo buscou consagrar, e a fonte normativa, destacada pelos

republicanos, que representa o exercício democrático da autodeterminação

política, da qual as leis deveriam emanar?

Cabe dizer, desde já, que a tentativa histórica de solucionar tal

questão, através da divisão de papéis entre homem membro da sociedade

civil e cidadão membro da sociedade política não resolve o problema, que

poderia ser colocado por uma lei expressão da autonomia política dos

cidadãos que pudesse violar direitos humanos naturais (portanto, comuns

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a todos, cidadãos ativos ou não), já que, em princípio, a possibilidade de

violação desses direitos permaneceria.

A fim de buscar contribuir para a reflexão acerca dessas

indagações, todas elas centrais para uma justificação democrática do

controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo

legislativo, teremos de reconstruir os conceitos de autonomia pública e de

autonomia privada, bem como os de constitucionalismo e de democracia, a

eles relacionados, e mostrar que, no paradigma do Estado Democrático de

Direito, à luz de uma teoria discursiva do Direito e da Democracia, tais

conceitos não se opõem mas, ao contrário, estão intimamente implicados.

Mas, antes disso, neste capítulo, procurarei explicitar como as

tradições político- democráticas modernas, a republicana e a liberal,

buscaram enfrentar esses problemas. E, também, como resultam, de suas

construções, compreensões político- constitucionais divergentes, acerca da

relação entre constitucionalismo e democracia. Como veremos, ao referir a

Constituição a valores éticos tradicionais de uma nação, sempre carentes de

estabilização, ou ao considerá - la um limite jurídico- moral à atuação do

legislador político, respectivamente, os republicamos darão prioridade à

autonomia pública em detrimento da privada e os liberais darão prioridade à

autonomia privada em detrimento da pública. Ao vincular - se, como

veremos, a uma noção de liberdade positiva, o Republicanismo acentuará a

autonomia pública e a interpretará em termos de autorrealização ética; e o

Liberalismo, ao vincular - se a uma noção de liberdade negativa, acentuará a

autonomia privada e a interpretará como autonomia moral ou, então, como

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“escolha racional”. Nesse sentido, a Democracia surgirá ou como uma forma

político- instrumental que legitima um governo que representa os interesses

majoritários, como considerarão os liberais, ou como a forma política de

autorrealização ética de uma nação, como compreenderão os republicanos.

Todavia, como veremos, essas tentativas empreendidas tanto por

liberais quanto por republicanos são extremamente reducionistas. Pois

buscar solucionar o conflito entre autonomia pública e autonomia privada,

através de uma pretensa fundamentação ética, ou então moral, da relação

entre constitucionalismo e democracia que, em última análise, leva à

prioridade de uma sobre a outra concepção da liberdade, “negativa” ou

“positiva”, é permanecer cego à conexão interna entre autonomia pública e

autonomia privada, à sua co- originalidade e à sua equiprimordialidade.

2 - REPUBLICANISMO E LIBERALISMO

A tradição política republicana 1 remete - se a Aristóteles, através da

filosofia romana republicana e do pensamento político italiano do

Renascimento (Humanismo Cívico)2. É recepcionada pelo pensamento de

James Harrigton 3, o famoso opositor de Thomas Hobbes, e, através da obra

de Harrigton e de outros, influenciou os debates norte - americanos da

Convenção de Filadélfia. Essa tradição do Republicanismo Cívico, do

Maquiavel dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio4, foi

1 Para uma pequena genealogia da tradição republicana, ver MOUFFE 1996: 85. E,sobretudo, SANDEL 1982.

2Sobre o Humanismo Cívico, ver BIGNOTTO 1991: 9ss. Também SKINNER 1996: 91ss.

3 Sobre James Harrington, ver SABINE in HARRIGNTON 1996.

4Sobre Maquiavel e o Republicanismo renascentista ver BIGNOTTO 1991. TambémSKINNER 1996: 176- 177; 201ss.

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transposta para a linguagem moderna do Jusnaturalismo, na recepção e

atualização realizadas pela obra de Jean- Jacques Rousseau, influenciando

grandes nomes da Revoluções Francesa e Americana. Mereceu as reflexões

de G.W.F. Hegel e do jovem Karl Marx, e despertou, já no século XX, a

admiração e a recepção crítica nos escritos políticos e filosóficos de Carl

Friedrich (1967) e de Hannah Arendt (1958; 1990; 1992), dentre outros.

Contemporaneamente, são considerados republicanos autores como Charles

Taylor (1993; 1997), Michael Walzer (1993; 1997), Michael Sandel (1982) e

Alasdair McIntyre, além de juristas como Neil MacCormick (1995), Michael

Perry (1990; 1994) e Frank Michelman (1988).

A tradição política liberal, de John Locke a Immanuel Kant, de

Emmanuel Sieyes e Thomas Paine, a Benjamin Constant ou a John Stuart Mill,

e passado por Jeremy Benthan e outros, chega aos nossos dias através dos

ensaios de Isaiah Berlin e de obras tão diversificadas como as de John Rawls

(1971; 1993a), Robert Nozick (1991), Charles Larmore (1996) ou Ronald

Dworkin (1978; 1993). Mas é a obra filosófico- política e moral de John Rawls

que, atualizando o jusnaturalismo de matriz kantiana e não- utilitarista,

reacendeu nos Estados Unidos o debate 5, que mais tarde se alastrou pelo

mundo, entre Republicanos (comunitaristas ou não) e Liberais (sociais ou

não).

Essas duas tradições, enquanto tradições do pensamento político

moderno, compartilham a idéia segundo a qual todos os cidadãos são livres

e iguais. Assim, ambas defendem, não apenas a existência de uma

5Sobre o debate ver, MOUFFE 1996: 37ss; 83ss., KUKATHAS- PETTIT 1995, HABERMAS1997b, em várias passagens, TOURAINE 1996 , em várias passagens, APEL in BLANCOFERNÁNDEZ- PÉREZ TAPIAS- SÁEZ RUEDA 1994.

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Constituição e de um regime democrático, mas, também, a

constitucionalização de direitos fundamentais. Todavia, isso não significa

que a Constituição, a Democracia e os direitos fundamentais sejam

interpretados da mesma forma por elas. Ao contrário, o que há entre essas

tradições políticas é uma série de divergências 6, nem sempre conciliáveis,

quanto aos conceitos de processo político, cidadania (VIEIRA, J.R. 1997: 220),

direitos, constituição, democracia, etc.(HABERMAS 1997b: 2: 19ss.).

Tomemos, de início, o pensamento de Jean- Jacques Rousseau e de

John Locke, autores, esses, que podem ser compreendidos como aqueles

que, em primeiro lugar, fixaram – e a Declaração de 1789 pode ser

considerada como reflexo disso – os termos das questões filosófico- políticas

que, à essa altura das nossas indagações, devem ser discutidas.

Jean- Jacques Rousseau, assim como John Locke, é muito conhecido, dentre

outros motivos, por ser um grande representante do "contratualismo"7. Em

6 Divergências, essas, que são muito bem apresentadas ao longo de toda reflexãoempreendida em CITTADINO 1999. Ver, p. ex., a explicação da nota 10, na p.5, dessa obra.

7Para uma visão geral do "contratualismo", e de que "por tal termo se entende uma escolaque floresceu na Europa entre os começos do século XVII e os fins do século XVIII e teve seusmáximos expoentes em J.Althusius (1557- 1638), T.Hobbes (1588- 1679), B.Spinoza (1632-1677), S.Pufendorf (1632- 1694), J.Locke (1632- 1704), J.- J.Rousseau (1712- 1778), I.Kant(1724- 1804)", ver o verbete de Nicola Matteucci, in BOBBIO- MATEUCCI- PASQUINO 1994:272. Matteucci adverte para o fato, bastante relevante para o presente estudo, de que porescola entende "não uma comum orientação política, mas o uso comum de uma mesmasintaxe ou de uma mesma estrutura conceitual para racionalizar a força e alicerçar o poderno consenso". Mas se vai tornando inegável, à medida que a análise de Matteucci avança, ainfluência dessas referidas "orientações políticas divergentes" (verdadeiras pragmáticas)nessa "estrutura conceitual", que pouco resta como sendo a mesma, ainda mais em setratando da busca de "uma racionalização da força" ou de "um fundamento consensual dopoder". Sobre as teorias contratualistas hoje, ver, por exemplo, KERN- MÜLLER 1992.

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seu livro, Do Contrato Social 8, Rousseau (1983a) traça uma grande tese

acerca da organização, ou do que deveria ser a organização, política legítima.

"O homem nasce livre, e por toda parte encontra - se a ferros"

(ROUSSEAU, J.J. 1983a: 22). Não há uma organização política que, não tendo

sido erguida em respeito à liberdade e à igualdade civis, exerça um domínio

legítimo sobre os homens. Somente um Pacto ou Contrato social que, ao

contrário de Hobbes, e num certo sentido na linha de Locke , não aliena a um

Leviathan , mas transforma e assegura, os direitos naturais, poderá fundar

uma organização política legítima.

