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Anais do VIII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba: ArtEmbap, 2011. ISSN 1809-2616 OS MURAIS DE POTY LAZZAROTTO NA CIDADE DE CURITIBA Luciana Ferreira 1 [email protected] Resumo: Este texto adota os murais de Curitiba como tema de estudo. Se propõe, a avaliar a importância de tais obras para a cidade e também para aqueles que as observam no dia a dia moradores ou visitantes da cidade. Ao mesmo tempo, tenta compreender o complexo universo simbólico que “carregam” em si afinal a leitura de um mural, como a de qualquer obra de arte, deve passar por vários enfoques como: o que a obra objetivamente exibe; quais as reações que ela é capaz de suscitar; qual a técnica utilizada; a qual contexto social e histórico ela está vinculada e quais as possibilidades de leitura de suas imagens, signos e símbolos. Como delimitação do estudo, recorre à reflexão sobre os murais produzidos por Poty Lazzarotto, uma vez que se deve a este artista, a grande maioria dos murais expostos em espaços públicos em Curitiba. Palavras-chave: Murais; Curitiba; Poty. Abstract: This paper takes the murals of Curitiba as the subject of its study. Proposes to evaluate the importance of such works for the city and also for those who observe them in their daily life, being they this citie’s residents or visitors. At the same time, we try to understand the complex symbolic universe that they "carry" themselves, looking at certain aspects and passing through various approaches such as: what do the works objectively display; what reactions they provoke; which are the techniques used; to which social and historical context are they bound; and what are the possibilities of reading their images, signs and symbols. The murals produced by Poty Lazzarotto and exposed in the walls of Curitiba are the universe of this study, because the vast majority of Curitiba’s mural art is due to this artist. Keywords: Mural art; Curitiba-Brazil; Poty. OS MURAIS EM CURITIBA Adotando os murais de Curitiba como tema, este estudo se propõe a avaliar qual a importância de tais obras para a cidade e para aqueles que os observam no dia a dia, sejam eles moradores da cidade ou visitantes e, ao mesmo tempo, compreender o complexo universo simbólico que os mesmos “carregam” em si. Como delimitação do estudo, recorre-se à reflexão acerca dos murais produzidos por Poty Lazzarotto, uma vez que a maioria dos 1 Artista Plástica. Mestre em Comunicação e Linguagens pela UTP. Doutoranda em Geografia pela UFPR. Professora Assistente de Artes Visuais do Curso de Licenciatura em Artes da Universidade Federal do Paraná Setor Litoral. Coordenadora do Projeto de Extensão Laboratório de Criação e Produção Artística.

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Anais do VIII Fórum de Pesquisa Científica em Arte.

Curitiba: ArtEmbap, 2011. ISSN 1809-2616

OS MURAIS DE POTY LAZZAROTTO NA CIDADE DE CURITIBA Luciana Ferreira1

[email protected] Resumo: Este texto adota os murais de Curitiba como tema de estudo. Se propõe, a avaliar a importância de tais obras para a cidade e também para aqueles que as observam no dia a dia – moradores ou visitantes da cidade. Ao mesmo tempo, tenta compreender o complexo universo simbólico que “carregam” em si – afinal a leitura de um mural, como a de qualquer obra de arte, deve passar por vários enfoques como: o que a obra objetivamente exibe; quais as reações que ela é capaz de suscitar; qual a técnica utilizada; a qual contexto social e histórico ela está vinculada e quais as possibilidades de leitura de suas imagens, signos e símbolos. Como delimitação do estudo, recorre à reflexão sobre os murais produzidos por Poty Lazzarotto, uma vez que se deve a este artista, a grande maioria dos murais expostos em espaços públicos em Curitiba. Palavras-chave: Murais; Curitiba; Poty. Abstract: This paper takes the murals of Curitiba as the subject of its study. Proposes to evaluate the importance of such works for the city and also for those who observe them in their daily life, being they this citie’s residents or visitors. At the same time, we try to understand the complex symbolic universe that they "carry" themselves, looking at certain aspects and passing through various approaches such as: what do the works objectively display; what reactions they provoke; which are the techniques used; to which social and historical context are they bound; and what are the possibilities of reading their images, signs and symbols. The murals produced by Poty Lazzarotto and exposed in the walls of Curitiba are the universe of this study, because the vast majority of Curitiba’s mural art is due to this artist.

