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Anais do VIII Fórum de Pesquisa Científica em Arte.
Curitiba: ArtEmbap, 2011. ISSN 1809-2616
A RECONSTRUÇÃO DE UM PROJETO DE IDENTIDADE CULTURAL NO BRASIL NO INÍCIO DO SÉCULO XX: O EXÓTICO NAS PINTURAS DE TARSILA DO AMARAL
Naymme Tatyane A. Moraes1 [email protected]
Resumo: A presença de característcas consideradas exóticas em pinturas de artistas que se propuseram a representar o Brasil é recorrente em nosso imaginario, de Eckhout a Debret, ou seja, da tradição descritiva de nossa iconografia, até a tentativa de construção de uma identidade cultural brasileira, no Império. A proposta do presente artigo é identificar o elemento exótico nas artes visuais, como uma característica de formação de identidade cultural nas pinturas de Tarsila do Amaral, nas primeiras décadas do século XX, usando como exemplo a pintura A Negra, de 1923 e A Cuca, de 1924. Palavras chave: Modernismo; Exotismo; Identidade cultural. Abstract: The presence of characteristics considered exotic in paintings of artists who intended to portrait Brazil is a recurring theme in our imaginary from Eckhout to Debret, or from the descriptive tradition of our iconography to the attempt of constructing a Brazilian cultural identity during the Brazilian Empire. The goal of this article is to identify the exotic component in the visual arts as a characteristic of cultural identity creation, more specifically in Tarsila do Amaral paintings from the first decades of the 20th century, using as examples A Negra (1923) and A Cuca (1924). Keywords: Modernism; Exoticism; Cultural identity. O DEBATE SOBRE IDENTIDADE NACIONAL
O que entendemos como identidade hoje é um processo construído no qual a
memória se coloca como um de seus itens, criando-se uma relação em que a cultura constrói e
vive sua temporalidade. Quanto a esse questionamento, Huyssen (1996, p. 15) alerta que a
identidade “está sendo cada vez mais discutida em termos de memória cultural ou coletiva, ao
invés de em termos de uma suposta identidade da nação e do Estado, baseada na linhagem de
sangue ou mesmo de cidadania”.
1 Mestranda em História pela Universidade Federal do Paraná.
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Ao colocar o debate na perspectiva de Huyssen, enfrentamos um problema que se
tornou clássico, na discussão da cultura brasileira: o de sua autenticidade (ORTIZ, 1985, p. 8).
Para o autor, apesar de reconhecermos que toda identidade é uma construção simbólica, ou
seja, o que existe é uma pluralidade de identidades – construídas por diferentes grupos sociais,
em momentos históricos distintos – não se pode negar, segundo Debrum, que existe uma
identidade nacional brasileira. Em suas palavras:
Há quem exclui pura e simplesmente a existência de uma identidade nacional brasileira. Se tanto é que existiu no passado, ela estaria sumindo. Não se pode negar, admite-se a presença de certos traços etnoculturais comuns à maioria da população brasileira, embora esses traços sejam diversamente modulados conforme as regiões, as classes sociais, os níveis de instrução. Esses traços, manifestos, por exemplo, nas religiões populares, nas atividades lúdicas, nas distinções operadas entre a Casa e a Rua, podem definir uma brasilidade, até um caráter nacional, em que pesem as conotações ideológicas e simplificações que, via de regra, acompanham essa noção. Mas não há consenso nacional em torno de valores básicos. Nem para defender ou promover aqueles valores revelados pelos traços etnoculturais... É na falta de um consenso com que ela poderia se articular e se combinar, a própria brasilidade, ou seja, a diferença entre o Brasil e as outras nações está fadada a resvalar para o folclore, para o atrativo turístico. A sucumbir, também, ao rolo compressor dos cosmopolitismos (DEBRUM, 1990, p. 40),
Autores como Silvio Romeo, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha, teóricos
considerados por Ortiz como precursores das Ciências Sociais no Brasil, dedicaram-se na virada
do século XIX para o XX ao estudo da sociedade brasileira, analisando suas manifestações
literárias, tradições africanas e os movimentos messiânicos. Para esses intelectuais, a raça e o
meio fundamentaram o solo epistemológico dos intelectuais brasileiros. A interpretação da
história brasileira desse período adquire sentido quando relacionada a esses dois conceitos
(ORTIZ, 1985, p. 14).