Assim, não há como concordar com Bobbio (1992b: 46) e outros,

quando simplesmente afirmam que Rousseau se afastaria de Locke e se

aproximaria de Hobbes 9, por compreender o contrato social como um "ato

de renúncia coletiva aos direitos naturais", pois isso é desconsiderar as

críticas de Rousseau ao Absolutismo. Cabe lembrar que, em primeiro lugar,

para Rousseau, o Direito não pode advir da força (ROUSSEAU 1983a: 25-

8A tradução do francês ao português, na publicação feita pela Abril Cultural, em suacoleção "Os Pensadores", é de Lourdes Santos Machado, com notas também redigidas porPaul Arbousse - Bastide. Na primeira nota, os organizadores advertem, de modo, como severá, bastante significativo: "Na edição Dreyfus- Brisac, famosa por ser a primeira a tentar areposição do texto segundo as fontes originais, figura um fac- símile da primeira folha doManuscrito de Genebra , primitivo esboço do Contrato Social. Aí se encontram as muitasvariantes por que passou o título da obra. Primeiro, foi mesmo "Do Contrato Social". Depois,provavelmente para fugir ao sabor individualista dessa expressão, foi ela riscada esubstituída por "Da Sociedade Civil". A seguir, consciente da originalidade de suainterpretação do esquema contratual, Rousseau retoma o primeiro título. Quanto aosubtítulo, encontramos sucessivamente "Ensaio sobre a Constituição do Estado", "Ensaiosobre a Formação do Corpo Político", "Ensaio sobre a Formação do Estado" e "Ensaio sobre aForma da República". "Princípios do Direito Político" é novidade que só surge na versãodefinitiva do Contrato ."

9 Mesmo assim, a própria leitura de Hobbes, empreendida por Bobbio, carece demaiores aprofunda men tos. Como demost ra m os estudos mais recentes, Hobbes poderiaser visto como um paradoxal defensor da esfera privada, que seria garantida por umgoverno autoritário. Mas esse autoritarismo possui limites. O soberano somente realizariasuas ações através da linguagem abstrata do Direito moderno, o que viabilizaria, portanto,o direito de todos a iguais liberdades subjetivas. Assim, Napoleão Bonaparte corporificariaa figura de um soberano como esse, e muito melhor do que qualquer um dos reis Stuart.

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26), e que “renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem”

(ROUSSEAU, J.J. 1983a: 27). E em segundo lugar, considero ser possível

compreender o que Bobbio referindo - se a Rousseau chama de "renúncia

não em favor de um terceiro mas em favor de todos", não como uma

alienação pura e simples de direitos, mas como uma transfiguração dos

direitos naturais, em razão da institucionalização jurídica desses no plano

da comunidade política do Estado. Porque tal institucionalização visa a

assegurar e realizar esses direitos e não a uma mera transferência de

poder em favor do Estado, Rousseau aproxima- se de Locke, já que ambos

compreendem, ao contrário de Hobbes, que o contrato social visa a

assegurar os direitos naturais, através da sua institucionalização jurídico-

política. Isso, inclusive, pode ser ilustrado com as mesmas passagens da

obra rousseauniana citada por Bobbio (1992b: 47), as duas primeiras do

capítulo VI e a última do capítulo VIII, Do Contrato Social :

"Encontrar uma forma de associação que defenda eapóie com toda a força coletiva a pessoa e os bens de cada umdos membros e por meio da qual, cada um unindo- se a todos,obedeça somente a si mesmo e permaneça livre como antes".

"Cada um oferecendo - se a todos não se oferece aninguém, e porque não existe membro algum sobre o qualnão seja adquirido o mesmo direito que lhe é concedidoacima de nós, ganha - se o equivalente de tudo aquilo que seperde, e mais a força para conservar o que se tem".

"O que o homem perde através do contrato social éa sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo aquiloque causa desejo e que ele pode obter: o que ganha é aliberdade civil e a propriedade de tudo aquilo que possui."

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Entretanto, é correto afirmar que a aproximação de ambos vai até

o ponto em que se passa a discutir o que seria assegurar e realizar direitos

naturais, através de sua institucionalização jurídica, no nível da

comunidade política do Estado. E, nesse sentido, cabe destacar uma

diferença fundamental entre Rousseau e Locke, quanto ao “direito civil de

liberdade”, e que, com certeza, refletir - se- á na compreensão final que

cada um deles possui do contrato social, do Direito e da política - a razão

de tantos equívocos e análises apressadas.

Jean- Jacques Rousseau, na linha da tradição republicana,

compreende o direito à liberdade como direito à autodeterminação

política, que se realiza através do exercício da liberdade civil e da

soberania do povo, na construção de uma comunidade ou "corpo" ético-

político, enquanto John Locke, como autor do Liberalismo, compreende o

direito de liberdade fundamentalmente como autodeterminação privada

quanto à propriedade e à felicidade, a ser assegurado juridicamente frente

aos outros indivíduos e à própria organização político - estatal. Enquanto

em Rousseau a liberdade é liberdade para algo , em Locke é liberdade de ou

frente a algo 10 . Em Rousseau, a liberdade natural se institucionaliza

juridicamente, no âmbito da comunidade política, como liberdade civil, no

plano da e para a participação política (pertinência à pólis), e que resgata a

idéia de virtude cívica ; em Locke, a liberdade natural se institucionaliza

juridicamente no plano da comunidade política como liberdade civil,

10 Uso, aqui, mais uma vez, as expressões de BERLIN 1981. Retomando o tema dafamosa conferência de Benjamin Constant, Berlin fala em liberdade em sentido positivo eliberdade em sentido negativo . Todavia tal distinção é problemática da perspectiva deuma teoria discursiva da democracia.

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através do reconhecimento e da garantia, pela comunidade política - estatal,

da existência à parte de uma esfera privada (separação entre Estado e

sociedade).

Para Locke e Rousseau, o contrato social que constitui a

organização civil, ou sócio- política, a constituição do Estado ou a

constituição política, tem finalidades comuns e finalidades diferentes. Para

ambos, é a forma de se assegurar efetiva e legitimamente os direitos naturais

dos indivíduos 11 . Mas em Locke o contrato ou pacto fundamental tem por

finalidade criar uma organização social através da qual o indivíduo,

compreendido antes como sujeito de direitos privados do que como cidadão,

possa exercer com segurança e sem interferências os seus direitos à vida, à

liberdade privada e, principalmente, aos bens a que chama "propriedade" 12:

"124.O objetivo grande e principal, portanto, daunião dos homens em comunidades, colocando- se eles sob ogoverno, é a preservação da propriedade. Para esse objetivo,muitas condições faltam no estado de natureza.” (LOCKE1983: 84) 13 .

11 O que o empirismo político característico das análises de BOBBIO 1992b: 48 não deixaver é justamente o aspecto normativo da exposição tanto de Locke, quanto, efundamentalmente, de Rousseau, acerca do pacto social: com esse se funda a organizaçãopolítica, através da institucionalização político- jurídica de direitos que passam a serreciprocamente reconhecidos, desde o início, quando da passagem do "estado de natureza"para o "estado civil".

12 Sobre o conceito de propriedade em John Locke, ver JORGE FILHO 1992: 77ss. Aqui, ocontraste entre Locke e Rousseau é imenso. Basta lembrar que Rousseau considera que apropriedade privada está na origem das desigualdades “morais” ou “políticas” entre oshomens (ROUSSEAU, J.J. 1983b: 259).

13 No original, “ The great and chief end therefore, of Mens uniting into Commonwealths,and putting themselves under Government, is the preservation of their Property. To which inthe state of nature there are many things wanting”. (LOCKE 1963: 395- 396)

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Para Locke, diferentemente de Rousseau, há que se diferenciar o

pacto fundamental do pacto que cria o governo (um governo

representativo 14 , eleito pela maioria dos membros da "comunidade política"

(Commonwealth 15)), pois um é o processo político fundador, outro o

processo eleitoral de escolha de representantes. A dissolução, por exemplo,

do governo, não implica necessariamente dissolução da sociedade, embora

ocorra o contrário quando se dissolve a sociedade pois, nesse caso, o

governo não encontraria como subsistir (LOCKE 1963: 454; 1983: 118). E

uma das razões pelas quais um governo pode (e deve) ser dissolvido, se não

for a razão principal, consiste no descumprimento por esse de suas

finalidades e encargos, ou seja,

..."quando tenta invadir a propriedade do súdito etornar - se a si mesmo ou a qualquer parte da comunidadesenhor ou árbitro da vida, liberdade ou fortuna do povo".(LOCKE 1983: 121; 1963: 460)

Já Rousseau concebe tanto o pacto fundador, quanto o processo

político e o processo eleitoral de modo diverso. O contrato social, enquanto

constituição política, consubstancia a formação de um corpo político que,

através da comunhão de seus membros (“fraternité”), exerce o direito

comunitário à autodeterminação, em busca da realização da felicidade, da

14Cabe lembrar que em Locke, o governo, composto de representantes ou de umrepresentante do povo, é exercido fundamentalmente pelo poder legislativo, existente aolado do poder executivo e do poder federativo, e se diferencia do seio do povo, não seconfundindo com este último. Sobre isso, ver LOCKE 1963: 401ss; 1983: 86ss.