Keywords: Mural art; Curitiba-Brazil; Poty. OS MURAIS EM CURITIBA

Adotando os murais de Curitiba como tema, este estudo se propõe a avaliar qual a

importância de tais obras para a cidade e para aqueles que os observam no dia a dia, sejam

eles moradores da cidade ou visitantes e, ao mesmo tempo, compreender o complexo

universo simbólico que os mesmos “carregam” em si. Como delimitação do estudo, recorre-se

à reflexão acerca dos murais produzidos por Poty Lazzarotto, uma vez que a maioria dos

1Artista Plástica. Mestre em Comunicação e Linguagens pela UTP. Doutoranda em Geografia pela UFPR. Professora

Assistente de Artes Visuais do Curso de Licenciatura em Artes da Universidade Federal do Paraná – Setor Litoral. Coordenadora do Projeto de Extensão Laboratório de Criação e Produção Artística.

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murais de Curitiba foi criada por este artista: do Teatro Guaíra ao monumento do Centenário

do Estado; dos azulejos atrás da Catedral, às sedes de várias empresas públicas e privadas.

OS MURAIS DE POTY

Figura 1 – Mural “Imagens da Cidade”, Poty. Fonte: www. expiracaoeinspiracao.blogspot

Figura 2 – Mural “Largo da Ordem”, Poty. Fonte: www. ceramicanorio.com

Ao se observar a arte produzida por Poty, uma característica imediatamente parece se

destacar das demais: seu traço tem algo de rural, mas é moderno – seja pela distorção criativa

ou pelo uso de justaposições de espaços e tempo. Graças a esse traço peculiar, tipos de uma

Curitiba ainda ligada a hábitos agrícolas, mas flagrada por uma linguagem contemporânea,

surgem na forma de pessoas comuns, no exercício de usos, costumes, atividades e diversões

paranaenses. Cenas tão triviais do cotidiano humano foram expressas por um simbolismo

carregado de humildade e singeleza, que levam, possivelmente, aqueles que as veem a

identificar-se, mesmo que inconscientemente, pelo que é sugerido no contexto de sua obra.

Provavelmente, tal característica pode ter sido o dado decisivo para a presença maciça de seus

trabalhos em tantos espaços públicos e privados da cidade de Curitiba.

Durante uma de suas últimas entrevistas, ao jornal Estado de São Paulo, Poty afirmou

que tinha escolhido o mural como suporte, por ser este meio, em parte, mais democrático do

que as outras formas de arte. Em cinco décadas de atividades ininterruptas, a maior parte da

obra de Poty é representada pela arte pública – e se encontra, quase toda, em Curitiba. Até

1986, o artista plástico Poty Lazzarotto já havia assinado mais de vinte murais espalhados pela

cidade. É difícil ter acesso à localização de todos eles, mesmo porque nem o próprio Instituto

de Pesquisa e Palnejamento Urbano de Curitiba (IPPUC) possui dados sobre a quantidade e a

localização deste acervo.

Muitos dos murais de Poty estão ligados a temas específicos, atendendo a projetos

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propostos por instituições públicas ou privadas, mas usam, praticamente, os mesmos símbolos

que reafirmam a identidade curitibana e paranaense. Poty colocou, na totalidade de sua obra,

a sua energia e seus traços vigorosos para retratar criativamente o perfil da cidade, de seus

habitantes e de sua história. Suas lembranças, sejam da sua infância ou da cidade, estão nos

murais: lá estão as pipas, as casas de madeira, os lambrequins, os trilhos de trem – do tempo

em que a cidade dependia de tal transporte para chegar a qualquer outro lugar do país –,

assim como a figura do ferroviário, do tropeiro, dos cavalos, dos índios e dos imigrantes, dos

homens que viviam da madeira, das desaparecidas carrocinhas e das “polacas” com suas

enormes cestas de verduras e lenço na cabeça e também do “ponto de encontro” da Rua José

Bonifácio, perto dos bebedouros de cavalos em frente à Igreja da Ordem – o único ainda

existente na cidade. Poty retratou também a Curitiba moderna, a Praça Tiradentes, os

Ligeirinhos (ônibus articulados e biarticulados, característicos da cidade), os novos materiais

usados em construções da cidade – como o aço, o metal, as transparências – os Faróis do

Saber, as Estações Tubo, sempre mantendo um cuidado minucioso com todas as épocas.