Os parâmetros utilizados por aqueles intelectuais, na procura do que seria a
identidade nacional, encontra-se, ainda segundo Ortiz, na produção teórica da época
constituída pelo positivismo de Comte, o darwinismo social e o evolucionismo de Spencer.
Para o autor,
quando se afirma que o Brasil não pode ser mais uma cópia da metrópole, está subentendido que a particularidade de nacional se revela através do meio e da raça. Ser brasileiro significa viver em um país geograficamente diferente da Europa, povoado por uma raça distinta da europeia. Silvio Romero compreende claramente esta situação quando considera o meio e a raça como fatores internos que definiram a realidade brasileira. Ele vai contrapô-la a forças estranhas, ou seja, às influências estrangeiras que possibilitam a imitação da cultura europeia. Meio e raça traduzem, portanto, dois elementos imprescindíveis para a construção de uma identidade brasileira: o nacional e o popular (ORTIZ, 1985, p. 17).
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Na segunda metade do século XIX um projeto intelectual e cultural mais amplo de
tendência nacionalista já era observado no Brasil, no Segundo Reinado (1840-1889), com
exposições organizadas pela Academia Imperial, reuniões do Instituto Histórico Geográfico
Brasileiro, criado em 1838, e o financiamento de poetas, músicos e pintores, pelo Estado.
Segundo Maria de Fátima Morethy Couto (2004, p. 23),
artistas e escritores sob a impulsão do Romantismo europeu e fortemente encorajados pelo Imperador engajaram-se então na descoberta da ‘essência brasileira’, dispostos a inventariar o que deveriam ser as originalidades locais e formular um imaginário coletivo para a jovem nação.
Para José Murilo de Carvalho, os artistas da segunda metade do século XIX –
considerados românticos – “retomaram a tendência ufanista das vésperas da Independência
do Brasil”. Para o autor, “a proposta do uso da natureza tropical, como fonte de originalidade e
de inspiração para a poesia nacional, foi adotada como instrumento de glorificação já no início
do movimento romântico” (CARVALHO, 2005, p. 245).
A valorização da natureza como elemento de identidade cultural vai se aprofundando
no decorrer do século XIX por meio do grande volume de expedições científicas promovidas
por estrangeiros de diversas nações que percorreram quase todo território brasileiro como nos
casos do pintor Debret, Johann Moritz Rugendas, Thomas Ender e Hercule Florence. A visão
exótica da América foi incorporada por meio de um processo de transculturação, os artistas e
intelectuais das ex-colônias selecionaram e adaptaram as imagens criadas sobre eles pelos
europeus com a intenção de construir um discurso próprio de uma identidade cultural.
A pintura que surge nesse período seguiu a tendência de exploração do exótico,
proposta pelos viajantes, desenvolvida principalmente pelos artistas imigrados como Jorge
Grimm e Augusto Müller. Esse momento das artes visuais é caracterizado pela composição
bucólica e domesticada da natureza. Os índios e os selvagens de Debret são substituídos pela
presença do homem brasileiro e de cenas idílicas como podem ser observadas também nas
telas de Almeida Jr.
Nas artes plásticas, segundo Carlos Zílio, desde o Romantismo esse debate estava
presente de várias formas. Como no problema de uma cultura que tentava demarcar suas
especificidades sendo herdeira da cultura ocidental,
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o início de consciência dessa contradição é mostrado pelos artistas estrangeiros como Frans Post, Debret, Georg Grimm [...] o olhar deles era um olhar ideal baseado em cânones da academia, esquematizado em regras, tabelas de cores e proporções. É verdade que no início do século, antes da Semana [de Arte Moderna] alguns sintomas de mudança começavam a se fazer sentir (ZÍLIO, 1982, p. 47).