15É o próprio Locke quem explica o que significa Commonwealth, nessa passagem do seujá citado livro: "133. By Commonwealth, I must be understood all along to mean, not ademocracy, or any Form of Government, but any Independent Community which the Latinessignified by the word Civitas, to which the word which best answers in our Language, isCommonwealth, and most properly expresses such a Society of Men, which Community or Cityin English does not, for there may be Subordinate Communities in a Government; and Cityamong us has a quite different notion from Commonwealth".

Page 16: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

autorrealização ética 16 . "Renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de

homem" (ROUSSEAU 1983a: 27). A garantia de cidadania, liberdade e

igualdade civis, na busca da felicidade, é a finalidade por excelência do

pacto social e da sociedade política que através dele se constitui:

"'Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todoseu poder sob a direção suprema da vontade geral, erecebemos, enquanto corpo, cada membro enquanto parteindivisível do todo'. Imediatamente, esse ato de associaçãoproduz, em lugar da pessoa particular de cada contratante,um corpo moral e coletivo, composto de tantos membrosquantos são os votos da assembléia, e que, por esse mesmoato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e suavontade. Essa pessoa pública, que se forma, desse modo, pelaunião de todas as outras, tomava antigamente o nome decidade e, hoje, o de república ou corpo político, o qual échamado por seus membros de Estado quando passivo,soberano quando ativo, e potência quando comparado a seussemelhantes. Quanto aos associados, recebem, eles,coletivamente, o nome de povo e se chamam, em particular,cidadãos, enquanto partícipes da autoridade soberana, esúditos enquanto submetidos às leis do Estado." (ROUSSEAU,J.J. 1983a: 33- 34)

Cada momento em que se expressa a vontade geral é uma

confirmação do pacto social e da constituição do corpo político. Em

Rousseau, não há lugar nem para governo representativo no sentido

lockeano, já que "A soberania não pode ser representada pela mesma razão

porque não pode ser alienada" 17 e porque "Há um único contrato no Estado,

16 O jacobinismo e seu Comité de Saúde Pública representará a quintessência desseponto de vista.

17Em Rousseau, a idéia de soberania inalienável e indivisível opõe- se ao governorepresentativo no sentido de Locke. A íntegra do famoso trecho é: "A soberania não pode serrepresentada pela mesma razão por que não pode ser alienada, consiste essencialmente navontade geral e a vontade geral absolutamente não se representa. É ela mesma ou é outra,não há meio- termo. Os deputados do povo não são, nem podem ser seus representantes;não passam de comissários seus, nada podendo concluir definitivamente. É nula toda lei queo povo diretamente não ratificar; em absoluto, não é lei."(ROUSSEAU, J.J. 1983a: 108) E numataque frontal a Montesquieu e a Locke, afirma: "O povo inglês pensa ser livre e muito seengana, pois só o é durante a eleição dos membros do parlamento; uma vez estes eleitos, eleé escravo, não é nada. Durante os breves momentos de sua liberdade, o uso, que dela faz,mostra que merece perdê- la."(p.108) E explicitando as raízes medievais do "governo

Page 17: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

o da associação, e, por si só, exclui todos os demais"(ROUSSEAU, J.J. 1983a:

111) 18 , nem muito menos para dissolução do autogoverno através do

exercício de um direito individual de resistência, possível em Locke (1983:

114), porque a soberania popular não pode voltar - se contra si mesma, nem a

vontade geral pode errar 19 , embora seja possível a censura através de

julgamento público (ROUSSEAU, J.J. 1983 a: 135ss.) a comissários do povo e

a atos do governo. Enquanto, pois, em Locke há lugar para dois pactos e o

processo político, após a assinatura do pacto fundamental, é praticamente

reduzido a um processo eleitoral de escolha de representantes, em Rousseau

o processo político, mesmo o que institui o governo (ROUSSEAU, J.J. 1983 a:

112), é o centro que integra e constitui o social, processo em que se expressa

a vontade geral e se confirma o pacto social, no sentido das suas finalidades

ético- políticas.

Assim, é nesse sentido que podemos dizer que o processo político,

segundo o modelo liberal, ilustrado pelo pensamento lockeano, realiza a

tarefa de programar o governo de acordo com o interesse da sociedade ,

compreendendo - se o primeiro como um aparato administrativo e a segunda

como uma rede de interações entre sujeitos privados organizada na forma

do mercado. A política , como em Locke, tem a função de reunir os interesses

privados e encaminhá - los à Administração Público- Estatal, cuja finalidade é

utilizar - se do poder político para atingir objetivos coletivos majoritários.

Uma formação democrática da vontade e da opinião tem, nesse contexto, a

representativo", considera - o incompatível com o direito e com a liberdade civil.

18Não há lugar, portanto, para um pacto secundário entre povo e governantes.

19ROUSSEAU, J.J. 1983 a: 46: "... a vontade geral é sempre certa e tende sempre à utilidadepública."

Page 18: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

função de legitimar o exercício do poder político: os resultados eleitorais são

a concessão para se assumir o governo, ao passo que o governo deve

justificar o uso do poder ao público.

Já o Republicanismo, ilustrado pelo pensamento de Rousseau,

concebe a política para além dessa função de mediação social, pois ela é, em

primeiro lugar, constitutiva dos processos societários em geral: é a forma em

que se reflete a vida ética real, o meio através do qual os indivíduos

solidariamente se tornam conscientes de que dependem uns dos outros e,

agindo como cidadãos, modelam e desenvolvem suas relações de

reconhecimento recíproco, transformando - se numa associação de co-

associados livres e iguais perante o Direito. Segundo Habermas,

"Com isso, a arquitetura liberal de governo esociedade sofre uma mudança importante: além das normashierárquicas do Estado e das regras descentralizadas domercado, ou seja, além do poder administrativo e dosinteresses pessoais, a solidariedade e a orientação para o bemcomum aparecem como uma terceira fonte de integraçãosocial(...) Na concepção republicana, a esfera público- políticaadquire, juntamente com sua base na sociedade civil, umaimportância estratégica." (HABERMAS 1995b: 108)

Com base nessas duas compressões concorrentes, é possível

traçar, em termos esquemáticos, duas concepções diferentes de cidadania . O

status de cidadão, para o Liberalismo, é fundamentalmente determinado por

direitos negativos perante o Estado e em face dos outros cidadãos. Como

titulares desses direitos, eles gozam da proteção estatal na medida em que

buscam realizar seus interesses privados dentro dos limites estabelecidos

pela lei, e isso inclui a proteção contra intervenções estatais. Direitos

políticos, como o direito ao voto ou à liberdade de expressão, não têm

Page 19: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

apenas a mesma estrutura, mas também um significado semelhante

enquanto direitos civis que fornecem um espaço no qual questões

pragmáticas, através de um agir estratégico funcionalmente regulado,

tornam - se livres de coerção externa, fundando um processo político

moldado no funcionamento do mercado. Esses direitos

..."dão aos cidadãos a oportunidade para afirmarseus interesses privados de tal modo que, por meio deeleições, da composição de corpos legislativos e da formaçãode um governo, esses interesses são finalmente agregadosnuma vontade política que provoca um impacto sobre aAdministração." (HABERMAS 1995b: 109)

O processo democrático se dá, para o Liberalismo, exclusivamente

sob a forma de compromissos entre interesses divergentes, devendo a

igualdade civil ser assegurada pelo direito geral e igualitário de votar, pela

composição representativa dos corpos parlamentares, pelas normas

decisórias, etc., normas, essas, justificadas em termos de direitos liberais

fundamentais. Segundo Habermas:

“Na interpretação liberal, a política é essencialmenteuma luta por posições mais favoráveis no âmbito do poderadministrativo. O processo de formação da opinião e davontade na esfera pública e no parlamento é determinadoatravés da concorrência de atores coletivos que agem,estrategicamente, a fim de obter ou manter posições depoder. O sucesso se mede pelo assentimento qualificadopelos votos de eleitores, dados a pessoas e programas. Em seuvoto, os eleitores expressam suas preferências. Suas decisõeseleitorais têm a mesma estrutura que os atos de escolha departicipantes do mercado, orientados pelo sucesso.”(HABERMAS 1997b: 1: 337)

Segundo o modelo republicano, a cidadania não é apenas

determinada pelo modelo das liberdades negativas que podem ser

Page 20: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

reivindicadas pelos cidadãos enquanto sujeitos de direito privado. Os

direitos políticos são, antes de tudo, liberdades positivas, pois garantem não

a liberdade de coerção externa mas a possibilidade de participação política

comum pela qual os cidadãos, na construção de uma identidade ético-

política comum, reconhecem - se como co- associados livres e iguais:

“Enquanto a interpretação liberal vê o sentido deuma ordem jurídica no fato de ela permitir constatar, no casoconcreto, quais direitos competem a quais indivíduos, a visãorepublicana considera que esses direitos subjetivos resultamde uma ordem jurídica objetiva, a qual não somente tornapossível, como também garante a integridade de umaconvivência autônoma, com iguais direitos e que repousa norespeito mútuo.”(HABERMAS 1997b: 336)

Ao contrário do Liberalismo, o Republicanismo considera que o

processo político não serve apenas para programar e fiscalizar a atividade

administrativa do Estado por cidadãos que já adquiriram uma autonomia

privada pré- social e pré- política, nem é um simples elo entre Estado e

sociedade, pois a autoridade da Administração Pública não é também algo

dado. Essa autoridade, escolhida através de um processo eleitoral que

conserva a lembrança do ato de fundação da sociedade como comunidade

política, emerge da práxis de autolegislação dos cidadãos e se legitima no

fato de ela proteger essa práxis, através do processo de institucionalização

da autonomia cívica, das liberdades públicas.