Em muitas dessas imagens, é possível fazer, também, uma interpretação ideológica da

cidade, pelo uso recorrente de símbolos e signos feitos pelo artista. Entretanto, apesar de ter

sido considerado o artista oficial da Administração Pública da cidade de Curitiba, os murais de

Poty, assim como quase toda obra de arte, possuem um significado mais profundo e latente

que não é apreendido, senão de modo muito vago, pela maioria das pessoas.

OS MURAIS E A PAISAGEM DA CIDADE

A paisagem de uma cidade caracteriza-se pela magnitude de seu ambiente, no qual se

destacam suas construções: prédios, casas, ruas, praças, bairros, centros comunitários,

hospitais, parques, obras de arte pública, entre outros. Cada um destes elementos se destaca

na cidade utilizando-se dos mais variados recursos: cores, escalas de tamanho diferenciadas,

diversificados tipos de construções. Além disso, cada cidade apresenta um fluxo diferente: seja

de comunicação, de tipos humanos ou de cultura, produzindo, desta forma, diferentes

imagens e significados para o espectador.

Curitiba é conhecida pelo uso em larga escala de murais. Estes se disseminaram por

esta cidade que dispensa grande cuidado aos seus logradouros públicos, o que ajuda a reforçar

uma proposta urbana que é reconhecida internacionalmente. Percebe-se, com facilidade, a

atenção dedicada a esses espaços: na imposição de limites para o uso de placas pelos

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estabelecimentos comerciais no centro da cidade; na proteção da arquitetura histórica; no

limite de anúncios em postes ou outros suportes, cuidados que criam não só beleza mas

também significado.

Em geral, as praças e ruas de Curitiba são alvos de proteção, estando sempre sob

manutenção. Foi nas praças que começaram a ser instalados os primeiros murais da cidade.

Enraizada na tradição curitibana, a maioria dos murais reúne, sobre seu “corpo”, símbolos –

símbolos que foram criados no início do século XX, durante o que se configurou como

Paranismo – e que acabou por criar uma identidade imagética paranaense.

Previamente à inserção de um mural em algum logradouro, são realizados estudos por

órgãos competentes da Administração Pública, como por exemplo, o IPPUC e a Secretaria de

Cultura. O local escolhido, salvo a exceção que confirma a regra, apresenta, entre as muitas

características que definem sua escolha, uma que pode ser a de maior peso: alto fluxo de

transeuntes ou de afluência de público. Os murais podem ser considerados monumentos –

definição que por si só já dimensiona seu potencial de visualização. Dotados de tal atributo,

pontos turísticos ou históricos oferecem o elemento que é a razão fundamental da instalação

de um mural: alta frequência de visualização. Os murais Largo da Ordem e Imagens da Cidade,

por exemplo, foram instalados no centro cultural e símbolo histórico do “nascimento” da

cidade: o próprio Largo da Ordem. Desta forma, ao estabelecer com o lugar uma relação de

identidade, direta e prática, mas sem descartar o fator emocional, os murais acabam

acrescentando valor de legitimidade ao local de inserção, conferindo ao espaço maior realce

de seus atributos, em escala suficiente para torná-lo objeto de visitação “obrigatória” e ponto

de referência.

Quando um mural é instalado, acontece, ao mesmo tempo e no mesmo lugar, a

reunião de três campos distintos da arte: a pintura, a escultura e a arquitetura. Observando

cada campo, isoladamente, é possível chegar a algumas conclusões:

na pintura, os murais apresentam sua característica bidimensional, sendo a visão

responsável pela ligação com os “agentes da percepção”. Entretanto, apresentam uma

limitação: os olhos têm a sensação de volume, mas se mostram incapazes de constatá-

la como acontece, por exemplo, com o mural da Praça 19 de Dezembro,

confeccionado em azulejos;

na escultura, tanto a visão quanto o tato se incumbem da ligação com os “agentes da

percepção”;

a arquitetura se responsabiliza por reunir os “agentes de percepção” visual e tátil, em

um conjunto condicionado aos seus critérios (e utilizados em relação a qualquer

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edificação), numa tentativa de tornar os murais, elementos harmoniosos em relação

ao espaço em que serão instalados. Como se sabe, a inserção de um objeto

tridimensional, como é o mural, altera o cenário da cidade em volume, dimensão e

estética. E a arquitetura, que dispõe de meios para encontrar a solução mais

adequada, utiliza de seus recursos artísticos e técnicos, levando em consideração os

aspectos ambientais e estéticos. Como exemplo, temos o mural da Praça 29 de Março,

confeccionado em concreto armado.