A importância que a procura por uma identidade cultural própria adquire no início do
século XX vai fazendo com que a tradição artística brasileira, importadora de cânones
estéticos científicos e culturais do Velho Mundo, comece a dar lugar a uma arte com
características próprias. Eduardo Jardim de Moraes levanta a questão da identidade a partir
de um retorno ao primitivo, expresso nas artes plásticas e que “abriu os olhos dos
intelectuais brasileiros para a realidade nacional”. Houve uma redescoberta do Brasil pelos
brasileiros, no que ele chama de “a questão da brasilidade” (MORAES, 1978, p. 79).
A valorização de elementos nacionais, constituintes de um determinado contexto
social, é uma projeção de construções culturais ao longo do tempo e se torna recorrente na
criação artística. Os “projetos” modernistas construíram atavismos existenciais comuns a todos
os brasileiros:
era fundamental encontrar uma nova linguagem tanto escrita quanto visual, que fornecesse subsídios á construção dessa identidade tão almejada. Após o primeiro período de exaltação da vida urbana, artistas e escritores voltaram-se para o Brasil profundo. As lendas indígenas, os temas folclóricos, as festas e tradições populares tornaram-se suas principais fontes de inspiração (COUTO, 2004, p. 29).
A questão da formação da nacionalidade e identidade ocupa um espaço significativo
na produção artística brasileira no modernismo, nos possibilitando pensar um momento
específico na história da arte no país em que as representações artísticas, desempenhando um
papel específico no processo de implantação de um imaginário iconográfico, ao mesmo tempo
superando a própria cronologia e o limite temporal, como foi o Movimento Antropofágico de
1928, liderado por Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Para Schwartz (2002, p. 35),
do banquete antropofágico se nutriram desde as vanguardas históricas até os movimentos de poesia concreta, da música tropicalista e do Cinema Novo. A vigência do conceito é tamanha que setenta anos mais tarde, converteu-se em tema central da XXIV Bienal de São Paulo, em 1998 [...] aquilo que denominamos de interlocução e pluralismo, este presente na própria metáfora da Antropofagia, pode ser entendida como um processo de apropriação e hibridização cultural.
Na primeira fase do modernismo, até 1924, as artes plásticas adotaram temáticas
urbanas, noções de progresso, ciência e racionalidade, como condições para o ingresso do
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Brasil nas nações modernas. Segundo Eduardo Jardim de Moraes, depois de sua temporada
em Paris, Oswald e Tarsila deram-se conta de que a modernidade como temática urbana não
tinha apelo suficiente para inserir o Brasil em um mercado internacional (MORAES, 1998, p.
220-238).
O ano de 1924 constituiu o marco de uma mudança de rumos dentro do modernismo
brasileiro. Esta mudança de rumos, em todas as orientações modernistas, se dirigia no
sentindo de um caráter nacional e na elaboração de um projeto de cultura nacional em sentido
amplo (MORAES, 1978, p. 73).
No Manifesto da Poesia Pau Brasil, publicado em 1924, Oswald de Andrade defende
uma poesia não contaminada por regras preestabelecidas e apresenta as noções estéticas que
iriam nortear o trabalho dos modernistas brasileiros. Oswald defende uma poesia ingênua, no
sentido de uma arte basicamente primitivista. A proposta lançada com o Movimento Pau
Brasil consistia em incorporar os elementos considerados típicos do Brasil numa representação
pictórica de apelo modernista, numa arte de exportação. Essa tendência de apelo ao primitivo
estende-se ao Movimento Antropofágico. Segundo Maria de Fátima Morethy Couto (2004, p.
25-26),
esse anseio de renovação temática, no entanto, não pode ser considerado um desejo consciente e sistematizado de romper com as convenções pictóricas europeias [...] No cerne da preocupação modernista, ao contrario, havia o desejo, sobretudo após 1924, de inverter os termos da relação entre Brasil e Europa, de acabar com a hegemonia da metrópole e de tomar o lugar do “pai totêmico” europeu. A ambição dessa geração foi superar o atraso do país e produzir uma “poesia [e uma arte] de exportação”.