"Para a política, no sentido de práxis de autolegislação cívica, o paradigma

não é o mercado, mas o diálogo" (HABERMAS 1995b: 110), um diálogo que

gira não meramente em torno de preferências e interesses mas de valores

comunitariamente compreendidos. Para o Republicanismo,

Page 21: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

“”Política” é entendida como forma de reflexão deum contexto vital ético - como medium no qual os membrosde comunidades solidárias, mais ou menos naturais, tornam -se conscientes de sua dependência recíproca e, na qualidadede cidadãos, continuam e configuram, com consciência evontade, as relações de reconhecimento recíproco jáexistentes.” (HABERMAS 1997b: 1: 333)

Um governo republicano nunca estaria somente incumbido de

exercer um mandato amplamente aberto, como no modelo liberal, mas

também obrigado programaticamente a cumprir certas políticas,

permanecendo ligado à comunidade política que se autogoverna.

"Assim, a raison d'être do Estado não residefundamentalmente na proteção de direitos privados iguais,mas na garantia de uma formação abrangente da vontade e daopinião, processo no qual cidadãos livres e iguais chegam aum entendimento em que objetivos e normas se baseiam noigual interesse de todos." (HABERMAS 1995b: 109)

A formação democrática da vontade se daria, pois, para o

Republicanismo, sob a forma de um discurso ético- político que conta com

um consenso de fundo estabelecido culturalmente e compartilhado pelo

conjunto dos cidadãos.

Quais são as visões de Estado e de Sociedade subjacentes a essas

compressões de processo político, cidadania e direitos? E, enfim, quais os

reflexos dessas concepções na compreensão da Constituição e da

Democracia , à luz das tradições republicana e liberal?

Tanto a tradição liberal quanto a republicana pressupõem uma

visão de sociedade centrada no Estado. Mas enquanto para a primeira, o

Estado é o guardião de uma sociedade de mercado, para a segunda o Estado

é a institucionalização autoconsciente de uma comunidade ética.

Page 22: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

De acordo com os republicanos, a formação política da vontade e

da opinião dos cidadãos cria o meio através do qual a sociedade se constitui

como uma totalidade política, onde não faz sentido distinguir - se o Estado e

a sociedade, pois

"A sociedade é desde sempre, uma sociedadepolítica - societas civilis. Daí o fato de a democracia tornar - seequivalente à auto- organização política da sociedade comoum todo" (HABERMAS 1995b: 116) 20 .

Assim, a Constituição é compreendida como a consubstanciação

axiológica concreta da identidade ética e da auto- organização total de uma

sociedade política, verdadeira “medida material da sociedade” ou “ordem

fundamental jurídica da coletividade”, para usar a conhecida expressão do

constitucionalista alemão Konrad Hesse (1998: 37). Sua realização se dá

através do exercício conjunto da autonomia pública dos seus membros.

Diferentemente, de acordo com os liberais, a separação entre

Estado e sociedade, que desperta uma reação polêmica por parte dos

republicanos, não pode ser eliminada, mas somente diminuída pelo processo

democrático. Assim, a Constituição , enquanto mecanismo ou instrumento de

governo (“instrument of government” ) tem uma função de compatibilização.

O equilíbrio regulado entre poder político e interesses sociais diversos

necessita de um canal constitucional :

"Espera- se que a Constituição controle o aparatoestatal por meio de restrições normativas (tais como osdireitos fundamentais, a separação de poderes, etc.) e oobrigue, mediante a competição de partidos políticos, por umlado, e a competição entre governo e oposição, por outro, alevar em conta, adequadamente, os interesses concorrentes eas orientações de valor (...) O modelo liberal depende não da

20 Acerca dessa compreensão de democracia, ver ARENDT 1990, fundamentalmente, caps.4 e 5.

Page 23: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

autodeterminação democrática de cidadãos capazes dedeliberação, mas da institucionalização jurídica de umasociedade econômica encarregada de garantir um bemcomum essencialmente apolítico por meio da satisfação depreferências particulares." (HABERMAS 1995b: 117)

Tais compreensões acerca da relação entre Estado e sociedade,

segundo uma visão republicana ou liberal do processo político, também

projetam duas compreensões concorrentes da soberania popular e da

Democracia .

Como em Rousseau, a tradição republicana reavalia e se apropria

do conceito de soberania inicialmente associada aos regimes absolutistas e a

transfere para a vontade do povo unido,

..."ao fundir a força do Leviatã com a idéia clássicada auto- regulamentação dos cidadãos livres e iguais e aocombiná- la com seu conceito moderno de autonomia."(HABERMAS 1995b: 120)

Apesar disso, o conceito de soberania permaneceu ligado, como

em Rousseau, à noção de uma encarnação no povo fisicamente presente e

reunido, o que levou à concepção segundo a qual a soberania é, por

princípio, indelegável e, portanto, irrepresentável, como já analisado.

A isso se opõe o Liberalismo, segundo o qual, no Estado de Direito,

toda autoridade emana do povo, que a exerce por meio de seus

representantes políticos eleitos, no quadro das competências atribuídas

constitucionalmente aos órgãos legislativos, executivos e judiciários do

Estado.

Em termos esquemático- comparativos , a tradição republicana,

por um lado, pressupõe uma concepção política segundo a qual a

Page 24: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

Constituição, enquanto expressão da autonomia política do povo

signatário de um pacto fundamental , reflete uma ordem concreta de

valores, que materializa a identidade ético- cultural, de uma sociedade

política que se quer homogênea, e a Democracia é a forma política de plena

realização dessa identidade, através de um processo de auto- reflexão

conjunta e do diálogo entre os cidadãos. O acento é, portanto, dado à

autonomia pública enquanto meio para a autorrealização ética da

comunidade. E a tradição liberal, por outro lado, pressupõe uma concepção

política segundo a qual a Constituição é um mecanismo ou instrumento de

governo (“instrument of government”), capaz de regular o embate entre os

vários atores políticos que concorrem entre si, e a Democracia é um

processo através do qual se elege e se estabelece o exercício de um

governo legitimado por decisão da maioria. O acento é dado, agora, pelo

Liberalismo, à autonomia privada enquanto exercício da autonomia moral

e da escolha racional.

Acentuando, assim, compreensões divergentes acerca do Direito (e

dos direitos), bem como da política, da Constituição e da Democracia, as

tradições republicana e liberal contribuíram para a formação da linguagem e

do imaginário políticos dos últimos séculos.

Entretanto, se, nos próximos capítulos, quisermos levar a sério

tanto a autonomia pública quanto a autonomia privada, dos co- associados

jurídicos, em sua co- originalidade e equiprimordialidade, teremos de

renunciar ao reducionismo representado pelas tentativas republicanas e

liberais de fundamentação ética ou então moral do constitucionalismo e da

democracia e, nesse sentido, reconstruirmos a relação entre esses últimos e a

Page 25: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

autonomia, em todas as suas dimensões, de forma a que tais conceitos não

mais se oponham, nem se excluam. Teremos, justamente, de superar o

paradoxal legado das duas grandes tradições do pensamento político

moderno.

DEMOCRACIA E CONSTITUCIONALISMO NO MARCO DO ESTADO

DEMOCRÁTICO DE DIREITO: DA NECESSIDADE DE SUPERAÇÃO DAS

TRADIÇÕES REPUBLICANA E LIBERAL ATRAVÉS DE UMA VISÃO

PROCEDIMENTALISTA DO DIREITO E DA POLÍTICA DELIBERATIVA

1 - INTRODUÇÃO

Republicanismo e Liberalismo são duas tradições do pensamento

político moderno que informam o debate político- jurídico dos últimos

séculos. Como vimos no capítulo anterior, apresentam modelos que,

preocupados não tanto em explicar ou descrever processos políticos

concretos, levantam a pretensão de fundar a política em termos normativo-

idealizantes.