Segundo Escobar (2000, p. 51), a instalação de um monumento (estátua, obelisco,

chafariz, mural, etc.), num espaço público, é feita com base em três conceitos: centralidade,

axialidade e excentricidade. Em entrevista informal, no departamento de Projetos, feita no

IPPUC, foi possível obter os seguintes dados a respeito dos conceitos e reflexões realizados por

Escobar.

Na centralidade, a instalação do monumento é feita exatamente no “centro

geométrico” de um determinado espaço (praça, jardim, parque, entre outros). Tal

posicionamento vem sendo usado desde os mais remotos tempos e está estreitamente ligado

ao desenho clássico. Um exemplo deste posicionamento é o conjunto de obras da Praça 19 de

Dezembro.

Na axialidade, a instalação do monumento é feita com base em um “eixo” (reta)

conseguido a partir de dois pontos relevantes, onde, segundo o IPPUC, o “ponto focal” está no

monumento e, na outra extremidade do “eixo” um ponto importante da cidade, como uma

edificação histórica, uma igreja ou uma característica geográfica, como a Serra do Mar, por

exemplo. O conceito de axialidade pode ser considerado moderno – se comparado ao da

centralidade – e surgiu como conseqüência da renovação urbanística européia, no século XIX,

generalizando-se no século XX. No Brasil, particularmente na cidade de São Paulo, a axialidade

passou a ser empregada, aproximadamente, a partir da década de 1940. Como exemplo deste

conceito pode ser citado o mural O Teatro e o Mundo, instalado na fachada do Teatro Guaíra,

que tem bem à sua frente, do outro lado da Praça Santos Andrade, a Universidade Federal do

Paraná (UFPR) (a mais antiga Universidade do país), com a qual forma o “eixo”, exigido pela

axialidade. Outro exemplo é o mural As Quatro Estações, instalado na fachada do Hotel Paraná

Suíte. Neste mural, a figura do Semeador homenageia a fertilidade do solo paranaense e

também o escultor Zacco Paraná, autor de escultura homônima situada defronte ao mural.

Na excentricidade, a instalação do mural é feita por critérios que não se enquadram

em nenhum dos conceitos anteriores. Nas palavras de Escobar (2000, p. 51), “é a antítese das

regras, fruto da espontaneidade e da descoberta de novas lógicas”. O exemplo de

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excentricidade pode ser observado na instalação dos murais “Largo da Ordem”, “Imagens da

Cidade”, “O Eterno Sonho” e “Evolução do Saneamento Básico”. Nestes exemplos, vemos os

murais serem “acomodados” em espaços já existentes (pois usam prédios antigos como

suporte e, claro, construídos muito antes de se imaginar a instalação do mural).

É, entretanto, muitas vezes impossível determinar os critérios adotados para a

instalação de monumentos sem dispor de dados objetivos sobre como a mesma se deu.

Quando da visita ao IPPUC, ao ser levantada essa questão, a própria instituição argumentou

que mesmo levando em conta a precariedade de dados disponíveis, nenhum monumento é

instalado de forma aleatória ou arbitrária.

À parte os conceitos adotados na instalação dos murais (e dos monumentos, por

extensão), é preciso ressaltar que a aplicação dos mesmos resultou também do aparecimento

de novos materiais e suportes que representam o notável aprimoramento técnico dessa área

artística. Tal aprimoramento pode ser observado nos mais variados murais onde se destacam o

concreto, o azulejo, o vidro e a madeira. As novas técnicas acrescentaram mais

espontaneidade, leveza e, sobretudo, mais liberdade aos conceitos de instalação dos

monumentos contemporâneos e produziram, ao mesmo tempo, o aumento de distinção e

autenticidade dos murais curitibanos.

MURAIS: SIMBOLIZAÇÃO E SIGNIFICAÇÃO

A leitura detalhada de um mural, como a de qualquer obra de arte, deve passar por

vários enfoques: o que a obra objetivamente exibe; quais as reações que ela é capaz de

provocar no espectador; qual é a técnica utilizada pelo artista; a qual contexto social, poliítico,

histórico a obra está vinculada; se faz parte de um determinado movimento artístico; o estilo

do artista que a criou; e, as possibilidades de leitura que suas imagens oferecem.