A REPRESENTAÇÃO DO EXOTISMO COMO ELEMENTO CARACTERÍSTICO DA
IDENTIDADE CULTURAL
Um levantamento iconográfico das imagens do nosso modernismo nos mostra a
presença constante da paisagem e do homem brasileiro. A arte do país assume uma posição
em relação à cultura: para o modernismo a paisagem existe enquanto possibilidade metafórica
de uma visão de cultura refletida na pintura, a figura do homem brasileiro, e sua paisagem
exótica passa então a ser o centro deste cenário.
Entende-se por exótico, aqui, aquilo que pode ser definido como um modo de representação do outro. Para Scholhammer,
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se o centro pós-colonial é disseminado mundialmente, a mesma coisa acontece com o exótico, que antes qualificava à margem. A alteridade aparece agora não mais numa periferia identificável, não mais no coração das trevas de uma selva inexplorada, mas no coração do cotidiano iluminado de um mundo conquistado. Essa é, segundo Todorov, a vingança do Terceiro Mundo sobre o Primeiro, executada por meio de ondas migratórias que espalham o exótico onde não era bem vindo, no centro colonial, mas também é, segundo Nestor Canclini, o lado positivo que a globalização acarreta quando permite a proliferação das hibridizações entre diferentes níveis de modernidades: entre o global e o local entre o tradicional e o moderno, e entre a arte de elite e de massa popular (SCHOLHAMMER, 2002, p. 271).
Um dos aspectos centrais no discurso de caracterização do Brasil ao longo da história
foi a representação da natureza e dos habitantes em seus aspectos considerados mais
exóticos. Essa “tradição” descritiva, desde os primeiros viajantes estrangeiros, invadiu a
literatura e as artes, e foi recuperada pelo modernismo onde o apelo exótico foi não só
mantido, mas ressignificado. Esse discurso artístico buscou desde o início os elementos de uma
representação do país criada pelos estrangeiros. A nação brasileira se olha a partir da imagem
fornecida pelo europeu.
O apelo ao exótico aparece como um elemento definidor de originalidade e identidade
nacional, iniciado com o Romantismo e recuperado pelo Modernismo nas artes brasileiras
como elemento constitutivo de um projeto identitário iniciado logo após a Semana de Arte
Moderna, com o Manifesto Pau Brasil tendo seu representante máximo o Movimento
Antropofágico liderado por Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Para Murari (1999, p. 3),
a lógica do exotismo se baseia no contraste e na inversão, operados a partir de
polarizações: o simples e o complexo, o selvagem e o civilizado, o natural e o
artificial, o espontâneo e o contrafeito, e assim por diante. O exotismo existe,
portanto, apenas à medida que esse outro que se cultua permaneça desconhecido,
pois o conhecimento poderia dotá-lo de significações particulares e estranhas à sua
condição de espectro. As origens da representação exótica do Brasil podem ser
buscadas no imaginário europeu e na visão ambígua que nele se formou a respeito
do Novo Mundo. A América tornou-se, desde sua descoberta, objeto privilegiado dos
escritos de viajantes, naturalistas e missionários, que elaboraram descrições, ainda
que permeadas de fantasia, de algumas das peculiaridades físicas e naturais do
continente. Com a colonização do Novo Mundo, e também a exploração do
continente africano, surgiu aos olhos europeus uma humanidade definida como
selvagem ou exótica.
A representação dos aspectos exóticos do Brasil, como a natureza tropical e o índio,
sempre ocupou espaço significativo nos discursos artísticos de caracterização do Brasil ao
longo da história. Foi assim no período colonial, com Albert Eckhout e Frans Post2, e no
2 Albert Eckhout e Frans Post estiveram a serviço de Maurício de Nassau, na comitiva que o acompanhou no
estabelecimento de uma colônia holandesa no nordeste brasileiro, no século XVII. Viveram no país entre 1630 e
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Império, com a Missão Artística Francesa, que chegou ao país em 1816, destinada a fundar a
Academia de Belas Artes, cujo destaque foi Jean Baptiste Debret3.