Tais modelos têm perdido muito do seu poder de convencimento

que, por não levarem em consideração a complexidade da sociedade atual,

ao manterem, por exemplo, um modelo de sociedade composta por

indivíduos e centrada no Estado, ou, mais especificamente, no caso

republicano, ao pressupor uma homogeneidade ético- cultural como base da

democracia, pouco ou nada são capazes de articularem - se a uma análise

empírica no nível dos processos políticos concretos, em nossas sociedades

complexas, descentradas e pluralistas.

Page 26: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

Assim, apesar de o modelo liberal levar a sério o chamado “fato

do pluralismo razoável”(John Rawls), ele é excessivamente céptico, porque,

como vimos, tende a reduzir o debate político, à luz de um modelo

econômico do mercado, a uma mera disputa entre os atores políticos, e

não explica, de modo consistente, como atores voltados exclusivamente

para a satisfação de interesses próprios podem concordar acerca das

normas que irão reger, de forma imparcial, sua vida em comum.

Essa afirmação deve ser tomada com certo cuidado, em se

tratando da posição de John Rawls, apresentada em Political Liberalism

(1993a) , pois ela tende a romper com uma concepção “mercadológica” da

política, presente em outros autores liberais . Embora não seja necessário

analisar, aqui, de modo exaustivo a teoria política de Rawls, cabe ressaltar

que a Teoria Política da Justiça como Equanimidade (“Justice as Fairness”)21 ,

em sua versão mais atual, tende a abandonar uma perspectiva, tão

presente em 1971 (RAWLS 1971: 4), de uma teoria da escolha racional. A

partir de trabalhos posteriores (RAWLS 1993b) à obra A Theory of Justice

(1971), a teoria de John Rawls tem procurado tornar - se o que esse filósofo

norte - americano chama de “Construtivismo Político” (“Polítical

Constructivism ”) (RAWLS 1993a: 89ss.), em que a linguagem do

contratualismo ressurge como estratégia de exposição, a fim de explicar,

através da idéia de “posição original” (“original position”), que como um

todo é um “mecanismo de representação” (“device of representation” ) dos

cidadãos livres e iguais em uma sociedade bem ordenada (RAWLS 1993a:

21 Traduzo o termo inglês “fairness” por equanimidade e não por eqüidade, para marcaro contexto não- aristotélico da Teoria da Justiça apresentada por John Rawls, umaconcepção que se pretende procedimental e não substan tivista.

Page 27: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

22ss.), como os princípios da justiça 22 podem ser selecionados e não

escolhidos pelas “partes”. Assim, um modelo do mercado estaria

abandonado, já que, para John Rawls ,

...“o que é fundamental [para a democracia] é umprocedimento político que assegure a todos os cidadãosplena e efetiva voz em um esquema equânime derepresentação (“in a fair scheme of representation”). Talesquema é fundamental porque a proteção adequada deoutros direitos fundamentais [além das liberdades de base]depende dele. A igualdade formal não é suficiente.” (RAWLS1993a: 361)

O Liberalismo Político, com essa compreensão do processo

político, pretende apresentar uma concepção política e liberal de justiça, a

fim de buscar resolver o que seria o grande tema da Filosofia Política atual:

o de como ordenar a sociedade de modo a que seja justa, estável e

democrática, dado o fato do pluralismo razoável de visões de mundo e

modos de vida (RAWLS 1993a). Uma concepção política de justiça, segundo

Rawls, é caracterizada por três elementos. O primeiro elemento diz

respeito ao seu objeto: embora contenha certos ideais, princípios e

“standards ”, e que esses ideais, princípios e “standards ” articulem certos

valores (nesse caso, valores políticos ), Rawls esclarece que uma concepção

política de justiça não se aplica a qualquer coisa, mas tão somente à

22 Segundo Rawls, os princípios da justiça selecionados pelas partes na posição originaldevem ser, assim, enunciados: “a. Toda pessoa tem igual direito a um esquema plenamenteadequado de liberdades fundamentais iguais, o qual seja compatível com um esquemasimilar de liberdades para todos; b. As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazera duas condições. Primeiro, devem estar associadas a cargos e a posições abertos a todos, emcondições de uma eqüitativa igualdade de oportunidades; e, segundo, devem proporcionar omaior benefício aos membros menos favorecidos da sociedade” (RAWLS 1993a: .291) Amudança em relação à anterior formulação do primeiro princípio, explica Rawls, está em quea expressão “um esquema plenamente adequado” substitui a expressão “o sistema total omais extenso“, tal como se encontra em Theory (RAWLS 1971: 250; :302), o que leva àinserção dos termos “o qual” antes de “compatível”. Tais alterações visam, segundo Rawls,afastar um “critério de maximização” (“maximin”) das liberdades, que poderia estarsubjacente à formulação original (RAWLS 1993a: 331).

Page 28: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

“estrutura de base da sociedade” e, no seu caso, à estrutura de base de uma

sociedade democrática moderna (RAWLS 1993a: 11). O segundo elemento

refere - se a uma concepção política de justiça que se apresenta como uma

“visão independente” (“freestanding view”) de qualquer doutrina

compreensiva (RAWLS 1993a: 12). Já o terceiro elemento é o de que o

conteúdo de tal concepção é expresso por certas idéias fundamentais,

implícitas, segundo Rawls, na cultura política pública de uma sociedade

democrática: a sociedade é um sistema de cooperação no tempo, de

geração em geração; os cidadãos que cooperam são pessoas livres e iguais;

uma sociedade bem- ordenada é uma sociedade efetivamente regulada por

uma concepção política de justiça (RAWLS 1993a: 13- 14). Tais idéias,

ainda, segundo Rawls, podem apoiar - se num “consenso por sobreposição”

(“overlapping consensus”), o que garantiria estabilidade e viabilidade

(RAWLS 1993a: 15). E o que caracteriza, segundo Rawls, o conteúdo de

uma concepção política liberal de justiça? Primeiro, o fato de especificar

certos direitos, liberdades e oportunidades fundamentais; segundo, a

prioridade especial que atribui a esses direitos, liberdades e

oportunidades, especialmente frente a pretensões do bem geral e a valores

perfeccionistas; e, terceiro, por estabelecer meios que assegurem a todos

os cidadãos as condições adequadas para o uso efetivo desses direitos,

liberdades e oportunidades (RAWLS 1993a: 6).

Todavia, um acentuado caráter monológico parece persistir, pois

o que, em última análise, garantiria a “razoabilidade” (o senso de justiça e

a capacidade de honrar os termos da cooperação social) nos processos de

justificação /cons t rução e de aplicação /es tabilização dos princípios da

Page 29: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

justiça seriam restrições formais e materiais impostas e dadas, desde o

início (RAWLS 1993a: 103), à ”racionalidade” (capacidade para se ter uma

concepção de vida boa), tanto dos cidadãos, no debate político, quanto das

partes que os representa m, na posição original. Pois ainda que a posição

original seja tão somente um “mecanismo de representação”, no sentido de

se esclarecer o que seria o ponto de vista político ou moral da

imparcialidade, ela torna o raciocínio prático extremamente solitário e

limitado quanto aos temas. Segundo Rawls, “podemos adentrar essa

posição a qualquer momento, simplesmente raciocinando por princípios

de justiça, de acordo com as restrições (...) de informação” RAWLS 1993a:

27) acerca da nossa própria concepção do bem e da situação social e

cultural em que nos encontramos. Assim, também, a concepção

desenvolvida por Rawls de “Public Reason ”, ou de “uso público da razão”.

Ela remete a política e a esfera pública ao Estado e aos seus fóruns oficiais,

excluindo de um “uso público da razão” os debates empreendidos pela

sociedade civil, bem como constrange as questões públicas e políticas a

uma agenda fechada e pré - definida de temas, que exclui qualquer questão

que esteja relacionada às diversas formas ou modos de vida presentes na

sociedade (RAWLS 1993a: 212ss.). Faltam diálogo, abertura e

discursividade à concepção da política e do público proposta por Rawls

(HABERMAS- RAWLS 1997; CATTONI DE OLIVEIRA 1998b; KUKATHAS-

PETIT 1995).

A posição rawlsoniana poderia ser criticada, também, no sentido

de que pressupõe uma noção bastante restritiva, típica do Liberalismo, do

que sejam “questões constitucionais essenciais”, inclusive e apesar de

Page 30: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

Rawls dizer que seu objeto de análise é filosófico - político e não uma

“questão de Direito”.