Como linguagem artística, a arte mural, especialmente aquela realizada por Poty em

Curitiba, constitui uma expressão semiótica, pois, segundo Langer (1989), toda expressão

semiótica carrega um pensamento que designa alguma coisa que se situa fora dela. As

imagens que esses murais apresentam estão relacionadas ao Estado do Paraná ou à cidade de

Curitiba, em suas características urbanas ou rurais, assim como ao homem paranaense, suas

atividades e qualidades.

Essas obras foram “encomendadas” pela Administração Pública e produzidas para

atuar como objetos de publicidade do Governo, são símbolos da riqueza e “enfeite” da cidade

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em que atuam. São objetos de conveniência prática, que denotam poder político e econômico,

servindo também como ostentação da beleza da cidade. Como objetos, que “acomodam” em

si uma obra de arte de um artista famoso, podem ser, entretanto, a qualquer tempo, trocados

por outros objetos de “melhor conveniência” para a Administração Pública.

De modo geral e visto como objeto, o mural acaba, muitas vezes sendo somente

encarado como um fundo colorido, sem um significado particular, precisando sempre de festas

para ser “visto”, assim como de datas específicas para ser criado e inserido no espaço urbano.

Caso contrário “morre” visualmente na velocidade do dia a dia e na disputa com as outras

construções, diversões e pontos turísticos da cidade. Pode-se dizer, portanto, que os murais,

em Curitiba, se tornaram “famosos” e “conhecidos” mais pela relação com o poder que a

cidade pode transmitir, do que pelas suas qualidades estéticas. Talvez, por isso, a grande

maioria dos espectadores passe indiferente a eles, sendo vistos, mas não contemplados, pois,

é claro, a verdadeira contemplação estética só começa quando se supera essa visão

“coisificada” que aparentemente se tem a respeito da arte pública. Desde quando foi erguido

o primeiro mural até a instalação dos murais atuais, o que está em questão é o “valor” que a

cidade e o Estado precisam deixar transparecer que possuem. Este valor precisava e precisa de

um suporte “estético”, e assim o mural foi escolhido, como poderia ter sido outro suporte

qualquer. Ele é, portanto objetivamente, um objeto ideológico, assim como o são suas

imagens.

Segundo Chauí (1981):

Em toda sociedade dividida em classes, na qual há uma cisão entre o objeto e o sujeito (propriedade e não propriedade, consumo e produção, abundância e miséria) existe uma sociedade dominada por uma ideologia, que se determina como o pensamento da classe dominante, e, em uma sociedade dividida em classes, a ideologia forma o significado manifesto da maioria dos bens culturais, inclusive da arte pública, constituindo-se num pressuposto do próprio conhecimento.

Existe aparentemente o consenso de que os murais levam para a rua a arte que muitos

não conhecem ou à qual não têm acesso, podendo com seus signos enriquecer culturalmente

as pessoas; assim como existe o consenso de que eles enriquecem visualmente a cidade,

tornando-a mais agradável. Do ponto de vista estético e ideológico, os murais de Poty são

realmente belos. Mas, ideologicamente, são belos não por refletirem a realidade, mas porque

partem da premissa de que a própria realidade é bela em si mesma, convertendo os atributos

das obras em atributos da realidade, não ultrapassando nunca a esfera da aparência.

Como se sabe, a Administração Pública sempre produziu uma massa de objetos

ornamentais urbanos, como é o caso do mural em Curitiba. Essa intensa produção deixou clara

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a versatilidade e a eficiência estética, levando à “necessidade” de repetir o mesmo objeto e os

mesmos signos. Modernamente, a necessidade de repetição dos signos provocou, como é fácil

notar, a estilização de certas imagens fora dos murais: como por exemplo, o “pinhão”, a

“polaca-verdureira” e o “pinheiro”. Após a estilização, veio a esquematização destas formas e,

à medida que foram sendo necessárias mais e mais imagens esquematizadas, estas chegaram

à abstração estereotipada, como se percebe nos desenhos das calçadas e faixas de pedestres

em forma de pinhão, ou nos cartões postais com imagens estilizadas e estereotipadas da

“polaca-verdureira”. Todas as imagens que Poty produziu foram multiplicadas muitas e muitas

vezes.