A propósito do romantismo brasileiro, alguns trabalhos sobre a definição de um estilo
nacional na literatura podem nos servir de empréstimo para a tentativa de definição do que
seria esse exotismo de que falamos. Roberto Ventura usa a expressão autoexotismo para
explicar como a literatura de fins dos oitocentos recorreu à representação da natureza tropical
como traço de originalidade, fonte de imagens que caracterizariam o país em detrimento do
Velho Mundo (VENTURA, 1991, p. 38).
Esse exotismo teria persistido após a superação do modelo romântico na literatura
brasileira. Nas artes plásticas, Frederico Morais, ao identificar uma sensualidade exótica na
abordagem de aspectos da natureza e dos habitantes do Brasil, estabelece uma linha de
continuidade que,
iniciando-se com Eckhout, alcançaria, no século XIX, Agostinho da Motta e Estevão Silva e, no século XX, Tarsila do Amaral, Glauco Rodrigues, Antônio Henrique Amaral e Adir Sodré. O ponto de partida entre todos esses artistas é uma decidida sensualização da natureza brasileira (MORAIS, 2001, p. 34).
No modernismo brasileiro, as artes plásticas tornaram-se um espaço privilegiado para
a discussão e a representação da ideia de uma identidade exótica encontrada na natureza
tropical, nos aspectos mais pitorescos de nossa cultura e na figura do negro, misturados à
modernização das cidades e à recente industrialização, afirmando assim uma arte brasileira
que se diferenciasse da produzida na Europa.
O EXÓTICO NAS PINTURAS DE TARSILA DO AMARAL: A INFLUÊNCIA EXTERNA
Para Tarsila do Amaral, a Escola de Paris teria sido fundamental no seu “aprendizado
da modernidade”. A pintora vinculou-se a artistas, literatos e músicos que “constituíram o que
foi denominado por André Arnold, Escola de Paris, em 1925”. Segundo Cattani (2008, p. 72),
esse agrupamento de artistas com propostas diferenciadas era predominantemente marcado pelo retorno à ordem. Dele faziam parte
1654, produziram pinturas e desenhos que se tornaram a única fonte iconográfica sobre o Brasil na Europa até o século XVIII. 3 Jean Baptiste Debret, viveu no país entre 1816 e 1831, encarregado de dar aulas na Academia e de pintar cenas
históricas da realeza e do Império brasileiro.
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Blaise Cendrars, com quem o casal Tarsila e Oswald iniciou um intenso contato, Fernand Léger, mestre de Tarsila, Brancusi, De Chirico e muitos outros.
Segundo Cattani, a valorização do exótico, tão forte para um artista estrangeiro vindo
da América, tinha eco em todos os círculos da capital francesa. Para a autora, a Escola de Paris
acolhia os estrangeiros, mas na intenção de irradiar a cultura e a arte francesa a todos os
povos, a partir de seu centro difusor, fazendo desses artistas “participantes do processo, mas
não integrados a ele”. Essa dubiedade poderia ter sido um fator a levar Tarsila
a procurar de uma aprovação nesse centro da modernidade, tentando afirmar em suas pinturas a definição de um ‘ser brasileiro’, para atingir a igualdade na diferença: igualdade no ser moderno, diferença por figurar outro lugar (CATTANI, 2008, p. 72-73).
Tarsila viveu de 1923 e 1925 em Paris, onde conheceu Blaise Cendrars, poeta suíço,
radicado na França. Por intermédio dele, passou a frequentar o meio artístico de vanguarda
parisiense.