O modelo republicano, por outro lado, embora possua a

vantagem de compreender a política como algo mais que uma simples

concorrência entre atores políticos, que visam a satisfazer interesses

próprios, diversos e divergentes, e procure resgatar a “dignidade da

política” (ARENDT), considerando - a como uma forma dialógica de

integração social, é um modelo excessivamente normativo, pois tende a

reduzir o debate político a um processo de auto- esclarecimento coletivo,

acerca de um modo ou projeto de vida que se pressupõe comum, com base

num forte consenso ético. Assim, embora autores republicanos

comunitaristas como Michael Walzer (1993; 1997) e Charles Taylor (1993;

1997) se considerem defensores do pluralismo social e cultural, é preciso

lembrar que para eles as decisões políticas só se justificam de forma

relativa e à luz de valores comunitários prevalecentes, e nunca de forma

imparcial. A justiça é, assim, considerada tão somente como um bem

coletivo dentre outros, comunitariamente interpre tado. A importância do

pluralismo residiria, no máximo, apenas na necessidade da tolerância e do

desenvolvimento de uma “política de reconhecimento” de identidades e de

diferenças entre as diversas comunidades ético- políticas (TAYLOR 1993;

HABERMAS 1998b: 203ss.; APEL 1994). Ora, como veremos no presente

capítulo, os discursos éticos acerca do bem fazem parte do debate político,

mas este não se reduz àqueles: Como assevera Habermas (1995b: 107-

121), no contexto das sociedades complexas modernas, marcadas por uma

pluralidade de formas de vida racionais, bem como por imperativos

Page 31: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

sistêmico - funcionais, argumentos éticos acerca do que é o bem são

temperados por questões pragmáticas de interesse, à luz de razões morais

acerca do que é justo, possibilitando, senão a construção de consensos, ao

menos a formação de compromissos políticos sob condições equânimes.

Para o modelo republicano, a Democracia só seria possível em sociedades

ou em comunidades culturalmente homogêneas, em que uma forte

educação cívica possibilitaria a formação de cidadãos conscientes e

virtuosos, capazes, por isso, de realizar os valores consagrados e refletidos

na Constituição.

Com isso, não quero dizer que a análise de processos políticos

possam prescindir de uma perspectiva normativa e renunciar, quer em

termos da teoria da ação, como é o caso da Teoria da Escolha Racional 23 ,

quer em termos da Teoria dos Sistemas 24 , a qualquer abordagem

participante, ou que não seja possível (re- ) construir uma visão alternativa

aos modelos liberal e republicano, já que, com Habermas (1997b: 2: 9),

acredito que qualquer um que queira compreender adequadamente o

funcionamento de um sistema político organizado constitucionalmente,

inclusive num nível empírico, não pode deixar de referir - se à força

legitimadora da gênese democrática do Direito. Para isso, não é preciso

compreender, quer em termos de um hiato entre ideal e real a ser

preenchido, quer em termos de uma filosofia da história fundada numa

dialética que tudo reconcilia porque tudo suprime, a relação entre idealidade

e faticidade dos processos jurídicos e políticos em geral.

23Para uma crítica ao realismo da Teoria da Escolha Racional, ver HABERMAS 1997b: 2:65ss.

24Para uma crítica à Teoria dos Sistemas, ver HABERMAS 1997b: 2: 63- 65; 74ss.

Page 32: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

O presente capítulo tratará, em primeiro lugar, de expor e de

desenvolver a teoria habermasiana da Democracia, que visa superar os

modelos normativos de política deliberativa legados pelas tradições

republicana e liberal. Isso será feito a partir da crítica ao que Habermas

chama de “sobrecarga ética dos discursos políticos”, levada a cabo pelo

republicanismo comunitarista. Num segundo momento, a partir do marco

teorético- discursivo, buscará construir uma visão não- conflitiva da relação

entre autonomia pública e autonomia privada, e entre constitucionalismo e

democracia, já apontando para uma certa mudança de perspectiva, a ser

realizada no próximo capítulo, com o desenvolvimento de uma teoria da

Constituição e uma teoria do Processo Constitucional constitucionalmente

adequadas ao paradigma do Estado Democrático de Direito, visando

construir uma compreensão, também constitucionalmente adequada ao

paradigma do Estado Democrático de Direito, da Jurisdição Constitucional e

do controle judicial de constitucionalidade das leis e do processo legislativo.

2 – A TEORIA DISCURSIVA DA DEMOCRACIA, DE JÜRGEN HABERMAS

Jürgen Habermas introduz, reconstrutivamente, uma nova

concepção de política deliberativa e de Democracia, através da crítica a o que

ele chama de “sobrecarga ética da visão republicana” (HABERMAS 1995b:

111).

Num certo sentido, como vimos, quando comparado ao modelo

liberal, o modelo republicano de política deliberativa tem a vantagem de

preservar o significado original da democracia, no sentido da

institucionalização de um uso público da razão , exercida, conjuntamente,

Page 33: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

pelos cidadãos, em sua prática política de autodeterminação. O

Republicanismo leva, assim, em conta, as condições comunicativas que

legitimam o processo político de formação da vontade e da opinião públicas,

condições, essas, sob as quais se pode esperar que o processo político

produza resultados razoáveis. A confiança republicana na força legitimadora

do uso público da razão contrasta com o ceticismo do modelo liberal que,

como vimos no capítulo 2, compreende o processo político nos moldes de

uma disputa, jurídico e moralmente regulada, entre interesses

estrategicamente orientados. Tal uso público da razão teria por objetivo,

segundo o modelo republicano, permitir que se discutam interpretações e

orientações de valor, bem como possíveis projetos de superação de carências

e de necessidades comuns.

Para Habermas, republicanos contemporâneos, como Charles

Taylor (1993; 1997), Michael Walzer (1993; 1997), Michael Sandel (1982) e

Alasdair McIntyre (1984; 1991), no entanto, tendem a dar uma interpretação

comunitarista a essa prática comunicativa (MULHALL- SWIFT 1997). Segundo

Habermas, o modelo comunitarista seria excessivamente idealista, mesmo à

luz de uma análise puramente normativa. Sob tal modelo, o discurso político

estaria reduzido, tão- somente, a questões éticas de auto- esclarecimento e

auto- realização, em virtude de uma assimilação da política a um processo

hermenêutico de auto- reflexão, acerca de uma forma de vida ou de uma

identidade coletiva tidas como compartilhadas. O processo democrático

estaria, assim, dependente das virtudes de cidadãos, devotados ao bem-

comum, e assegurado, em última análise, por um consenso ético de fundo.

Haveria, segundo a visão comunitarista, uma conexão necessária entre

Page 34: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

democracia e comunidade ética concreta consolidada pois, de outro modo,

não se poderia explicar como a orientação dos cidadãos para o bem- comum

seria possível.

Segundo a corrente comunitarista do Republicanismo, uma pessoa

não poderia tornar - se consciente de sua co- participação em uma forma de

vida específica e, com isso, de seu vínculo social anterior, senão em virtude

de uma prática política exercida em comum com outras pessoas. Seria

através dessa prática que se obteria um sentido claro das identidades e

diferenças, de quem se é e de quem se gostaria de ser, da sua pertinência ou

não à comunidade política, ou seja:

...“por meio do intercâmbio público com outros quedevem suas identidades às mesmas tradições e a processosformativos semelhantes”.(HABERMAS 1995b: 112)

Assim, essa é a concepção comunitarista pressuposta à crítica, por

exemplo, apresentada a John Rawls e ao Liberaismo em geral, por Michael

Sandel (1982). Segundo Kukathas e Pettit, a essência do argumento de Sandel

é a seguinte:

“Para os liberais como Rawls a justiça é a primeiradas virtudes das instituições sociais. Mas para que isso sejaassim certas coisas devem ser verdade: devemos ser ‘criaturasde um determinado tipo, relacionadas de uma certa formacom as circunstâncias humanas’(Sandel). Temos de serpessoas independentes dos nossos interesses e afectosparticulares, capazes de recuar para os perscrutarmos,apreciarmos e revermos. Contudo, não é plausível quepossamos olhar - nos dessa forma. No mundo real nãopodemos libertar - nos dos interesses e lealdades que não sódeterminam as nossas obrigações, mas também estabelecemas nossas identidades. Os liberais como Rawls insistem emque nos libertemos para podermos identificar os princípiosatravés dos quais organizamos a nossa associação edefendem que devemos julgar essa associação pelaconformidade com princípios justos. Ao fazê- lo, vivemos

Page 35: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

segundo uma moral que escolhemos ou construímos e, porisso, somos livres. No entanto, esta pretensão não faz sentidoporque pressupõe uma capacidade que não possuímos: acapacidade de escolher ou de construir uma moral semautoconhecimento ou, na verdade, sem experiência moral. Osargumentos de Rawls que defendem o primado da justiçabaseiam- se numa concepção do eu (self ) que não faz sentidoe que, por isso, não pode fornecer as bases para avaliar asnossas instituições sociais ou práticas morais.”(KUKATHAS-PETIT 1995: 116)

Para Sandel e para os demais comunitaristas, a finalidade,

portanto, para qual se deve voltar o “raciocínio moral e político” não é a da

formulação de uma normativa independente e neutra perante questões

éticas, como defendem os liberais. Esse “raciocínio” deve voltar - se para a

finalidade da autocompreensão, que só pode ser alcançada pela auto-

reflexão conjunta das pessoas, enquanto membros de uma sociedade, que

molda as identidades de cada uma delas. O que importa, segundo os

comunitaristas, não é pretender construir princípios que nada

corresponderiam à nossa identidade ou à nossa comunidade, até mesmo

porque isso seria impossível; mesmo os princípios de justiça formulados por

Rawls pressupõem uma determinada forma de vida, correspondente ao

“atomismo do século XVII” (TAYLOR 1997: 253- 254). O que importa antes

de tudo é perguntarmo - nos a respeito de quem somos e do que é bom para

nós, enquanto membros de uma comunidade concreta, enquanto seres cujas

identidades são moldadas por essa comunidade. Quem somos e, daí, o que é

bom para nós, essas devem ser consideradas as indagações centrais da

política e os objetos centrais de nossas reflexões práticas.