Assim, estas imagens que um dia tiveram grande valor simbólico, poderiam ter-se

tornado vazias, uma vez que, aparentemente, desapareceu seu conteúdo simbólico e

permaneceu apenas, seu conteúdo ideológico. Entretanto, as imagens e os murais de Poty se

diferenciaram, não por sua magnitude ou objetividade, mas porque Poty, antes de ser um

grande muralista, financiado pela Administração Pública, foi um grande artista, criando

imagens que foram além dessa programação ideológica. Existem nelas um choque entre a

superficialidade ideológica e a profundidade da obra. Cada uma das imagens de seus murais

carrega uma história dentro de si, isto é, uma essência que permanece enquanto todo o resto

muda – neste caso, o compromisso ideológico que as originou.

Os murais de Poty “descrevem” a visão do artista do Paraná e de Curitiba. Na maioria

das obras murais, o elemento principal é o homem paranaense e o “fundo” destas imagens é o

“mundo” curitibano e paranaense em seus aspectos estruturais. As imagens dos murais são,

portanto, miméticas, e por esse motivo todas possuem um tema: Desenvolvimento Histórico

do Paraná, Alegoria ao Paraná, Tropeirismo no Paraná, As Quatro Estações, Café e Mate, Ciclos

Econômicos do Paraná, Largo da Ordem, Imagens da Cidade, O Teatro e o Mundo, O Tempo e a

Vida, O Eterno Sonho, A História de Curitiba, A Gralha Azul. Os títulos conseguem, na grande

maioria das vezes, exprimir o sentido ou o conteúdo das obras.

Desta forma, enquanto obras de arte, os murais operam com signos analógicos, não

sendo necessário ser um especialista para apreciar suas imagens. Os signos encontrados nos

murais substituem as palavras, eles “apresentam uma história” para os espectadores, que

podem ler e interpretar suas imagens assim como acontece com a linguagem verbal –

entretanto, é preciso frisar, todo signo permite uma variedade infinita de interpretações.

Quando vemos o signo “pinheiro”, vemos a força ou a austeridade do homem

paranaense, a força e a beleza da natureza e também os grandes desmatamentos que quase

causaram sua extinção. Quando vemos os “lambrequins”, vemos a colonização ou a

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arquitetura característica das primeiras moradas paranaenses, mas também a dificuldade pela

qual passaram os colonos. Da mesma forma, quando vemos a imagem do “bebedouro dos

cavalos” e das “polacas-verdureiras”, ou dos “tropeiros” e dos “ferroviários”, vemos o passado

ou o povo trabalhador que sempre existiu em Curitiba ou que a colonizou, mas também o

cansaço, a luta do povo, a indefinição do futuro, a pobreza e assim por diante. Desse modo, a

universalidade e a grandeza destas imagens são resultados diretos da universalidade e da

grandeza das experiências coletivas e da experiência particular do artista Poty. Assim, cada

signo observado isoladamente possui um significado objetivo que possui, por sua vez, em seu

interior vários significados e sentidos particulares, aí sua difícil definição teórica.

Segundo Langer (1989), todo signo analógico pressupõe um vínculo com a experiência

sensível da coletividade, sendo que é essa conexão com a práxis que permite que a imagem se

transforme em um signo. As imagens podem refletir a realidade porque elas já fazem parte da

realidade concreta: o signo apresenta o real porque é um momento do real.

Cada signo criado por Poty exibe uma faceta da realidade e de sua obra. Juntos, os

signos resultam num princípio de composição, que é fruto do estilo do artista, que em “seu

mundo” ditou as regras. Além disso, apesar de toda complexidade de significações contidas

nas imagens dos murais, Poty as criou de forma singela, retratando o homem, as atividades e

os costumes comuns e que serviram e servem como espelho do cotidiano. Estes signos são

fontes de conhecimento da história curitibana e paranaense e foram recuperados entre

experiências próprias do artista, lendas, cotidiano e símbolos paranistas. Com isso, o artista

conseguiu deixar explícito o significado implícito da conduta da coletividade, sendo que a

beleza estética dessa arte está justamente em expressar uma coletividade historicamente

determinada.