Para Aracy Amaral, o encantamento de Cendrars com a paisagem e a cultura popular
brasileira e os aspectos considerados exóticos e pitorescos do país foram decisivos para a
descoberta do Brasil pelos modernistas. Nas palavras da própria Tarsila:
Cendrars descrevia o Brasil: uma terra de maravilhas que eu mesma não conhecia. Meu testemunho era chamado a cada instante para reforçar a descrição. Da sua fantasia brotavam palmeiras finas como seu pulso, subindo por encanto, cem metros de altura para rebentar no alto em três palmas silenciosas. Florestas virgens, coalhadas de serpentes, nos arredores de São João Del Rey; crocodilos esfaimados no rio das Velhas entre diamantes e pepitas de ouro [...] o Pão de Açúcar esmagando a Guanabara (CATTANI, apud PINACOTECA, 2008, p. 34).
Aracy Amaral enfatiza o papel de Cendrars como um dos responsáveis pela virada
nacionalista em nosso Modernismo. A valorização da estética primitivista, uma das fontes da
renovação vanguardista na Europa, defendida por Cendrars teria sido fundamental para a
direção temática que os artistas modernistas iram seguir. Para Amaral, a vinda de Cendrars ao
Brasil em 1924 é um marco, no sentido em que dá início à redescoberta do Brasil pelos
modernistas. À visão já orientada de Tarsila e Oswald em Paris, em 1923, segue-se à
revisitação do Brasil, quase com os olhos estrangeiros de Cendrars (AMARAL, 1997, p. 16).
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É através do distanciamento do olhar, do estranhamento do seu “eu brasílico”
mediante a sua estadia em Paris e da influência de Cendrars, que Tarsila irá redescobrir o
Brasil, desenvolvendo uma paleta brasileira que demarca nossa teoria de cor. Definia-se o
“pintar em brasileiro” (SALZSTEIN, 1998, p. 356).
Essa redescoberta do Brasil, apoiada por Mário de Andrade, Oswald e Blaise Cendrars,
segundo Cattani, colocou-a “numa posição ambivalente, pois respondia ao que desejavam os
críticos franceses, inclusive Cendrars, que sua produção correspondesse às expectativas deles,
de alteridade, da criatividade europeia” (CATTANI, 2008, p. 73).
Zílio aponta o quanto a arte modernista de Tarsila do Amaral dialogava com as
reformulações estilísticas estrangeiras quanto à busca de expressão nacionalista para as artes,
numa síntese daquele modelo com a herança latina, negra e indígena. Surgiriam “resíduos”
que tentavam dar soluções locais para tais elementos. (ZÍLIO, 1997).
É no ano de 1923, com o quadro intitulado A Negra4, que Tarsila emerge no cenário
artístico moderno antecipando características essenciais do que viria a desenvolver, pouco
tempo depois, em sua fase antropofágica. Para Aracy Amaral,
A Negra lhe conferiu um lugar de pioneira de uma arte brasileira, ainda não realizada até então. Pela primeira vez apresentava-se um negro numa tela com total destaque e força, conscientização em sua projeção, embora inconsciente, posto que Tarsila pintava quase que como envolvida sempre numa atmosfera peculiar, da presença do negro em sua formação, em sua infância, dentro da paisagem a que a artista se sentia pertencer, como é assinalado pelas folhas em vegetação (...). Esse trabalho de Tarsila, pela sua ousadia de deformação e composição, pelo seu relacionamento ecológico direto e pela sua mensagem de autenticidade, já bastaria para colocar a artista em primeiro plano da pintura feita no Brasil. É a primeira obra “antropofágica”, se desejarmos usar o termo encontrado cinco anos depois por Oswald de Andrade com a intenção de iniciar um movimento polêmico para denominar outro trabalho [Abaporu], que não seria senão o desenvolvimento de A Negra (AMARAL, 2003, p. 121).
A representação primitivista de Tarsila do Amaral, exemplificada na tela A negra, já
focalizava características fenotípicas na construção de uma personagem “nacionalizada”. É na
relação entre arte e história que se percebe o agenciamento de memórias no modernismo
para construir de forma coletiva a questão de identidade cultural.