Page 36: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

É bastante longa a crítica de Habermas (1995b: 111ss.) à concepção

comunitarista de política deliberativa, mas que pode ser resumida através

dos seguintes pontos:

a) Tal redução dos discursos políticos a questões éticas não combina com a

função dos processos legislativos em que tais discursos surgem. Razões

éticas são levadas em consideração no processo legislativo democrático, a

legislação contém elementos teleológicos, mas isso não significa que as leis

representem meramente a explicação hermenêutica de orientações de valor

compartilhadas. Por sua própria estrutura, as leis são determinadas, antes de

tudo, pela questão de se saber quais normas os cidadãos devem adotar para

regular sua vida em comum;

b) As questões éticas são certamente parte importante da política. Mas

devem estar subordinadas às questões morais (de justiça) e ligadas às

questões pragmáticas (de interesse). Se por um lado, na política legislativa,

deve- se levar em consideração o que é bom não somente para nós, enquanto

comunidade concreta, mas abrir - se a o que é justo, no igual interesse de

todos, uma questão que transborda particularismos, por outro há de se

reconhecer que compromissos constituem a maior parte dos processos

políticos, sob as condições políticas determinadas pelo pluralismo

axiológico, cultural, religioso, etc., nas atuais sociedades complexas. Muitos

objetivos políticos acabam por ser selecionados com base em interesses e

orientações de valor que não são, por vezes, compartilhados por todos,

dando margens a negociações e a orientações estratégicas, cujos âmbitos

devem encontrar - se previamente regulados. Segundo Habermas:

Page 37: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

“Diferentemente da constrição ética do discursopolítico, o conceito de política deliberativa somente adquirereferência empírica quando levamos em consideração amultiplicidade das formas comunicativas da formaçãopolítica e racional da vontade (...) a política deliberativa deveser concebida como uma síndrome que depende de uma redebem regulamentada de processos de negociação e de váriasformas de argumentação, incluindo discursos pragmáticos,éticos e morais, cada um deles tendo como base diferentespressupostos e procedimentos comunicativos. Na políticalegislativa, o fornecimento de informação e a escolha racionalde estratégias estão entrelaçados com o equilíbrio deinteresses, com a consecução de uma auto- compreensão éticae a articulação de fortes preferências, e com a justificaçãomoral e as provas de coerência legal.”(HABERMAS 1995b: 114)

Partindo - se desse conceito procedimentalista da política

deliberativa, à Teoria Discursiva da Democracia corresponde um modelo de

sociedade descentrada.

"A teoria do discurso apropria - se de elementosdessas duas visões [liberal e republicana], integrando - os noconceito de procedimento ideal para deliberação e tomada dedecisão. Entrelaçando considerações pragmáticas,compromissos, discursos de autocompreensão e de justiça,esse procedimento democrático tem a presunção de que,dessa maneira, se obtêm resultados razoáveis e justos. Deacordo com essa visão procedimentalista, a razão práticaafasta - se dos direitos humanos universais, ou da substânciaética concreta de uma comunidade específica, para adequar -se às regras do discurso e às formas de argumentação. Emúltima análise, o conteúdo normativo surge da própriaestrutura das ações comunicativas." (HABERMAS 1995b: 115)

É nesse sentido que, segundo Habermas (1995b: 117), a Teoria

Discursiva da Democracia reveste o processo democrático de conotações

normativas mais fortes que as encontradas no modelo liberal, mas mais

fracas que as encontradas no modelo republicano:

Page 38: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

"Em consonância com o Republicanismo, a teoria dodiscurso dá destaque ao processo de formação política davontade e da opinião, sem, no entanto, considerar aConstituição como elemento secundário. Ao contrário,concebe os princípios do Estado Constitucional comoresposta consistente à questão de como podem serinstitucionalizadas as exigentes formas comunicativas deuma formação democrática da vontade e da opinião."(HABERMAS 1995b: 117)

Portanto, como afirma Habermas (1995b: 120), as tradições

republicana e liberal esgotariam as alternativas, se tivéssemos de conceber o

Estado e a sociedade em termos do todo e suas partes, sendo o todo

constituído ou por um corpo soberano de cidadãos, como no modelo

republicano, ou por uma Constituição mecanicamente reguladora de um

processo político, pensado nos moldes do mercado, como no caso do

modelo liberal. Mas isso não é correto, nem necessário.

3 – DA INTERRELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA E CONSTITUCIONALISMONUMA VISÃO PROCEDIMENTALISTA DO DIREITO E DA POLÍTICADELIBERATIVA – UMA APROXIMAÇÃO

A perspectiva desenvolvida pela Teoria Discursiva da Democracia é

fundamental para a reconstrução de uma visão não- conflitiva tanto da

relação entre autonomia pública e autonomia privada, quanto da relação

entre Constitucionalismo e Democracia.

A Teoria Discursiva da Democracia sustenta que o êxito da política

deliberativa depende da institucionalização jurídico- constitucional dos

procedimentos e das condições de comunicação correspondentes, e

considera, como vimos, os princípios do Estado Constitucional como

resposta consistente à questão de como podem ser institucionalizadas as

Page 39: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

exigentes formas comunicativas de uma formação democrática da vontade e

da opinião políticas.

Uma soberania popular reconstruída em termos

procedimentalistas e um sistema político ligado às redes periféricas da

esfera pública andam de mãos dadas com uma imagem de sociedade

descentrada. O modelo procedimental reinterpreta a esfera público- política

enquanto arena para a detecção, identificação e interpretação dos problemas

que afetam a sociedade.

“No paradigma procedimental do direito, a esferapública é tida como a ante- sala do complexo parlamentar ecomo periferia que inclui o centro político, no qual seoriginam os impulsos: ela exerce influência sobre o estoquede argumentos normativos, porém sem a intenção deconquistar partes do sistema político. Através dos canais deeleições gerais e de formas de participação específicas, asdiferentes formas de opinião pública convertem - se em podercomunicativo, o qual exerce um duplo efeito: a) deautorização sobre o legislador, e b) de legitimação sobre aadministração reguladora; ao passo que a crítica do direito,mobilizada publicamente, impõe obrigações defundamentação mais rigorosas a uma justiça engajada nodesenvolvimento do direito.” (HABERMAS 1997b: 2: 187)

A idéia de um "eu" coletivo, tanto uma “volonté générale” que

reflete a totalidade e age em seu nome, como no modelo republicano, quanto

o de conjunto de atores individuais que atuam como variáveis dependentes

em processos sistêmicos que se desenvolvem aleatoriamente, como no

modelo liberal, desaparecem nas “formas de comunicação sem sujeito”25 que

regulam o fluxo das deliberações, de um modo tal que seus resultados

falíveis se revestem da presunção de racionalidade.

25 Segundo Habermas, “Só uma democracia entendida nos termos da teoria dacomunicação é também possível sob as condições das sociedades complexas” (HABERMAS1997a: 147).

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“[N]o Estado democrático de direito, tido como amorada de uma comunidade jurídica que se organiza a simesma, o lugar simbólico de uma soberania diluída pelodiscurso permanece vazio. ”(HABERMAS 1997b: 2: 188)

Como argumenta Habermas (1995b: 120), tal compreensão não

renuncia às intuições radicais ligadas à idéia de soberania popular, mas a

reinterpreta em termos intersubjetivos 26 :

"A soberania popular, mesmo quando se tornaanônima, retrocede aos procedimentos democráticos e àimplementação legal de seus exigentes pressupostoscomunicativos só para se fazer sentir como um poderengendrado comunicativamente. No sentido estrito dapalavra, esse poder comunicativo deriva das interações entrea formação da vontade institucionalizada juridicamente e ospúblicos mobilizados culturalmente. Estes últimos, por seuturno, encontram fundamento nas associações de umasociedade civil completamente distinta tanto do Estadoquanto do mercado."(HABERMAS 1995b: 120)

É nesse sentido que, sob o paradigma do Estado Democrático de

Direito e com base numa visão procedimentalista do Direito e da política

deliberativa, constitucionalismo e democracia não mais se opõem.

O constitucionalismo e, portanto, a própria Constituição, não

pode mais ser compreendido, quer em termos liberais, como a defesa de

uma esfera privada e do exercício da autonomia enquanto “liberdade

negativa”, naturalis ticamente concebidas, contra o público, quer em

termos republicanos, como a defesa de uma estabilidade ético- política,

que se realiza através do exercício da autonomia enquanto “liberdade

positiva”.

26Para uma crítica fundada na Teoria dos Sistemas às "semânticas" da soberania popular,liberal ou republicana, no sentido, inclusive, da sua superação, ver MAGALHÃES, J. N. 1998:361- 369.