O que definirá a quantidade de interpretações e significações de cada signo, será a

quantidade de informações que possui o espectador a respeito dos signos ali dispostos e a

respeito da história de vida de Poty Lazzarotto, o criador, assim como o conhecimento que

tem sobre a cidade de Curitiba e o Estado do Paraná, pois, segundo Lévi-Strauss (1975), as

unidades pictóricas adquirem significado à medida que estão ancoradas na experiência

sensível dos indivíduos. Se, de um lado, ao repetir os mesmos signos, os murais conseguem

despertar nos espectadores o sentimento agradável do reconhecimento – mesmo que estes

nada signifiquem para o espectador –, de outro, podem arrancar significações mais profundas

– mas isso dependerá das experiências de cada espectador. Assim, é fácil massificar os signos,

mas é difícil massificar o conteúdo que eles encerram.

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Os murais, desta forma, carregam em si um significado prático – que no mínimo

suscita nos espectadores algum tipo de sentimento – mas, em sua complexidade, são

portadores de pensamentos que revelam sua utilidade e seus fins.

CONCLUSÃO

Este texto teve como principais propostas avaliar a importância que os murais têm

para a cidade de Curitiba e também compreender o complexo do universo simbólico que os

mesmos “carregam” em si.

Os murais, em Curitiba, servem como objetos de mediação entre as diferentes

instituições e a comunidade. Servem também como um suporte diferenciado, que oferece

uma forma pictórica de interpretação da história local, informando e relacionando fatos da

cidade e do Estado do Paraná. Entretanto, o universo do qual o mural faz parte é muito mais

vasto e complexo do que se pode, à primeira vista, imaginar. Ele engloba uma infinidade de

áreas que envolvem ao mesmo tempo as relações humanas, sociais e políticas: relações

inevitáveis e que modelam não só as cidades, como também seus cidadãos, seus objetos e

consequentemente sua arte pública.

Durante o levantamento de quais murais serviriam para esta análise, acabou-se

delimitando o estudo aos trabalhos de Poty Lazarrotto – pela presença expressiva,

característica e famosa de seus monumentos; por suas obras efetivamente “contarem” as

histórias da cidade e; por ser Poty um artista reconhecido nacional e internacionalmente.

Os signos apresentados nos seus murais são aparentemente simples e objetivos –

não existem signos obscuros nas obras de Poty, ao contrário do que acontece em obras

abstratas, por exemplo. Eles refletem o homem e o mundo, centrando-se no cidadão.

Expressam não só a subjetividade do artista, mas a subjetividade dos espectadores – e,

provavelmente, foi essa ligação tão profunda das imagens com os espectadores que passou a

ser o ponto decisivo que fez com que o artista fosse o escolhido, não só pela Administração

Pública, mas por um grande número de espectadores que se tornaram admiradores da sua

obra.

A simplicidade/complexidade encontrada na obra de Poty, a tornou, de outro lado, um

“modelo”, um “padrão de perfeição a ser seguido”. Assim, existem até hoje diversas tentativas

de copiá-lo. A Administração Pública tentou algumas vezes, usar outros artistas na produção

de murais na cidade, sem muita sorte. Os que mais se aproximaram da “padrão/modelo”

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Anais do VIII Fórum de Pesquisa Científica em Arte.

Curitiba: ArtEmbap, 2011. ISSN 1809-2616

esperado, imitaram de alguma forma os murais de Poty ou seus signos-símbolos. Nesta

tentativa frustrada de repetição, produziram-se formas desgastadas e de pouco interesse por

parte da crítica e do espectador curitibano. Portanto, pode-se perceber que, até mesmo após a

morte do artista, foram criados murais com suas imagens, assim como, percebe-se também

que a Administração Pública entrou em aparente desinteresse pela produção de murais.

Desinteressou-se, provavelmente, porque existia a expectativa de que novas obras

“surgissem” com a essência que era encontrada na obras de Poty.

Essência que só pode ser entendida se for considerada a devoção que o artista

demonstrava ter em observar as reações provocadas pelos seus signos nos espectadores,

assim como da soberania que possuiu sobre seus meios, suportes e signos e o domínio entre a

técnica e o planejamento consciente de cada obra. Características que conferiram, com

certeza, ao grafista e muralista, lugar de destaque e que possibilitaram a expansão de sua

obra, não só em Curitiba, mas por todo Brasil e pelo mundo. Enfim, sua capacidade de ser

individual e coletivo ao mesmo tempo.

REFERÊNCIAS

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