Jorge Coli vê em A Negra um princípio compositivo (para ele, presente também em
Almeida Júnior), de figuração de tipos não europeus, e signos que evidenciariam o lugar de
uma iconografia local, evidenciando a procura de uma nova iconografia que servisse de
inspiração temática para um arte nacional. Para Coli (2000),
4 Obra do acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, USP.
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Uma comparação entre A Negra, de Tarsila do Amaral, e o Caipira picando fumo, de Almeida Júnior, interroga a cisão entre o "moderno" e o "acadêmico" e, por alargamento, expõe a questão epistemológica das classificações na história e na crítica das artes [...]. O tema sentimental e paternalista da mãe preta aparecia com insistência nas artes, dos poemas de Cassiano Ricardo à escultura monumental, de telas diversas às letras de música popular. Nele, está claro, o seio que amamenta tem um papel importante. Possui ainda presença erótica, sexual. Talvez Tarsila do Amaral tenha derivado dessa recorrência, ao traçar o seio enorme de sua negra. No quadro, tudo conduz para a grande forma curva e lisa, que se mostra, que se oferece, no primeiro plano, ao espectador.
Para Amaral, A Negra é essencial para se entender a atmosfera exótica que Tarsila
expressa em seus quadros a partir de sua fase Pau Brasil. Sua figura central, preta, lábios
grossos, sentada com o seio apoiado em seu braço, uma figura sexualizada, mas que ao
mesmo tempo nos remete à mãe preta, à ama de leite, herança de um passado recente, tem
como pano de fundo traços retos, colocando em evidência a dualidade atraso-moderno do
cotidiano brasileiro.
No Brasil independente, segundo José Murilo de Carvalho, havia um consenso em
exaltar a natureza, o vasto território e sua diversidade, como motivo de orgulho nacional.
Porém os românticos passaram longe do tema do negro. “Quando o negro era tema literário
era-o antes como símbolo de uma causa humanitária, o abolicionismo” (CARVALHO, 2005, p.
245).
A figura do negro já fora tema de artistas como Abigail de Andrade, Modesto Brocos,
Lucílio de Albuquerque e Vicente do Rêgo Monteiro. Porém, segundo Aracy do Amaral “nunca
com a intencionalidade e projeção que assimilamos nessa obra” (AMARAL, 2003, p. 121).
A Negra se alça a símbolo porque em sua magnífica nudez é só exterioridade, sem denotar sentimentos próprios e traços, individualizar dores. Sua tristeza associa lassidão e languidez da prostração sexual feminina. [...] Funciona, portanto em muitos níveis de representação: A Negra é uma alegoria [cristã?] da maternidade e [afrobrasileira] da terra, um totem pagão cuja poesia emana da estranheza em face do outro primitivo latente, mas é também alegoria nacional, carta publicitária, artigo de exportação, cromo patriarcal, mãe ancestral, contraste de formas, fetiche sexual, manifesto modernista (DANTAS, 1997, p. 48).
A partir de 1924, segundo Aracy de Amaral (1967, p. 24), começam a aparecer nas
pinturas de Tarsila, os bichos 'tarsilescos',
com cinco patas, e nos quais a cauda é cabeça, em meio a uma flora mágica, na qual os cactos se assemelham a animais, as pedras são árvores à distância, as aves parecem insetos, toda uma metamorfose fixada, que a artista funde numa
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orquestração unitária, no colorido (dos rosas, verdes e azuis) das telas, como A Cuca, entre outros, que a fizeram famosa no Brasil.
A própria Tarsila considerava essa fase de sua obra como sendo de pinturas “bem
brasileiras que têm sido muito apreciadas” e prossegue: “Agora fiz um que se intitula A Cuca5.
É um bicho esquisito, no mato com um sapo, um tatu e outro bicho inventado" (Carta de
Tarsila a Dulce, São Paulo, 23 fev. 1924; apud AMARAL, 2003, p. 146).