Page 41: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

E a democracia não pode ser concebida, quer em termos liberais,

como uma mera disputa de mercado regulada mecanicamente por regras,

que legitimam a escolha de um governo comprometido com os interesses

majoritários daqueles que supostamente representa, quer em termos

republicanos, como um processo autocompreensivo através do qual a

identidade ética presumidamen te homogênea de uma comunidade

concreta se realiza.

A partir do momento em que se supera tanto a concepção

republicana de política deliberativa, como autorrealização ética, quanto a

concepção liberal de política deliberativa, como mera disputa de interesses, a

Constituição, sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, para

articular - se com uma visão procedimentalista da Democracia, não pode ser

reduzida, como no quadro do paradigma do Estado Liberal (BARACHO

JÚNIOR 1998: 13ss.; CARVALHO NETTO 1996: 128- 131; CATTONI DE

OLIVEIRA 1998 a: 37ss.), a um mero "instrument of government ", garantidor

de uma esfera privada de livre- arbítrio perante o poder administrativo-

estatal. Sob as condições de uma sociedade complexa como a atual, o

sistema de direitos fundamentais não pode mais ser interpretado à luz dos

históricos direitos liberais de defesa da esfera privada contra o Estado. O

exercício da autonomia privada encontra - se ameaçado não apenas por uma

Administração Público- Estatal, tantas vezes privatizada e desvinculada da

formação do poder comunicativo, mas também por posições de poder social

e econômico (HABERMAS 1997b: 1: 326). Estes últimos devem ser, também,

domesticados pelos princípios do Estado Democrático de Direito, através da

garantia de maior igualdade de oportunidades sociais, de acesso ao processo

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de formação do poder político- estatal, da permanente redefinição do

público e do privado, através do reconhecimento de novos direitos

fundamentais e da abertura constitucional a um processo público e plural da

interpretação jurídica.

Todavia, com isso não se pode conceber a Constituição, nos

termos do paradigma do Estado de Bem- Estar Social (BARACHO JÚNIOR

1998: 64ss.; CARVALHO NETTO 1996: 138- 140; CATTONI DE OLIVEIRA

1998 a: 40ss.), como uma ordem jurídica total que estabeleceria,

aprioristicamente, uma única forma de vida à sociedade como um todo,

como pretensa condição para o exercício das liberdades individuais e

políticas. Como considera Habermas:

“Se ‘utopia’ é o nome do projeto ideal que configurauma forma de vida concreta, então a constituição, entendidacomo um projeto, não é uma utopia social, nem umsubstitutivo para ela.”(HABERMAS 1997b: 2: 189)

Com o paradigma procedimentalista do Estado Democrático de

Direito 27 , a partir do momento em que se supera tanto a concepção de

liberdade pública, “positiva”, como autodeterminação ética

(Republicanismo), quanto a de liberdade privada, “negativa”, como

autodeterminação moral ou como escolha racional (Liberalismo), e,

juridicamente , passa - se a compreender a liberdade pública e a liberdade27 Segundo Habermas, o paradigma procedimentalista do Direito se apoia nas seguintes

premissas: “a) o caminho de volta, propalado pelo neoliberalismo através do mote ‘retornoda sociedade burguesa e de seu direito’, está obstruído; b) o apelo que nos incita a‘redescobrir o indivíduo’ é provocado por um tipo de juridificação no interior do Estadosocial, que impede reconst ruir a autonomia privada; c) o projeto do Estado social nãopode ser simplesmente congelado ou interrompido: é preciso continuá - lo num nível dereflexão superior. O que se tem em mente é domesticar o sistema econômico capitalista,‘transformando - o’, social e ecologicamente, por um caminho que permita ‘refrear’ o usodo poder administra tivo, sob dois pontos de vista: o da eficácia, que lhe permita recorrer aformas mitigadas de regulação indireta, e o da legitimidade, que lhe permita retroligar - seao poder comunicativo e imunizar - se contra o poder ilegítimo.” (Habermas 1997b: 2: 147-148)

Page 43: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

privada como faces da mesma moeda (BARACHO JÚNIOR 1998: 237ss.), a

Constituição 28 , para articular - se com uma visão procedimentalista da

política deliberativa e da Democracia, deve ser compreendida,

fundamentalmente, como a interpretação e a prefiguração de um sistema de

direitos fundamentais 29 , que apresenta as condições procedimentais de

institucionalização jurídica das formas de comunicação necessárias para

uma legislação política autônoma; ou seja, das condições procedimentais que

configuram e garantem, em termos constitucionais, um processo legislativo

democrático (HABERMAS 1998b: 259).

Assim, a soberania popular assume forma jurídica, através do

processo legislativo democrático, que faz valer o nexo interno entre

autonomia pública e autonomia privada dos cidadãos, concebidas, desde o

início, como dimensões co- originárias e equiprimordiais da autonomia

jurídica (HABERMAS 1997b: 2: 310- 311; 1998b: 260). Em outros termos, uma

soberania popular interpretada procedimentalmente garante que as duas

dimensões da autonomia jurídica se articulem reciprocamente, pois os

destinatários das normas jurídicas vigentes, enquanto sujeitos jurídicos

privados, pelo processo legislativo democrático, que se realiza através da

mediação jurídica entre canais institucionalizados e não-

institucionalizados de formação da vontade e da opinião políticas,

enquanto cidadãos, tornam - se os autores dos seus próprios direitos e

deveres (HABERMAS 1997b: 1: 113ss.; 1998b: 260- 261). Nesse sentido, é

28 Sobre tal compreensão de Constituição, ver também o próximo capítulo.

29 Reconstru tivamente, segundo Habermas, esses direitos fundamentais são osseguintes: a) direitos a iguais liberdades subjetivas; b)a iguais direitos de pertinência; c) àgarantia do direito de ação; d)à elaboração legislativa autônoma; e e) direitosparticipatórios (HABERMAS 1997b: 1: 159ss.).

Page 44: republicanismo e liberalismo - da relação entre constitucionali

que se pode dizer que a separação entre autonomia privada e autonomia

pública, as duas dimensões da autonomia jurídica, resulta apenas do fato do

caráter positivado, institucional, do Direito moderno, exigir uma separação

de papéis não presente, por exemplo, na Moral (que apresenta um conceito

unitário de autonomia).

Sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, o exercício da

autonomia jurídica ramifica - se, assim, no uso público das liberdades

políticas (“liberdades comunicativas”) e no uso privado das liberdades

individuais (“liberdades subjetivas”), sem que se reduza à autonomia moral

ou à escolha racional, como consideram os liberais, e sem poder ser

interpretado simplesmente à luz do direito à autorrealização ética, como

advogam os republicamos. Vista em toda sua integridade, a autonomia

jurídica, em suas dimensões pública e privada, compõe - se, então, de três

elementos distintos: da autonomia dos cidadãos, exercida em comum, da

capacidade para uma escolha racional e do direito à auto - realização ética

(HABERMAS 1997b: 2: 311), cujo nexo deve ser garantido pelo processo de

mediação jurídica que representa o processo legislativo democrático 30 .

Sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, por um lado,

a Constituição e o Direito Constitucional não limitam a Democracia; esta

pressupõe aqueles, já que é através da mediação jurídica entre canais

institucionais e não- institucionais, regulados e não- regulados, que a

soberania popular se manifesta enquanto poder comunicativo. Ao

30 Nesse sentido, pode - se dizer que, para uma teoria discursiva do Direito e daDemocracia, diferentemen te da tradição republicana e de sua corrente comunitaris ta, aautonomia jurídica é um direito e não um bem, dentre outros, que tenha por finalidadesatisfazer a necessidades humanas, ainda que primordiais. O seu exercício, enquantogarantia do direito à autorrealização, é que pode viabilizar a satisfação de necessidadesprimordiais e de vida digna. Sobre a complexidade do tema e acerca das múltiplasdimensões da autonomia, ver GUSTIN 1997.

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contrário de uma visão típica do Liberalismo, os direitos fundamentais,

assim como os demais princípios constitucionais, não podem ser

considerados como uma restrição externamente imposta ao exercício da

soberania popular, pois são justamente esses princípios e direitos

constitucionais que possibilitam a institucionalização jurídica do exercício

de um uso público das liberdades políticas dos cidadãos em sua prática

cívica de autodeterminação (HABERMAS 1998b: 259).

Assim, por um lado, no marco da Teoria Discursiva da

Democracia, "[s]omente as condições processuais para a gênese democrática

das leis asseguram a legitimidade do direito" (HABERMAS 1997b: 1: 326) e

que, por outro lado:

“O substrato social, necessário para a realização dosistema de direitos, não é formado pelas forças de umasociedade de mercado operante espontaneamente, nem pelasmedidas de um Estado do bem- estar que ageintencionalmente, mas pelos fluxos comunicacionais e pelasinfluências públicas que procedem da sociedade civil e daesfera pública política, os quais são transformados em podercomunicativo pelos processos democráticos.” (HABERMAS1997b: 2: 186)