A série à qual pertence o quadro A Cuca é considerada por Aracy do Amaral o ponto
alto de sua produção de meados da década de 1920, que é chamada hoje de “pau-brasil
metafísico/onírico”. Nessa série podem ser incluídas obras como Palmeiras (1925), Pastoral e
Manacá (1927), Calmaria, O Lago e O Sono (1928), Cidade e Sol Poente (1929) e Composição
(1930). Ainda, segundo Amaral (1997, p. 28-29),
A Cuca (1924) é o primeiro quadro desta série aqui relacionado. Pode ser avaliado como uma obra no limiar entre o exótico e o mágico que transpiram maravilhosamente por toda a pintura de Tarsila. Em meio a uma paisagem campestre simbólica – cactos, árvores e tufos, em pequenos núcleos de vegetação sinteticamente realizados – um pequeno e emblemático lago azul ao centro da composição é circundado por bichos fantásticos ou reais, como o sapo, uma taturana gigantesca, um tatu-pássaro e uma grande personagem amarela, invenção pura para a qual se voltam atentamente todos os demais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A defesa do legado histórico e artístico brasileiro fizeram os artistas do país – não só
nas artes plásticas, como também na poesia, na literatura e na música – assumirem a suposta
missão de identificar os signos que revelariam uma identidade, um modo de sentir e de se
expressar. Segundo Cattani, Tarsila do Amaral, em suas telas do período modernista,
principalmente criadas em sua primeira fase, recria momentos nostálgicos, de um passado
idealizado. A figura da negra como tema, assim como a introdução em nossa iconografia de
figuras do folclore nacional, como a Cuca, tem aqui função de alegoria: o primitivo e o exótico
aludem à vida brasileira. Para Cattani (2008 p. 73),
com todas essas conotações, sua pintura foi proposta como mito, criado por um país jovem, voraz em seu desejo de vencer o atraso e capaz de incorporar, em sua arte, múltiplos modelos, para criar algo novo. Tarsila elaborou-o plasticamente, devorando origens duplas que lhe eram igualmente estrangeiras. Da criação de
5 Obra localizada no Musée de Grenoble, Grenoble, França.
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mitos, de origem dual, surgiu um mundo irreal, fora do tempo, elaborado de uma dupla devoração.
O discurso artístico do modernismo buscou a representação criada pelo olhar
estrangeiro – foi assim nos relatos dos primeiros viajantes desde o descobrimento do país. A
imagem da Nação brasileira que vai se desenvolvendo respaldada pela necessidade de
descobrir uma identidade – uma “brasilidade” – é o reflexo do olhar europeu, que tantos
artistas se esforçaram para identificar, numa tentativa de agradar a esse olhar. Esse
movimento traduz uma dinâmica centro-periferia e, segundo Antônio Candido (1997, p. 289),
um persistente exotismo, que eivou a visão de nós mesmos até hoje, levando-nos a nos encarar como faziam os estrangeiros, propiciando nas letras [e nas artes] a exploração do pitoresco no sentido europeu, como se estivéssemos obrigados a exportar produtos tropicais também no terreno da cultura espiritual.
Para Carlos Zílio, o discurso artístico no Brasil se configurou em elementos que
compõem a imagem de uma nação e cultura construídas através da imagem de outro, ou seja,
através do olhar do europeu. Segundo o autor, “o Modernismo conscientiza e procura
trabalhar a tensão entre a produção de arte no Brasil e a sua ligação com a produção
europeia”. Paradoxalmente, a arte moderna na Europa leva a arte brasileira a indagar-se,
posição impossível para o academicismo anterior, preso a rigores formais. Tratava-se de
superar o estado de reverência da arte em relação aos cânones ocidentais, mas, sobretudo,
moldar uma arte brasileira para exportação, cujo “produto mais representativo teria sido a
obra de Tarsila do Amaral” (ZÍLIO, 1982, p. 15).
O entendimento do que seria o exótico, como característica de uma identidade
cultural, está associado a uma norma de veiculação, consciente e baseada em posições
simbólicas. O destaque para o aspecto exótico nas artes plásticas no Brasil, como uma
representação artística, nos faz refletir sobre quais visibilidades foram elaboradas em
delimitações temporais como o modernismo brasileiro, nos ajudado a perceber contornos
definidores da imagem que fazemos de nós mesmos e do que nos distingue do outro.
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